O que Belo Monte delata sobre todos os lados

Quando a narrativa da propina se impõe sobre a da violação de direitos humanos, as contradições em jogo neste momento histórico são denunciadas

Um dos buracos artificiais de Belo Monte. LILO CLARETO

Um dos buracos artificiais de Belo Monte. LILO CLARETO

E Belo Monte finalmente chegou às manchetes da grande imprensa – e aos corações e mentes dos “cidadãos de bem” deste Brasil – como denúncia. Segundo a Folha de S. Paulo, Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, uma das maiores empreiteiras do país, revelou à Operação Lava Jato um esquema de propinas no valor de 150 milhões de reais envolvendo a hidrelétrica. O dinheiro seria dividido em partes iguais entre PT e PMDB e teria sido entregue pelas construtoras envolvidas na obra da hidrelétrica na forma de doações legais às campanhas eleitorais de 2010, 2012 e 2014. Basicamente, lavagem de dinheiro de propina via financiamento de campanha. Se o esquema exposto em delação premiada for comprovado – e só depois disso – Belo Monte poderá alcançar a presidente Dilma Rousseff.

Há algo, porém, que a relação entre as delações premiadas da Operação Lava Jato sobre Belo Monte já expõe de forma explícita. Onde está o valor – ou onde estão as prioridades. A hidrelétrica só se torna objeto de denúncia quando a ela é relacionado um esquema de propinas que ainda precisa ser comprovado. Em seguida, setores que sempre defenderam a construção de Belo Monte e a enalteceram como uma “magistral obra de engenharia”, como se fosse a parte boa do governo de Dilma Rousseff, passam a denunciar a usina na expectativa de que, desta vez, a presidente seja alcançada.

Acontece com Belo Monte o que aconteceu com o tema da corrupção: ele passa a ser apropriado pela direita. Ou, dito de outro modo: as denúncias envolvendo a construção da hidrelétrica são sequestradas para dentro do amplo guarda-chuva da corrupção. Com mais entusiasmo, porque, se comprovadas, Belo Monte pode levar ao que faltava, uma ligação com a campanha de 2014. Diante das denúncias, Dilma Rousseff e a Norte Energia, empresa concessionária, negaram irregularidades.

Essa apropriação é particularmente interessante porque aponta as dificuldades de parte da esquerda neste momento. Se o esquema de propinas ainda precisa ser comprovado, as violações de direitos humanos e a destruição ambiental produzidas pela hidrelétrica estão fartamente documentadas. Mas a esquerda ligada ao PT silenciou sobre essa violência todos esses anos. E silenciou mais uma vez quando a licença de operação foi dada à hidrelétrica sem que a empresa tivesse cumprido a totalidade das condicionantes que, como o nome diz, eram as condições para que pudesse funcionar. Se o tema dos direitos humanos não é exclusivo de um campo ideológico, é certo que sempre foi um tema caro à esquerda. Por ter silenciado, esta esquerda se deslegitima. E já não sabe o que é num momento em que precisa desesperadamente provar sua diferença com relação aos que lhe apontam um dedo acusatório.

Belo Monte torna-se, assim, um problema também para todos aqueles que, de forma suprapartidária, apresentam-se “contra o golpe” e “em defesa da democracia”. O ponto defendido é claro: ao posicionar-se contra o impeachment de Dilma Rousseff porque não há base legal para ele, defende-se a escolha das urnas, o voto, a democracia. Mas, ainda assim, a maioria dos participantes destes atos e manifestos precisam repetir o tempo todo que a defesa da democracia não se confunde com a defesa do governo, na medida em que vários aspectos deste governo são indefensáveis. É tudo menos fácil se manifestar pela democracia e o cumprimento integral do mandato de Dilma Rousseff enquanto, ao mesmo tempo, a presidente sanciona a lei antiterrorismo que, conforme a interpretação de quem aplica a lei, pode criminalizar justamente manifestações e movimentos sociais.

Essa dificuldade aumenta quando Belo Monte desponta no noticiário e no discurso do oponente como uma denúncia de corrupção. É fácil afirmar que este governo está sendo atacado, e com ele a democracia, porque “defendeu os direitos dos mais pobres”, como foi repetido em todos os atos e manifestações que acompanhei. Esta é uma parte da verdade, mas bem longe de ser o todo. É muito mais difícil dizer algo como “este governo violou os direitos dos mais desamparados para construir a hidrelétrica de Belo Monte” ou “a hidrelétrica de Belo Monte, uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), produziu o etnocídio de povos indígenas”. E concluir: “Mas ainda assim é preciso defender a democracia e a escolha das urnas”. É possível afirmar isso, mas complica-se. É preciso enfrentar a complicação – e pronunciar todas as palavras, abandonando de uma vez as mistificações que facilitam o discurso.

Belo Monte torna-se o incontornável neste momento. Quando o processo de implantação da hidrelétrica entra na pauta da direita, abrigado no guarda-chuva da corrupção, o que setores da esquerda vão fazer? Há duas alternativas: recolocar as prioridades, o que significa incluir o possível esquema de corrupção no campo dos direitos humanos e ambientais, ou silenciar mais uma vez.

É pela sequência de silêncios constrangedores, quando não covardes, das contradições não enfrentadas, dos enfrentamentos adiados porque havia uma eleição a ganhar, uma disputa a vencer, uma guinada à esquerda para fazer ou ainda o “menos pior” a ser defendido, que tudo o que de melhor os que se posicionam “em defesa da democracia” podem dizer hoje é que defender a democracia não significa defender o governo. É isso – ou assumir-se a serviço do apagamento.

Mas, é preciso alertar mais uma vez, Belo Monte é o incontornável. O processo histórico já provou que silenciar sobre as verdades que não convêm para vencer uma disputa no campo da política é uma escolha perigosa. Só me parece possível defender a democracia, sem defender o governo, enfrentando as contradições deste ato. No caso de Belo Monte, isso significa enfrentar as violações de direitos consumadas antes, durante e depois da obra. Enfrentar as violações de direitos humanos e a destruição ambiental que acontecem agora, neste momento, no Xingu. E que não podem, mais uma vez, ser invisibilizadas em nome das conveniências – ou ser reduzidas a um esquema de propinas ainda por ser comprovado.

Escrevi, mais de uma vez, nos últimos anos, que Belo Monte, quando totalmente desvelada, é o nó que revelará o Brasil. Essa obra gigantesca contém a anatomia inteira das relações entre empreiteiras e governos (no plural) que assinala a história do país desde a construção de Brasília, em meados do século passado. Que essa operação entre Estado e empreiteiras tenha começado a ser desenhada na construção da capital do país, um monumento modernista erigido sobre a destruição da natureza representada pelo Cerrado, é de um simbolismo explícito. E cá estamos nós, mais de meio século depois, diante de Belo Monte, um monumento deslocado no meio do Xingu, um dos rios mais ricos em biodiversidade da Amazônia, no momento da história em que já não é possível negar a ação do homem na mudança climática.

Se Belo Monte for reduzida a um capítulo da Operação Lava Jato, apagam-se livros inteiros. É isso que, de novo, não se pode permitir que aconteça. Só há chance de “refundar a democracia no Brasil” – ou a República –, como alguns têm defendido, se Belo Monte for enxergada com tudo o que é. Para muito além do que a Lava Jato pode mostrar. É preciso olhar o “Belo Monstro”, como é chamada na região do Xingu, no olho. Para descobrir que estão todos lá, amarelos e vermelhos, brancos, qualquer cor. Direita, esquerda. Belo Monte é um monumento que expõe as contradições tanto dos que gritam “contra a corrupção” e “pelo impeachment de Dilma Rousseff” – quanto dos que gritam “em defesa da democracia” e “contra o golpe”. Em Belo Monte, pouca gente não tem sangue nas mãos.

Vale a pena lembrar alguns episódios dessa história em movimento.

– Belo Monte vai sair!

Esta foi a frase de Dilma Rousseff, então ministra das Minas e Energia de Lula, em 2004. É importante prestar atenção na data: essa cena ocorreu no segundo ano do primeiro mandato de Lula. À declaração, seguiu-se um murro na mesa. Dilma então se levantou e deu as costas para os representantes dos movimentos sociais da região, que cobravam coerência do PT, partido que apoiaram e ao qual a maioria estava filiada. Essa cena, contada por Antonia Melo, a maior liderança viva do Xingu, é a síntese da escolha que o partido fez, lá atrás, ao anunciar que a hidrelétrica seria construída de qualquer maneira e antes de escutar os diretamente afetados por ela, numa decisão prévia, anterior à análise das consequências. Ali, já estava muito dito – senão tudo. Para quem estivesse disposto a escutar, é claro. Quase ninguém estava. É também ali que se explica a escolha de Dilma Rousseff para ser sucessora de Lula.

Entre o murro da ministra e o início da geração de energia por Belo Monte, ocorrido na semana passada, passaram-se 12 anos. E uma das maiores coleções de violações de direitos da história recente do Brasil. Belo Monte é mais do que um mostruário de crimes socioambientais: é um monstruário. Já era muito antes de as primeiras delações premiadas revelarem as supostas propinas envolvendo a obra, já era muito antes de o juiz Sérgio Moro, dos procuradores e da Polícia Federal sequer sonharem com a Lava Jato. E ninguém, de lado nenhum, pode dizer que não sabia, que não foi informado. Desinformação é um luxo não disponível neste momento.

Em 2011, por exemplo, Célio Bermann, professor da Universidade de São Paulo (USP) especializado na área energética, afirmou em entrevista: “Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente no espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte”. E depois: “Há as pessoas que ganham pela obra – fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato”.

Bermann tinha credenciais para afirmar o que afirmava. Ele havia participado dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Desfiliou-se do PT, segundo ele, quando “o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos”. Em 2011, declarações como as do professor, fora das redes socioambientais, eram fortemente desqualificadas. Quem apontava as já claríssimas contradições de Belo Monte era acusado de não compreender as necessidades do desenvolvimento do país.

Vale a pena recuar mais alguns anos e reler a entrevista dada pelo economista Delfim Netto, ex-ministro da ditadura civil-militar, à revista Veja, no início de 2007. Ao defender o Programa de Aceleração do Crescimento de Lula, seu novo amigo, Delfim afirmou: “O mérito do plano foi recuperar um projeto de desenvolvimento econômico e procurar acender o espírito animal dos empresários. O setor privado precisa de duas garantias para investir: a de que haverá crescimento e a de que não faltará energia. Se houver essas duas garantias, os investimentos virão. Veja o caso do complexo hidrelétrico Belo Monte, no Rio Xingu. Por mais nobre que seja a questão indígena, é absurdo exigir dos investidores que reduzam pela metade a potência de energia prevista num projeto gigantesco porque doze índios cocorocós moram na região e um jesuíta quer publicar a gramática cocorocó em alemão”.

Segundo a Folha de S. Paulo, Flávio Barra, alto executivo da Andrade Gutierrez, afirmou em delação premiada que Delfim Netto teria recebido 15 milhões de reais de propina para acomodar os interesses das empreiteiras na formação dos consórcios da usina de Belo Monte. Ainda segundo o mesmo jornal, Delfim “refutou de maneira veemente” as acusações por meio de seus advogados.

A “acomodação” das empreiteiras na obra de Belo Monte foi explícita. Em 2010, pouco antes do leilão da usina, grandes empreiteiras, como Camargo Corrêa e Odebrecht, desistiram subitamente da disputa, alegando falta de “condições econômico-financeiras”. O leilão foi vencido por um grupo de empreiteiras de menor porte, sob o nome de “Norte Energia”. Para simular uma concorrência, havia outro grupo, do qual participavam pelo menos uma das grandes, a Andrade Gutierrez. Este grupo foi derrotado.

Duas operações ocorreram na sequência. Numa delas, as empreiteiras pequenas foram deixando o consórcio vencedor, até que ele assumiu a configuração atual da Norte Energia: principalmente estatais do setor, como Eletrobras e Eletronorte, e fundos de pensão. Na outra operação, a Norte Energia contratou as grandes empreiteiras para que executassem a obra, assim como as menores que haviam deixado o consórcio. O conjunto de empreiteiras formou o terceiro elemento, além do Estado e da Norte Energia: o chamado Consórcio Construtor Belo Monte. É na construção, como se sabe, que está o dinheiro.

Essa “engenharia” não é nenhuma novidade. Tudo isso foi contado, poucos acharam que valia a pena pelo menos um espanto. O que importava era o “desenvolvimento”. E, para alguns setores, a manutenção da crença de que o PT, ainda que associado com as velhas oligarquias políticas, seguia sendo um partido de esquerda. E, assim, sem estranhezas maiores, com escassez de perguntas – por parte de todos os lados e também de parte da imprensa –, Belo Monte foi construída em grande parte com dinheiro público, vindo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Vale lembrar que, entre o leilão da usina e o início da operação, o valor estimado da obra saltou de 19 para mais de 30 bilhões de reais.

O suposto esquema de propinas recém começou a ser investigado. Delação é início, não conclusão. Mas a violação de direitos humanos e a destruição ambiental que resultou dessa articulação entre público e privado estão, como já foi dito, amplamente documentadas. Essa engenharia já era bem conhecida – e teve, vale sublinhar, respaldo de parte do Judiciário. É uma vergonha que só a partir das delações premiadas da Lava Jato exista espanto, porque isso é muito revelador de que a vida dos mais vulneráveis pouco importa. Não apenas para este governo, mas para a maioria da população brasileira, independentemente do lado em que está ou da cor da roupa que veste. E isso, gostaria de avisar aos que bradam contra a corrupção, é corrupção. A sua, e não apenas a do governo.

Quando indígenas, ribeirinhos e pescadores atingidos, assim como moradores dos baixões de Altamira, fizeram protestos contra Belo Monte, este governo colocou a Força Nacional para defender a Norte Energia. Lideranças e movimentos sociais foram criminalizados. Milhares de pessoas foram expulsas de suas casas e também de ilhas do Xingu, perdendo o seu modo de vida, suas relações comunitárias, seu pertencimento.

Este governo deixou essa população sem nenhuma proteção jurídica para enfrentar a banca de advogados da Norte Energia. E, portanto, sem chance de negociar em termos minimamente aceitáveis sua “remoção compulsória”. Analfabetos assinaram com o dedo documentos que não eram capazes de ler. Somente quando a obra se aproximava do fim, no início de 2015, um grupo itinerante da Defensoria Pública da União conseguiu vencer todas as resistências e alcançar Altamira.

Essa violência foi vivida por Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, por Raimunda, que teve sua casa incendiada pela Norte Energia, por João, que paralisou a voz e as pernas no escritório da empresa, e por Antonia Melo, que quase perdeu o coração antes de perder a casa. Apenas alguns exemplos cujas histórias podem ser lidas entre os milhares de refugiados de seu próprio país gerados por Belo Monte.

Por que tão poucos se indignaram? Quem denuncia um golpe contra a democracia precisa enfrentar essa pergunta. Quem defende o impeachment de Dilma Rousseff também. No momento em que Dom Erwin Kräutler, o bispo do Xingu que há mais de dez anos é obrigado a andar com escolta policial para não ser assassinado por sua luta pela floresta, afirmou que “Lula e Dilma são traidores da Amazônia”, será que os setores da esquerda que se calaram concluíram que Dom Erwin estava a serviço da direita? E os indignados com a corrupção, acham que o problema é só a suposta propina?

Vejamos o que aconteceu com aqueles que Delfim Netto chamou de “doze índios cocorocós”. A Norte Energia deu, por dois anos, uma “mesada” de 30.000 reais em mercadorias para as aldeias indígenas atingidas. Foi o que técnicos chamaram de “o maior processo de cooptação de lideranças indígenas e desestruturação social”. Aldeias racharam, os indígenas pararam de plantar suas roças porque a comida chegava em latinhas, mesmo povos de recente contato passaram a consumir açúcar, salgadinhos e refrigerantes.

Em vez de aplicar os recursos na redução e na compensação dos impactos causados pela obra, o dinheiro foi usado para a distribuição dos espelhinhos modernos, mais de 500 anos depois da invasão dos europeus, em plena democracia. A desnutrição infantil nas aldeias indígenas aumentou em 127% entre 2010 e 2012, mas indiozinhos desnutridos por obra de uma empresa financiada por dinheiro público parecem não comover os “cidadãos de bem”. Ninguém bateu panelas por eles.

A lógica determinaria que, no momento em que uma das maiores obras do PAC atinge aldeias indígenas, o governo, no mínimo, fortalecesse o órgão de proteção. Curiosamente, neste período, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) foi esvaziada: em Altamira, o quadro de funcionários foi reduzido de 60 para 23 servidores. Os caciques passaram a negociar diretamente com a Norte Energia, Belo Monte virou um balcão em que direitos eram trocados por aparelhos de TV.

Tudo isso aconteceu – e acontece. Nos últimos meses, os impactos causados pelo enchimento do lago da usina começaram a se tornar evidentes, toneladas de peixes morreram e aldeias indígenas foram tomadas por uma invasão de mosquitos. As famílias ribeirinhas, ainda mais invisíveis que os indígenas, lutam para que sejam cumpridas as ações que permitem a retomada do seu modo de vida enquanto sentem, dia após dia, as chances de sobrevivência encolherem. Hoje, a situação é ainda pior, com uma empresa que já conseguiu tudo o que queria e um governo que não governa.

Quem melhor explicou a anatomia de Belo Monte, em que Estado e empreendedor perversamente se misturam, foi Thais Santi, procuradora da República em Altamira. “Belo Monte é o caso perfeito para se estudar o mundo em que tudo é possível. Hannah Arendt lia os estados totalitários. Ela lia o mundo do genocídio judeu. E eu acho que é possível ler Belo Monte da mesma maneira”, afirmou em entrevista a esta coluna. “A sustentação de Belo Monte não é jurídica. É no Fato, que a cada dia se consuma mais. O mundo do tudo é possível é um mundo aterrorizante, em que o Direito não põe limite. O mundo do tudo possível é Belo Monte.”

Procuradores da República no Pará denunciaram as violações da lei cometidas no processo de Belo Monte em mais de 20 ações na Justiça. Parte delas teve decisão liminar favorável em primeira instância, para em seguida ser derrubada por presidentes de tribunais por um instrumento autoritário chamado de “suspensão de segurança”. Pela alegação de que há perigo de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, o mérito da ação não é julgado nestas decisões. Foi também assim que o governo de Dilma Rousseff conseguiu, com a complacência de parte do Judiciário, garantir que a Norte Energia tornasse Belo Monte um fato consumado no meio do Xingu, barrando o rio e toda a possibilidade de questionar as ilegalidades no processo de implantação da hidrelétrica. Quando as ações contra Belo Monte finalmente forem julgadas no mérito, a destruição de floresta e de vidas humanas e não humanas já estará consumada há muito.

Talvez o mais revelador da hipocrisia que atravessa a sociedade brasileira fique ainda mais explícita na ação que denuncia o etnocídio indígena. Em 121 páginas, os procuradores revelam passo a passo a destruição cultural de povos indígenas promovida pela Norte Energia e o Estado, com a consequente vulnerabilidade física. E pedem o reconhecimento de que “o processo de implementação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte constitui ação etnocida do Estado brasileiro, da concessionária Norte Energia e da FUNAI”.

A ação, levada ao Judiciário em dezembro de 2015, é inédita na justiça brasileira, mas foi ignorada pela maior parte da imprensa. As manifestações, de um lado e outro, estavam em curso, mas etnocídio indígena nunca entrou na pauta. Que Delfim Netto, como se viu, manifeste descaso pela vida e pelo destino de homens, mulheres e crianças indígenas, entende-se ao lembrar que ele foi ministro de uma ditadura que exterminou aldeias inteiras. Mas e os brasileiros que querem “moralizar” esse país? Ou os que defendem “a democracia, contra o golpe”?

Neste momento, os refugiados de Belo Monte estão lá, enfrentando dia após dia uma catástrofe humanitária ignorada pelo restante do país. Em ofício datado de 7 de abril, a procuradora Thais Santi alerta: “da forma como se fez (e faz), o projeto de Belo Monte se materializa como um motor de eliminação da vida humana na Volta Grande do Xingu”. Quem acha que sua vida está muito ruim, precisa se lembrar que tudo o que piora, piora muito mais para os mais frágeis. Mais ainda se sua dor é geograficamente longe do centro de decisões políticas e econômicas do país.

O esquema de propinas de Belo Monte possivelmente será revelado por completo pela Lava Jato. Mas e o resto? Como se combate a corrupção dos tantos que se calaram esses anos todos? A corrupção como cidadão, como gente, a corrupção íntima? Como se combate a corrupção que atravessa todos os lados do Brasil falsamente polarizado? É este o nó que precisa ser desatado. Ou, mais uma vez, tudo mudará para continuar igual.

Se Belo Monte não for enfrentada, na totalidade do que representa, no tanto que diz sobre as fraturas históricas deste país, para muito além da suposta propina, nenhuma proposta é séria. Não há como acusar só o outro nesta história. Esta é a parte incômoda. Ninguém gosta de não se sentir tão limpinho assim, ou que seu lado certo não é tão certo assim. Belo Monte é incontornável em qualquer manifesto ou manifestação, de qualquer lado e também para além dos lados.

Restringir a tragédia de Belo Monte à propina é também uma forma de contorná-la. É possivelmente o que vai acontecer. Porque a podridão do Brasil também está exposta no fato de que a propina causa comoção e revolta, mas a destruição da vida de indígenas, ribeirinhos e pobres urbanos, assim como do rio e da floresta, mostrou-se, na prática, perfeitamente aceitável esses anos todos.

A maior denúncia é justamente o fato de que Belo Monte só vira denúncia quando aparece um esquema de propinas que, se comprovado, pode atingir a última campanha presidencial. É aí que se revela o que tem valor. E o quanto a indignação é seletiva e depende dos fins. Se compactuarmos que este é o valor no que se refere à Belo Monte, em nome do qual tantos tiveram suas vidas aniquiladas para que as engrenagens seguissem se movendo, não seremos diferentes daqueles que acusamos. Se não houver mudança no que tem valor, não haverá mudança nenhuma.

Como defendo, artigo após artigo, colocar-se fora do Brasil falsamente polarizado é uma posição. Não fujo a ela. O mais difícil neste momento do Brasil é enfrentar as contradições – e resistir à tentação de contorná-las. Seria muito mais fácil se houvesse um lado bom e o outro mau. Mas não há. Cada posição é espinhosa, é uma cadeira de pregos. O prego maior, praticamente uma estaca, é Belo Monte, ainda que muitos sigam se recusando a enxergar. Belo Monte é a versão mais completa das contradições dos governos Lula-Dilma e também do país, por isso é incontornável neste momento. Está lá, milhares de toneladas de cimento e de aço sobre o Xingu que contam uma história terrível.

Por isso, é duro. Mas só há posição honesta assumindo e enfrentando as contradições. A minha posição segue sendo contra o impeachment, enquanto não houver base legal para o impeachment, conforme o que está previsto na Constituição. E até agora não há. É uma pequena ironia pessoal, mas, como cidadã, tenho o dever de defender o voto de todos aqueles que ignoraram o que foi contado sobre Belo Monte. E, assim, ou por deliberadamente ignorar ou por achar pouco importante, elegeram esta presidente e este projeto para a Amazônia. Defender o voto da maioria não é uma escolha, mas uma obrigação. Defendo a manutenção do Estado de Direito porque defendi a manutenção do Estado de Direito que os governos de Lula e de Dilma Rousseff romperam para materializar Belo Monte.

Belo Monte é incontornável. A história mostrará. Que venham os dias.

(Publicado no El País em 11 de abril de 2016)

Acima dos muros

Nem de um lado nem de outro: o que dizem aqueles que têm, como posição, uma recusa às narrativas de adesão

Foto de João Luiz Guimarães

Foto de João Luiz Guimarães

Em cima do muro. Isentão. Colaboracionista do golpe. Covarde. Omisso. Ingênuo. Burro.

Estes são alguns dos nomes dados a quem não está em nenhum dos lados do Brasil polarizado. Não se alinha – muito menos se enfileira – nem na narrativa #ImpeachmentJá nem na “#NãoVaiTerGolpe. Nem amarelo, nem vermelho. E, assim, é achincalhado pelos dois lados, como traidor de ambos.

Como disse Bruno Cava: “Me situo nesse lugar nada confortável de ser a esquerda que a direita gosta – e a direita que a esquerda gosta. Mas que, no fundo, ninguém gosta. Lugar de pensamento que ainda balbucia, mas que ainda pensa”. Ou, nas palavras de Bruno Torturra, que se apresenta como “desidentificado”: “Prefiro a vertigem da desidentificação do que o falso refúgio das bandeiras de sempre”.

Como afirmei em meu artigo anterior, não estar em nenhum dos lados é posição. E forte. Silenciá-la, pela desqualificação, é uma perda num momento em que, mais do que nunca, as vozes precisam ser ampliadas e não reduzidas. Muito menos caladas. “Os discursos partidários, pronunciados por muitos e sempre da mesma forma, tem sufocado, com sua abundância repetitiva, os discursos independentes”, diz Pablo Ortellado. Ou, na expressão de Moysés Pinto Neto: “É como um vórtice bipolar, sugando tudo para seu interior e reduzindo todas as posições às suas referências”.

O país está, aparentemente, dividido por muros que impedem qualquer contato que não seja aos gritos. Ou que se realiza pelo espancamento, na tentativa de deletar literalmente o outro do espaço público. Os muros dos condomínios fechados, as cercas eletrificadas ganharam as ruas. E ninguém mais se escuta, cada pessoa um muro em si mesma, um portão armado, um vidro blindado e com insufilm.

É preciso promover o desarmamento. É necessário tentar enxergar acima dos muros – e derrubá-los. Não a marretadas, mas pelo instrumento mais subversivo desse momento histórico: o diálogo. A conversa que só pode acontecer pelo reconhecimento do outro como alguém que pensa diferente, não como um inimigo a ser eliminado.

É muito duro sustentar o lugar de não saber. Penso que é com essa dificuldade que também nos deparamos. Tenho dúvidas se não é por isso que uma parte das pessoas, à direita e à esquerda, prefere aderir ao conforto de uma das narrativas, para pelo menos se iludir que há uma resposta, que há alguém que sabe. Aderir como tentativa de estancar a angústia de sentir-se sem chão. Talvez seja o momento de suportar o não saber e acolher as incertezas. Mas em movimento, no movimento da busca.

No que se refere ao campo das esquerdas, também tenho dúvidas se não há, de novo, mais uma exortação ao “menos pior”, à eterna esperança da tal guinada à esquerda. Ou algo correspondente ao “voto útil” aplicado às manifestações. Mais uma conclamação, como se viu em eleições recentes e especialmente na última. Será que os dias seguintes não mostraram, de forma bastante eloquente, que isso já não deu certo? Que isso só alargou o abismo e que já passou da hora de encarar o buraco e enfrentar os conflitos, por mais duro que seja, para que pelo menos exista uma chance de criar possibilidades?

O diálogo é tão urgente que tem de ser provocado em todos os lugares. Percebi que, neste momento, nem na minha própria coluna de opinião posso falar sozinha. Convidei para este espaço, para nos ajudar a nos movermos, para além do que cada um acredita, algumas pessoas que têm ousado pensar e escrever, em geral em blogs e nas redes, sobre esse momento tão movediço, em que poucos se arriscam a dizer além do já dito. E a pensar fora das narrativas de adesão de um e outro lado. Estas, que já decoramos.

Trago para este espaço as vozes abafadas, as daqueles que não estão “em cima do muro”, mas “acima dos muros”, no plural. Moysés Pinto Neto é escritor, professor da Universidade Luterana do Brasil, graduado em direito e doutor em filosofia. Sua leitura do Brasil pode ser acompanhada no blog O Ingovernável. Bruno Torturra se dedica a experimentar novos caminhos para a participação política e para o jornalismo, a partir das possibilidades de hiperconexão. Fundou a Mídia Ninja, essencial na cobertura de Junho de 2013, e se distanciou dela a partir do final daquele ano. Hoje, toca o Estúdio Fluxo. Pablo Ortellado é filósofo, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo e coautor de Vinte centavos: a luta contra o aumento, entre outros. Ele testemunhou, como pesquisador, todas as manifestações contra e a favor do impeachment organizadas em São Paulo. Bruno Cava, autor de A multidão foi ao deserto, entre outros livros, e blogueiro do Quadrado dos Loucos, também é um atento investigador das ruas, pesquisador de lutas e movimentos urbanos há 11 anos, associado à Universidade Nômade.

Eles responderam, por e-mail, a três perguntas propostas por mim. Embora esses quatro interlocutores estejam próximos do campo das esquerdas, há diferenças consideráveis no seu modo de compreender esse momento. E há quem considere o conceito de esquerda, assim como o de direita, superados, insuficientes e redutores. De modos diferentes, os quatro são observadores atentos de Junho de 2013 – o ponto de inflexão que não parece ter sido compreendido por protagonistas de ambos os lados.

A ideia, aqui, não é construir um terceiro discurso – ou um terceiro lado. Isso também seria empobrecedor. Não há homogeneidade. E é mais interessante que ela não exista, que os discursos possam ser múltiplos. Talvez, por isso, também seja difícil – ou mesmo impossível – nomear esse fora dentro. Ou esse além dos muros.

A transgressão necessária, nesse momento tão delicado, é atravessar os muros com palavras. Mas essas palavras têm várias direções.

1) Por que você não está em nenhum dos lados ou dos polos da chamada “polarização do país”?

Moysés Pinto Neto – Não estar em um dos lados não significa não ter posição – sou contrário ao impeachment por questões jurídicas e políticas. Significa simplesmente não subscrever as duas principais narrativas. De um lado, a narrativa oposicionista, que define o PT como uma quadrilha que se apropriou do Estado para se manter no poder, garantindo sua permanência por meio de fraudes eleitorais e manobras populistas. De outro, a narrativa governista, que define o que está ocorrendo como um golpe de Estado travado pelas forças conservadoras, com vistas a atingir o processo de inclusão social levado a cabo nos últimos 12 anos. O problema é que essas narrativas estão incompletas.

A oposição desenha o cenário de modo a transformar o PT em alvo principal e ignora, propositalmente, a dimensão estrutural e universal que está sendo revelada nos processos de investigação da Operação Lava Jato. A situação, por sua vez, prende-se a importantes questões formais, baseadas em instituições jurídicas, mas não enfrenta o mérito de que o estrutural não elimina a responsabilidade de quem se envolveu e aprofundou o processo, muitas vezes blindando de forma idolátrica o partido contra toda e qualquer crítica.

Há tempos vem se construindo uma crítica ao modelo baseado numa noção de progresso unidimensional, que mede o sucesso das políticas públicas por meio dos índices quantitativos de crescimento, se sustenta em alianças com latifundiários, oligopólios econômicos e no alinhamento político com o “Centrão”. A corrupção não foi um acidente, mas parte de um programa que aceitou como fato consumado a existência desse complexo oligopolista para promover o crescimento nacional. Os movimentos sociais de 2013 entenderam perfeitamente esse mecanismo quando usaram o lema #NAOVAITERCOPA.

Não estar na polarização significa ampliar narrativas que têm sido reprimidas em nome da simplificação maniqueísta.

Bruno Torturra – Enxergar o país sob a lente da polarização já se provou algo pior do que simplista. É, a essa altura, alucinatório. De certa forma, a polarização é o exato oposto do que estamos vivendo na política institucional – escancaradamente promíscua, fisiológica e amalgamada.

Hoje, vejo a polarização mais como um fenômeno entrópico de comunicação do que político. Ela se destaca e exerce toda essa força gravitacional em ruas, jornais e timelines justamente pela dificuldade imensa de leitura de uma paisagem política caótica, trágica e complexa demais para ser resumida em posts, manchetes ou palavras de ordem.

Essa complexidade é uma barreira enorme para novos léxicos, lideranças, símbolos e campos de identificação emergirem e se tornarem forças relevantes, críticas e propositivas no debate. É um terreno minado para a assertividade. Mas, à medida que a crise se aprofunda, crescem também a ansiedade pública e a necessidade de respostas, de posições firmes. Então os polos – por mais disfuncionais que sejam – se tornam os únicos aspectos facilmente identificáveis do terreno.

É uma pena, porque esse teatro esconde a causa que poderia, em um ambiente racional, unir grande parte dos dois campos e uma massa de desidentificados no caminho: a completa refundação do sistema de financiamento eleitoral em nome de um mais barato, público e transparente.

Pablo Ortellado – Essa polarização política, ao meu ver, tem dois motivos principais. O primeiro é o aparecimento, no Brasil, do que os americanos chamaram de “guerras culturais”, que são as disputas geradas pela moralização do debate político. Essa moralização aparece na proeminência no debate político de temas como casamento gay, aborto e endurecimento penal, em detrimento de questões tradicionais de política econômica e social. Além disso, a moralização aparece também no tratamento moral dado a esses temas clássicos da política econômica e social que opõe, de um lado, uma moralidade punitiva, associada à direita conservadora e, de outro, uma moralidade compreensiva, associada à esquerda progressista.

Assim, o Bolsa Família, por exemplo, não é mais discutido na chave da sua eficácia ou eficiência no combate à pobreza, mas suscita dois discursos morais inconciliáveis. Para um lado, ele é um instrumento que premia a indolência, a incapacidade de poupança e a falta de empreendedorismo. Para o outro, ele é uma política solidária que mitiga uma injusta pobreza estrutural.

Com a moralização da política, o debate perde as referências comuns e se torna apenas o agressivo choque de visões morais de mundo. Essa moralização do debate é reforçada e está entrelaçada com a rivalidade entre os dois grandes partidos políticos brasileiros, o PT e o PSDB, que organizam as demais forças políticas. Como estão bastante organizados e enraizados em diversos setores da sociedade brasileira, cada um deles tem a capacidade de coordenar um discurso unitário. Pouco importa se essa orquestração é fruto da adesão espontânea dos partidários a argumentos e frases de efeito ou se emana como ordem de um centro político. O resultado é que cada partido tem um discurso pronto, fechado e autorreferente que é igual em toda a parte: nas redes sociais, nos meios de comunicação e na conversa cotidiana.

Esses discursos partidários, pronunciados por muitas pessoas, sempre da mesma forma e em todos os lugares, sufocam, com sua abundância repetitiva, os discursos independentes que, pela própria natureza, são singulares e descoordenados. Fugir da polarização é, portanto, condição para pensar e para agir com autonomia e independência.

Bruno Cava – Fala-se em terceira via, mas estou do lado de uma segunda via, em relação a um sistema político-partidário esgotado, onde as polarizações dos líderes escondem barganhas, promessas e posicionamentos que, por trás da retórica, não passam da reposição do mesmo jogo de sempre. Então, estou polarizado contra essa falsa polarização, e é o que me faz continuar pensando.

Diante do clamor por mudanças pelo país inteiro, em todos os segmentos, os protagonistas dessa crise simulam que estão mudando, para que tudo continue como está. Seja essa simulação na forma da guinada à esquerda, seja na do fim do petismo. A diferença, em termos de dinâmica, entre as duas, está na capacidade de falar para fora. O verde-e-amarelo e a pauta anticorrupção são inclusivos e tendem a funcionar como guarda-chuva para as indignações, ao mesmo tempo que símbolos partidários não são bem vistos e podem ser vaiados. O vermelho e a invocação de pertencer a um grupo específico, a esquerda, faz da outra manifestação uma espécie de prova de coesão, com contornos claros.

Isto talvez explique, em parte, a diferença quantitativa entre uma e outra: a pessoa indignada, que não está acostumada a ir a manifestações, tende a ir nas de verde-e-amarelo. Eu acho isso particularmente irônico, porque, quando gritávamos “Não vai ter Copa”, nos protestos de 2014, vestíamos preto e vermelho. Mas, naquele período, boa parte da esquerda dizia que não era hora de manifestar, que era hora de torcer. Ou seja: há apenas dois anos, era imoral *não* vestir verde-e-amarelo. Agora, essas mesmas pessoas atribuem ao verde-e-amarelo uma conotação negativa.

O grito antipolítico ou anticorrupção exprime uma tendência mundial de rejeição do atual sistema representativo, na sua dimensão política, econômica e ambiental, que não corresponde às potencialidades de uma democracia hoje possível, mas que é sistematicamente bloqueada. Atrás do “anti”, do “não”, do repúdio geral à figura do político, existe um “sim” maior, como vimos nas jornadas de junho de 2013, no Brasil, em Gezi Park, na Turquia, no movimento do 15M na Espanha, nas revoluções árabes, em todo um ciclo vivido intensamente pelo mundo. É possível trabalhar com esse sim.

2) Se você não está em nenhum dos lados, onde você está? Que posição é esta? E como nomeia esse “lugar” onde você está?

Moysés – Esse lugar tem tido sua nomeação proibida. Antigamente, chamavam pejorativamente de “terceira via”, agora chamam de “isento”. Na realidade, se “terceira via” se confunde com o liberalismo envergonhado de Tony Blair e “isento” se confunde com “sem posição”, não vejo como esses termos poderiam ser adequados. Trata-se da tentativa do “vórtice” bipolar de sugar tudo para seu interior, reduzindo todas as posições às suas referências.

Esse “lugar” surge desde Junho de 2013, quando houve oportunidade inédita de enfrentar velhas oligarquias com novas forças políticas, formadas a partir de uma transição geracional mergulhada em uma mutação tecnológica e cultural. Ele parte da falência da democracia representativa em contexto mundial, cuja crise se expressa pela presença sintomática de movimentos críticos ao sistema (como Espanha e Grécia), pelo descontentamento popular com questões globais, apropriado pela extrema-direita (com Le Pen, Donald Trump etc), pelos coletivos auto-organizados (como Zapatistas, Rojava) e, por fim, com revoltas violentas difusas nas periferias e com fundamentalismos.

O contexto atual ainda coloca a questão emergencial do “Antropoceno”, a entrada em um período geológico no qual o fator humano desempenha papel central na organização da Terra. A continuidade do programa de crescimento econômico baseado na hiperprodução e no hiperconsumo não faz mais qualquer sentido em um contexto material em que é necessário reduzir nosso impacto.

Alguns se perguntam se a própria noção de “esquerda” é útil para pensar esse porvir, entendendo-a como um marcador identitário que restringe a capacidade de disseminação das lutas e promove um fechamento “condominial”, que gradualmente se apaixona pelas próprias ideias. E, quanto mais caminha ao extremo, mais rígida, em um sentido quase militar, se torna a identidade.

Por outro lado, mesmo se considerarmos a crise da mediação e a crise ecológica como novos termômetros políticos, que reposicionam a polaridade, é difícil simplesmente negar a existência de uma diferença que corta ao meio as posições: para onde vão essas transformações sociais, ecológicas, tecnológicas. A divisão social em dois grandes grupos, aqueles que são donos de tudo e de todos os direitos e aqueles que não têm direito algum, reduzidos à condição de “vida nua”, parece ser o fio que corta necessariamente toda visão acerca do futuro, mesmo que marcada por esses novos termômetros.

Assim, pode até ser que o significante “esquerda” não diga mais nada sobre o porvir, já que sua herança humanista e parlamentar não dá conta dos problemas que o Antropoceno coloca. Do mesmo modo que a linguagem política dos direitos humanos pode ser insuficiente para compreender o contexto pluricultural que emerge no cenário globalizado, eliminado o privilégio ocidental de se colocar como a própria humanidade. Mas é inegável que há uma herança aí a ser apropriada: a luta por justiça que ultrapassa a noção de mera sobrevivência. A luta por justiça contra a divisão da sociedade em duas, uma com tudo e outra com nada.

Torturra – Acho que meu lugar é o da travessia. Impossível de ser posicionado com precisão. Pode ser um lugar muito desconfortável, mas necessário. Sempre me considerei – e ainda me considero – alguém de esquerda. Mas acredito realmente que a definição desse termo está, como todo o resto, em crise. Porque fica muito difícil saber o que é esquerda quando não sabemos mais onde está o norte. Quando não temos mais a clareza de que futuro, qual ideia de sociedade e democracia nosso campo vai oferecer para o século 21.

A forma, estética e ética das esquerdas do século 20 não dão mais conta. Por isso, nesse momento, eu acredito que a melhor posição não seja um “lado”, mas uma atitude desarmada, racional e realista. Abraçar a dúvida. Para, quando possível, ter mais clareza de léxico, propostas e ação. Para isso recorro às duas bases da minha formação política. Por um lado, autores iluministas e valores de crítica e autocrítica permanente. De rever e adaptar minhas opiniões aos fatos, nunca o oposto. E, do outro lado, voltando a buscar experiências psicodélicas com plantas e substâncias enteógenas – psicoativos que favorecem uma reconexão entre a natureza e seus processos. Elas me ajudam muito a compreender o intraduzível. A enxergar a política como uma propriedade emergente da psique humana. E trazem um pouco de calma no caos, alguma perspectiva e relativa lucidez nesse momento.

Ortellado – Me coloco fora da rivalidade dos partidos políticos, colaborando como posso com os movimentos sociais “autônomos”. Como dizem os zapatistas, busco estar “abaixo e à esquerda”. À esquerda no espectro político e abaixo (fora) do sistema partidário.

Acho que há uma conexão entre as manifestações de junho de 2013 e os protestos pró-impeachment de 2015 e 2016. Para além de qualquer dúvida, Junho de 2013 resgatou o protesto de rua como instrumento de pressão política e esse elemento foi incorporado no repertório de ação política, à direita e à esquerda.

Mas, de maneira mais profunda, pesquisas de opinião que conduzimos com os manifestantes anti-Dilma, em 2015, mostraram que eles compartilham as demandas centrais dos protestos de junho de 2013, que podem ser resumidas em: 1) rejeição da representação política; 2) defesa do sistema de direitos sociais. Ao contrário do que parecia, os manifestantes anti-Dilma não eram anti-petistas seletivos, mas desconfiavam de todo o sistema político, PT à frente. Além disso, defendiam de maneira surpreendentemente forte a universalidade, o caráter público e a gratuidade dos sistemas de educação e saúde.

Minha explicação para isso é a seguinte: Junho de 2013 despertou uma grande indignação transversal na sociedade brasileira contra o sistema político e em defesa de direitos sociais, a partir dos protestos pela redução da tarifa convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL). Essa indignação mais ampla ficou órfã quando o MPL, por questões próprias do seu modo de fazer política, se recolheu ao seu trabalho de base voltado para a mobilidade urbana. Sem atores políticos à esquerda que fossem organizados e desvinculados de partidos políticos, essa indignação foi assumida como causa pelos novos grupos de direita, que começaram a transformar o impulso anti-institucional em antipetismo, atribuindo a má qualidade dos serviços públicos à corrupção. O passo seguinte, no qual trabalham agora, é transformar a crítica à corrupção numa crítica ao tamanho do Estado, propondo como solução a desconstrução dos serviços públicos.

Cava – Tenho discursos, trejeitos e instintos de uma cultura de esquerda. Hoje vivo essa tradição como uma limitação do meu poder de agir. Me desconecta da alteridade, me paralisa pelo medo. A multiplicidade de modos de vida no mundo, hoje, não admite essa dicotomia entre “pessoas de direita” ou “pessoas de esquerda”. É artificial, forçada, e costuma servir apenas para fazer cordões sanitários entre grupos e redes mais amplos e transversais.

Como falar em esquerda e direita como estruturante do mundo político depois da Hungria 56 ou da Primavera de Praga 68? Talvez funcionasse em algum lugar do século 19, mas hoje existem vários polos que não encaixam bem aí, como direitos das minorias, ambientalismo, cultura digital, pensamento ameríndio etc.

Mas já sou de uma geração que não é mais a da fundação do PT, mas do ciclo alterglobalização de Seattle e Gênova, que tinha no zapatismo uma grande referência, se informava pelo CMI (Centro de Mídia Independente) e militava pela mundialização das lutas. Então, já é uma geração em êxodo com relação às formas engessadas que a esquerda assume, seja no movimento estudantil, nos sindicatos, nos movimentos sociais.

O ciclo de “ocupas” brasileiras no período de 2011-12 teve o efeito de demonstrar que se fortalece uma tendência transformadora que não passa pela esquerda. Ao contrário, seus símbolos representam elementos indesejados: aparelhamento, velhas lideranças, estruturas pesadas e centralizadas.

Em 2013, esse movimento de êxodo se tornou massivo e generalizado: no Rio tivemos lutas pelo transporte, moradia, anticorrupção nas obras da Copa e nas licitações de linhas de ônibus, contra a cura gay, campanha “Cadê o Amarildo?”, greves metropolitanas com professores e garis. Porém, para parte da esquerda, era mais importante proteger símbolos do que transformar o mundo.

De lá pra cá, ser de esquerda virou um tipo de estado civil, com cobranças, obrigações, certidões. Em vez de ficar estático, tento seguir os prolongamentos da tendência que citei, que hoje aparece de modo espalhado. É um tipo de solidão, pois sem lugar de conforto, mas que é compartilhada por muitos na solidão mesma, como um bloco do “nós sozinhos”. Num trocadilho com a música do Los Hermanos, quero dizer com isso o bloco dos sem representação, dos sem nome, daquele que está sozinho no deserto, mas encontra outros sozinhos. E sozinhos juntos se faz um povo nômade. Um deserto que é uma produção: não de solidão, de isolamento, mas de solidão ativa, recomeço, bando.

3) O que está acontecendo com o Brasil, visto deste lugar? Quais são os riscos deste momento histórico? E como sair desse impasse?

Moysés – Estamos nos tornando um novo país: as várias autoimagens brasileiras estão se dissolvendo. De baixo para cima, em contraste com o imaginário da mestiçagem, da malandragem e da cordialidade. E de cima para baixo, com o imaginário do coronelismo, da liderança paternal e do patrimonialismo. Os conflitos se estabelecem em nível micro e macro, ao mesmo tempo, colocando a sociedade em estado de hiperpolitização estressante.

A democracia implementada desde a Constituição de 1988 transformou o país, com a estabilidade do Plano Real e a inclusão social do período lulista. Mas a etapa posterior ainda está por ser escrita.

Contrariando suas ideias iniciais, o PT cada vez mais se identifica com o imaginário tipicamente trabalhista. Busca instaurar um Estado de bem-estar social nos moldes do capitalismo industrial nacionalista, que serviu de base para sua construção europeia. Mas esse contexto, hoje, com o poder de pressão do mercado financeiro, a dissolução de fronteiras culturais, a crise migratória e a universalidade dos problemas ecológicos, não está mais presente.

O grande risco, inerente a qualquer desconstrução, é que esse processo seja suspenso em nome de um gesto de unificação forçada. A “antipolítica” que emergiu em 2013, tanto à direita quanto à esquerda, mas que está presente e visível no mundo inteiro, pode ser capitalizada de diversas formas, tendo em comum apenas a rejeição em bloco de todo sistema de mediação.

Deslocando o problema para a conjuntura, parece nítido que o buraco da “corrupção” não vai ser tampado apenas com “garantismo” (defesa das garantias individuais e da legalidade nos processos de persecução criminal). Para que a esquerda se rearticule, precisará dar uma resposta a isso que não passe apenas por mudanças legais e mais punitivismo. O próprio punitivismo é uma demanda que envolve a nostalgia pela coesão social absoluta: sua luta “contra a impunidade” é uma tentativa de restabelecer laços sociais em estado de tremor, de buscar reafirmar a lei como elemento unificador.

Talvez o governismo simplesmente não seja mais capaz de dar essa resposta, dado que está envolvido até os ossos com a defesa do projeto atual. A reiterada defesa da Odebrecht por Lula é significativa disso. Mas certamente a esquerda, entendida como perspectiva de transformação social com justiça, precisará de uma resposta e mudança estrutural desse cenário e projeto, para que possa se reposicionar politicamente, despertando aquilo que é essencial ao vínculo com o Outro: a confiança.

A transformação do país passa, portanto, por um novo pensamento, um novo programa experimental e novas formas de organização. Sair do impasse atual da crise das mediações demanda repensá-las de modo radical: sem dogmas e abrindo mão das velhas identidades, escapando da polarização que herdamos do século 20 e que já não é capaz de dar conta da imensa quantidade de problemas que o século 21 passou a apresentar.

Torturra – Tentando resumir o impossível, me parece que não apenas o governo, mas o Brasil inteiro está sofrendo as consequências gravíssimas de um auto-engano generalizado. Cada ator dessa crise – dos cidadãos aos partidos e instituições – está vivendo em profunda negação da autocrítica e responsabilidades pessoais. E buscando culpas em agentes no “outro polo”. O “corrupto”, o “golpista”, o “indignado seletivo”, o “omisso” é sempre o outro.

Isso explica um pouco da imprevisibilidade e da escalada punitivista no país. E explica o próprio impeachment. Para mim, a deposição de Dilma não é um golpe, como muitos preferem chamar. Mas a culminação dessa sanha literalmente expiatória. Que é liberar a culpa de todo um organismo político e social pela imolação de um corpo em praça pública. Uma sociedade afogada em contradições, uma imprensa majoritariamente cínica e um congresso encalacrado em escândalos querem assar a pizza da Lava Jato usando a presidente como lenha.

O risco, nesse momento, é altíssimo. E talvez o desenrolar da crise já esteja com o script definido. Mas, caso o impeachment seja o grande “pacificador”, a irracionalidade vai sair vitoriosa, confirmada e livre para capitalizar eleitoralmente. Em nome da unificação nacional, vamos perder a chance de discutir, pautar e refundar o sistema de financiamento eleitoral. Dado o enorme vácuo de novas e críveis lideranças, oportunistas e demagogos podem ocupar esse espaço em muito breve.

Minha tênue esperança, nesse momento, vem, justamente, de acreditar que o enorme e pouco reconhecido campo dos desidentificados seja o mais fértil do país. Que essa metástase do corpo político possa ser capaz de abrir caminho para o aprofundamento da nossa própria ideia de democracia, para além do voto. Como? Nem me arrisco a ser objetivo aqui. Mas penso que direitos humanos, transparência de gastos, um respeito incondicional aos ecossistemas e uma maior permeabilidade do Estado à participação cidadã devem ser os norteadores de qualquer nova visão política de país. Por isso, meu único mantra a esse ponto é o seguinte: manter as perspectivas mais amplas do que as expectativas. É duro, mas hoje prefiro a vertigem da desidentificação do que o falso refúgio das bandeiras de sempre.

Ortellado – Por um lado, a questão do impeachment está ofuscando questões mais substantivas, relativas à perda de direitos sociais, que estão sendo promovidas, com ênfase diferente, pelos dois grupos políticos em disputa. Por outro lado, um impeachment agora terá com certeza grandes repercussões no futuro próximo. As pedaladas, que nada mais são do que uma manobra contábil, são um pretexto ridículo para remover uma presidente que perdeu popularidade e apoio político no Congresso. Nessa chave, impedir a presidente agora é um recurso abusivo e perigoso, porque impeachment não é recall – votação de meio de mandato pela permanência ou não do mandatário. Ainda que o processo seja legal e institucional, ele banaliza um instrumento que devia ser utilizado de maneira excepcional. No entanto, se alguns dos indícios levantados pela Lava Jato se confirmarem – por exemplo, as acusações feitas pelo senador Delcídio Amaral –, aí sim teremos motivos para um pedido de impeachment. Mas ainda não é o caso.

Independentemente de tudo isso, o que estamos vendo agora é um ataque aos direitos sociais. Começou com a limitação do seguro-desemprego, passou por cortes expressivos nos gastos sociais e caminha rapidamente para cortes nas aposentadorias. Seja quem for que ganhe a disputa, provavelmente teremos redução de direitos. Por isso, a questão mais importante agora é fortalecer os movimentos sociais, principalmente aqueles que atuam por fora do sistema político. Consolidar os movimentos sociais que estão fora do modelo petista de fusão entre partido e movimento.

O PT não é um partido social-democrata tradicional, como o Partido Social-Democrata alemão ou o Partido Trabalhista inglês. No modelo social-democrata europeu, o partido tenta controlar e dar orientação aos movimentos, desde fora, oferecendo a eles um planejamento político de longo prazo. O PT é o contrário disso: é um partido construído em grande medida pela base, a partir da convergência de quase todos os movimentos sociais atuantes no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Isso gerou um modelo de participação e colaboração entre sociedade civil e Estado que vemos tanto na participação de movimentos na direção do partido, como em instrumentos institucionais de participação no Estado, como as conferências, os conselhos e as audiências públicas.

A partir dos anos 1990 e 2000, esse modelo, que se tornou dominante, começa a ser rejeitado pelos novos movimentos sociais construídos pelos mais jovens. É esse processo de construção – que vemos no Movimento Passe Livre, no movimento dos estudantes secundaristas, no novo movimento feminista, nos movimentos contra a violência policial nas periferias, entre muitos outros – que precisa ser amadurecido, para inaugurarmos uma nova etapa na esquerda brasileira, na qual a sociedade civil pressiona o Estado por mais direitos desde fora.

Cava – Gramsci dizia que crise é quando o velho já morreu e o novo ainda não pôde nascer, intervalo durante o qual ocorrem as mais diversas expressões mórbidas. O problema é que nenhuma das posições que está sobre a colina deixa o novo nascer, o que está levando o país – e o mundo – ao ponto do paroxismo. O maior risco é tirar a escolha das pessoas. É a chantagem em tom policial de que você tem que escolher um lado, senão… É preciso desconfiar de qualquer campo de possibilidades em que você não tenha escolha, e diante disso escolher a escolha.

Quando se coloca que há poucas escolhas, ou o afunilamento em apenas duas, “tudo” ou “nada”, seria interessante deslocar essa colocação: que tipo de agência eu – e cada eu é muitos, muitas redes – posso construir assim? Se enquadrarmos a intensa mobilização social no Brasil de 2016 como uma dicotomia, será que não cancelamos qualquer possibilidade de agência?

Por exemplo: no dia 18 de março, em São Paulo, onde estive, o PT colocou pra girar toda a sua estrutura na capital e cidades vizinhas, aglutinou todas as forças sindicais, das juventudes, dos movimentos sociais, e contou com o reforço das pessoas ligadas à oposição de esquerda e, sobremaneira, da universidade. O problema é que, conforme o ato ia evoluindo, ele era sucessivamente verticalizado em palavras de ordem, até atingir o clímax que foi o discurso do Lula. Toda a organização se deu de modo arborescente, quase um zigurate, para Lula falar. Lula sai dali e vai negociar com os caciques do PMDB, como vinha fazendo no ano passado, com o poder de barganha conferido pelo orçamento do governo.

Foi uma capitalização política em que os participantes tiveram pouca ou nenhuma agência. Ou pior, se agenciaram para favorecer não o que queriam, a “guinada à esquerda”, mas a blindagem do sistema político ao único vetor que conseguiu passar pela brecha de Junho de 2013, a operação Lava Jato – o que é a delícia e o drama dela, uma operação policial. A abertura das planilhas de obras e campanhas apenas está comprovando o que já desconfiávamos: como em termos de financiamento político e compromissos ocultos os principais partidos não diferem em nada. Nessa crise de esfacelamento, se a Lava Jato está exercendo o papel de Glasnost de uma governabilidade desenvolvimentista, o desastre ambiental em Mariana foi o seu Chernobyl.

Nas jornadas de junho de 2013, os coletivos pelo passe livre questionaram as planilhas do transporte coletivo municipal, para examinar os negócios e pegar os “pulos do gato”. Além dos obstáculos colocados pela repressão, se deparavam com uma contabilidade paralela, onde se enroscam os acordões empresariais e políticos-eleitorais. Hoje, três anos depois, a Lava Jato está escancarando as caixas pretas da governabilidade, relativas às grandes obras, os contratos públicos, os projetos urbanos.

Podemos levar adiante esse questionamento. Essa, aliás, não foi só uma das demandas de Junho, como também de uma recente mobilização em favor de uma constituinte por reforma política, centrada no financiamento eleitoral, mas paralisada com a desculpa da ausência de “correlação de forças”. Hoje, essa correlação não mudou para favorecer as mudanças?

Spinoza falava, sobre a servidão voluntária, que não se pode enganar o desejo. Você pode frustrar o interesse – e não o desejo. Seria interessante perguntar então, por qual mecanismo se é levado a lutar pela própria frustração, pelo próprio fracasso. Daí tantas leituras “existencialistas” – signo de interiorização de uma crise onde não se encontra agência – que vão falar em angústia, desespero etc. Claro que, em 18 de março, ouvi inúmeros relatos sobre isso, existiam margens, linhas de fuga, grupos deslocados com relação à verticalização. Dentro da massa vermelha havia matilhas.

Mas isso passa justamente por não se deixar subjetivar por um lado como contraposição ao outro, e buscar a terceira margem – a segunda via, em termos de potência de agir. Isso não significa não agir ou não decidir. Eu só acredito em refugiar-se quando tem um sentido tático, como quem se joga no chão pra escapar de uma bomba, mas logo se levanta e faz alguma coisa.

É preciso agir sim, falar, estar nas ruas, debater nas redes, enxergar linhas minoritárias em meio aos macro-blocos que cobram coesão. Existe uma energia grande à solta, buscando emergir desde as jornadas de junho de 2013, que a polarização partidária vem violentando de maneira ortopédica. Aconteceu algo semelhante na Argentina de 2001, que desembocou no movimento de panelaços e piqueteiros com o grito que se vayan todos. Sem respostas à altura da parte do sistema político-representativo, a indignação vai fazer um strike que nem no boliche.

A crise é um momento em que temos a oportunidade de viver intensamente o nosso tempo histórico. Em que o futuro é uma incógnita, em que podemos portanto contribuir, num sentido ou em outro, para materializar esse futuro aqui e agora. Querer sair do impasse já é, em certa medida, negá-lo. Como se existisse uma saída à mão, um “abre-te sésamo”. A esquerda, quando fala em “saída pela esquerda”, lembra o Barão de Munchhausen: para sair do atoleiro, resolveu puxar-se pelos próprios cabelos. Vai arrancar alguns, mas não vai sair.

Eu não tenho a resposta do “como fazer” em sentido estrito, ela não vai sair de uma fala ou análise individual. Na verdade, ela só pode ser desdobrada de um campo de relações, redes e agenciamentos de que cada um já participa, mesmo que isto signifique divorciar-se de alguns deles, porque crises também são momentos de reconfiguração. Junho de 2013 foi vivido assim por bastante gente: como tempo que urge.

Temos que assumir o impasse como potência. Não tem como sair, tem que entrar nele.

(Publicado no El País em 28 de março de 2016)

 

Todo inocente é um fdp?

Como se mover num mundo em que se tornou impossível não enxergar o mal que se pratica

O golfinho que pode ter morrido por desidratação tirando selfie com turistas na Argentina (Reprodução do El País)

O golfinho que pode ter morrido por desidratação tirando selfie com turistas na Argentina (Reprodução do El País)

Lembro uma cena do primeiro filme da trilogia Matrix, ícone do final do século 20. Os membros da resistência eram aqueles que, em algum momento, enxergaram que a vida cotidiana era só uma trama, um programa de computador, uma ilusão. A realidade era um deserto em que os rebeldes lutavam contra “as máquinas” num mundo sem beleza ou gosto. Fazia-se ali uma escolha: tomar a pílula azul ou a vermelha. Quem escolhesse a vermelha, deixaria de acreditar no mundo como nos é dado para ver e passaria a ser confrontado com a verdade da condição humana.

Na cena que aqui me interessa recordar, um traidor da resistência negocia os termos de sua rendição enquanto se delicia com um suculento filé. Ele sabe que o filé não existe de fato, que é um programa de computador que o faz ver, sentir o cheiro e o gosto da carne, mas se esbalda. Entregaria sua alma às máquinas em troca de voltar na melhor posição – rico e famoso – ao mundo das ilusões. Delataria os companheiros se a ele fosse devolvida a inocência sobre a realidade do real. Sacrifica a luta, os amigos e a ética em troca de um desejo: voltar a ser cego. Ou voltar a acreditar no filé.

A frase exata, pronunciada enquanto olha para um naco da carne espetada no garfo, é: “Eu sei que esse filé não existe. Sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso”. Faz uma pausa: “Depois de nove anos, sabe o que percebi? A ignorância é maravilhosa”.

Naquela época, véspera da virada do milênio, o filme deu ao público uma porta para o debate filosófico sobre o real. Tomar a pílula vermelha logo tornou-se uma metáfora para quem escolhe enxergar a Matrix – ou enxergar para além das aparências. Desde então, nestes últimos anos de corrosão acelerada das ilusões, penso que a escolha se tornou bem mais complicada.

Talvez o mal-estar do nosso tempo seja o de que já não é possível escolher entre a pílula azul e a vermelha – ou entre continuar cego ou começar a enxergar o que está por trás da trama dos dias. O mal-estar se deve ao fato de que talvez já não exista a pílula azul – ou já não seja mais possível a ilusão, esta que desempenhou um papel estrutural na constituição subjetiva da nossa espécie ao longo dos milênios.

Se fosse um de nós o membro da resistência disposto a trair os companheiros, a negociar a rendição com as máquinas diante de um suculento filé num restaurante, aqui, agora, e não mais no final dos anos 90, o dilema poderia sofrer um deslocamento. O drama não seria enxergar o filé como filé, no sentido de poder acreditar que ele existe, assim como acreditar que o restaurante existe e que o cenário a que chamamos de mundo existe tal qual está diante dos nossos olhos.

Não. O dilema atual pode ser também este, mas só na medida em que também é outro. O drama é que acreditamos no filé, sabemos que ele existe e sabemos que é gostoso. Desejamos o filé, nos lambuzamos dele e temos prazer com ele. Ao olhar para ele, porém, não enxergamos apenas “o deserto do real”, mas algo muito mais encarnado e cada vez mais inescapável: enxergamos o boi.

É terrível enxergar o boi. E, como os mais sensíveis já descobriram, é impossível deixar de enxergá-lo. Nossa superpopulação de humanos extrapolou a lógica dos vivos, matar para comer. E impôs a escravização e a tortura cotidiana de outras espécies. Milhões de bois, galinhas e porcos nascem apenas para nos alimentar em campos de concentração aos quais damos nomes mais palatáveis. São sacrificados em holocaustos diários sem que nem mesmo tenham tido uma vida.

Animais confinados, presos, às vezes sem sequer poder se mover por uma existência inteira. Criamos profissões capazes de reconhecer em segundos se um pinto é macho ou fêmea para separar as fêmeas que viverão espremidas, muitas vezes sem conseguir sequer abrir as asas, botando ovos e depois virando bandejas no supermercado e jogar os machos para serem moídos ainda vivos no triturador de lixo. Escravidão e tortura/sacrifício e lixo, estes são os destinos que determinamos aos frangos.

Somos os nazistas das outras espécies. E, se antes era possível ignorar, desqualificando a questão como algo menor ou coisa de “adoradores de alface”, a internet e a disseminação de informações tornaram impossível não enxergar o olho do boi. Ao olhar para o filé, o olho do boi nos olha de volta. O olho vidrado de quem está aterrorizado porque pressente que caminha no corredor da morte, o boi que se caga de medo enquanto é obrigado a dar o passo para o sacrifício, o boi que tenta escapar, mas não encontra saída. O olho do boi alcança até gente como eu, que pode ser colocada na categoria “adoradores de churrasco”.

A publicidade do século 20 perdeu a ressonância em tempos de internet. Porque a ilusão já não é possível. Nada era mais puro do que o leite branco tirado de uma vaquinha no pasto. Era fácil acreditar na imagem bucólica do alimento saudável. Nosso leite vinha do paraíso, de nosso passado rural perdido, da vida nos bosques de Walden. Assim como a longa série de produtos dele originados, como queijo, iogurte e manteiga.

Mas a vaca da imagem não existe. A real é a vaca que nasce em cativeiro, filha de outra escrava. A vaca que quase não se move, cuja existência consiste numa longa série de estupros por instrumentos que se enfiam pelo seu corpo para fecundá-la com o sêmen de outro escravo. Então ela engravida e engravida e engravida de bezerros que dela serão sequestrados para virar filés, para que suas tetas sigam dando leite delas tirados por outras máquinas. E, como sabemos disso, o leite que chega à nossa mesa já não pode mais ser branco, mas vermelho do horror da vaca cujo corpo virou um objeto, a vaca para quem cada dia é tortura, estupro e escravidão.

Para não beber sangue procuramos nas prateleiras leites à base de vegetais. Vegetais não gritam. Soja, apenas um dos tantos exemplos. Bifes de soja, hambúrgueres de soja, linguiças de soja, leite de soja. Mas como ignorar o desmatamento, a destruição de ecossistemas inteiros e com eles toda a vida que lá havia? Como ignorar que a soja pode ter sido plantada em terra indígena e que, enquanto ela vira mercadoria no supermercado, jovens Guarani Kaiowá se enforcam porque já não sabem como viver? Já não é possível fingir que não enxergamos isso. Assim, nem os veganos mais radicais podem se salvar do pecado original.

Olhamos para nossas roupas e horrorizados sabemos que em algum lugar da linha globalizada de produção há nelas o sangue de crianças, homens e mulheres em regime de trabalho análogo à escravidão. Como o casal que morreu abraçado na fábrica de Bangladesh, gerando a fotografia que comoveu o mundo mas não eliminou o horror que seguiu em escala industrial. Ou mesmo de um imigrante boliviano enfiado num quarto insalubre trabalhando horas e horas por quase nada bem aqui ao lado. Mas os mais sensíveis sentem a textura de suas roupas e sabem que são costuradas com carne humana. E já não sabem como vesti-las. Nem sabem como dar brinquedos para seus filhos porque sabem que os bonecos, os carrinhos, os castelos e os dinossauros contêm neles o sangue das crianças sem infância, ou o de suas mães e pais.

Já não é possível levar crianças a zoológicos ou aquários porque sabemos que a única educação próxima da verdade que receberiam ali é a do horror a que os animais são submetidos para serem exibidos, por melhor que seja a imitação de seu habitat. Lembro uma reportagem que fui fazer num zoológico, planejada para ser divertida, e só pude contar, entre outros horrores, que o babuíno chamado Beto era mantido à custa de Valium, para evitar que arrancasse pedaços do próprio corpo. Mesmo dopado jogava-se contra as grades, atirava fezes nos visitantes e espancava a companheira. Pinky, a elefanta, vivia só. Seus dois companheiros tinham morrido ao cair no fosso tentando escapar do cativeiro. Sabemos hoje que os golfinhos e as baleias dos shows acrobáticos são escravos brutalizados para servir de entretenimento a humanos. E, desde que sabemos, aqueles que gozam com esses espetáculos de morte podem se descobrir não mais como famílias felizes num momento de lazer, como nas imagens dos folhetos publicitários, mas como hordas de sádicos.

No simples ato de acender a luz já existe a consciência de que estamos destruindo o mundo de alguém e de que nada mais será simples. Neste momento, para ficar apenas num exemplo, dezenas de milhares já perderam suas casas no rio Xingu, na Amazônia, para a operação da Hidrelétrica de Belo Monte. Povos indígenas que vivem na região atingida já não conseguem suportar o aumento exponencial de mosquitos desde que o lago da usina começou a encher, alterando o ecossistema e dizimando culturas, no que já foi denunciado pelo Ministério Público Federal como etnocídio. Os impactos mal começaram e, em menos de três meses, mais de 16 toneladas de peixes morreram. E talvez também esteja chegando ao fim o tempo em que ainda é aceitável contar vidas por toneladas, mesmo que seja a vida de peixes. Ou a morte de peixes. Um dedo no interruptor e uma cadeia de mortes. E agora também já sabemos disso.

O tempo das ilusões acabou. Nenhum ato do nosso cotidiano é inocente. Ao pedir um café e um pão com manteiga na padaria, nos implicamos numa cadeia de horrores causados a animais e a humanos envolvidos na produção. Cada ato banal implica uma escolha ética – e também uma escolha política.

A descrição das atrocidades que cometemos rotineiramente pode aqui seguir por milhares de caracteres. Comemos, vestimos, nos entretemos, transportamos e nos transportamos à custa da escravidão, da tortura e do sacrifício de outras espécies e também dos mais frágeis da nossa própria espécie. Somos o que de pior aconteceu ao planeta e a todos que o habitam. A mudança climática já anuncia que não apenas tememos a catástrofe, mas nos tornamos a catástrofe. Desta vez, não só para todos os outros, mas também para nós mesmos.

Já não é possível a pílula azul – ou já não é possível à adesão às ilusões. Há várias implicações profundas numa época em que o conhecimento não liberta, mas condena. A começar, talvez, pela pergunta: quem é o inocente num mundo em que a inocência já não é possível? Seria o inocente o pior humano de todos? Seria o inocente um psicopata?

O que seremos nós, subjetivamente, agora que estamos condenados a enxergar? As redes sociais têm nos dado algumas pistas. O que a internet fez foi arrancar da humanidade as ilusões sobre si mesma. O cotidiano nas redes sociais nos mostrou a verdade que sempre esteve lá, mas era protegida – ou mediada – pelo mundo das aparências. Sobre isso já escrevi um artigo, chamado A boçalidade do mal, que pode ser lido aqui. As implicações de perder este véu tão arduamente tecido são profundas e recém começam a ser investigadas. O impacto sobre a subjetividade estrutural de nossa espécie é tremendo, exatamente porque é estrutural e desabou num espaço de tempo muito curto, quase num soluço.

O que faremos diante da impossibilidade da pílula azul, a que garantia as ilusões? A ridicularização daqueles que levantam esse tema ainda é um caminho, mas convencem menos que no passado. Também a piada se torna anacrônica. As interrogações vêm mudando, e já não é possível afirmar, sem revelar considerável ignorância, inclusive sobre a ciência produzida, que os animais não têm vida mental nem emocional, são “irracionais”. Ou, lembrando um argumento religioso, “que não têm alma”. Toda a ideologia que um dia justificou a escravidão de humanos, até que foi questionada, derrubada e transformada numa mancha de crime e vergonha na história da humanidade, passou a ser confrontada também com relação aos animais.

Cada vez mais as outras espécies começam a ser vistas como diferentes – e não mais como inferiores. Assim, o que se coloca no campo da ética são questões fascinantes e muito mais espinhosas. Mesmo o termo “direitos humanos” passa a ser questionável, porque pensar apenas em “humanos” já não é mais possível. No momento em que nos tornamos a própria definição de catástrofe, o conceito de “espécie”, em sua expressão cultural, se desloca. Outras formas de compreender e nomear o lugar dos humanos ganham espaço no horizonte filosófico e no exercício da política.

Resta o cinismo, sempre o último reduto. Dizer que, diante de mais de 7 bilhões de seres humanos ocupando o planeta e crescendo, não há outra maneira a não ser comer e vestir exploração, escravidão e tortura é a afirmação mais óbvia. É a afirmação expandida usada para todas as desigualdades de direitos. Desde que não seja eu – ou os meus – os sacrificados, tudo bem.

Vale a pena dedicar um parágrafo aos cínicos, essa categoria que prolifera com o ímpeto de um Aedes aegypti no Brasil e no mundo. O cínico é aquele que olha com calculado enfado para todos os outros, porque ele acredita que entende o mundo como ele de fato é. Ele é o que sabe das coisas, o único esperto. Todos os outros são tolinhos com ideias irreais. O cínico é aquele que deixa o mundo como está. Mas talvez, neste momento, o cínico seja justamente o inocente. Sua inocência consiste em acreditar que a pílula azul ainda está disponível.

Há um preço para enxergar e, mesmo assim, assumir o extermínio cotidiano como dado, como parte intrínseca da condição de ser um humano. Nem toda a crescente gourmetização da comida, nem todas as narrativas ficcionais que contam uma história idílica sobre a origem daquele produto, nada ocultará esse preço. E nada reduzirá seu impacto subjetivo. Não é fácil viver na pele do algoz. Não é simples viver sabendo-se. Aquele que se olha no espelho e se enxerga carregará essa autoimagem consigo. E se tornará algo que já não é mais o mesmo.

Há uma imagem recente que pode dar algumas pistas sobre esse caminho. Numa praia da Argentina, um golfinho foi carregado por turistas. Alguns dizem que ainda estava vivo, outros que já estava morto. Vivo ou morto, os turistas preocuparam-se apenas com tirar selfies para postar nas redes sociais. O site de humor Sensacionalista postou: “Golfinho morre ao ser retirado do mar para turistas fazerem selfie e Deus anuncia recall do ser humano”.

Ainda assim, quem se horrorizou com a falta de horror alheia, à noite seguiu diante do olho do boi. O que fazer diante do olho do boi? Como ser ético num mundo sem ilusões, em que cada ato implica na tortura e no sacrifício de um outro, humano e não humano? Se somos os nazistas das outras espécies, quando não da mesma, aceitar que assim é não seria se tornar um Eichmann, o nazista julgado em Jerusalém que alegou apenas cumprir ordens, o homem tão banalmente ordinário que inspirou a filósofa Hannah Arendt a criar o conceito da “banalidade do mal”? Não seríamos, aos olhos do boi, todos Eichmann, justificando-nos pelo senso comum de que assim é e se faz o que é preciso para sobreviver? Se sim, o que implica viver assumidamente nesta pele?

Talvez estejamos, como espécie que se pensa, diante de um dos maiores dilemas éticos da nossa história. Sem poder optar pela pílula azul, a das ilusões, condenados à pílula vermelha, a que nos obriga a enxergar, como construir uma escolha que volte a incluir a ética? Como não paralisar diante do espelho, reduzidos ou ao horror ou ao cinismo, eliminando a possibilidade de transformação? Como nos mover?

Diante do filé que desejamos e do olho boi que nos interroga, há pelo menos uma hipótese cada vez mais forte: o inocente é um assassino.

(Publicado no El País em 29 de fevereiro de 2016)

Sobre aborto, deficiência e limites

A possível ligação entre o zika vírus e a microcefalia obrigou o Brasil a encarar seus tabus

Reprodução do El País

Reprodução do El País

Uma doença nunca é só uma doença. Ela nos conta de desigualdades e falências, e também de paixões. O zika vírus, desde que foi associado à microcefalia, tem revolvido as profundezas do pântano em que a sociedade brasileira esconde seus preconceitos e totalitarismos, muitas vezes trazendo-os à superfície cobertos por uma máscara de virtude. É dessa matéria fervente o debate sobre a permissão do aborto em casos de microcefalia. Diante da crise sanitária revelada pelo Aedes brasilis, como o mosquito vetor já foi chamado de forma tão oportuna, o futuro próximo depende de que sejamos capazes de pensar, mesmo que isso signifique chamuscar as mãos. Pensar e conversar, o que implica vestir a pele do outro antes de sair repetindo os velhos clichês usados como escudos contra mudanças. Se não formos capazes de superar o comportamento de torcida de futebol nem mesmo diante de uma epidemia considerada “emergência global”, o mosquito é o menor dos nossos problemas.

O aborto

No Brasil, o aborto só é permitido em caso de gravidez resultante de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia do feto. Neste último caso, a liberação foi permitida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, por se tratar de uma condição incompatível com a vida. Prevaleceu a tese de que não haveria ali uma vida a ser protegida e, portanto, obrigar uma mulher a levar uma gestação em que ao final haveria um caixão e não um berço era afrontar a sua dignidade e submetê-la à tortura. Aquelas mulheres que encontrassem sentido em completar uma gravidez de feto anencefálico seguiriam, obviamente, com seus direitos garantidos.

Este é um ponto importante: o respeito ao direito de escolha de cada mulher, a partir de suas condições concretas e subjetivas, da teia de sentidos construída por cada uma para se mover pelo mundo. Quando o aborto é permitido, em nenhum momento essa liberação tira de qualquer mulher o direito de não fazê-lo. O que acontece é a ampliação de direitos – e não o estreitamento. Quem entende que fazer um aborto é o mais coerente para a sua vida faz. Quem entende que não – não faz. Preciso informar ao leitor que participei ativamente do debate do aborto de feto anencefálico. Como repórter, na cobertura do tema, e num documentário chamado Uma História Severina, no qual é narrada a luta por autorização judicial travada por uma mulher nordestina, pobre e analfabeta, para interromper a gestação de um feto anencefálico.

Embora no Brasil o aborto só seja legalmente permitido em três casos, a prática é inteiramente outra. E compreender isso é fundamental para qualquer debate honesto. Na vida de todos os dias, o aborto é liberado para quem por ele pode pagar. Se uma mulher de classe média ou alta engravidar, e por diferentes motivos essa gravidez for indesejada, ela vai a uma clínica particular, paga entre 5 mil e 15 mil reais e interrompe a gestação com considerável segurança. Seus dilemas são pessoais, internos, já que a decisão de abortar costuma ser difícil, mesmo quando há convicção pessoal de que é impossível levar aquela gestação adiante. Mas essa mulher não precisa temer ser presa, muito menos morrer por um aborto mal feito. Isso quase certamente não acontecerá com ela.

Com as mulheres pobres, sim. Para elas, abortar significa correr o risco de ser presa como criminosa e significa correr o risco de morrer. Como uma clínica segura, com boas condições sanitárias e profissionais preparados, custa entre 6 e 17 salários mínimos, ela só poderá se arriscar a esquemas muito inseguros. A cada ano, há mais de 200 mil atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS)por complicações pós-aborto, a maioria deles por procedimentos induzidos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados mais de 1 milhão de abortos inseguros por ano no Brasil. O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país.

Os números de atendimentos no SUS por complicações pós-aborto provam que dezenas de milhares de mulheres pobres estavam tão desesperadas que se arriscaram a serem presas e também a morrer. E, mesmo assim, acreditaram que esse risco era menor do que o de levar a gestação até o fim. Aqui é preciso interromper o texto por um parágrafo para, juntos, tentarmos nos colocar na pele dessa mulher. E é preciso fazer isso para além do ódio contra as mulheres, arraigado na sociedade brasileira. É preciso pensar – e não odiar, que é muito mais fácil.

Quem se arrisca a ser presa e a morrer está se arriscando a muito. Está arriscando tudo. Assim, é possível concordarmos, ao menos, que os fatos demonstram que aborto não é um ato banal para essas mulheres, mas uma necessidade profunda, movida por condições objetivas e subjetivas que só elas conhecem intimamente. Então, cuidado antes de sair apontando um dedo acusatório: nenhuma delas aborta sem um motivo muito forte. E isso tem de ser escutado por qualquer sociedade que queira se nortear pela ética.

Escutar é justamente debater. Aqueles que não querem debater aborto no Brasil precisam assumir que não se importam com a prisão e a morte de mulheres jovens e pobres, a maioria delas negras, já que estes são os fatos. Precisam assumir também que não se importam que o acesso ao aborto reproduza a desigualdade racial e social do Brasil, ao tornar-se acessível e seguro para quem pode pagar e criminalizado e mortífero para quem não pode. Quem se importa, debate os fatos. E escuta a posição do outro, mesmo que seja muito diferente da sua. Viver é mover-se.

E aqui, vale sublinhar, estamos falando apenas do pior. Mesmo nos casos em que o aborto é consumado sem complicações, é possível pelo menos imaginar o nível de pavor que uma mulher enfrenta ao se arriscar a fazê-lo em condições tão terríveis e sem nenhum amparo. É um pesadelo, e é um pesadelo que agora mesmo, neste instante, está sendo vivido por uma mulher em situação de extrema fragilidade. Não me parece que seja possível viver ignorando as mulheres que sofrem. E é assim que a sociedade brasileira tem vivido.

O aborto costuma surgir no debate público como moeda eleitoral. Em busca do voto religioso, candidatos da direita a esquerda têm se omitido ou chantageado com a vida das mulheres. Esta é mais uma evidência da corrosão da política tradicional, que tem se mostrado capaz de leiloar qualquer princípio: primeiro em nome de vencer a eleição, depois em nome dessa indecência que tem sido chamada de “governabilidade”.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre o aborto, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

A deficiência

No debate da interrupção da gravidez de feto anencefálico, certo tipo de religioso sem escrúpulos de mentir usava o falso argumento de que a proposta era “abortar deficientes”. Era um golpe muito baixo – e muito desrespeitoso. Nunca houve comprovação de um anencéfalo vivendo neste mundo. Se vivia além de dias ou meses, e mesmo isso só ocorria em casos raríssimos, não era anencéfalo, mas uma pessoa com outra malformação, esta compatível com a vida. Mas anunciava-se na internet como um anencéfalo. Como se sabe, a mentira apresentada como verdade, mais ainda quando acompanhada de uma imagem, é um forte instrumento de manipulação das mentes que preferem aderir a pensar.

No caso da microcefalia, sim, são crianças com deficiências. A malformação cerebral pode causar diferentes níveis de problemas, dos menos aos mais graves. E, sim, essas pessoas têm vida. O fato de terem dificuldades de ordem física ou mental não torna essa vida mais ou menos significativa. É aí que a sociedade brasileira falha miseravelmente.

De todos os discriminados deste mundo tantas vezes sórdido que vivemos, as pessoas com deficiências estão entre as mais violadas. O que pode ser pior do que ser decodificado como “uma vida indesejada”? O que pode ser mais esmagador do que ser aquele que “deu errado” ou ser aquele que porta “uma falha”? O que pode ser mais opressor do que “alguém que não deveria existir”?

É muito brutal. E é também uma grande estupidez. Infelizmente, essa estupidez persiste em todas as esferas, inclusive no governo. Só a ignorância pode explicar um ministro da Saúde, como foi o caso de Marcelo Castro (PMDB), referir-se ao nascimento de pessoas com microcefalia como “uma geração de sequelados”. Quando difundida por quem decide sobre políticas públicas de saúde, a ignorância é criminosa.

Por que é uma estupidez? Porque o que cada um faz com a sua vida – e com as suas limitações – é totalmente singular. Ninguém pode dizer, com base nas deficiências físicas ou mentais de alguém, que essa pessoa não poderá ter uma vida plena, com sentidos que ela vai construir e reconstruir a partir das suas possibilidades. Quando pessoas com deficiências provocadas pelas mais variadas causas assumem um protagonismo no mundo, viram histórias exemplares de superação, transformam-se em livros e filmes, ganham prêmios e homenagens, tornam-se nomes de ruas e instituições. Qualquer um pode se lembrar rapidamente de vários exemplos em cinco minutos. Mas todas as outras pessoas com deficiências são massacradas como entraves, como indesejados. Ou “sequelados”, como disse o ministro.

Quem não tem limites nesse mundo? Só as pessoas das campanhas publicitárias de “uma vida sem limites”, um dos slogans mais cretinos que já inventaram. A questão é que pessoas com deficiências não têm apenas limites, mas barreiras físicas e sociais. Desde falta de acesso a prédios a cadeirantes, para ficar num exemplo bem óbvio, até o muro muito mais difícil de ser ultrapassado, que é o olhar do outro, ao vê-lo como uma “vida indesejada”, um sub-humano.

Vale a pena conferir o que diz a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações com as diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. A vida de alguém, portanto, não é determinada pela deficiência. Mas sim pelo encontro desse corpo com a cultura. A única deformação instransponível é a de uma sociedade que, em vez de derrubar barreiras, as ergue.

Uma das barreiras mais abomináveis é justamente a da escola, aquela que deveria alargar os horizontes das crianças pelo processo emancipatório da educação. Agora mesmo tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação movida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) para sustar alguns dos efeitos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI). As escolas particulares querem se livrar da obrigatoriedade de assegurar educação aos estudantes com deficiências.

Como escreveu Lucio Carvalho, ativista e um dos editores do site Inclusive, é um NÃO em caixa alta: “O que muitas pessoas sentem, percebem, interpretam ou identificam em uma ação assim, com objetivos tão claros e explícitos, é um rotundo NÃO social. Um enorme NÃO. Um NÃO sem metáforas. Um NÃO é aqui o seu lugar. Um NÃO pense que o seu filho ou filha está apto a pertencer a este mundo. Um NÃO sonoroso que pode ramificar-se em: NÃO temos vagas, NÃO temos preparo, NÃO temos recursos, NÃO temos acessibilidade, NÃO queremos saber disso aqui, NÃO temos o menor interesse em sair dessa posição, NÃO isso, NÃO aquilo. E mais uma série de NÃOS que repercutem na individualidade, ainda que de muitas formas”.

Carvalho acrescenta: “Além da escola, o preconceito contra a deficiência se expressa de muitas outras maneiras: no isolamento imposto pelo convívio social muitas vezes dificultado; na invisibilidade das pessoas que pouco se veem representadas e reconhecidas nos produtos culturais e nos meios de comunicação; no acesso ao trabalho, por exemplo, quando são comumente vistas como pessoas de menor capacidade e sua presença é tolerada muitas vezes apenas por obrigação legal e formal”.

A maioria das pessoas prefere jamais pensar no que é ter uma deficiência e não poder ter uma vida digna, uma vida com invenção e com sentidos, não por causa de uma “falha” no corpo, mas pela deformação dos “normais”. Não é que a sociedade não pressione pelo derrubada das barreiras físicas e sociais ou pela promoção de políticas públicas de inclusão, que garantam o acesso à cidadania das pessoas com deficiência. É muito pior do que isso. Como se vê na ação movida pela CONFENEN, a sociedade quer derrubar os poucos direitos que se conseguiu garantir até agora. Quando se pensa que são estabelecimentos de ensino que movem uma ação como essa, é ainda mais desesperador. Mas este é apenas um caso entre tantos. Há muros no olhar da maioria.

Às vezes, raramente, emerge delicadeza nessas horas brutas. Como a mãe de um aluno que foi à escola privada do filho agradecer por terem colocado na sala de aula um menino com deficiência. Ela disse: “Meu filho melhorou tanto ao conviver com esse garoto, que eu vim aqui para agradecer. Sou eu, como mãe, que tenho de agradecer à mãe desse menino, por tudo o que ela deu à nossa família ao matricular seu filho nessa escola. Meu filho ganhou muito mais do que o filho dela, tenho certeza”. É a inversão, a inversão que coloca as coisas no lugar. A inversão que mostra que invertido estava antes.

Conto ainda uma outra história real, só possível pelo direito de inclusão na escola. Dois garotos estudaram juntos por três anos. Um deles tinha diagnóstico de autismo. Quando a puberdade se aproximou, aos 11 anos, o menino perguntou à mãe porque o colega estava tão agitado. A mãe respondeu: “Imagina o que é você não ter condições de entender que essas mudanças que estão acontecendo no seu corpo fazem você ser a mesma pessoa. Cada dia você acorda e tem a angústia de não se saber o mesmo”. O menino então disse: “Entendi. É como se o corpo dele fosse um sabonete que a mão, molhada, que é a cabeça, não conseguisse segurar”. Isso é conviver e aprender com as diferenças. Isso é educação, aquela que ensina a fazer o movimento de alcançar uma experiência diversa de estar no mundo.

A pessoa que se arrisca à experiência não é aquela que “tolera” o outro, que tem uma deficiência, como se fosse magnânima porque tolera, como se fosse uma enorme concessão que se expressa pela condescendência. Como acontece com tantos ao considerar que já é uma grande coisa cumprimentar com um sorriso a pessoa com deficiência que trabalha na mesma sala por determinação legal. Ou quando reclamam que o “deficiente” não é simpático, já que deveria estar eternamente agradecido e subserviente porque lhe concederam um lugar, ainda que num canto. Quem faz o mundo dar um passo à frente são aqueles que percebem que a experiência de viver se amplia ao conviver com as diferenças. Que veem diversidade e riqueza onde outros veem inferioridade e fracasso.

Assim, as crianças que nascerem com microcefalia por conta do zika, uma ligação que ainda não está totalmente esclarecida, não estão condenadas a uma vida sem vida. Mas podem estar condenadas a uma vida muito menos autônoma, muito menos cidadã, muito mais restritiva por conta das barreiras sociais que já deveriam ter sido derrubadas e não foram. São vítimas, neste caso, de duas falências: a das políticas sanitárias, que permitiram a proliferação do mosquito, e a das políticas de inclusão.

Neste caso, assim como acontece com o aborto, também são os mais pobres os que mais sofrem as consequências da precariedade das políticas públicas, assim como os efeitos da discriminação que permite a desigualdade de direitos. E os mais pobres no Brasil, como se sabe, são em sua maioria negros. A maior parte dos casos de microcefalia estão entre mulheres pobres do Nordeste, e são elas as que mais sofrerão com a epopeia que será incluir uma criança com deficiências num sistema de saúde pública precário e numa sociedade que discriminará seus filhos em todos os espaços e oportunidades.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre a deficiência, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

É possível juntar aborto e deficiência?

Está em curso uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) que pretende pleitear, entre várias medidas, a permissão do aborto devido à microcefalia e, ao mesmo tempo, a dignidade das crianças com deficiências que nascerem destas gestações. A ideia é garantir direitos: tanto os direitos das mulheres que querem interromper a gestação de um feto com malformação, num caso em que a doença foi causada por falhas das políticas públicas do Estado, como o direito das mulheres que querem levar essa gestação até o fim, com a garantia de que seus filhos terão acesso a tratamento e políticas de inclusão asseguradas. Trata-se, portanto, de ampliação de direitos, e não de encurtamento. E também de respeito a escolhas diferentes.

A articulação é idealizada por parte do grupo que, em 2004, levou a ação de interrupção da gravidez de feto anencefálico ao STF, no qual se destaca a organização não governamental ANIS – Instituto de Bioética. A Organização Mundial da Saúde já se manifestou em defesa da descriminalização do aborto em casos de microcefalia.

Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, a repórter Cláudia Collucci mostrou que, diante da possibilidade de ter um filho com microcefalia, mulheres já começaram a fazer abortos, mesmo em gestações planejadas. Como a microcefalia só é diagnosticada por volta do terceiro trimestre de gestação, a interrupção tem sido feita como “prevenção”, já que não há certeza de que a malformação ocorrerá. Também já têm sido relatados casos de homens que abandonam suas companheiras depois de nascerem bebês com microcefalia.

A questão da desigualdade de novo é determinante: na prática, quem não tem direito de interromper a gestação nestes casos são justamente as mais pobres, que não podem pagar por um aborto em clínicas seguras. São também elas que encontram as maiores barreiras para criar um filho com deficiências, num Estado que falha na garantia de acesso a tratamento de saúde e acesso pleno à cidadania. É imperativo discutir o aborto com a seriedade que merece um tema de saúde pública.

Como acontece sempre que surge a palavra “aborto”, porém, tão logo a ação foi anunciada em artigos na imprensa ergueram-se os punhos e terçaram-se as armas. Me interesso por gritos que expressam dores, mas não por aqueles programados para calar a voz do outro. Não acho que este seja um debate com respostas fáceis. É preciso enfrentar a complexidade. E só consigo enfrentá-la com dúvidas.

Meu incômodo com a proposta de permitir que mulheres com gestações de fetos com microcefalia façam aborto é a relação estabelecida com a deficiência. Penso que mulheres grávidas de fetos com microcefalia devem poder abortar, se assim o quiserem, porque têm o direito de decidir sobre o seu corpo – e não porque o direito ao aborto é justificado pelo nascimento de uma criança com deficiências, ainda que essa situação tenha sido causada por negligência do Estado. Ter ou não um filho é uma decisão individual, íntima, de cada mulher. Ao Estado cabe garantir que sua escolha seja protegida, em qualquer um dos casos.

A questão complicadora do debate em curso, porém, é que o tema do aborto ainda é um tabu na sociedade brasileira. Assim, o movimento estratégico possível seria lutar para garantir pelo menos que essas mulheres pobres, que desejam interromper uma gestação de feto com microcefalia, possam fazê-lo em segurança, contando com os serviços públicos de saúde. Sem correr o risco, portanto, de serem presas ou mesmo de perderem a vida. Essa ideia ganha legitimidade pela necessidade de lidar com o mundo real. Se não é possível garantir ainda o amplo direito das mulheres sobre seus corpos, como é assegurado em vários países, em geral os mais desenvolvidos, pelo menos se conseguiria reduzir a desigualdade e a injustiça, ao proteger as mais frágeis neste caso específico. Lutar pontualmente pelo possível, já que o justo está distante.

Faz muito sentido. Mas, ainda assim, tenho dúvidas. Temo que a ideia de que o aborto deve ser autorizado porque o feto apresenta microcefalia possa ter consequências perigosas. Porque, ainda que seja em nome de uma causa justa, proteger a escolha das mulheres mais pobres, inevitavelmente reforça a crença de que uma vida com deficiências é uma vida indesejada – ou condenada ao fracasso. E qualquer possibilidade de reforçar esse preconceito tão arraigado, com consequências tão terríveis na vida de milhões de pessoas, é um risco grande demais. E um risco com repercussões cujas dimensões não podemos prever. Há um efeito desse discurso sobre quem nasceu com deficiências e vive neste mundo.

Neste sentido, é ilustrativa uma discussão ocorrida em São Paulo, durante um encontro informal entre ativistas de direitos humanos, no qual a ação foi tema de debate inflamado. Um dos ativistas defendia que, num assunto tabu como o aborto, era preciso ir avançando pelas bordas, até que as mulheres finalmente tivessem seus direitos reprodutivos respeitados e autonomia sobre os seus corpos. Por isso, defendia a ação. Afinal, o aborto é responsável pela morte de mulheres jovens, a maioria pobres. Outra ativista retrucou: “Mas este é o mesmo princípio da governabilidade, em nome do qual tanto absurdo foi cometido. É justificar concessões inaceitáveis em nome de um bem supostamente maior. Mas não avançamos e não garantimos direitos quando a discussão do aborto se dá em torno da deficiência. O aborto é um direito da mulher, que não pode estar ligado ao julgamento público sobre qual vida vale a pena existir e qual não vale”.

Não há mesmo respostas fáceis numa situação de tanta dor. Mas, também por isso, é preciso se arriscar ao debate, para que ele possa nos levar mais longe, num momento tão crucial.

Me lanço nele com um pensamento bem custoso. Defendo ativamente a autonomia das mulheres sobre os seus úteros. Defendo, portanto, o direito amplo ao aborto. Os motivos de cada uma para fazê-lo a cada uma pertencem. Não acho que o Estado ou a sociedade possam interrogá-las sobre razões íntimas, apenas garantir que sua opção seja assegurada na esfera pública. Ponto. Mas o argumento público do direito ao aborto porque dessa gestação resultará uma criança com deficiências para mim é um limite. Um limite que escolho não ultrapassar.

(Publicado no El País em 15 de fevereiro de 2016)

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