Tarifa não é dinheiro, é tempo

É por recusar a brutalização da vida que manifestantes se tornam uma ameaça perigosa e são violentamente reprimidos


Tempo não é dinheiro. E tarifa é tempo, não dinheiro. São sobre tempo, portanto, e não sobre dinheiro, os protestos contra o aumento das passagens do transporte público em 2016, como foram os de 2013. Se não for resgatada a potência do que está em jogo nas ruas de São Paulo e de outras cidades do Brasil, tudo se repetirá como farsa. E a Polícia Militar brutalizará os corpos já brutalizados pela tarifa e, principalmente, pela vida monetarizada. A vida reduzida à lógica do capital.

Há duas linhas principais na narrativa dos protestos por parte da imprensa. Uma destaca o fato de que o aumento da tarifa de ônibus, trens e metrô de São Paulo, de 3,50 reais para 3,80 reais, foi menor do que a inflação. A outra aponta o “confronto” da Polícia Militar com os manifestantes para impedir a depredação e o “vandalismo” do patrimônio. Essas duas abordagens, intimamente ligadas, aparecem como naturais, como se houvesse uma ordem “natural” que dissesse respeito à “natureza” das “coisas como as coisas são” que precedesse a vida e a política – e também a tarifa do transporte público e a ação das forças de segurança do Estado. São os dogmas não religiosos que mesmo uma parte da imprensa laica reproduz.

Na primeira linha narrativa está implícita a afirmação de que, se a tarifa subiu menos que a inflação, não há razão para os manifestantes protestarem. Seria óbvio que, na ponta do lápis, é preciso que a inflação seja reposta para que o sistema possa seguir operando. Assim, subir menos que a inflação seria uma benesse pela qual a população deveria ficar agradecida. A afirmação embutida é de que a lógica da vida é monetária. E, principalmente, a de que tarifa de transporte não é uma questão de política, mas de saber fazer contas.

A segunda linha narrativa transforma a Polícia Militar na principal protagonista, na medida em que as forças de segurança do Estado decidem qual será o desfecho da manifestação – ou se vão jogar bombas de gás, disparar balas de borracha e descer o cassetete no começo, no meio ou no fim dos protestos. Esta é a pergunta suspensa sobre cada ato contra o aumento da tarifa. E é com “naturalidade” que isso é descrito, como se a PM fosse um corpo autônomo e como se sua ação não dissesse respeito a uma visão de mundo nem fosse resultado de uma ordem do governador. É também como se governador e PM não tivessem que prestar contas à população. A atuação da PM diria respeito à ordem “natural” das coisas – e não à política. “Manter a ordem” seria uma ordem acima da ordem, sem necessidade de passar pela pergunta obrigatória sobre que ordem é essa que se pretende manter.

Esses dogmas laicos – e os laicos podem ser piores do que os religiosos, porque escondem o que são – servem para encobrir o que está em jogo nos protestos contra o aumento da tarifa do transporte. E, principalmente, que esse protesto seja nas ruas e que seja sobre transporte – e não sobre outra dimensão da vida. Esses dogmas laicos servem para encobrir que se trata de tempo – e não de dinheiro. Trata-se de patrimônio imaterial, intransferível, de cada pessoa – e não de patrimônio material, comercializável, rentável, de corporações ou estados. Esses dogmas laicos servem para encobrir que os protestos são políticos, sim, mas políticos no sentido profundo da política, que diz respeito a como as pessoas querem estar com as outras no espaço público. E de como querem viver o que de mais importante têm ou tudo o que de fato têm numa vida: tempo.

Vale lembrar da frase de lembrança sempre urgente do professor Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século 20: “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”. Quando se vai às ruas protestar contra 20 centavos, como em 2013, ou contra 30 centavos, como agora, em 2016, não é “só” sobre 20 ou 30 centavos. Ainda que seja também, o protesto é principalmente sobre algo que, ainda que o capitalismo bote preço, escapa do capitalismo. Não existe uma “natureza” inerente ao tempo que diga que ele tem preço. Existe política e cultura, existe criação humana.

É de política que se trata quando se protesta contra a apropriação do tempo. A lógica dos protestos é a de que tudo pode se mover, porque cultura e porque criação humana. É também a lógica do possível, não do já cimentado. Assim, a lógica dos protestos não se sujeita a dogmas. Ela se sujeita ao sujeito. E o sujeito, quando sujeitado, objeto se torna. É essa a conversão feita pela lógica da monetarização e pela lógica da brutalização dos corpos pela PM: reduzir o sujeito a objeto para que nada se mova. Para impedir que isso se repita como farsa, é necessário reafirmar a gestão do tempo como uma experiência da política.

Pesquisas que relacionam quantidade de tempo de trabalho e valor monetário da tarifa, como a realizada pelos economistas Samy Dana e Leonardo Lima, da Fundação Getúlio Vargas, são importantes. Em São Paulo, uma pessoa precisava trabalhar, em 2015, cerca de 13,30 minutos para pagar a passagem. Já em capitais que costumam ser admiradas e elogiadas como o melhor do capitalismo, onde os serviços de transporte público apresentam qualidade reconhecidamente melhor, as tarifas são mais baixas e até muito mais baixas: Londres (11,30 minutos), Madri (6,20 minutos), Nova York (5,80 minutos) e Paris (4,50 minutos).

A exposição da discrepância dos valores monetários, provando que é possível ter uma tarifa bem menor mesmo em países capitalistas, é fundamental para começar a desconstruir as contas e revelar o material que nelas está embutido, para muito além da reposição da inflação. É essencial para fazer as perguntas mais complicadas, aquelas necessárias para a compreensão de por que no Brasil há uma tarifa tão cara para um serviço tão péssimo. Mas talvez o mais importante desse tipo de pesquisa seja chamar a atenção para o elemento principal, o tempo.

Vale a pena destacar o fato de que uma parcela das pessoas trabalha mais de 13 minutos em São Paulo para pagar uma única passagem de ônibus ou trem para alcançar o local de trabalho. Para a ida e a volta é quase meia-hora de vida. E muitos pegam mais do que um ônibus e um trem para a ida e para a volta, engolindo mais vida. E isso sem contar o tempo médio que cada um leva neste percurso, às vezes horas. De vida. Também vale a pena lembrar que, para o lazer, falta.

Me refiro a pessoas – e não a “trabalhadores” – para não reduzir a larga dimensão de uma existência a trabalho ou à monetarização dos corpos. Assim, esse tipo de pesquisa serve para lembrar não que tempo é dinheiro, mas justamente a negação dessa monstruosidade: tempo não é dinheiro. É isso que os manifestantes contra a tarifa lembram a todos ao ocupar as ruas. Mas sua voz é encoberta pelos dogmas laicos. Que, como todo dogma, recusam qualquer dúvida.

Quando a voz é encoberta, a política e a possibilidade de mudança são caladas. Pela força, como se vê. O papel reservado à PM é justamente o de manter uma ordem ordenada por aqueles que detêm o poder de dizer qual é a ordem que vale. De sujeitos da sua ação política, do seu verbo, os manifestantes são reduzidos nas ruas a objetos da ação de um outro, que conjuga o verbo silenciar usando o estrondo das bombas. E assim impede o debate sobre o transporte como um direito social, recentemente incluído na Constituição, mas ainda não expresso na prática cotidiana.

Aqueles que defendem a tarifa zero, como o Movimento Passe Livre (MPL), principal articulador dos protestos de 2013 e de 2016, acreditam que não é o usuário que deve pagar individualmente pelo serviço, mas o conjunto da sociedade, para que todos tenham acesso ao direito de ir e vir. Como acontece, costuma lembrar o engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes na gestão de Luiza Erundina, na coleta de lixo, na educação e na saúde, entre outros exemplos, com melhores ou piores resultados. Acontece porque a sociedade entende que é importante garantir o acesso a todos. Há várias propostas circulando de como isso poderia ser implementado, mas esse debate é obscurecido e seus interlocutores reprimidos.

A tarifa zero é controversa? É. Como tudo o que pertence à esfera da política. Talvez menos controversa do que a ideia de um serviço essencial estar submetido à rentabilidade dos empresários do ramo. Mas, qual é a ameaça tão grande à ordem e aos dogmas, que não é possível sequer levantar um cartaz pela tarifa zero sem levar bomba de gás ou um cassetete na cabeça ou no lombo? Essa é a pergunta óbvia que qualquer um deveria fazer antes de sair defendendo a repressão aos manifestantes ou dizendo que a tarifa zero é irreal. Numa democracia não há nada que não possa – ou mesmo deva – ser debatido pela sociedade. Numa democracia o único imperativo acima de qualquer discussão é este: a obrigação legal e ética de dialogar sobre tudo. Neste caso, dialogar antes de impor um aumento de 30 centavos.

Dialogar não é uma escolha para governantes eleitos, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT). Ambos perdem sua legitimidade se não dialogam com os múltiplos atores da sociedade dentro do sistema que os elegeu. É a obviedade seguidamente esquecida de que o poder não lhes pertence, foi apenas a eles delegado pelo voto. Que Alckmin e Haddad, que representam PSDB e PT, estejam juntos nessa empreitada do aumento da tarifa sem o necessário diálogo com a sociedade sobre como se mover em São Paulo é mais uma prova da corrosão da política partidária, com a crescente perda de sua capacidade de representação. O fato de que Haddad, um prefeito que tem ousado na mobilidade urbana, enfrentando a rejeição de setores das classes média e alta paulistanas, esteja ao lado de Alckmin, um governador conservador que costuma reclamar que os movimentos são políticos, como se pudessem ser qualquer outra coisa, estejam alinhados no aumento da tarifa, embora não na violência da PM, revela o quanto esse tema é espinhoso. Mais um motivo para ser debatido – e não o contrário.

É necessário prestar atenção às palavras usadas para narrar os protestos. “Confronto”, por exemplo, pressupõe forças semelhantes, e pressupõe que essas forças semelhantes ocupam um mesmo lugar simbólico. Quando usado em discursos, títulos e textos da imprensa para descrever os protestos e a ação da PM, esse termo pode estar a serviço do apagamento de uma dimensão fundamental dessa relação: os manifestantes são cidadãos exercendo seu direito de protesto e as forças de segurança do Estado deveriam estar protegendo esse direito. Apaga-se assim o fato de que é de normalidade democrática que deveria se tratar – e não de um lado e de outro lado, como se fosse uma guerra e se tratasse de inimigos.

Nas vezes em que isso é questionado, ouve-se frases como a do governador Geraldo Alckmin (PSDB), esquecendo-se subitamente de que elogiou a PM que espancou adolescentes nas manifestações contra a “reorganização escolar”: “Manifestação legítima e pacífica é positivo, é nosso dever acompanhar e dar segurança. Outra coisa é vandalismo seletivo”. Para justificar que a polícia que comanda violou a lei ao jogar bombas e disparar balas de borracha contra manifestantes, é usual sacar da manga do terno uma outra expressão: a “manifestação pacífica”.

Essa expressão contém pelo menos dois pontos sobre os quais vale a pena refletir. O primeiro é que, mesmo que uma pequena parte dos manifestantes deprede o patrimônio, isso não autoriza a PM a abusar da força. É para fazer melhor que isso que ela deveria ser treinada, já que não se trata de uma gangue de rua, mas das forças de segurança do Estado. Que parte da sociedade tolere e seguidamente aplauda que a PM atue como uma gangue de rua, truculenta e despreparada, é preocupante.

O outro ponto, e este é mais insidioso, é o de insinuar que conflito é algo negativo. O espaço público, como tão bem disse o arquiteto Guilherme Wisnik, é um lugar de conflitos: “O grande atributo da esfera pública é mediar o conflito, porque a sociedade, em si, é conflituosa. A ideia de um espaço sem conflitos é ideológica, uma pacificação irreal. Quando um espaço público não tem conflito é porque ele não está cumprindo sua função”.

Quando os manifestantes vão às ruas levantando a bandeira da tarifa zero estão em conflito com a visão de setores dos governos e da sociedade que defendem ideias opostas. Tentar apagar os conflitos, sem enfrentá-los com debate e com escuta, como historicamente o Brasil fez em temas como o racismo, leva a uma “pacificação” que todos sabemos falsa. É o “confronto” – e não o conflito – que pressupõe inimigos a serem esmagados, espancados com golpes de cassetete e intoxicados com gás.

É preciso prestar mesmo muita atenção às palavras antes de reproduzi-las ou de assumir um discurso que pode ser o mesmo do opressor. Quando os manifestantes “param” ruas de São Paulo, eles não estão parando. Ao contrário. Eles estão andando nas ruas de São Paulo. Movendo-se. Quando “interrompem” o tráfego, eles não estão interrompendo. Os carros param para que as pessoas andem. Movam-se. É exatamente para que não se movam que a PM “encurrala” e “cerca”, “reprime” com bombas de gás, balas de borracha e cassetete. É exatamente para que não andem que a PM “detém” ou “prende” ou “imobiliza” manifestantes que depois são soltos porque não há nem nunca houve justificativa legal para detê-los ou prendê-los ou imobilizá-los. A grande subversão, afinal, é andar. Mover-se. É preciso impedir que andem para que nada se mova “na ordem natural das coisas”.

Para que serve a PM com seu aparato de guerra? Para controlar os corpos com golpes de cassetete, balas de borracha e bombas de gás e manter o mover-se como valor meramente monetário. Para impedir que as pessoas perguntem por que não podem andar. A PM está lá para proteger o “patrimônio”. Mas não o patrimônio humano, este é barato na lógica da monetarização: mais de 13 minutos de vida para pagar uma passagem de ônibus. Os corpos dos que querem andar podem ser espancados, intoxicados, violados porque a vida humana, pelo menos a da maioria, tem valor baixo. O que não pode é “depredar” o patrimônio de fato caro, o material.

A PM vandaliza pessoas para proteger patrimônio. Mas o discurso é perversamente invertido para que os “vândalos” sejam os que quebram cimento, vidro e ferro e não os que perfuram carne humana. Se seguidas vezes a PM vandaliza manifestantes antes de qualquer depredação do patrimônio, é possível pensar que isso acontece tanto porque a PM está a serviço de produzir “vândalos” e “confronto”, para encobrir a reinvindicação das ruas no noticiário, quanto pelo fato de que o patrimônio que ela de fato está protegendo 24 horas por dia é o do status quo, e este está ameaçado desde que o primeiro manifestante bota o pé na rua.

Vandalizar pessoas em nome da defesa do patrimônio é a ordem para manter a ordem de que gente vale pouco. A tarifa é cara justamente porque a carne humana é barata.

A insubordinação dos que andam, a que a PM é instada a reprimir, é a de dizer que seu tempo tem valor – e este valor não é meramente monetário. É essa a rebelião que precisa ser esmagada antes que avance pelas ruas. O movimento a ser interrompido pela força, antes que interrompa o trânsito dos privilégios, é aquele que lembra que tempo não é dinheiro, mas o tecido da vida. É aquele que reivindica o tempo “para os afetos, para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela, para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis”.

Passaremos.

(Publicado no El País em 18 de janeiro de 2016)

1500, o ano que não terminou

Quem chorou por Vitor, o bebê indígena assassinado com uma lâmina enfiada no pescoço?


Um menino de dois anos foi assassinado. Um homem afagou seu rosto. E enfiou uma lâmina no seu pescoço. O bebê era um índio do povo Kaingang. Seu nome era Vitor Pinto. Sua família, como outras da aldeia onde ele vivia, havia chegado à cidade para vender artesanato pouco antes do Natal. Ficariam até o Carnaval. Abrigavam-se na estação rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina. Era lá que sua mãe o alimentava quando um homem perfurou sua garganta. Era meio-dia de 30 de dezembro. O ano de 2015 estava bem perto do fim.

E o Brasil não parou para chorar o assassinato de uma criança de dois anos. Os sinos não dobraram por Vitor.

Sua morte sequer virou destaque na imprensa nacional. Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média, assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação rodoviária, como existiu para as vítimas de terrorismo em Paris. Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena. Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.

A fotografia que ilustrou as poucas notícias sobre a morte do curumim mostra o chão de cascalho e concreto da estação rodoviária. Um par de sandálias havaianas azul, com motivos infantis. Uma garrafa pet, uma estrelinha de brinquedo, daquelas de fazer molde na areia, uma tampa de plástico do que parece ser um baldinho de criança, uma pequena embalagem em formato de tubo, um pano florido amontoado junto à parede, talvez um lençol. É apresentada como “local do crime” ou como “os pertences do menino”.

Essa foto é um documento histórico. Tanto pelo que nela está quanto pelo que nela não está. Nela permanece o descartável, os objetos de plástico e de pet, os chinelos restados. Nela não está aquele que foi apagado da vida. A ausência é o elemento principal do retrato.

Os indígenas só podem existir no Brasil como gravura. Apreciados como ilustração de um passado superado, os primeiros habitantes dessa terra, com sua nudez e seus cocares, uma coisa bonita para se pendurar em algumas paredes ou estampar aqueles livros que decoram mesas de centro. Os indígenas têm lugar se estiverem empalhados, ainda que em quadros. No presente, sua persistência em existir é considerada inconveniente, de mau gosto. Há vários projetos tramitando no Congresso para escancarar suas terras para a exploração e o “progresso”. Há muitos territórios indígenas devidamente reconhecidos que o governo de Dilma Rousseff (PT) não homologa porque neles quer construir grandes obras ou porque teme ferir os interesses do agronegócio. Há uma Fundação Nacional do Índio (Funai) em progressivo desmonte, tão fragilizada que com frequência se revela também indecente. No passado, os índios são. No presente, não podem ser.

Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os indígenas são especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles acabou em 1500. Tiveram, porém, o desplante de sobreviver ao apocalipse promovido pelos deuses europeus. Ainda que centenas de milhares tenham sido exterminados, sobreviveram à extinção total. E porque sobreviveram continuam sendo mortos. Quando não se consegue matá-los, a estratégia é convertê-los em pobres nas periferias das cidades. Quando se tornam pobres urbanos, chamam-nos de “índios falsos”. Ou “paraguaios”, em mais um preconceito com o país vizinho. No passado, os índios são alegoria. “Olha, meu filho, como eram valentes os primeiros habitantes desta terra.” No presente, são “entraves ao desenvolvimento”. “Olha, meu filho, como são feios, sujos e preguiçosos esses índios fajutos.” Os índios precisam ser falsos porque suas terras são verdadeiras – e ricas.

Se Vitor era um entrave, esse entrave foi removido. Por isso essa foto é um documento histórico. Se houvesse alguma honestidade, é ela que deveria estar nas paredes.

Parece não bastar que Vitor, um bebê de dois anos, passasse semanas no chão de uma rodoviária porque a violência contra seu povo foi tanta e por tantos séculos e ainda hoje continua que seus pais, Sônia e Arcelino, precisam deixar a aldeia para vender artesanato. A preços baixos, porque desvalorizados são os artesãos. É importante perceber o nível de desamparo que leva alguém a considerar rodoviária um lugar seguro e acolhedor. Terminais rodoviários são locais de passagem, e a família de Vitor, assim como a de outros indígenas, abriga-se lá porque há movimento. Rodoviária é lugar de ninguém. E por isso nela costumam caber os mendigos, os meninos de rua, os bêbados, as putas, os loucos, os párias. E os índios. Ou cabiam. E já não cabem mais.

Rodoviárias são espaços de circulação de estranhos, e por serem “os outros”, os estrangeiros nativos, os indígenas acreditam que neste não lugar têm chance de escapar da expulsão. Mas seguidamente são expulsos. Parte da população dos municípios em que os indígenas aparecem com seu artesanato acha que a rodoviária é boa demais pra índio. Ou pra “bugre”, como são chamados em algumas regiões do sul do país. “A rodoviária é o cartão postal da cidade, período que tem tanta gente viajando, chegando. Que imagem vão levar da cidade?”, justificou um comerciante de São Miguel do Oeste, também em Santa Catarina, para justificar a expulsão dos indígenas do local antes do Natal.

Vitor já não estraga nenhum cartão postal. Dele não há nem mesmo um rosto. A foto de sua ausência não comoverá milhões pelo planeta como aconteceu com o menino sírio trazido pelas ondas do mar. A morte dos curumins não muda nenhuma política.

Antes que me acusem de precipitação, exagero ou injustiça, é preciso dizer: os “cidadãos de bem” não querem que crianças indígenas tenham seus pescoços perfurados. De jeito nenhum. Apenas que elas fiquem longe da vista. Em outro lugar em que não contaminem, sujem ou enfeiem. Mas também não nas suas terras, se estas forem ricas em minérios, férteis pra soja ou boa pra gado pastar. Aí também é abuso. Desapareçam, apenas. Mas matar, não, matar é maldade.

2015 foi o ano em que esse discurso deu ao Brasil o bicampeonato. O deputado estadual Fernando Furtado, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), foi reconhecido como “Racista do Ano” pela organização Survival International por seu pronunciamento antológico, ao se manifestar numa audiência pública: “Lá em Brasília, o Arnaldo viu os índios tudo de camisetinha, tudo arrumadinho, com flechinha, tudo um bando de viadinho, que tinha uns três que eram viado, que eu tenho certeza, viado. Eu não sabia que tinha índio viado, fui saber naquele dia em Brasília… Tudo viado. Então é desse jeito que tá, como é que índio já consegue ser viado, boiola, e não consegue trabalhar e produzir? Negativo!”.

O parlamentar se referia aos Awá-Guajá, considerados um dos povos mais vulneráveis do planeta. A conquista de Fernando Furtado, porém, não é inédita. Outro parlamentar, Luis Carlos Heinze, este deputado federal pelo Partido Progressista (PP) do Rio Grande do Sul, já tinha subido ao pódio em 2014, com a seguinte declaração: “O governo… está aninhado com quilombolas, índios, gays e lésbicas, tudo o que não presta”. Tudo indica que o Brasil é quase imbatível para o tricampeonato. Fala-se tanto em país polarizado, mas a premiação prova que os indígenas são um raro ponto de unanimidade entre certa direita e certa esquerda dessa grande nação.

Vitor, o bebê assassinado, vivia na aldeia Condá, no município de Chapecó, no oeste de Santa Catarina. Os crimes cometidos pelo Estado contra o povo Kaingang da região sul do Brasil estão registrados no Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012. O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7.000 páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. Quem quiser compreender por que Vitor se abrigava no chão da rodoviária de Imbituba em vez de passar os meses de verão seguro, saudável e feliz na sua aldeia, tem uma rica fonte de informações no documento disponível na internet. Vai descobrir, entre outras atrocidades, como antepassados de Vitor chegaram a ser torturados e a viver em condições análogas à escravidão para que suas terras fossem desmatadas e exploradas pelos não índios, em pleno século 20. É possível que alguns destes “empreendedores” sejam avós daqueles que hoje acham que indígenas como Vitor sujam o cartão postal de suas cidades.

Depois do assassinato do bebê, a Polícia Militar prendeu o suspeito de sempre. Um rapaz pobre, em liberdade provisória, com “uma pequena quantidade de maconha e cocaína na mochila”. Como não havia nenhum indício contra ele, foi liberado. Em seguida, foi preso outro jovem, hoje considerado o principal suspeito. A polícia procurava alguém bastante genérico: com mochila e boné e tipo físico semelhante ao que aparece num vídeo gravado por uma câmera de segurança. A suspeita de policiais militares é de que o assassino estaria “incomodado com a presença dos indígenas no local”. A Polícia Civil mencionou como possíveis motivações “preconceito”, “surto” e “problemas psicológicos”. Em nota, o CIMI afirmou: “O Conselho Indigenista Missionário manifesta preocupação com o clima de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais”.

Quem de fato assassinou Vitor talvez seja investigado, julgado, condenado e punido, o que já é uma raridade em mortes de indígenas no Brasil, marcadas pela impunidade. Mas é preciso fazer perguntas mais complicadas. Quem armou essa mão? Que encruzilhada histórica permitiu que Vitor fosse o bebê escolhido pelo assassino, independentemente de sua sanidade ou insanidade – e não o meu filho ou o seu? Onde estamos nós nesta foto em que estamos sem estar?

Tem se dito que 2015, um ano de crise no Brasil e horror em todas as partes, é o ano que não terminou. 2016 seria apenas um looping. Faz sentido. Na véspera deste Natal, Antônio Isídio Pereira da Silva, líder rural e ambientalista no Maranhão, foi encontrado morto. Era mais um assassinato anunciado. Há um ano foi arquivado o pedido de inclusão do agricultor no programa federal de proteção aos defensores de direitos humanos. Ele se preparava para denunciar mais um desmatamento ilegal numa região com graves conflitos de terra quando foi assassinado. Também no Natal, cinco jovens denunciaram policiais militares do Rio por tortura e roubo. Segundo seu relato, eles voltavam em três motos de uma festa quando foram detidos por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora de Coroa, Fallet e Fogueteiro. Além de torturas com faca quente, isqueiro e socos, um deles teria sido obrigado a fazer sexo oral no amigo. Em São Paulo, levou apenas dois dias para ocorrer a primeira chacina de 2016, com quatro mortos na periferia de Guarulhos. Suspeita-se de vingança pela morte de um PM dias antes na região.

Começamos como acabamos. Nada, portanto, nem começou nem acabou. Quem continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os negros, os pobres e os índios. O genocídio segue diante da indiferença, quando não aplauso, do que se chama de sociedade brasileira. Começamos 2016 como acabamos 2015. Obscenos. Os fogos do Ano-Novo já fracassam no artifício. Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.

Dizem que 2015 é o ano que não acaba. Ou que 2013 é que não chega ao fim.

Para os indígenas é muito mais brutal: o ano de 1500 ainda não terminou.

(Publicado no El País em 4 de janeiro de 2016)

Em defesa da desesperança

Diante da atual conjuntura e de um ano que não acabará, é hora de superar a esperança

A esperança é consenso. Ao mesmo tempo amálgama, exortação e virtude. Aquele que acusa o outro de causar desesperança apresenta-se, ele mesmo, como um portador de esperança. Jamais, sob hipótese alguma, um desesperançado. O desesperançado é um pária político, é um pária social, é até mesmo um pária doméstico. O desesperançado não teria nada a oferecer a si mesmo, ao outro ou ao país. Só encontra alguma compaixão se, em vez de desesperançado, acatar o diagnóstico de “depressivo” e passar a consumir drogas lícitas para se “curar”. Aí, já não é mais desesperançado, mas “doente”. Para o doente, há perdão.

A esperança é a crença que une todos os credos, inclusive a falta de credo. Exige fé e, portanto, adesão. Se você a nega, torna-se um risco para todos os crentes.

Quero aqui fazer uma defesa da desesperança, neste momento tão agudo do Brasil.
Antes, algumas considerações sobre o abismo.

1. A falsa polarização

O ato contra o impedimento de Dilma Rousseff (PT) colocou mais gente nas ruas do Brasil que o ato a favor do impedimento. Nesse enfrentamento pontual, os “contra o golpe” venceram os “a favor do impeachment”. Entre “a favor do impeachment” e “contra o golpe”, onde estamos? No reino da falsa polarização, que só serve para reduzir a política e encobrir o buraco maior, aquele que continuará bem aqui, com ou sem o impedimento da presidente. É aí que reside a obscenidade.

O país parece condenado a reencenar a polarização, como uma espécie de encantamento macabro, um looping maldito. De certo modo, o que acontece agora, com o tema do impedimento, é um revival da campanha eleitoral de 2014. Dilma ganhou de Aécio Neves (PSDB) por uma margem pequena. Possivelmente teria perdido, não fosse o voto útil ou o voto crítico de parte da esquerda que, apesar de não ter nenhum respeito pelo seu primeiro mandato, acreditou que ela era a opção menos ruim. Ou acreditou na famosa “guinada à esquerda”.

Naquele momento, as redes sociais tinham se transformado numa carnificina, voava pedaços de esquerda para todos os lados. Quem não apoiava Dilma era considerado “traidor”. Amigos romperam, casamentos balançaram, tornara-se difícil andar por qualquer rua, virtual ou concreta, sem sair com a alma ou com o corpo esfolado. Há quem chegue ao Natal do ano seguinte sem ter se reconciliado. Ainda assim, Dilma ganhou. E ainda assim 37 milhões – a soma dos votos nulos e brancos e das abstenções – não votaram nem em Dilma nem em Aécio. A tese da polarização oculta diferenças e complexidades, torna homogêneo o que não é. Falsifica a conjuntura do país. Escrevi sobre isso no artigo intitulado “A mais maldita das heranças do PT“, publicado após a primeira manifestação contra Dilma Rousseff e o partido, em março de 2015.

Hoje, há gente no próprio PT que lamenta a vitória, convicta de que o melhor seria ter mentido menos na campanha, mesmo à custa de uma derrota, e se recompor na oposição para 2018. Há quem acredite que teria sido melhor para o PT e melhor para o país, que poderia se beneficiar mais com o partido na oposição do que no poder. Mas, como se sabe, o “e se” não serve para nada.

Ao final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, o pior primeiro ano de qualquer governo, pelo menos desde a redemocratização do país, a falsa polarização é reeditada em torno do “a favor do impeachment” versus “contra o golpe”. Tem acontecido algumas escaramuças nas redes sociais, tanto à direita quanto à esquerda. À direita, porque parte não aderiu à tese do impedimento por conta de vários fatores, entre eles o fato de que o comandante do processo é Eduardo Cunha, nossa versão particular de um vilão do Batman. À esquerda, porque muitos consideram impossível defender o governo de Dilma Rousseff. Ensaiou-se um “traidor” aqui, outro lá, aos que se recusaram a engrossar as fileiras do “a favor do impeachment” ou do “contra o golpe”, mas com muito menos convicção do que na campanha eleitoral. Uma frase que circula nas redes talvez resuma o impasse da parcela da sociedade que desafia a polarização: “Há hoje duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo de Dilma Rousseff”.

Ainda assim, parte dos movimentos sociais foi às ruas defender a bandeira de que o impedimento é um golpe disfarçado, para que a presidente compreendesse, finalmente, “quem estava com ela”. A tal “guinada à esquerda”. A queda de Joaquim Levy do Ministério da Fazenda é comemorada por alguns setores como um primeiro resultado desse apoio. Mas o histórico de Dilma Rousseff não é bom neste quesito. A cada vez que a coisa aperta, seja quando corria o risco de perder a eleição, ou agora, quando corre o risco de ser tirada do poder por impedimento, dá para ouvir o grito: “Chama os movimentos sociais pra defender o governo!”.

Com eles, torna-se possível apresentar a narrativa como uma luta entre forças conservadoras contra progressistas. Se valerem as experiências anteriores, em seguida a presidente esquece-se de que precisa conversar com as bases. Dilma é tão explícita na sua falta de paciência que, no discurso de vitória, em 2014, irritou-se com aqueles que, depois de terem dado o sangue na eleição (em alguns casos literalmente), interrompiam sua fala com aplausos e gritos de comemoração.

A realidade, porém, não se reduz ao pastiche que querem fazer dela.

2. Restou governo para ser defendido?

A pergunta mais difícil para quem não adere à tese do impeachment é: há governo a ser defendido? O que se perde, de fato, sem Dilma Rousseff na presidência?

A questão da legalidade, convém deixar explícito, não é pequena. Dilma venceu a eleição, e quem não está gostando vai ter de esperar a próxima para mudar o governante. Essa é uma lição importante da democracia: mesmo descobrindo que seu voto foi um desastre é preciso se responsabilizar por ele como gente grande. Mesmo perdendo, é preciso respeitar o voto da maioria. Respeitar essa regra básica é fundamental, mais ainda para uma democracia tão frágil como a brasileira. Há dúvidas consideráveis sobre a legitimidade das razões alegadas para um impedimento, do ponto de vista legal. E, ainda que se saiba que um impedimento é um rito muito mais político do que legal, vale a pena repetir que isso não é pouco nem é menor. O impedimento de um presidente é algo sério demais para não haver um consenso mínimo sobre a legitimidade do pleito, como havia no caso de Fernando Collor de Mello. Ao ampliar-se ainda mais as fissuras, em lugar do enfrentamento honesto de nossos conflitos históricos, pode se tornar mais difícil para o país seguir adiante.

Dito isso, vale a pena se deter sobre a pergunta: o que restou desse governo e dessa presidente? Para se manter no poder, Dilma Rousseff e o PT fizeram concessões além de qualquer limite, romperam a barreira da decência. Não entregaram tudo, mas quase. Dá para escrever vários livros sobre o balcão de chantagens em que foi negociado o inegociável, temas cruciais para o país comercializados como se fossem salsichas. No vale-tudo ao qual o PT se atirou diante da possibilidade concreta de perder o poder, o PT perdeu o governo. Não todo, mas é possível que tenha chegado ao ponto do não retorno. Assim, o final de 2015 desvela um cenário trágico: defender o quê, afinal? Como defender o governo se já não há governo para ser defendido?

Este é um dilema que tem tirado o sono e a razão mesmo de militantes fiéis. Talvez o exemplo mais emblemático seja a entrega do Ministério da Saúde ao PMDB na última reforma ministerial, feita sob medida para ter apoio num Congresso hostil, em que mesmo os bagrinhos viraram tubarões diante do cheiro do sangue. Não só o ministério de maior orçamento, como um ministério estratégico para políticas públicas essenciais e para o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual dependem dezenas de milhões de brasileiros para viver em vez de morrer. Um ministério estratégico para causas muito caras ao PT, aquelas de identidade, as que foram a própria razão de existir do partido.

Os efeitos do desmantelamento do ministério e das políticas públicas em curso na área da saúde, para ficar apenas neste caso entre tantos, só começam a aparecer. Em 10 de dezembro, o novo ministro da Saúde, o psiquiatra Marcelo Castro (PMDB), nomeou para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas um nome que muitos acreditavam enterrado num passado sombrio: Valencius Wurch Duarte Filho. Sem deixar de reconhecer os limites da reforma psiquiátrica, que até hoje não foi concluída, a escolha de Wurch é um escárnio. Por si só já configura, simbolicamente, um retrocesso de pelo menos duas décadas. Wurch foi diretor nos anos 90 da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, no Rio de Janeiro, apontada como o maior manicômio privado da América Latina. Depois de várias denúncias de violações de direitos humanos ao longo dos anos, no contexto da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, o hospício finalmente foi fechado, em 2012. As cenas encontradas lá evocavam um campo de concentração.

Mas eis que o passado é esquecido – ou lembrado? – e Valencius Wurch reaparece em 2015 não mais no comando de um manicômio, mas de algo muito maior, ao ser nomeado para comandar a pasta que determina a política de saúde mental do país. Diante dos protestos em vários estados e capitais do Brasil e também de figuras de referência internacional na área, o ministro Marcelo Castro invocou a “Ciência”. A Ciência é como Deus. Na falta de argumento, há sempre quem chame uma ou outro.

No campo minado – e altamente lucrativo, tanto para quem ganha dinheiro com internações psiquiátricas como para a indústria farmacêutica –, é comum uma parcela dos psiquiatras lançarem mão da “Ciência” para defender seu feudo diante do avanço de outras abordagens sobre o sofrimento psíquico. Desta vez, invocar a “Ciência” ou uma escolha “técnica” não funcionou, já que o desempenho “científico” de Wurch é pífio e o de seu antecessor destituído, Roberto Tykanori Kinoshita, bastante vistoso. Funcionários, pacientes e familiares ocuparam as salas da saúde mental no ministério como ato de resistência.

A escolha de um ex-diretor de manicômio para o maior cargo da área da saúde mental revela que hoje, em Brasília, quando todos os limites já foram superados, impera a certeza de que é possível dizer e fazer qualquer coisa e seguir incólume. Mas há um aspecto interessante nesta escolha do ministro que levou o ministério no balcão das chantagens: diante da perversão de sua própria nomeação, nada mais lógico do que chamar um diretor de hospício. Afinal, a escolha de Valencius Wurch pode ter sido apenas um ato-falho do psiquiatra.

Há exemplos como este em várias áreas caras à história do PT, e hoje os focos de resistência onde ainda restam alguns princípios de base são cada vez mais escassos. Mesmo que o impedimento não se concretize, e mesmo que Dilma Rousseff termine o mandato para o qual foi eleita, parece uma possibilidade remota na atual conjuntura que ela recupere o poder de fato. E também não se sabe o que restou do PT, no sentido daquilo que fez o PT representar o projeto político de pelo menos duas gerações de esquerda.

Políticas públicas como as que eram levadas adiante na área de saúde mental, para ficar no mesmo exemplo, era no que muitos se agarravam para dizer que ainda fazia diferença um governo do PT. Se até isso foi vendido no balcão de salsichas, o que sobra? Qual é o porquê? Se em nome da “governabilidade” perdeu-se o governo, a pergunta é séria e também honesta: restou algo para defender?

3) Quando havia um governo, ele era defensável?

Esta é uma questão ainda mais espinhosa. E não há uma resposta fácil – nem de “sim” ou “não”. Acredito que o Brasil, em muitos aspectos, é melhor depois do PT. Mas é possível dizer que, em vez de enfrentar conflitos históricos, estruturais, do país, a opção do PT no poder, com algumas exceções, foi por acomodá-los. E a acomodação é sempre temporária. Pode-se simplificar (espero que não demais), dizendo que a questão central no Brasil hoje continua a ser a de que, para diminuir a desigualdade, será necessário tocar nos privilégios. Não só econômicos e sociais, mas também culturais. As elites terão de perder – bem mais do que o “direito” de não ter um pobre e preto ao seu lado no avião.

Lula, o conciliador, tentou fazer uma mágica, aquela que todos ganham sem que ninguém tenha de perder. Financiou essa mágica com as commodities e um irrecuperável custo-natureza. A mágica se esgotou, o encanto se desfez. E o Brasil, mais violento hoje, também porque mais gente tem o que perder – e está correndo o risco de perder –, encontra-se diante de sua chaga histórica, que pode ser resumida por um frase que virou quase um mantra: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

O PT não fez reforma agrária nem tocou na renda dos mais ricos. O desempenho na demarcação de terras indígenas foi vergonhoso, em especial com Dilma Rousseff. O PT também recuou ao enfrentar temas como aborto, homofobia e drogas. E avançou muito pouco no flagelo nacional, fator fundamental de desigualdade, a educação. O slogan “Pátria Educadora”, deste mandato, já nasceu morto pelas mãos dos marqueteiros. A própria ascensão do que se convencionou chamar de “nova classe média” ou “classe C”, na medida de uma inclusão não só, mas principalmente pelo consumo, começa a ficar comprometida pela crise econômica. E o Bolsa Família, obrigatório diante da indigência criminosa de parte da população brasileira, avançou pouco para além da política compensatória.

Isso não significa deixar de reconhecer os avanços de um governo petista, no tempo em que o PT governou. É possível pensar que a ampliação do debate fundamental sobre o racismo, hoje colocado em outros termos, se deve muito ao protagonismo da primeira geração de negros que alcançou a universidade pelas cotas raciais. Parte dos movimentos políticos que hoje emergem, inclusive confrontando a política partidária, podem ser pensados (também) a partir da experiência de inclusão assegurada por ações afirmativas. Não há dúvida de que hoje uma parte da população que tinha pouco a perder tem mais a perder – e quer mais.

A percepção destes avanços, porém, tem sido corroída pela crise política e econômica. Isso fica claro, por exemplo, numa recente pesquisa do Datafolha, ao mostrar que, concretamente, a renda de todos os brasileiros melhorou consideravelmente nos 13 anos do PT. Todos ganharam, mas os mais pobres ganharam mais (129%). Ainda assim, apenas 31% dos brasileiros reconhecem que sua vida melhorou. Essa é a tragédia do partido. Ou uma delas. Perderam, pelo menos temporariamente, a batalha da memória.

A corrupção, por sua vez, não é um dado menor. É fato que ela atravessa a maioria dos partidos brasileiros, como o Mensalão Mineiro, do PSDB, finalmente começa a mostrar – e as investigações da Lava Jato já provaram. Mas também é fato que do PT, que se apresentava como aquele que restauraria a ética na política, se exige, com toda a justiça, muito mais.

É possível defender um partido – e o governo de um partido que se corrompeu ao ser governo –, mesmo que tenha feito avanços importantes para o país? Ou este é um limite ético? Desta pergunta, incômoda, não dá para escapar nem tergiversar.

Mas é na opção pelo tipo de desenvolvimento que o PT se torna, para parte da esquerda, mas não só, indefensável. Toda anatomia que agora se desvela tem sido denunciada por lideranças na Amazônia há muitos anos, quando Lula e depois Dilma estavam no auge da sua popularidade. E recebida com ouvidos surdos, por que quem se importa com os gritos de indígenas e ribeirinhos, afinal? Quem se importa com o que acontece lá na floresta e nas cidades corroídas da região que sempre foi vista pelo centro-sul como um corpo para exploração e exportação de matérias-primas?

O olhar histórico do centro político-econômico do Brasil sobre a Amazônia é o do colonizador, e ainda hoje não mudou. O projeto de Lula e de Dilma para a região revelou-se muito semelhante ao da ditadura militar. A política das grandes obras, na aliança com as grandes empreiteiras que ocupam Brasília desde que a construíram, tem na Usina Hidrelétrica de Belo Monte a sua síntese maior, ainda por ser inteiramente desvendada. É também lá que os mais desamparados foram jogados para fora da lei. E é lá que o processo de conversão de indígenas e ribeirinhos em pobres nas periferias urbanas levanta questões sobre a visão de mundo do partido. É lá ainda, bem longe do centro-sul, que as contradições do PT no poder se revelaram em toda a sua complexidade e muito mais cedo.

Me refiro à Amazônia, mas vale a pena olhar com atenção também para o Nordeste e mais especificamente para a transposição do Rio São Francisco, como obra-símbolo de uma visão de mundo sem nenhuma sensibilidade socioambiental, nenhuma escuta dos que lá vivem, nenhum respeito pelo conhecimento de uma população reduzida pelo poder público a objeto.

Esta é a pergunta mais complicada. Agora não mais o que o PT abriu mão com a justificativa – questionável – da “governabilidade”, uma palavra que foi se tornando mais e mais obscena. Mas a pergunta sobre o que o PT efetivamente escolheu quando tinha todo o capital político para governar.

4) Há fundo no poço sem fundo?

Tem se afirmado que 2015 foi um ano de paralisia. Antes fosse. Andar para trás ainda é andar. O ano de 2015 foi de retrocesso acelerado, e não só no aumento do desemprego e da inflação, ou na queda do PIB. basta ver todos os projetos colocados em pauta graças a Eduardo Cunha e à Bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala), sem contar o terrorismo da lei antiterrorismo. Em 2015 se perdeu muito. Conquistas históricas dos trabalhadores foram atingidas. Chantageou-se com a legislação ambiental, ameaçou-se os direitos constitucionais dos indígenas, atacou-se a saúde reprodutiva, retomou-se um conceito de família da Bíblia. E a Licença de Operação de Belo Monte saiu sem o cumprimento de condicionantes.

O ano de 2015 foi também aquele em que as alternativas do espectro político-partidário, que já eram escassas, se arruinaram. Ao embarcar na chantagem do impeachment, compactuando com uma figura sinistra como Eduardo Cunha e fazendo declarações vergonhosas, o PSDB e seus próceres se apequenaram. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, que sustentava um lugar simbólico de alguma respeitabilidade, manchou sua imagem. Geraldo Alckmin, Aécio Neves e José Serra perderam qualquer pudor ao escancarar que o impeachment ganhava legitimidade ou não conforme seus respectivos projetos de poder. Algo como “a medida sou eu”.

Com esse comportamento constrangedor, o PSDB, que já tinha perdido muito do respeito que chegou a ter em anos (bem) passados, quando era considerado uma alternativa de centro-esquerda, revelou que apodrece. Restou, como reserva ética, Marina Silva. Mas Marina saiu da campanha de 2014 desgastada, tanto pelos ataques abaixo da linha da cintura do PT quanto por seus próprios erros e contradições – e a Rede, partido que finalmente conseguiu viabilizar, nasceu sem o capital de novidade de quando foi lançada. Se Marina, que até hoje não conseguiu ecoar entre os mais pobres, ainda é capaz de representar uma alternativa para uma parte suficiente dos brasileiros é uma incógnita.

Se a opção imediata é um governo do PMDB de Michel Temer, o vice que entrega cartas “pedalando”, e se a alternativa à chantagem do pemedebista Eduardo Cunha é a do pemedebista Renan Calheiros, pelo menos até a Lava Jato alcançar o presidente nada probo do Senado, o Brasil não chegou ao fundo do poço porque os dias têm provado que o poço não tem fundo.

O problema é menos o agora, e mais o depois. O impasse, como já escrevi, é infinitamente maior do que o impedimento ou não de Dilma Rousseff. Se fosse disso que se trata, seria até fácil. O drama maior, porém, é aquele que não acaba nem com Dilma ficando, nem com Dilma saindo. A tragédia é que neste teatro sobram vilões e faltam virtudes. O abismo é o país que por tantas gerações se viu como um futuro que nunca chegava, acreditou ter finalmente alcançado o presente e descobre-se atolado no passado.

Qual é o projeto político, de fato político, e não meramente um projeto de poder, para o presente-futuro do Brasil? Qual é o projeto político capaz de enfrentar as velhas forças que se rearranjam para manter tudo como sempre foi?

Este é o desafio para o qual não parece haver respostas convincentes. Por isso a sensação de que 2015 não vai acabar nunca – ou pelo menos vai levar muitos anos para acabar. Não é só uma questão de resgatar a política, no seu sentido amplo e profundo, como diálogo entre diferentes no espaço público, mas de criar uma nova política.

Mas como?

Diante do tamanho do abismo, me arrisco a apenas três afirmações que dizem respeito aos temas que acompanho como jornalista. Não há projeto de fato sem enfrentá-las. A primeira é a de que este país não pode mais adiar seus conflitos históricos: entre os principais, o racismo. A segunda é que não se enfrentará nem o racismo nem a desigualdade nem a violência nem a tragédia educacional, intimamente interligados que são, sem que as elites econômicas, políticas, sociais e também culturais compreendam que vão precisar perder privilégios. E não me refiro apenas à renda, mas perder privilégios menos contabilizáveis, que talvez sejam até mais difíceis, como o de falar sozinho, por exemplo, ou o de ter razão sozinho, ou o de estabelecer os limites até onde é permitido questionar os próprios privilégios. Privilégios mais sutis, daqueles que nem mesmo se acha que são privilégios, tão assimilados estão, que têm sido colocados à prova em embates do feminismo e do próprio racismo neste último ano. Ninguém – ninguém mesmo – está fora disso. E o terceiro é que não há saída sem sensibilidade socioambiental, que passa por reconhecer o conhecimento e a riqueza das experiências dos povos tradicionais. Não apenas para deter os vários etnocídios em curso, assim como encontrar maneiras para fazer o diálogo entre os Brasis, mas também para encontrar caminhos diante dos enormes desafios representados pela mudança climática.

5) A desesperança como imperativo ético

Agora, de volta ao princípio. Ou à ideia mais dura deste artigo, também a de maior potência.

Este é um país em que se declarar sem esperança é visto como uma falha de caráter, uma traição ao coletivo e a si mesmo. Como assim, você não tem esperança? A esperança é como a felicidade na lógica capitalista: objeto de consumo que mede o sucesso de uma vida. Esperança é palavra invocada por todos os lados na atual conjuntura do Brasil. Seja de forma espontânea, seja como construção marqueteira. Conforme a posição daquele que a evoca, a esperança seria algo a ser recuperado, tanto para o partido que perdeu o país recuperar seu lugar, como para o país recuperar a si mesmo. Esse resgate de um e de outro passaria pelo resgate da esperança. Mas também desponta como palavra de acusação ao PT, o partido que teria sequestrado a esperança dessa enigmática entidade a que se dá o nome de “povo brasileiro”. A reposição da esperança, e de quem a pode repor, supondo-se que perdida está, é campo de disputa. O que une essas tantas narrativas é de que seria ela, a esperança, aquela capaz de recosturar o tecido rasgado chamado Brasil.

A esperança como conceito alcança no Brasil suas próprias particularidades, que ainda merecem ser investigadas com maior profundidade. Como invocação, ela tem um lugar estratégico nos 13 anos do PT no poder. Marca a primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002: “a esperança para vencer o medo”. Era uma reação à afirmação da atriz Regina Duarte, no programa do oponente, o PSDB, ao dizer que tinha medo de uma vitória do petista. No pleito de 2014, para a reeleição de Dilma Rousseff, Lula afirmou: “Agora temos de fazer uma campanha para a esperança vencer o ódio”. Em 2015, um dos programas do PT, assombrado pela presidente mais impopular desde a redemocratização e sob ameaça de impeachment, apontava a saída para a crise pelo “caminho da esperança”.

Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido.

Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.

(Publicado no El País em 21 de dezembro de 2015)

É política sim, Geraldo

Enquanto o Brasil vive o rebaixamento do exercício político, os estudantes paulistas mostraram que é possível estar com o outro no espaço público

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

O Brasil no final de 2015: a bacia do Rio Doce foi destruída, e a lama avança sobre o oceano; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), um homem investigado por crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, que escondeu contas na Suíça, dá início ao processo que pode resultar no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), depois de constatar que deputados petistas votariam contra ele no Conselho de Ética, numa ação que pode cassar seu mandato; a Polícia Militar do Rio de Janeiro dispara 111 tiros e fuzila cinco jovens negros porque passeavam de carro à noite; as brasileiras não podem engravidar porque há um surto de microcefalia causado por vírus transmitido pelo Aedes aegypti e aquelas que estão grávidas foram condenadas a viver em pânico diante do zumbido de um mosquito; o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza a PM a jogar bombas de gás e a bater em estudantes de escolas públicas.

Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.

Diante desse despedaçamento, há que se cuidar para que as palavras disponíveis, aquelas que dão nome a conceitos cuja construção é o que de melhor a humanidade criou, não sejam pervertidas e restem também elas obscenas. É neste ponto, profundo, que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) cometeu um ato simbólico de extrema violência, para além da truculência concreta de sua polícia nas ruas de São Paulo. Em 2 de dezembro, no Palácio dos Bandeirantes, ele afirmou:

– Não é razoável obstrução de via pública, é nítido que há uma ação política no movimento. Há uma nítida ação política.

A frase do governador foi amplificada pela imprensa, em títulos de jornais e chamadas nas rádios, TV, internet. O governador denunciando o movimento dos estudantes que ocupavam as escolas públicas de São Paulo em protesto contra um plano que, em nome da “reorganização escolar”, fecharia mais de 90 escolas e remanejaria mais de 300.000 alunos. Mas, vale repetir, o que o governador denuncia? Que o movimento é político. Qual seria a acusação? É óbvio que o movimento é político. E a melhor qualidade do movimento é justamente a de que é político.

É pelo exercício da política que se alcançou o que de melhor existe na experiência humana. E não pela força, pela imposição, pelo extermínio do diálogo e das ideias e, vezes demais, das pessoas que discordam. Onde a política é suspensa, a aniquilação se instaura. Para Alckmin, porém, a julgar pela sua declaração e pelos seus atos, a política é obscena. Tanto que ele precisa denunciá-la. E insinuar que os estudantes estão sendo instrumentalizados por interesses partidários e ideológicos. É fundamental que se preste atenção a um governador, com ambições de ser presidente da República, que iguala a política à obscenidade. Ou à abominação, outra palavra que pode nos iluminar nesse momento em que a crise de representação alcança também as palavras.

Voltemos à declaração do governador: “Não é razoável obstrução de via pública”. É assim que a frase começa. Para ele, protesto, manifestação, algo do cerne da democracia, é “obstrução da via pública”. O que se impõe nesta afirmação de Alckmin? A voz que vale é a daquele que quer passar. A via pública pertence àqueles que querem passar com seus carros. Passar, portanto, sem parar para escutar. É forte, porque Alckmin tem demonstrado governar assim, passando sem escutar. Se necessário, passando por cima, como se viu.

O que foi a imposição da “reorganização escolar” sobre a comunidade, senão um “passar sem escutar”? E o que aconteceu? O ato autoritário foi enfrentado com política. Os estudantes ocuparam o espaço público para reafirmar a necessidade de dialogar, para dizer que imposição não era possível num regime democrático. A reação foi recebida pelo governo como uma afronta à ordem e à autoridade. Mas como, se esta é uma democracia? Quem não dialoga é ditador. Diante do impasse, entre considerar a política uma obscenidade e, ao mesmo tempo, governar num estado democrático, Alckmin fez o quê? Se ele queria passar sem escutar, com seu carro e com seu decreto, o governador fez o quê? Chamou aquela que restou da ditadura: a Polícia Militar.

Como afirmou Fernando Padula Novaes, chefe de gabinete da Secretaria de Educação, é “guerra”. A palavra reveladora de como o governo se relaciona com aqueles que discordam, neste caso os estudantes, foi usada mais de uma vez numa reunião cujo áudio foi divulgado pela repórter Laura Capriglione, do coletivo Jornalistas Livres. O encontro com cerca de 40 dirigentes de ensino contou também com a anunciada presença de um militante da Ação Popular, movimento de jovens do PSDB. Na reunião, Padula demonstrou a necessidade de “desqualificar” o movimento de resistência e mostrar que a “radicalização” estava “do lado de lá”.

E, assim, na lógica de “guerra”, Geraldo Alckmin respondeu ao exercício da política com bombas de gás, com golpes de cassetete e agressões físicas e psicológicas, como humilhar e carregar à força um garoto de 18 anos pendurado de cabeça para baixo. Respondeu com repressão, como já tinha feito nas manifestações de 2013. Respondeu como um general alinhado ao golpe de 1964 responderia durante os anos de chumbo. A Polícia Militar é o que sobrou de lá, aqui. E, se como analistas de segurança pública têm dito, a polícia está descontrolada, está descontrolada porque governantes precisam controlar. E impor: passar sem escutar. Passar sobre a política. “Limpar” as ruas dos pretos e dos pobres e também dos que fazem política.

Enquanto as imagens nas ruas expunham a violência da Polícia Militar contra os estudantes, a maioria deles adolescentes, este era o discurso do governador: “A polícia dialoga, a polícia conversa, a polícia pede para as pessoas saírem, a polícia dá tempo para as pessoas saírem. Agora, não pode prejudicar quem precisa trabalhar. Então, é preciso ter o mínimo de bom senso. A polícia faz todo o trabalho, ela é capacitada, é treinada, tem paciência…”. O governador, e esta não é uma constatação banal, está satisfeito com a ação da PM. A desconexão entre o discurso da autoridade máxima do estado de São Paulo e a realidade documentada por vídeos e fotografias nas ruas de São Paulo é um fato a ser levado a sério.

É uma enormidade o que os estudantes paulistas deram ao país neste mês de resistência. Enquanto a política em Brasília, aquela feita por profissionais do ramo, era rebaixada a chantagens e tomaladacá, adolescentes deram ao país uma lição de política em sua expressão mais completa. Organizaram-se, ocuparam 196 escolas, responsabilizaram-se por elas – consertando, limpando e cuidando – e impediram que, num país e num estado em que a péssima educação pública escava um abismo, mais de 90 escolas fossem fechadas por decreto. Foram reprimidos violentamente por isso. Muitos apanharam, dezenas foram detidos, centenas sofreram as consequências das bombas de gás. Mas resistiram. E venceram. E, como o que venceu foi a política contra o autoritarismo da verdade única e da força bruta da PM, vencemos todos.

Em 4 de dezembro, o governador foi obrigado a recuar: suspendeu a “reorganização escolar”. O secretário de Educação, Herman Voorwald, deixou o cargo. Geraldo Alckmin recebeu uma lição de política dada por crianças e adolescentes. Ao ver sua popularidade despencar, conforme pesquisa do Datafolha publicada no mesmo dia em que anunciou o adiamento das mudanças até 2017, o político que iguala a política à obscenidade descobriu que não era mais possível mandar a Polícia Militar passar por cima do povo para sua verdade única passar.

Geraldo Alckmin recuou com uma frase do Papa Francisco: “Sempre que perguntado entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma solução sempre possível, o diálogo”. Ainda que óbvio, é uma questão de respeito restabelecer os fatos para não perverter as palavras. “Indiferença egoísta”: pode ser relacionada ao governo, que tentou impor sem debate um projeto controverso, criticado por educadores, que fechava quase uma centena de escolas e atingia centenas de milhares de alunos. “Protesto violento”: fotografias e imagens documentam a violência da PM contra os estudantes. “Diálogo”: é o que os alunos reivindicavam, enquanto no interior do governo se anunciava “guerra”. Diálogo é justamente política. Como aquilo que se faz é mais revelador do que aquilo que se fala, o governador fez seu anúncio e deixou a sala sem falar com a imprensa.

Não foi apenas Geraldo Alckmin que aprendeu algo importante com os alunos da escola pública –ou deveria ter aprendido. Há dois pontos aos quais é preciso prestar bastante atenção. Um deles, que já havia se tornado claro nas manifestações de 2013, é o de como uma parcela da imprensa da redemocratização ainda está intoxicada pelos tempos da ditadura e da censura, entre outras hipóteses para a escolha dos termos usados na cobertura. Adolescentes levam bombas e borrachadas das forças de segurança do Estado e parte da imprensa chama de “confronto”. A cada protesto nas ruas, várias reportagens começavam pelas agruras causadas pela interrupção do trânsito, como se o trânsito fosse a entidade mais importante desse acontecimento político, relacionado à grande tragédia nacional, a educação, numa hierarquia de valores bastante iluminadora. Adolescentes eram encurralados e agredidos pela PM e parte da imprensa definia como “confusão”. A PM reprimia violentamente os alunos que protestavam e uma parcela da mídia descrevia o fato como um ato de “dispersão”. Nomear os fatos com precisão é tarefa obrigatória do jornalismo.

Ao pensar nas manifestações contra o aumento das passagens do transporte público, em 2013, desponta outro ponto crucial: qual é o limite da opinião pública? Ou, de forma mais explícita: em quem a polícia pode bater sem causar assombro e reação, ou sem que isso provoque a queda de popularidade do governador? O que os protestos contra o fechamento das escolas mostraram é que usar violência contra alunos adolescentes é um limite para os cidadãos. Desta vez, não foi possível transformar os estudantes em “vândalos” e ganhar a opinião pública, como ocorreu em 2013, usando como justificativa a ação violenta dos black-blocs. Geraldo Alckmin apostou que conseguiria repetir 2013, quando num primeiro momento houve uma reação massiva contra a violência da polícia e, em seguida, com a conversão de manifestantes em “vândalos”, na narrativa de parte da imprensa, a opinião pública passou a apoiar a repressão policial, por ação ou omissão.

É importante pensar sobre isso, porque enquanto a violação da lei pela polícia não for rechaçada, independentemente de contra quem for, seguiremos muito mal. Se pode bater neste, mas não naquele (ou matar, como acontece nas periferias e favelas), continuaremos involuindo no pacto civilizatório. E os governantes autoritários seguirão com chance de passar sua verdade única sobre a política, calando a democracia com bombas de gás e golpes de cassetete.

O fracasso na conversão de estudantes em “vândalos” para a opinião pública, apesar de todos os esforços, revela que a escola ainda têm um lugar forte no imaginário coletivo. A educação pública, tão abandonada, tão desrespeitada, tão desinvestida nestas últimas décadas, ainda ecoa na população como um valor. Ainda ressoa a consciência de que uma escola, neste país, não pode ser fechada. Muito menos dessa maneira. A escola, tão maltratada, ainda é um símbolo positivo.

Há aqui uma lição profunda que os estudantes das escolas públicas deram não apenas ao governador, mas ao conjunto da sociedade que acredita em saídas individuais, em geral na de matricular o filho na escola privada para pelo menos salvar o seu da tragédia educacional brasileira. Quando já se tornava difícil acreditar que houvesse uma saída, os estudantes se apropriaram das escolas e, com a ajuda de parte dos pais, passaram a cuidar dela. Coletivamente, como comunidade, como cidadãos. Cuidam do que ninguém mais de fato cuidava.

Acho que ainda não chegamos perto de alcançar o tamanho desse gesto, que nestas últimas semanas levou gente que nunca tinha pisado numa escola pública a oferecer de comida a serviços. Pessoas de todas as áreas têm se apresentado para dar aulas nas escolas ocupadas. Alunos de universidades prestigiadas, aquelas em que os estudantes da escola pública foram ensinados a acreditar que nunca entrariam, pediram para os secundaristas irem até a faculdade explicar o movimento. Os estudantes conseguiram derrubar muros que quase ninguém acreditava que ainda poderiam cair. E uma estudante ouviu de uma visitante no domingo, na Escola Estadual Fernão Dias Paes, a primeira ocupada na capital paulista, uma frase simbólica: “Tenho orgulho de viver numa cidade em que você existe”. Como escreveram os repórteres Felipe Resk e Rafael Italiani, do Estadão, a escola que tem o nome de um bandeirante “se tornaria símbolo da resistência ao Palácio dos Bandeirantes”. Recusando tal pai-fundador, os alunos cobriram a estátua do “matador de índios”, na frente da escola, com um saco preto.

Os estudantes que ocuparam escolas e ruas estavam até então na posição de restos. Eram os estudantes que o Estado fingia educar, em escolas abandonadas, caindo aos pedaços, em aulas com professores muito mal pagos, desmotivados e despreparados. Eram os alunos que nunca teriam muita chance na vida porque recebem uma péssima educação. Eram os estudantes “violentos” e “perdidos” da escola pública, eram também os pretos e os pobres da escola pública. Eram aqueles que restavam na condição de objetos, também de discursos eleitoreiros e de slogans indecentes. Os herdeiros do processo de redemocratização lento, frágil e precário que vivemos há 30 anos, das ações imperfeitas de inclusão social, provaram que, se a moldura do espaço público for a democracia, há lugar para as diferenças, há lugar para o outro. Aqueles que muitos acreditavam “sem futuro”, porque sem presente, ensinaram aos adultos que a política é o exercício de estar com o outro no espaço público.

De onde veio a boa notícia no rio de lama e de obscenidades que se transformou o país, no concreto e no simbólico? Dos meninos e meninas das escolas públicas. Educaram o governador, educaram a sociedade. E fizeram o que parecia impossível no atual momento do Brasil: resgataram a política.

(Publicado no El País em 7 de dezembro de 2015)

A lama

Com o rompimento da barreira entre metáfora e concreto, a catástrofe torna o Brasil irrepresentável

Lama deixou rastro de destruição em Bento Rodrigues. DOUGLAS MAGNO AFP (Reprodução do El País)

Lama deixou rastro de destruição em Bento Rodrigues. DOUGLAS MAGNO AFP (Reprodução do El País)

Como não pensar, a cada dia, que a lama avança. Essa lama tóxica que mata gente, mata bicho, mata planta, mata histórias. Essa lama que engoliu um povoado chamado Bento Rodrigues, assassina o Rio Doce, avança pelo oceano, atravessa os estados e segue avançando. Essa lama que deixou meio milhão sem água. Essa lama venenosa que vai comendo o mundo como se fosse um organismo vivo. Essa lama morta que se move. E ao se mover, mata. Enquanto alguém toma um café, pega o ônibus, reclama do trânsito, faz um selfie, se apaixona, assiste a uma série do Netflix, se preocupa com as contas, faz sexo, se queixa do chefe, sente que o cotidiano não está à altura de suas grandes esperanças, briga no Facebook, faz planos para as festas de fim de ano, engole umas gotas de Rivotril, a lama avança. Enquanto escrevo, a lama avança. Piscamos, e a lama avança. Parece quase impossível pensar em algo além de que a lama avança. E ninguém pode afirmar até aonde a lama vai chegar.

É mais como um filme de imagens impossíveis, cada um entre seus muros, fronteiras cada vez mais enfarpadas, e a lama avançando. Dia e noite, essa lama que não dorme. Avançando. Talvez fosse necessário mais um movimento de vanguarda na arte, que desse conta do excesso de real da realidade. Da lama que avança. Concreta, espessa, tóxica. Inescapavelmente lama. Que Guernica poderá ser pintada diante da obra da Samarco, a mineradora que pertence à Vale (antes chamada “do Rio Doce”) e à anglo-australiana BHP Billiton? Precisamos de uma Guernica para representar o irrepresentável dessa lama que avança enquanto fazemos xixi.

Haveria de ter uma bienal das artes criando coletivamente representação diante da lama, em tempo real, uma bienal viva diante da lama morta que mata. Para que a lama que avança não pudesse ser esquecida para além dos que jamais poderão esquecê-la porque nela perderam quem amavam. Ou perderam um rio. Ou, no fio de voz do homem que conta para um repórter de TV que perdeu a fotografia do pai e da mãe, ele mesmo achando pouco, mas sentindo tão doído que era tanto. Não era carne, mas era história, história que dizia que ele teve um pai e uma mãe que um dia fizeram um retrato para se representar. E a lama comeu.

A lama avança. Não apenas como metáfora, como havia sido até 5 de novembro, quando a barragem se rompeu liberando todo o recalque. A lama avança matando Emanuely, Thiago, Waldemir, Claudio, Sileno, Marcos, Marcos Aurélio, Samuel, Mateus, Edinaldo, Daniel… Mais dois mortos ainda sem nome. Pelo menos 13 corpos já foram encontrados na barriga de baleia da lama. Treze gentes, com suas histórias, seus sonhos, seus desesperos, seus amores. Treze que se multiplicam por centenas que acordarão a cada dia com a faca do luto esburacando o peito.

E pelo menos oito desaparecidos, que um dia poderão ser cuspidos pela lama. Ou não. Oito que sumiram e que também eram amados por alguém e que também sonhavam e que também suavam e que também queriam. Oito de quem ainda se espera que apareçam para dizer que escaparam dos dentes da lama e para serem abraçados com força e para virarem histórias de superação ou conto de Natal. E há os peixes que são dimensionados em toneladas, e não parece possível compreender que vidas sejam dimensionadas em toneladas, apenas porque são outras vidas ou vidas de outros. Há as tartarugas. Há espécies que poderão deixar de existir, um tipo de vida que desaparece por inteiro, a pobreza máxima, insuperável, aquela para a qual não existe nenhuma possibilidade de Bolsa Família para resgatar. Há todas as plantas que não farão mais fotossíntese, árvores que já não respiram. Flores afogadas. Há o rio assassinado. O não rio.

E a lama avança.

Não como metáfora.

Mas também como metáfora. Enquanto a lama avança – “vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “não vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “alcançou o ninho das tartarugas-gigantes”, “praias são interditadas no Espírito Santo”… –, há uma lama metafórica que entra pela nossa boca e nos faz tossir. Mas a tosse não nos liberta, porque estamos intoxicados de lama. Essa lama que circula pelas veias desse corpo que chamamos de país.

A lama que nega a lama. Assim como Vale e BHP Billiton fingem que a Samarco é outra coisa que não elas mesmas. Assim como o governo federal finge que aplicar multas é uma demonstração de força, sem dizer que apenas 3% das multas são de fato pagas pelas empresas multadas, e sem dizer que não haverá dinheiro que possa dar conta da reparação. Nem mesmo os 20 bilhões de reais que o governo federal anunciou exigir na Justiça. Sem admitir, principalmente, que se uma barragem de rejeitos de mineração rompeu em Mariana é porque há algo (cor)rompido em todo o processo que permitiu que essa barragem rompesse. Algo que precisa ser corrigido já, porque há outras barragens, outras lamas, que podem avançar a qualquer momento porque há algo corrompido há muito que precede a lama que mata. E agora aquilo que era metáfora já não é.

Enquanto a lama que mata avança, outra lama que também mata, a lama que pode ser chamada de primordial, também avança. E avança rápido. Quando a lama que mata avançava havia 20 dias, a Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional, vale a pena prestar atenção nas palavras escolhidas para nomear essa comissão do Senado, aprovou um projeto do senador Romero Jucá (PMDB-RR) para acelerar a liberação de licenças ambientais para “empreendimentos de infraestrutura estratégicos para o interesse nacional”. Devido à pressão do momento, a exploração de recursos minerais foi retirada da lista dos projetos considerados prioritários. Mas a lista dos beneficiados pelo licenciamento facilitado não é nada pequena: obras dos sistemas viário, hidroviário, ferroviário e aeroviário, portos e instalações portuárias, energia e telecomunicações.

Não um projeto para tornar os processos de licenciamento ambiental mais rígidos e eficazes, menos sujeitos a corrupção e a pressões. Não um projeto para fortalecer os órgãos responsáveis, garantir monitoramento e informações independentes e ampliar as equipes de fiscalização. Não. Vinte dias depois de a barragem romper e a lama avançar sobre o corpo do país, essa comissão do Senado aprovou um “rito sumário”, que facilita a licença para as empresas e limita o prazo entre o pedido do “empreendedor” (mais uma palavra interessante) e o licenciamento ambiental a cerca de oito meses. Se o órgão responsável pelo licenciamento não cumprir o prazo, libera-se automaticamente. Sem qualquer análise sobre a vida, sobre o planeta, sobre o futuro. Porque, como declarou o autor do projeto, Romero Jucá, o licenciamento ambiental é o “vilão” dos grandes empreendimentos. Nesta lógica do senador, tão cristalina quanto a água do Rio Doce dificilmente voltará a ser, acabará se concluindo que a catástrofe de Mariana foi causada pelo excesso de rigor no licenciamento ambiental da obra da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton).

E a lama avança.

A quem serve esse projeto que avança no Senado, enquanto avança a lama que mata? Ao país, é o que dizem. É parte de algo batizado de “Agenda Brasil”, um pacote de propostas “com o objetivo de estancar a crise política e estimular o crescimento da economia brasileira”. Foi apresentado em agosto pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), como uma salvação para o Brasil e para a fragilizada presidente Dilma Rousseff (PT).

O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros. Mas é a lama que avança.

O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros com pose de estadista, certo de que nenhum cidadão brasileiro que acompanhou sua trajetória nos vários governos e parlamentos da redemocratização possa ter qualquer dúvida sobre a veracidade de sua preocupação com o país, sobre o seu amor exacerbado pela Constituição, sobre o seu compromisso maior com o interesse público. Ele, investigado pela Operação Lava Jato; ele, o homem suspeito de ter pagado a pensão de uma filha com dinheiro de uma empreiteira; ele, que usou o avião da FAB para levá-lo a Pernambuco para fazer um implante de 10 mil fios de cabelo, a Força Aérea Brasileira a serviço de sua urgência de deixar de ser careca. E a Agenda Brasil avança, facilitando o licenciamento ambiental em nome não dos interesses individuais e privados, de forma alguma. Renan Calheiros e o grupo de senadores que aprovou o projeto garantem que não se trata disso. E aquele que acredita que a lama jamais chegará a sua porta acredita.

A Agenda Brasil avança em nome do “interesse nacional”.

E a lama avança.

A comissão de nome interessante do Senado aprovou o projeto no dia 25 de novembro. No mesmo dia, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT-MG), também aprovou o seu na Assembleia Legislativa de Minas. Sim, ele, o homem que comanda o estado em que se iniciou aquele que é considerado “o maior desastre ambiental da história do Brasil” – e que, a depender das investigações da Polícia Federal, poderá ser promovido a “maior crime ambiental da história do Brasil”. O governador propôs acelerar o licenciamento ambiental, inclusive para mineradoras, porque, como todos sabem e o acidente da Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) provou, a demora no licenciamento ambiental é o grande problema do Brasil.

Não as pressões, a corrupção, os interesses privados acima dos interesses públicos, a precariedade dos estudos prévios e dos estudos de acompanhamento, a fragilidade do monitoramento, a indigência da fiscalização. Não. O problema do Brasil é que o licenciamento ambiental demora, o drama do país são esses ambientalistas que ficam exigindo que barragens como a do Fundão tenham monitoramento, fiscalização e um plano em caso de acidentes. Como governador diligente e preocupado com o meio ambiente, afinado com os desafios em debate na Conferência do Clima que se inicia em Paris, Pimentel resolveu o problema, em perfeita sintonia com os elevados princípios dos deputados mineiros que aprovaram o projeto.

Com o licenciamento ambiental acelerado, obviamente barragens não vão mais se romper matando gente, bicho, planta, rio. Faz completo sentido, quem haveria de discordar dessa lógica límpida como a água do rio Doce dificilmente voltará a ser? Tanto empenho e celeridade para quê? Para priorizar as grandes empresas, como empreiteiras e mineradoras, que por coincidência são também grandes financiadoras de campanhas eleitorais? Claro que não, garantem os que fazem as leis. Isso tudo é para o bem do Brasil. E aquele que se comove com as imagens dos soterrados pela lama no noticiário da TV, mas tem certeza de que a massa tóxica jamais chegará à sua porta, muito menos ao seu nariz, acredita.

E a lama avança.

Logo no dia seguinte ao rompimento da barragem, o secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas, Altamir Rôso, já havia se apressado em garantir, antes do início de qualquer investigação: “a Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) é uma das que mais se preocupam com segurança e com meio ambiente”. E, em seguida: “A Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) também é vítima”.

E a lama avança.

Mas ainda há quem acredite que ela jamais chegará à sua porta.

A Organização das Nações Unidas denuncia que as medidas tomadas pelo governo federal, a Vale e a BHP Billiton têm se mostrado “claramente insuficientes” para enfrentar uma catástrofe equivalente ao volume de 20 mil piscinas olímpicas contendo lama tóxica, que contamina solo, rios e sistemas de abastecimento em áreas superiores a 850 quilômetros e que não se sabe até onde vai chegar. A ONU declara que é “inaceitável” que se leve três semanas para divulgar que há risco tóxico na lama que avança. A ONU afirma que “o desastre é um trágico exemplo da falha na condução de negócios com relação aos direitos humanos e com relação à diligência para prevenir abusos”. Dilma Rousseff, a presidente que levou uma semana para sobrevoar (mais uma palavra interessante) a região daquele que é considerado o maior desastre ambiental do país que governa, nega qualquer negligência do seu governo.

Talvez o problema seja não a incompetência na prevenção e no enfrentamento da catástrofe, mas a incapacidade de a ONU compreender que o desenvolvimento é o grande “interesse nacional”. Em nome de uma causa maior, os obtusos precisam entender a necessidade de fazer sacrifícios, ainda que os sacrificados jamais sejam os que defendem a necessidade de fazer sacrifícios. Na posição de restos, os sacrificados não crescem. Submergem.

E a lama avança.

Assim como avança o novo Código de Mineração no Congresso. Uma parcela significativa dos deputados da comissão responsável pela sua criação recebeu doações de empresas ligadas à mineração. Mas, como aquele que acredita que a lama ainda não chegou à sua porta tem certeza, este é um mero detalhe que não corromperá o alto senso de dever cívico dos parlamentares. Na hora de legislar e decidir como proteger Brasil e os cidadãos brasileiros para que catástrofes como as das barragens da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) não se repitam, eles não pensarão em quem financiou suas campanhas, mas apenas no “interesse nacional”.

E a lama avança.

Em 24 de novembro, o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), outro nome para se prestar atenção, deu a licença de operação à barragem de Belo Monte, no Pará. A presidente do órgão, Marilene Ramos, afirmou durante o anúncio: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.

E a lama avança.

Três dias depois dessa frase lapidar da presidente do IBAMA, a empreiteira Andrade Gutierrez fechou acordo com a Procuradoria Geral da República, segundo informou a Folha de S.Paulo, comprometendo-se a detalhar vários esquemas de corrupção, entre eles propinas envolvendo Belo Monte, uma obra estimada hoje em mais de 30 bilhões de reais. Pagamentos de propinas na obra da hidrelétrica já foram relatados em acordos de outras delações premiadas da Operação Lava Jato por executivos de empreiteiras que formam o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), contratado pela Norte Energia para executar a obra, e estão sendo investigados. Mas em Belo Monte o “interesse nacional” é tão imperativo que nem mesmo 23 ações do Ministério Público Federal denunciando violações à Constituição foram capazes de interromper a obra, que será julgada como “fato consumado”. Como escreveu o presidente da Norte Energia, Duílio Diniz de Figueiredo, após a licença de operação, “é um orgulho para o Brasil ver Belo Monte se tornando uma realidade”.

E a lama avança.

Ao anunciar a licença de operação, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a presidente do IBAMA afirmou que a Norte Energia tinha “atendido integralmente” às exigências, “menos 10%”. Dias antes, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) já havia dado o seu aval à licença de operação, apesar de mencionar uma série de pendências e descumprimentos de condicionantes. A mesma FUNAI que, em vez de ser fortalecida para que os povos indígenas afetados pela obra pudessem ter maior proteção diante da empresa, passou exatamente pelo processo contrário: teve seu quadro em Altamira reduzido de 60 para 23 funcionários, no período de construção de uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

E a lama avança.

A palavra “condicionante” sofreu uma intervenção original no texto da Licença de Operação, em uma das interpretações recentes da língua portuguesa de maior criatividade, expressa por essa frase que abre uma nova página na literatura brasileira: “A validade desta LO (Licença de Operação) está condicionada ao cumprimento das condicionantes constantes no verso deste documento….”. Como se sabe, a língua é viva. E, assim, o que era condição para acontecer virou condição depois do acontecido.

Mas, assim como as autoridades do IBAMA e da FUNAI acreditam, aquele que acha que a lama jamais chegará à sua porta, muito menos à sua garganta, também tem certeza de que é justamente agora, quando a Norte Energia já conseguiu tudo o que quer, que a empresa fará questão de cumprir cada uma das suas obrigações legais. Faz todo o sentido. É sempre um prazer constatar que as ações do governo estão em sintonia com o pensamento lógico.

A barragem de rejeitos de mineração da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) que rompeu tinham como condicionante um plano de contingência.

E a lama avança.

Belo Monte começa a encher o lago num momento em que a região passa por uma seca histórica e a vazão do rio está perigosamente baixa. Antes, havia uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA) permitindo o enchimento do reservatório apenas entre janeiro e junho, fora do período de estiagem. Mas ela também foi derrubada, como denunciou o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo. Cerca de 1.800 famílias expulsas de suas casas e ilhas procuraram a Defensoria Pública da União em busca de justiça. A população atingida só teve acesso à assistência jurídica no início deste ano de 2015, cinco anos após o leilão da obra. Também o governo não cumpriu com suas obrigações, como homologar a Terra Indígena Cachoeira Seca, a mais desmatada do Brasil: só em 2014 saiu dali uma quantidade de madeira capaz de encher 13 mil caminhões madeireiros.

Lideranças da floresta amazônica e organizações socioambientais denunciam que ninguém sabe o que acontecerá com o Rio Xingu e com todos que vivem nesse delicado ecossistema. Denunciam que ninguém consegue avaliar com a necessária precisão o tamanho do impacto da operação de Belo Monte, já que os órgãos fiscalizadores dependem das informações e análises fornecidas pela própria empresa. Como os órgãos também eram dependentes na catástrofe da bacia do Rio Doce, que já alcançou o oceano.

Mas talvez aquele que acredita que a lama jamais chegará à sua porta conclua que todas essas pessoas que alertam para o impacto de Belo Monte nada sabem do “interesse nacional”. Diante do temor e da dúvida, é preciso invocar a frase da presidente do IBAMA, para recuperar de imediato a tranquilidade e a confiança no desenvolvimento: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.

E a lama avança.

E a lama avança para muito além, derrubando as fronteiras entre o público e o privado, entre os partidos e também entre os poderes, se imiscuindo a cada dia um pouco mais, empapando os dias, emprestando ao cotidiano a sua textura tóxica. E também aí ninguém sabe até aonde a lama pode chegar. Quantos pontos ela poderá ligar não apenas nos contratos da Petrobras, mas também no setor elétrico. E talvez adiante.

E a lama avança.

A mudança climática marca o momento em que o homem não apenas teme a catástrofe, mas torna-se a catástrofe. É assim que o Brasil chega à Conferência do Clima, em Paris: levando no currículo “o maior desastre ambiental da história do país” e a Licença de Operação à Belo Monte, mais uma barragem gigantesca na Amazônia como fato consumado.

E a lama avança.

Que momento da história do Brasil, este em que há tanta lama por todos os lados e, ao mesmo tempo, essa lama concreta, que avança e que mata. Essa lama das imagens, essa lama morta que parece viva porque anda, essa que só rompeu a barragem que a segurava por conta da lama ainda mais tóxica que a precede. O momento da história em que a lama rompeu a barragem do simbólico para invadir o real em sua forma concreta.

Diante de tantas autoridades, em tantas esferas, que frente à lama dizem agir “em nome do interesse nacional”, talvez seja a hora de começar a pintar a nossa Guernica para tentarmos uma representação da catástrofe. Uma Guernica de imagens, mas também de vozes. Uma Guernica de memórias e de testemunhos. Uma Guernica que confronte “o interesse nacional” e que o denuncie. Uma Guernica que exponha a perversão das barragens e também das fronteiras.

Porque a lama avança. E aquilo que atravessa o vão da porta da casa já não é poeira.

(Publicado no El País em 30 de novembro de 2015)

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