Quem precisa da Barbie, tenha o corpo que tiver?

O anúncio de que a Mattel rompeu com o padrão de sua boneca icônica foi celebrado como um triunfo da diversidade e do consumo consciente, mas vale a pena interrogar-se sobre essa “evolução”

Divulgação

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Demorou só 57 anos para a Mattel “descobrir” que as mulheres reais do planeta têm cores e formas variadas. A notícia de que a Barbie ganharia mais três tipos de corpos foi comemorada como uma vitória da diversidade. Por décadas movimentos denunciaram a imposição de um único padrão de beleza. Mas só nos últimos anos, quando as vendas começaram a cair, a Mattel “sensibilizou-se” e reconheceu a multiplicidade das mulheres do mundo. Em 2015, a empresa já tinha iniciado a conversão da Barbie, lançando sua criação com novas tonalidades de pele, penteados e estruturas faciais, sem deixar de manter a “clássica”. Com a inclusão de novas formas, a boneca é lançada agora com sete tons de pele, quatro tipos de corpos, 22 cores de olhos e 24 estilos de cabelos diferentes, na linha que chama de “Fashionistas”. Quando a mudança é anunciada, a Mattel já povoou a Terra com uma superpopulação de suas criaturas loiras, altas e magras. E a cabeça das crianças com um modelo que vai muito além de um padrão de beleza. Barbie é aquela que ensina as meninas que se nasce para consumir. Já foram produzidas mais de 1 bilhão dessas replicantes, há mais Barbies no mundo do que europeus na Europa. Nenhuma delas é “apenas” uma boneca.

Se a pressão dos protestos contra a Barbie e o crescente protagonismo das minorias na afirmação da diversidade conseguiram fazer as vendas do produto caírem a ponto de obrigar uma das maiores fabricantes de brinquedos a se mover, não é pequena essa conquista. Mas é também assustadoramente fascinante observar o capitalismo em ação.

Neste início de 2016, a Mattel conseguiu a façanha de estampar seus novos modelos na imprensa, além das redes sociais, sem pagar um centavo por isso. E com uma imagem positiva. Começou por uma capa da revista Time, com a foto da Barbie e o seguinte título: “Agora nós podemos parar de falar sobre o meu corpo?”. E seguiu em milhares de publicações mundo afora. É com assombrosa candidez que Evelyn Mazzocco, a vice-presidente sênior da Mattel, afirma sem ruborizar: “Acreditamos que temos uma responsabilidade para com as meninas e seus pais de refletir uma visão mais ampla da beleza”. Um detalhe que a descoberta da “responsabilidade” tenha ocorrido só depois de constatar que as vendas da boneca caíram 20%, entre 2012 e 2014, e seguiram caindo no ano passado. A estratégia da Mattel, que parece estar obtendo considerável sucesso, é fazer a liberação dos corpos barbísticos vendendo a imagem de uma empresa afinada com o seu tempo, defensora das “diferenças” e até mesmo inovadora. Se conseguir, se transformará num case obrigatório em livros de marketing, em mais uma prova de que o capitalismo sempre pode contar com a adesão pela fé quando as pessoas são reduzidas a consumidores.

A campanha que inclui vários vídeos mostrando a gênese da “nova” Barbie apresenta a Mattel como a intérprete do “mundo que vemos hoje”. A empresa que durante mais de meio século incutiu um modelo único – e nada inocente – na cabeça das crianças é convertida naquela que celebra as diferenças e ajuda as meninas a se identificar e a conviver num planeta multicultural. “O mundo da Barbie está evoluindo” – é o mote publicitário. Evoluindo para que o essencial possa continuar o mesmo: a lógica do mercado e o retorno das vendas ao mesmo patamar ou mais. Mas isso, obviamente, não é dito.

As cenas são interpretadas por crianças étnica e racialmente variadas – como as novas Barbies, nascidas paras as prateleiras de 150 países do mundo. “É importante que as Barbies sejam diferentes como as pessoas no mundo real”, diz uma das meninas. Executivos da empresa falam da importância da mudança “porque não há um só padrão de como é um corpo bonito”. Ou: “Temos que mostrar às meninas que, independentemente de sua aparência, tudo é possível”. O lema da Barbie, afinal, é #VocêPodeSerTudoQueQuiser. Talvez não exista nada pior para uma criança do que a mentira de que é possível alcançar a completude – ou de que é possível viver sem perdas. Ou ainda de que não haverá limites. Chega a ser criminoso, mas a publicidade varia esse mote em diferentes produtos – e as crianças mal acabaram de nascer e já tem a Barbie lhes sussurrando essa promessa nos ouvidos enquanto sacode os cabelos.

Ao final de um desses vídeos promocionais, uma menina diz: “Essas bonecas se parecem com as pessoas do meu mundo mágico”. É mesmo “mágico” o mundo em que o deus criador da Barbie se torna um avalizador da diversidade, quando não seu próprio inventor. De um certo ângulo, são sinistros os vídeos fofinhos e politicamente corretos do mundo das “Barbies da diversidade”, como já estão sendo chamadas. E um tanto perturbador o cinismo dos executivos da Mattel ao discorrer sobre a importância de respeitar as diferenças com a certeza de que o passado será de imediato esquecido, no átimo de tempo em que um coelho é sacado da cartola ou que um lenço vira pombas. Também na aparição do staff da Mattel há o cuidado com a variedade dos estilos, das cores e das formas, reforçando a mensagem e sendo legitimada por ela. Mas a sensação pode ficar mais esquisita quando se lê no Facebook as mensagens de mulheres e também homens, agradecendo à Mattel por tornar o mundo melhor, mais diverso, plural e tolerante. A maioria “muito feliz” e dizendo “dez vezes obrigada” pela “evolução” da Barbie.

Que modelo de mulher é a Barbie, que reinou por mais de meio século como um ideal feminino a ser atingido? Um que não existe. E não é que Barbie não exista por ser linda demais, inatingível para pobres mortais com seus genes imperfeitos, mas sim por ser bizarra demais, uma arquitetura que literalmente não para em pé. Segundo infográfico do Rehabs.com, graças a sua cinturinha, Barbie só teria espaço para acomodar metade de um rim e alguns centímetros de intestino. Como o pescoço é duas vezes maior do que o de uma mulher e 15 centímetros mais fino, ela não teria como manter a cabeça erguida. Andar, só de quatro. Se fosse uma mulher de carne e osso, Barbie seria uma anoréxica.

É apenas uma boneca, poderiam dizer alguns. Ou até muitos. Mas essa boneca não foi criada para ser “apenas” uma boneca. Barbie é vendida como uma amiga, uma mentora e um modelo a ser seguido, com influência sobre pelo menos duas gerações de mulheres. O que Barbie vende é um modo de vida e de se relacionar com os outros e com o mundo. Seu primeiro processo de “purificação” foi eliminar as origens de seu nascimento, já que ela foi inspirada na boneca alemã Lilli, personagem de quadrinhos eróticos e presente para homens vendido em tabacarias. Lilli seduzia homens ricos na Alemanha do pós-guerra para ter de volta a prosperidade perdida. Quando Barbie foi lançada em 1959 para ser a companheira de crianças, os traços de sua “mãe” devassa tinham sido suavizados, mas ainda assim a “boneca com seios” foi recebida com desconfiança pelas famílias americanas. Pouco a pouco, porém, Barbie foi “evoluindo” para se tornar uma educadora e um “bom exemplo”, uma mentora capaz de ensinar às meninas a serem as mais bem adaptadas e populares, segundo os valores da sociedade americana. Hoje, mais de 90% das garotas entre 3 e 12 anos, nos Estados Unidos, têm uma Barbie, essa boneca que não é uma criança.

A partir do seu corpo impossível é vendida uma série de roupas, sapatos e acessórios, assim como casas, móveis, salões de beleza, lojas, outros bonecos, um mundo inteiro. Mas não qualquer mundo, mas um mundo em que todos os valores são mediados pelo consumo, como se observa nos jogos, filmes e outros produtos do planeta-mercadoria da Barbie. Ser mulher, ensina ela, é ser uma consumidora. No lema #VocêPodeSerTudoQueQuiser, o “Ser” é habilmente usado para encobrir o “Ter”. Ser e Ter com o mesmo significado – ou Ser é Ter. Nisso está implicado que a medida do sucesso de alguém é eliminar qualquer interdição entre o consumidor e o produto. A única forma de “ser” tudo o que quiser é consumir e, assim que a sensação de completude desaparece, o que acontece muito rapidamente, consumir de novo. E de novo. É assim que o planeta que a Barbie difunde de forma tão competente gira.

Desde que a boneca surgiu, Barbie é alvo de protestos. Em 1970, adolescentes já levantavam cartazes em manifestações pela igualdade entre os gêneros: “Eu não sou uma Barbie”. Mas talvez a intervenção mais criativa tenha ocorrido nos anos 90, pela autoproclamada “Organização para a Libertação da Barbie”. O grupo reagia a uma série de falas da boneca e, em especial, a uma em que ela dizia: “Matemática é difícil”. A frase sofreu fortes críticas, por reforçar o estereótipo da mulher bonitinha e burra. Os ativistas trocaram então a voz da Barbie pela voz de outro boneco, este um estereótipo masculino, chamado GI Joe. Quando meninas abriram seus presentes de Natal, sua Barbie loirinha dizia: “Homem morto não conta mentira”.

Existe uma bibliografia em língua inglesa dissecando o corpinho da Barbie. No Brasil, pode ser lido Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque (Annablume, 2012). Nele, Fernanda Roveri partiu de sua dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na qual brinca nos capítulos com os tipos de Barbie: “Barbie Farsa”, “Barbie Lânguida”, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, para refletir sobre a criatura da Mattel.

Há muitas histórias emblemáticas sobre como são tomadas as decisões que vão interferir no imaginário das crianças. Mas a mais incrível delas talvez seja sobre Ken, o namorado da Barbie. De fato, sobre o pênis de Ken. Houve um dilema na Mattel sobre como contornar essa questão. Conta a autora do livro que acabou se optando por uma alternativa intermediária: Ken usaria uma roupa de banho permanente com “um pequeno volume”. O problema é que, quando a determinação chegou à fábrica no Japão, o engenheiro supervisor decidiu suspender a pintura do short, para facilitar o processo, e calculou que a eliminação da lombada genital reduziria o custo de produção do boneco em um centavo e meio de dólar. Foi para lucrar mais que Ken nasceu eunuco. Fernanda Roveri aponta para a questão de que os fabricantes jamais pensaram que as crianças poderiam ficar traumatizadas com uma Barbie sem vagina, como suspeitaram que poderia ocorrer com um Ken sem pênis. O fato é que os dois bonecos “realistas” com que brincam meninas do mundo inteiro são igualmente castrados.

Mas é nos dois últimos capítulos, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, que o truque oculto da mágica capitalista do fenômeno Barbie, ao longo das décadas, é revelado. Quem produz a criatura, em que condições de trabalho, de que material, com que efeitos. “Mulheres japonesas, donas de casa, chamadas de ‘pessoas da tarefa doméstica’, costuravam exaustivamente os primeiros trajes da boneca em suas residências. Essas mulheres ficavam cegas para que Barbie pudesse usar tafetá, espetavam seus dedos para que ela pudesse passar o feriado esquiando, curvavam-se e estragavam suas costas para que Barbie não dormisse nua”, escreve a autora, citando relatórios, documentos e livros. “Na Tailândia, centenas de mulheres e crianças enchiam, cortavam, vestiam e montavam a boneca Barbie, ganhando de quatro a sete dólares por um dia de 12 horas trabalhadas. Além do baixo salário, muitas dessas trabalhadoras ficavam com problemas respiratórios, perda de memória e de audição, dores musculares, vômitos, transtornos no sono, menstruações irregulares em razão da contaminação por chumbo, fumaça e outros produtos químicos”. Em 2013, a organização China Labor Watch denunciou as péssimas condições de trabalho e as jornadas exaustivas constatadas em fábricas chinesas ligadas à produção da boneca.

Qual é a linha de montagem planetária da Barbie e os reais bastidores que não viram vídeos publicitários? Esse é um caminho de investigação para quem pretende ser mais do que um mero consumidor abobalhado. O truque do “mágico” no mundo real, afinal, precisa de fartas doses de sangue humano e de destruição ambiental para produzir números superlativos: as vendas da Barbie são estimadas em mais de 1 bilhão de dólares por ano.

Agora, com quatro corpinhos, a roupa de uma Barbie não servirá na outra Barbie. E há também pelo menos dois tipos de pezinhos que pedirão sapatinhos de números diferentes. É um ganho da diversidade, para quem pensa que o mundo não pode prescindir de Barbies? É. Mas também é mais de tudo. Vale a pena ainda observar quais foram os corpos e alturas aceitos pelo mundo Barbie em nome da diversidade. A mais “curvy” está muito longe de ser gorda ou mesmo gordinha. “Espero que vocês não confundam curvilínea com Gorda, cada coisa é uma coisa, mas já é uma diferença enorme do padrão da boneca, e quem sabe um dia teremos uma Barbie GORDA”, postou o Coletivo Gordas Livres, comentando a mudança.

Se existia uma Barbie negra desde o final dos anos 60, período das lutas pelos direitos civis dos negros americanos, a “negritude” se limitava a trocar a cor do plástico da boneca. Agora há muitos mais tons de pele, tipos de cabelo e estruturas faciais, o que também tem sido interpretado como uma conquista. No Brasil não se via Barbies negras nas prateleiras e até hoje quem quer presentear uma criança com uma boneca negra precisa contar com espaços alternativos. Um dos mais conhecidos é a “Preta Pretinha”, uma loja na Vila Madalena, em São Paulo, que há 16 anos faz bonecos artesanais que não se vê no mercado porque fora do padrão estabelecido, por diferentes razões e circunstâncias. Há negros e indígenas. Há orientais. Há cadeirantes, cegos, crianças com membros amputados. Há também bebês carecas, com câncer, procurados por pais de crianças com leucemia. Na medida em que meninos e meninas vão recuperando os cabelos após o tratamento do câncer, podem também ir povoando a cabeça dos seus bonecos com fios. A loja, criada por três irmãs, está ligada a um instituto com o mesmo nome, que trabalha os temas do racismo, discriminação e inclusão. Inspiraram-se na avó, que ao não encontrar bonecas negras para presentear as netas, começou a costurá-las em casa. Como não há uma linha de montagem industrial e planetária, esse tipo de espaço alternativo tem preços mais elevados e jamais poderá competir em custo e escala com empresas do porte da Mattel.

Em janeiro, a foto de Matias, um menino de 4 anos, segurando o boneco do personagem Finn, do filme Star Wars – O Despertar da Força, viralizou na internet. Na legenda da foto, sua mãe escreveu: “Ele nem sabe o que é Star Wars, sabe que o boneco é igual a ele”. Entrevistado, Matias afirmou: “Ele é pretinho igual a mim”. Logo depois, uma fabricante de produtos infantis fez uma fantasia do mesmo boneco negro e colocou a foto de um garoto branco na embalagem. Fortaleceu-se então a campanha “Não me vejo, Não compro!”, exigindo representatividade nas prateleiras. Em 27 de janeiro, no Facebook, a empresa anunciou que convidou Matias para ser o novo modelo da embalagem do produto, “atenta ao movimento global e ouvindo as críticas sobre a falta de diversidade étnica nas peças publicitárias veiculadas no Brasil”.

“Não me vejo, Não compro!” é uma linguagem que os fabricantes de brinquedos entendem muito bem – e escutam. É o que aconteceu com a Mattel, diante da perda de popularidade da Barbie, traduzida em cifrões. E há mesmo o que se comemorar nisso. Afinal, não se reconhecer nos brinquedos oferecidos pelo mercado pode ter efeitos devastadores na vida de uma criança.

O que pode ser perturbador, porém, é a aceitação tácita de que precisamos de Barbies e outros produtos do gênero. De que não há brinquedos ou imaginação fora da indústria. De que é preciso consumir mercadorias do tipo – e de que a autonomia possível é influenciar aquilo que as corporações vendem, reduzindo toda intervenção ao papel de “consumidores conscientes”. Pode ser perturbador constatar que a insubordinação máxima seja não comprar porque não se reconhece. Mas, caso se reconheça no produto que chega às prateleiras, toda a cadeia simbólica e concreta implicada nesse ato está justificada? Será que se reconhecer num brinquedo é o suficiente para se sentir representado? É a naturalização que pode soar preocupante quando se testemunha ativistas comemorarem a “evolução” da Barbie, aceitando sua existência no quarto das meninas como fato consumado, presença imprescindível, já dada, sem questionar as engrenagens mais ocultas que levam a boneca até a vida das crianças.

Quem precisa da Barbie, afinal, tenha ela a forma, a cor e o cabelo que tiver? A pergunta parece ter silenciado.

Quanto mais realista a boneca, menos imaginação precisa a criança. Sem esquecer que “realista” dá conta de uma realidade determinada, planejada e autorizada por uma equipe de profissionais do marketing. E não da realidade como experiência e conflito. Uma boneca serve justamente para se pensar a vida enquanto se brinca. E brincar não é imitar. Para que, então, serve uma Barbie e o seu “mundo mágico” onde #VocêPodeSerTudoQueQuiser? Para que serve uma Barbie, mesmo que seja a “Barbie da diversidade”

Barbie não é mesmo qualquer boneca. Será interessante observar como seu novo esforço de purificação dos pecados, agora em nome do respeito às diferenças, vai “evoluir” nos próximos anos. Talvez seja importante pensar, para além do primeiro entusiasmo, os significados mais profundos de um produto com a carga simbólica de Barbie converter direitos em publicidade.

Barbie, vale a pena lembrar, ganhou uma réplica no museu de cera de Grévin, em Paris. Esta é uma cena perturbadora, porque as outras representações que lá estão são de pessoas que viveram, que tiveram ossos, carne, sangue e história. E lá se imortalizaram em cera. Quando a boneca vira boneca, completa-se a transmutação: Barbie vira gente. Torna-se viva.

Evolução, a palavra escolhida pela Mattel para nomear a mudança de sua criatura, é mais do que reveladora. Como provou Darwin, as espécies vivas, como os humanos, evoluem. Por milhões de anos, na seleção natural. Barbie, mais uma vez, invoca sua “naturalidade”, ainda que “no mundo mágico”. Barbie, a boneca, seja com um ou quatro corpos, segue inventando a vida de meninas de carne e osso.

 

(Publicado no El País em 1º de fevereiro de 2016)

Tarifa não é dinheiro, é tempo

É por recusar a brutalização da vida que manifestantes se tornam uma ameaça perigosa e são violentamente reprimidos


Tempo não é dinheiro. E tarifa é tempo, não dinheiro. São sobre tempo, portanto, e não sobre dinheiro, os protestos contra o aumento das passagens do transporte público em 2016, como foram os de 2013. Se não for resgatada a potência do que está em jogo nas ruas de São Paulo e de outras cidades do Brasil, tudo se repetirá como farsa. E a Polícia Militar brutalizará os corpos já brutalizados pela tarifa e, principalmente, pela vida monetarizada. A vida reduzida à lógica do capital.

Há duas linhas principais na narrativa dos protestos por parte da imprensa. Uma destaca o fato de que o aumento da tarifa de ônibus, trens e metrô de São Paulo, de 3,50 reais para 3,80 reais, foi menor do que a inflação. A outra aponta o “confronto” da Polícia Militar com os manifestantes para impedir a depredação e o “vandalismo” do patrimônio. Essas duas abordagens, intimamente ligadas, aparecem como naturais, como se houvesse uma ordem “natural” que dissesse respeito à “natureza” das “coisas como as coisas são” que precedesse a vida e a política – e também a tarifa do transporte público e a ação das forças de segurança do Estado. São os dogmas não religiosos que mesmo uma parte da imprensa laica reproduz.

Na primeira linha narrativa está implícita a afirmação de que, se a tarifa subiu menos que a inflação, não há razão para os manifestantes protestarem. Seria óbvio que, na ponta do lápis, é preciso que a inflação seja reposta para que o sistema possa seguir operando. Assim, subir menos que a inflação seria uma benesse pela qual a população deveria ficar agradecida. A afirmação embutida é de que a lógica da vida é monetária. E, principalmente, a de que tarifa de transporte não é uma questão de política, mas de saber fazer contas.

A segunda linha narrativa transforma a Polícia Militar na principal protagonista, na medida em que as forças de segurança do Estado decidem qual será o desfecho da manifestação – ou se vão jogar bombas de gás, disparar balas de borracha e descer o cassetete no começo, no meio ou no fim dos protestos. Esta é a pergunta suspensa sobre cada ato contra o aumento da tarifa. E é com “naturalidade” que isso é descrito, como se a PM fosse um corpo autônomo e como se sua ação não dissesse respeito a uma visão de mundo nem fosse resultado de uma ordem do governador. É também como se governador e PM não tivessem que prestar contas à população. A atuação da PM diria respeito à ordem “natural” das coisas – e não à política. “Manter a ordem” seria uma ordem acima da ordem, sem necessidade de passar pela pergunta obrigatória sobre que ordem é essa que se pretende manter.

Esses dogmas laicos – e os laicos podem ser piores do que os religiosos, porque escondem o que são – servem para encobrir o que está em jogo nos protestos contra o aumento da tarifa do transporte. E, principalmente, que esse protesto seja nas ruas e que seja sobre transporte – e não sobre outra dimensão da vida. Esses dogmas laicos servem para encobrir que se trata de tempo – e não de dinheiro. Trata-se de patrimônio imaterial, intransferível, de cada pessoa – e não de patrimônio material, comercializável, rentável, de corporações ou estados. Esses dogmas laicos servem para encobrir que os protestos são políticos, sim, mas políticos no sentido profundo da política, que diz respeito a como as pessoas querem estar com as outras no espaço público. E de como querem viver o que de mais importante têm ou tudo o que de fato têm numa vida: tempo.

Vale lembrar da frase de lembrança sempre urgente do professor Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século 20: “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”. Quando se vai às ruas protestar contra 20 centavos, como em 2013, ou contra 30 centavos, como agora, em 2016, não é “só” sobre 20 ou 30 centavos. Ainda que seja também, o protesto é principalmente sobre algo que, ainda que o capitalismo bote preço, escapa do capitalismo. Não existe uma “natureza” inerente ao tempo que diga que ele tem preço. Existe política e cultura, existe criação humana.

É de política que se trata quando se protesta contra a apropriação do tempo. A lógica dos protestos é a de que tudo pode se mover, porque cultura e porque criação humana. É também a lógica do possível, não do já cimentado. Assim, a lógica dos protestos não se sujeita a dogmas. Ela se sujeita ao sujeito. E o sujeito, quando sujeitado, objeto se torna. É essa a conversão feita pela lógica da monetarização e pela lógica da brutalização dos corpos pela PM: reduzir o sujeito a objeto para que nada se mova. Para impedir que isso se repita como farsa, é necessário reafirmar a gestão do tempo como uma experiência da política.

Pesquisas que relacionam quantidade de tempo de trabalho e valor monetário da tarifa, como a realizada pelos economistas Samy Dana e Leonardo Lima, da Fundação Getúlio Vargas, são importantes. Em São Paulo, uma pessoa precisava trabalhar, em 2015, cerca de 13,30 minutos para pagar a passagem. Já em capitais que costumam ser admiradas e elogiadas como o melhor do capitalismo, onde os serviços de transporte público apresentam qualidade reconhecidamente melhor, as tarifas são mais baixas e até muito mais baixas: Londres (11,30 minutos), Madri (6,20 minutos), Nova York (5,80 minutos) e Paris (4,50 minutos).

A exposição da discrepância dos valores monetários, provando que é possível ter uma tarifa bem menor mesmo em países capitalistas, é fundamental para começar a desconstruir as contas e revelar o material que nelas está embutido, para muito além da reposição da inflação. É essencial para fazer as perguntas mais complicadas, aquelas necessárias para a compreensão de por que no Brasil há uma tarifa tão cara para um serviço tão péssimo. Mas talvez o mais importante desse tipo de pesquisa seja chamar a atenção para o elemento principal, o tempo.

Vale a pena destacar o fato de que uma parcela das pessoas trabalha mais de 13 minutos em São Paulo para pagar uma única passagem de ônibus ou trem para alcançar o local de trabalho. Para a ida e a volta é quase meia-hora de vida. E muitos pegam mais do que um ônibus e um trem para a ida e para a volta, engolindo mais vida. E isso sem contar o tempo médio que cada um leva neste percurso, às vezes horas. De vida. Também vale a pena lembrar que, para o lazer, falta.

Me refiro a pessoas – e não a “trabalhadores” – para não reduzir a larga dimensão de uma existência a trabalho ou à monetarização dos corpos. Assim, esse tipo de pesquisa serve para lembrar não que tempo é dinheiro, mas justamente a negação dessa monstruosidade: tempo não é dinheiro. É isso que os manifestantes contra a tarifa lembram a todos ao ocupar as ruas. Mas sua voz é encoberta pelos dogmas laicos. Que, como todo dogma, recusam qualquer dúvida.

Quando a voz é encoberta, a política e a possibilidade de mudança são caladas. Pela força, como se vê. O papel reservado à PM é justamente o de manter uma ordem ordenada por aqueles que detêm o poder de dizer qual é a ordem que vale. De sujeitos da sua ação política, do seu verbo, os manifestantes são reduzidos nas ruas a objetos da ação de um outro, que conjuga o verbo silenciar usando o estrondo das bombas. E assim impede o debate sobre o transporte como um direito social, recentemente incluído na Constituição, mas ainda não expresso na prática cotidiana.

Aqueles que defendem a tarifa zero, como o Movimento Passe Livre (MPL), principal articulador dos protestos de 2013 e de 2016, acreditam que não é o usuário que deve pagar individualmente pelo serviço, mas o conjunto da sociedade, para que todos tenham acesso ao direito de ir e vir. Como acontece, costuma lembrar o engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes na gestão de Luiza Erundina, na coleta de lixo, na educação e na saúde, entre outros exemplos, com melhores ou piores resultados. Acontece porque a sociedade entende que é importante garantir o acesso a todos. Há várias propostas circulando de como isso poderia ser implementado, mas esse debate é obscurecido e seus interlocutores reprimidos.

A tarifa zero é controversa? É. Como tudo o que pertence à esfera da política. Talvez menos controversa do que a ideia de um serviço essencial estar submetido à rentabilidade dos empresários do ramo. Mas, qual é a ameaça tão grande à ordem e aos dogmas, que não é possível sequer levantar um cartaz pela tarifa zero sem levar bomba de gás ou um cassetete na cabeça ou no lombo? Essa é a pergunta óbvia que qualquer um deveria fazer antes de sair defendendo a repressão aos manifestantes ou dizendo que a tarifa zero é irreal. Numa democracia não há nada que não possa – ou mesmo deva – ser debatido pela sociedade. Numa democracia o único imperativo acima de qualquer discussão é este: a obrigação legal e ética de dialogar sobre tudo. Neste caso, dialogar antes de impor um aumento de 30 centavos.

Dialogar não é uma escolha para governantes eleitos, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT). Ambos perdem sua legitimidade se não dialogam com os múltiplos atores da sociedade dentro do sistema que os elegeu. É a obviedade seguidamente esquecida de que o poder não lhes pertence, foi apenas a eles delegado pelo voto. Que Alckmin e Haddad, que representam PSDB e PT, estejam juntos nessa empreitada do aumento da tarifa sem o necessário diálogo com a sociedade sobre como se mover em São Paulo é mais uma prova da corrosão da política partidária, com a crescente perda de sua capacidade de representação. O fato de que Haddad, um prefeito que tem ousado na mobilidade urbana, enfrentando a rejeição de setores das classes média e alta paulistanas, esteja ao lado de Alckmin, um governador conservador que costuma reclamar que os movimentos são políticos, como se pudessem ser qualquer outra coisa, estejam alinhados no aumento da tarifa, embora não na violência da PM, revela o quanto esse tema é espinhoso. Mais um motivo para ser debatido – e não o contrário.

É necessário prestar atenção às palavras usadas para narrar os protestos. “Confronto”, por exemplo, pressupõe forças semelhantes, e pressupõe que essas forças semelhantes ocupam um mesmo lugar simbólico. Quando usado em discursos, títulos e textos da imprensa para descrever os protestos e a ação da PM, esse termo pode estar a serviço do apagamento de uma dimensão fundamental dessa relação: os manifestantes são cidadãos exercendo seu direito de protesto e as forças de segurança do Estado deveriam estar protegendo esse direito. Apaga-se assim o fato de que é de normalidade democrática que deveria se tratar – e não de um lado e de outro lado, como se fosse uma guerra e se tratasse de inimigos.

Nas vezes em que isso é questionado, ouve-se frases como a do governador Geraldo Alckmin (PSDB), esquecendo-se subitamente de que elogiou a PM que espancou adolescentes nas manifestações contra a “reorganização escolar”: “Manifestação legítima e pacífica é positivo, é nosso dever acompanhar e dar segurança. Outra coisa é vandalismo seletivo”. Para justificar que a polícia que comanda violou a lei ao jogar bombas e disparar balas de borracha contra manifestantes, é usual sacar da manga do terno uma outra expressão: a “manifestação pacífica”.

Essa expressão contém pelo menos dois pontos sobre os quais vale a pena refletir. O primeiro é que, mesmo que uma pequena parte dos manifestantes deprede o patrimônio, isso não autoriza a PM a abusar da força. É para fazer melhor que isso que ela deveria ser treinada, já que não se trata de uma gangue de rua, mas das forças de segurança do Estado. Que parte da sociedade tolere e seguidamente aplauda que a PM atue como uma gangue de rua, truculenta e despreparada, é preocupante.

O outro ponto, e este é mais insidioso, é o de insinuar que conflito é algo negativo. O espaço público, como tão bem disse o arquiteto Guilherme Wisnik, é um lugar de conflitos: “O grande atributo da esfera pública é mediar o conflito, porque a sociedade, em si, é conflituosa. A ideia de um espaço sem conflitos é ideológica, uma pacificação irreal. Quando um espaço público não tem conflito é porque ele não está cumprindo sua função”.

Quando os manifestantes vão às ruas levantando a bandeira da tarifa zero estão em conflito com a visão de setores dos governos e da sociedade que defendem ideias opostas. Tentar apagar os conflitos, sem enfrentá-los com debate e com escuta, como historicamente o Brasil fez em temas como o racismo, leva a uma “pacificação” que todos sabemos falsa. É o “confronto” – e não o conflito – que pressupõe inimigos a serem esmagados, espancados com golpes de cassetete e intoxicados com gás.

É preciso prestar mesmo muita atenção às palavras antes de reproduzi-las ou de assumir um discurso que pode ser o mesmo do opressor. Quando os manifestantes “param” ruas de São Paulo, eles não estão parando. Ao contrário. Eles estão andando nas ruas de São Paulo. Movendo-se. Quando “interrompem” o tráfego, eles não estão interrompendo. Os carros param para que as pessoas andem. Movam-se. É exatamente para que não se movam que a PM “encurrala” e “cerca”, “reprime” com bombas de gás, balas de borracha e cassetete. É exatamente para que não andem que a PM “detém” ou “prende” ou “imobiliza” manifestantes que depois são soltos porque não há nem nunca houve justificativa legal para detê-los ou prendê-los ou imobilizá-los. A grande subversão, afinal, é andar. Mover-se. É preciso impedir que andem para que nada se mova “na ordem natural das coisas”.

Para que serve a PM com seu aparato de guerra? Para controlar os corpos com golpes de cassetete, balas de borracha e bombas de gás e manter o mover-se como valor meramente monetário. Para impedir que as pessoas perguntem por que não podem andar. A PM está lá para proteger o “patrimônio”. Mas não o patrimônio humano, este é barato na lógica da monetarização: mais de 13 minutos de vida para pagar uma passagem de ônibus. Os corpos dos que querem andar podem ser espancados, intoxicados, violados porque a vida humana, pelo menos a da maioria, tem valor baixo. O que não pode é “depredar” o patrimônio de fato caro, o material.

A PM vandaliza pessoas para proteger patrimônio. Mas o discurso é perversamente invertido para que os “vândalos” sejam os que quebram cimento, vidro e ferro e não os que perfuram carne humana. Se seguidas vezes a PM vandaliza manifestantes antes de qualquer depredação do patrimônio, é possível pensar que isso acontece tanto porque a PM está a serviço de produzir “vândalos” e “confronto”, para encobrir a reinvindicação das ruas no noticiário, quanto pelo fato de que o patrimônio que ela de fato está protegendo 24 horas por dia é o do status quo, e este está ameaçado desde que o primeiro manifestante bota o pé na rua.

Vandalizar pessoas em nome da defesa do patrimônio é a ordem para manter a ordem de que gente vale pouco. A tarifa é cara justamente porque a carne humana é barata.

A insubordinação dos que andam, a que a PM é instada a reprimir, é a de dizer que seu tempo tem valor – e este valor não é meramente monetário. É essa a rebelião que precisa ser esmagada antes que avance pelas ruas. O movimento a ser interrompido pela força, antes que interrompa o trânsito dos privilégios, é aquele que lembra que tempo não é dinheiro, mas o tecido da vida. É aquele que reivindica o tempo “para os afetos, para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela, para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis”.

Passaremos.

(Publicado no El País em 18 de janeiro de 2016)

1500, o ano que não terminou

Quem chorou por Vitor, o bebê indígena assassinado com uma lâmina enfiada no pescoço?


Um menino de dois anos foi assassinado. Um homem afagou seu rosto. E enfiou uma lâmina no seu pescoço. O bebê era um índio do povo Kaingang. Seu nome era Vitor Pinto. Sua família, como outras da aldeia onde ele vivia, havia chegado à cidade para vender artesanato pouco antes do Natal. Ficariam até o Carnaval. Abrigavam-se na estação rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina. Era lá que sua mãe o alimentava quando um homem perfurou sua garganta. Era meio-dia de 30 de dezembro. O ano de 2015 estava bem perto do fim.

E o Brasil não parou para chorar o assassinato de uma criança de dois anos. Os sinos não dobraram por Vitor.

Sua morte sequer virou destaque na imprensa nacional. Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média, assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação rodoviária, como existiu para as vítimas de terrorismo em Paris. Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena. Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.

A fotografia que ilustrou as poucas notícias sobre a morte do curumim mostra o chão de cascalho e concreto da estação rodoviária. Um par de sandálias havaianas azul, com motivos infantis. Uma garrafa pet, uma estrelinha de brinquedo, daquelas de fazer molde na areia, uma tampa de plástico do que parece ser um baldinho de criança, uma pequena embalagem em formato de tubo, um pano florido amontoado junto à parede, talvez um lençol. É apresentada como “local do crime” ou como “os pertences do menino”.

Essa foto é um documento histórico. Tanto pelo que nela está quanto pelo que nela não está. Nela permanece o descartável, os objetos de plástico e de pet, os chinelos restados. Nela não está aquele que foi apagado da vida. A ausência é o elemento principal do retrato.

Os indígenas só podem existir no Brasil como gravura. Apreciados como ilustração de um passado superado, os primeiros habitantes dessa terra, com sua nudez e seus cocares, uma coisa bonita para se pendurar em algumas paredes ou estampar aqueles livros que decoram mesas de centro. Os indígenas têm lugar se estiverem empalhados, ainda que em quadros. No presente, sua persistência em existir é considerada inconveniente, de mau gosto. Há vários projetos tramitando no Congresso para escancarar suas terras para a exploração e o “progresso”. Há muitos territórios indígenas devidamente reconhecidos que o governo de Dilma Rousseff (PT) não homologa porque neles quer construir grandes obras ou porque teme ferir os interesses do agronegócio. Há uma Fundação Nacional do Índio (Funai) em progressivo desmonte, tão fragilizada que com frequência se revela também indecente. No passado, os índios são. No presente, não podem ser.

Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os indígenas são especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles acabou em 1500. Tiveram, porém, o desplante de sobreviver ao apocalipse promovido pelos deuses europeus. Ainda que centenas de milhares tenham sido exterminados, sobreviveram à extinção total. E porque sobreviveram continuam sendo mortos. Quando não se consegue matá-los, a estratégia é convertê-los em pobres nas periferias das cidades. Quando se tornam pobres urbanos, chamam-nos de “índios falsos”. Ou “paraguaios”, em mais um preconceito com o país vizinho. No passado, os índios são alegoria. “Olha, meu filho, como eram valentes os primeiros habitantes desta terra.” No presente, são “entraves ao desenvolvimento”. “Olha, meu filho, como são feios, sujos e preguiçosos esses índios fajutos.” Os índios precisam ser falsos porque suas terras são verdadeiras – e ricas.

Se Vitor era um entrave, esse entrave foi removido. Por isso essa foto é um documento histórico. Se houvesse alguma honestidade, é ela que deveria estar nas paredes.

Parece não bastar que Vitor, um bebê de dois anos, passasse semanas no chão de uma rodoviária porque a violência contra seu povo foi tanta e por tantos séculos e ainda hoje continua que seus pais, Sônia e Arcelino, precisam deixar a aldeia para vender artesanato. A preços baixos, porque desvalorizados são os artesãos. É importante perceber o nível de desamparo que leva alguém a considerar rodoviária um lugar seguro e acolhedor. Terminais rodoviários são locais de passagem, e a família de Vitor, assim como a de outros indígenas, abriga-se lá porque há movimento. Rodoviária é lugar de ninguém. E por isso nela costumam caber os mendigos, os meninos de rua, os bêbados, as putas, os loucos, os párias. E os índios. Ou cabiam. E já não cabem mais.

Rodoviárias são espaços de circulação de estranhos, e por serem “os outros”, os estrangeiros nativos, os indígenas acreditam que neste não lugar têm chance de escapar da expulsão. Mas seguidamente são expulsos. Parte da população dos municípios em que os indígenas aparecem com seu artesanato acha que a rodoviária é boa demais pra índio. Ou pra “bugre”, como são chamados em algumas regiões do sul do país. “A rodoviária é o cartão postal da cidade, período que tem tanta gente viajando, chegando. Que imagem vão levar da cidade?”, justificou um comerciante de São Miguel do Oeste, também em Santa Catarina, para justificar a expulsão dos indígenas do local antes do Natal.

Vitor já não estraga nenhum cartão postal. Dele não há nem mesmo um rosto. A foto de sua ausência não comoverá milhões pelo planeta como aconteceu com o menino sírio trazido pelas ondas do mar. A morte dos curumins não muda nenhuma política.

Antes que me acusem de precipitação, exagero ou injustiça, é preciso dizer: os “cidadãos de bem” não querem que crianças indígenas tenham seus pescoços perfurados. De jeito nenhum. Apenas que elas fiquem longe da vista. Em outro lugar em que não contaminem, sujem ou enfeiem. Mas também não nas suas terras, se estas forem ricas em minérios, férteis pra soja ou boa pra gado pastar. Aí também é abuso. Desapareçam, apenas. Mas matar, não, matar é maldade.

2015 foi o ano em que esse discurso deu ao Brasil o bicampeonato. O deputado estadual Fernando Furtado, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), foi reconhecido como “Racista do Ano” pela organização Survival International por seu pronunciamento antológico, ao se manifestar numa audiência pública: “Lá em Brasília, o Arnaldo viu os índios tudo de camisetinha, tudo arrumadinho, com flechinha, tudo um bando de viadinho, que tinha uns três que eram viado, que eu tenho certeza, viado. Eu não sabia que tinha índio viado, fui saber naquele dia em Brasília… Tudo viado. Então é desse jeito que tá, como é que índio já consegue ser viado, boiola, e não consegue trabalhar e produzir? Negativo!”.

O parlamentar se referia aos Awá-Guajá, considerados um dos povos mais vulneráveis do planeta. A conquista de Fernando Furtado, porém, não é inédita. Outro parlamentar, Luis Carlos Heinze, este deputado federal pelo Partido Progressista (PP) do Rio Grande do Sul, já tinha subido ao pódio em 2014, com a seguinte declaração: “O governo… está aninhado com quilombolas, índios, gays e lésbicas, tudo o que não presta”. Tudo indica que o Brasil é quase imbatível para o tricampeonato. Fala-se tanto em país polarizado, mas a premiação prova que os indígenas são um raro ponto de unanimidade entre certa direita e certa esquerda dessa grande nação.

Vitor, o bebê assassinado, vivia na aldeia Condá, no município de Chapecó, no oeste de Santa Catarina. Os crimes cometidos pelo Estado contra o povo Kaingang da região sul do Brasil estão registrados no Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012. O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7.000 páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. Quem quiser compreender por que Vitor se abrigava no chão da rodoviária de Imbituba em vez de passar os meses de verão seguro, saudável e feliz na sua aldeia, tem uma rica fonte de informações no documento disponível na internet. Vai descobrir, entre outras atrocidades, como antepassados de Vitor chegaram a ser torturados e a viver em condições análogas à escravidão para que suas terras fossem desmatadas e exploradas pelos não índios, em pleno século 20. É possível que alguns destes “empreendedores” sejam avós daqueles que hoje acham que indígenas como Vitor sujam o cartão postal de suas cidades.

Depois do assassinato do bebê, a Polícia Militar prendeu o suspeito de sempre. Um rapaz pobre, em liberdade provisória, com “uma pequena quantidade de maconha e cocaína na mochila”. Como não havia nenhum indício contra ele, foi liberado. Em seguida, foi preso outro jovem, hoje considerado o principal suspeito. A polícia procurava alguém bastante genérico: com mochila e boné e tipo físico semelhante ao que aparece num vídeo gravado por uma câmera de segurança. A suspeita de policiais militares é de que o assassino estaria “incomodado com a presença dos indígenas no local”. A Polícia Civil mencionou como possíveis motivações “preconceito”, “surto” e “problemas psicológicos”. Em nota, o CIMI afirmou: “O Conselho Indigenista Missionário manifesta preocupação com o clima de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais”.

Quem de fato assassinou Vitor talvez seja investigado, julgado, condenado e punido, o que já é uma raridade em mortes de indígenas no Brasil, marcadas pela impunidade. Mas é preciso fazer perguntas mais complicadas. Quem armou essa mão? Que encruzilhada histórica permitiu que Vitor fosse o bebê escolhido pelo assassino, independentemente de sua sanidade ou insanidade – e não o meu filho ou o seu? Onde estamos nós nesta foto em que estamos sem estar?

Tem se dito que 2015, um ano de crise no Brasil e horror em todas as partes, é o ano que não terminou. 2016 seria apenas um looping. Faz sentido. Na véspera deste Natal, Antônio Isídio Pereira da Silva, líder rural e ambientalista no Maranhão, foi encontrado morto. Era mais um assassinato anunciado. Há um ano foi arquivado o pedido de inclusão do agricultor no programa federal de proteção aos defensores de direitos humanos. Ele se preparava para denunciar mais um desmatamento ilegal numa região com graves conflitos de terra quando foi assassinado. Também no Natal, cinco jovens denunciaram policiais militares do Rio por tortura e roubo. Segundo seu relato, eles voltavam em três motos de uma festa quando foram detidos por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora de Coroa, Fallet e Fogueteiro. Além de torturas com faca quente, isqueiro e socos, um deles teria sido obrigado a fazer sexo oral no amigo. Em São Paulo, levou apenas dois dias para ocorrer a primeira chacina de 2016, com quatro mortos na periferia de Guarulhos. Suspeita-se de vingança pela morte de um PM dias antes na região.

Começamos como acabamos. Nada, portanto, nem começou nem acabou. Quem continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os negros, os pobres e os índios. O genocídio segue diante da indiferença, quando não aplauso, do que se chama de sociedade brasileira. Começamos 2016 como acabamos 2015. Obscenos. Os fogos do Ano-Novo já fracassam no artifício. Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.

Dizem que 2015 é o ano que não acaba. Ou que 2013 é que não chega ao fim.

Para os indígenas é muito mais brutal: o ano de 1500 ainda não terminou.

(Publicado no El País em 4 de janeiro de 2016)

Em defesa da desesperança

Diante da atual conjuntura e de um ano que não acabará, é hora de superar a esperança

A esperança é consenso. Ao mesmo tempo amálgama, exortação e virtude. Aquele que acusa o outro de causar desesperança apresenta-se, ele mesmo, como um portador de esperança. Jamais, sob hipótese alguma, um desesperançado. O desesperançado é um pária político, é um pária social, é até mesmo um pária doméstico. O desesperançado não teria nada a oferecer a si mesmo, ao outro ou ao país. Só encontra alguma compaixão se, em vez de desesperançado, acatar o diagnóstico de “depressivo” e passar a consumir drogas lícitas para se “curar”. Aí, já não é mais desesperançado, mas “doente”. Para o doente, há perdão.

A esperança é a crença que une todos os credos, inclusive a falta de credo. Exige fé e, portanto, adesão. Se você a nega, torna-se um risco para todos os crentes.

Quero aqui fazer uma defesa da desesperança, neste momento tão agudo do Brasil.
Antes, algumas considerações sobre o abismo.

1. A falsa polarização

O ato contra o impedimento de Dilma Rousseff (PT) colocou mais gente nas ruas do Brasil que o ato a favor do impedimento. Nesse enfrentamento pontual, os “contra o golpe” venceram os “a favor do impeachment”. Entre “a favor do impeachment” e “contra o golpe”, onde estamos? No reino da falsa polarização, que só serve para reduzir a política e encobrir o buraco maior, aquele que continuará bem aqui, com ou sem o impedimento da presidente. É aí que reside a obscenidade.

O país parece condenado a reencenar a polarização, como uma espécie de encantamento macabro, um looping maldito. De certo modo, o que acontece agora, com o tema do impedimento, é um revival da campanha eleitoral de 2014. Dilma ganhou de Aécio Neves (PSDB) por uma margem pequena. Possivelmente teria perdido, não fosse o voto útil ou o voto crítico de parte da esquerda que, apesar de não ter nenhum respeito pelo seu primeiro mandato, acreditou que ela era a opção menos ruim. Ou acreditou na famosa “guinada à esquerda”.

Naquele momento, as redes sociais tinham se transformado numa carnificina, voava pedaços de esquerda para todos os lados. Quem não apoiava Dilma era considerado “traidor”. Amigos romperam, casamentos balançaram, tornara-se difícil andar por qualquer rua, virtual ou concreta, sem sair com a alma ou com o corpo esfolado. Há quem chegue ao Natal do ano seguinte sem ter se reconciliado. Ainda assim, Dilma ganhou. E ainda assim 37 milhões – a soma dos votos nulos e brancos e das abstenções – não votaram nem em Dilma nem em Aécio. A tese da polarização oculta diferenças e complexidades, torna homogêneo o que não é. Falsifica a conjuntura do país. Escrevi sobre isso no artigo intitulado “A mais maldita das heranças do PT“, publicado após a primeira manifestação contra Dilma Rousseff e o partido, em março de 2015.

Hoje, há gente no próprio PT que lamenta a vitória, convicta de que o melhor seria ter mentido menos na campanha, mesmo à custa de uma derrota, e se recompor na oposição para 2018. Há quem acredite que teria sido melhor para o PT e melhor para o país, que poderia se beneficiar mais com o partido na oposição do que no poder. Mas, como se sabe, o “e se” não serve para nada.

Ao final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, o pior primeiro ano de qualquer governo, pelo menos desde a redemocratização do país, a falsa polarização é reeditada em torno do “a favor do impeachment” versus “contra o golpe”. Tem acontecido algumas escaramuças nas redes sociais, tanto à direita quanto à esquerda. À direita, porque parte não aderiu à tese do impedimento por conta de vários fatores, entre eles o fato de que o comandante do processo é Eduardo Cunha, nossa versão particular de um vilão do Batman. À esquerda, porque muitos consideram impossível defender o governo de Dilma Rousseff. Ensaiou-se um “traidor” aqui, outro lá, aos que se recusaram a engrossar as fileiras do “a favor do impeachment” ou do “contra o golpe”, mas com muito menos convicção do que na campanha eleitoral. Uma frase que circula nas redes talvez resuma o impasse da parcela da sociedade que desafia a polarização: “Há hoje duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo de Dilma Rousseff”.

Ainda assim, parte dos movimentos sociais foi às ruas defender a bandeira de que o impedimento é um golpe disfarçado, para que a presidente compreendesse, finalmente, “quem estava com ela”. A tal “guinada à esquerda”. A queda de Joaquim Levy do Ministério da Fazenda é comemorada por alguns setores como um primeiro resultado desse apoio. Mas o histórico de Dilma Rousseff não é bom neste quesito. A cada vez que a coisa aperta, seja quando corria o risco de perder a eleição, ou agora, quando corre o risco de ser tirada do poder por impedimento, dá para ouvir o grito: “Chama os movimentos sociais pra defender o governo!”.

Com eles, torna-se possível apresentar a narrativa como uma luta entre forças conservadoras contra progressistas. Se valerem as experiências anteriores, em seguida a presidente esquece-se de que precisa conversar com as bases. Dilma é tão explícita na sua falta de paciência que, no discurso de vitória, em 2014, irritou-se com aqueles que, depois de terem dado o sangue na eleição (em alguns casos literalmente), interrompiam sua fala com aplausos e gritos de comemoração.

A realidade, porém, não se reduz ao pastiche que querem fazer dela.

2. Restou governo para ser defendido?

A pergunta mais difícil para quem não adere à tese do impeachment é: há governo a ser defendido? O que se perde, de fato, sem Dilma Rousseff na presidência?

A questão da legalidade, convém deixar explícito, não é pequena. Dilma venceu a eleição, e quem não está gostando vai ter de esperar a próxima para mudar o governante. Essa é uma lição importante da democracia: mesmo descobrindo que seu voto foi um desastre é preciso se responsabilizar por ele como gente grande. Mesmo perdendo, é preciso respeitar o voto da maioria. Respeitar essa regra básica é fundamental, mais ainda para uma democracia tão frágil como a brasileira. Há dúvidas consideráveis sobre a legitimidade das razões alegadas para um impedimento, do ponto de vista legal. E, ainda que se saiba que um impedimento é um rito muito mais político do que legal, vale a pena repetir que isso não é pouco nem é menor. O impedimento de um presidente é algo sério demais para não haver um consenso mínimo sobre a legitimidade do pleito, como havia no caso de Fernando Collor de Mello. Ao ampliar-se ainda mais as fissuras, em lugar do enfrentamento honesto de nossos conflitos históricos, pode se tornar mais difícil para o país seguir adiante.

Dito isso, vale a pena se deter sobre a pergunta: o que restou desse governo e dessa presidente? Para se manter no poder, Dilma Rousseff e o PT fizeram concessões além de qualquer limite, romperam a barreira da decência. Não entregaram tudo, mas quase. Dá para escrever vários livros sobre o balcão de chantagens em que foi negociado o inegociável, temas cruciais para o país comercializados como se fossem salsichas. No vale-tudo ao qual o PT se atirou diante da possibilidade concreta de perder o poder, o PT perdeu o governo. Não todo, mas é possível que tenha chegado ao ponto do não retorno. Assim, o final de 2015 desvela um cenário trágico: defender o quê, afinal? Como defender o governo se já não há governo para ser defendido?

Este é um dilema que tem tirado o sono e a razão mesmo de militantes fiéis. Talvez o exemplo mais emblemático seja a entrega do Ministério da Saúde ao PMDB na última reforma ministerial, feita sob medida para ter apoio num Congresso hostil, em que mesmo os bagrinhos viraram tubarões diante do cheiro do sangue. Não só o ministério de maior orçamento, como um ministério estratégico para políticas públicas essenciais e para o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual dependem dezenas de milhões de brasileiros para viver em vez de morrer. Um ministério estratégico para causas muito caras ao PT, aquelas de identidade, as que foram a própria razão de existir do partido.

Os efeitos do desmantelamento do ministério e das políticas públicas em curso na área da saúde, para ficar apenas neste caso entre tantos, só começam a aparecer. Em 10 de dezembro, o novo ministro da Saúde, o psiquiatra Marcelo Castro (PMDB), nomeou para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas um nome que muitos acreditavam enterrado num passado sombrio: Valencius Wurch Duarte Filho. Sem deixar de reconhecer os limites da reforma psiquiátrica, que até hoje não foi concluída, a escolha de Wurch é um escárnio. Por si só já configura, simbolicamente, um retrocesso de pelo menos duas décadas. Wurch foi diretor nos anos 90 da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, no Rio de Janeiro, apontada como o maior manicômio privado da América Latina. Depois de várias denúncias de violações de direitos humanos ao longo dos anos, no contexto da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, o hospício finalmente foi fechado, em 2012. As cenas encontradas lá evocavam um campo de concentração.

Mas eis que o passado é esquecido – ou lembrado? – e Valencius Wurch reaparece em 2015 não mais no comando de um manicômio, mas de algo muito maior, ao ser nomeado para comandar a pasta que determina a política de saúde mental do país. Diante dos protestos em vários estados e capitais do Brasil e também de figuras de referência internacional na área, o ministro Marcelo Castro invocou a “Ciência”. A Ciência é como Deus. Na falta de argumento, há sempre quem chame uma ou outro.

No campo minado – e altamente lucrativo, tanto para quem ganha dinheiro com internações psiquiátricas como para a indústria farmacêutica –, é comum uma parcela dos psiquiatras lançarem mão da “Ciência” para defender seu feudo diante do avanço de outras abordagens sobre o sofrimento psíquico. Desta vez, invocar a “Ciência” ou uma escolha “técnica” não funcionou, já que o desempenho “científico” de Wurch é pífio e o de seu antecessor destituído, Roberto Tykanori Kinoshita, bastante vistoso. Funcionários, pacientes e familiares ocuparam as salas da saúde mental no ministério como ato de resistência.

A escolha de um ex-diretor de manicômio para o maior cargo da área da saúde mental revela que hoje, em Brasília, quando todos os limites já foram superados, impera a certeza de que é possível dizer e fazer qualquer coisa e seguir incólume. Mas há um aspecto interessante nesta escolha do ministro que levou o ministério no balcão das chantagens: diante da perversão de sua própria nomeação, nada mais lógico do que chamar um diretor de hospício. Afinal, a escolha de Valencius Wurch pode ter sido apenas um ato-falho do psiquiatra.

Há exemplos como este em várias áreas caras à história do PT, e hoje os focos de resistência onde ainda restam alguns princípios de base são cada vez mais escassos. Mesmo que o impedimento não se concretize, e mesmo que Dilma Rousseff termine o mandato para o qual foi eleita, parece uma possibilidade remota na atual conjuntura que ela recupere o poder de fato. E também não se sabe o que restou do PT, no sentido daquilo que fez o PT representar o projeto político de pelo menos duas gerações de esquerda.

Políticas públicas como as que eram levadas adiante na área de saúde mental, para ficar no mesmo exemplo, era no que muitos se agarravam para dizer que ainda fazia diferença um governo do PT. Se até isso foi vendido no balcão de salsichas, o que sobra? Qual é o porquê? Se em nome da “governabilidade” perdeu-se o governo, a pergunta é séria e também honesta: restou algo para defender?

3) Quando havia um governo, ele era defensável?

Esta é uma questão ainda mais espinhosa. E não há uma resposta fácil – nem de “sim” ou “não”. Acredito que o Brasil, em muitos aspectos, é melhor depois do PT. Mas é possível dizer que, em vez de enfrentar conflitos históricos, estruturais, do país, a opção do PT no poder, com algumas exceções, foi por acomodá-los. E a acomodação é sempre temporária. Pode-se simplificar (espero que não demais), dizendo que a questão central no Brasil hoje continua a ser a de que, para diminuir a desigualdade, será necessário tocar nos privilégios. Não só econômicos e sociais, mas também culturais. As elites terão de perder – bem mais do que o “direito” de não ter um pobre e preto ao seu lado no avião.

Lula, o conciliador, tentou fazer uma mágica, aquela que todos ganham sem que ninguém tenha de perder. Financiou essa mágica com as commodities e um irrecuperável custo-natureza. A mágica se esgotou, o encanto se desfez. E o Brasil, mais violento hoje, também porque mais gente tem o que perder – e está correndo o risco de perder –, encontra-se diante de sua chaga histórica, que pode ser resumida por um frase que virou quase um mantra: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

O PT não fez reforma agrária nem tocou na renda dos mais ricos. O desempenho na demarcação de terras indígenas foi vergonhoso, em especial com Dilma Rousseff. O PT também recuou ao enfrentar temas como aborto, homofobia e drogas. E avançou muito pouco no flagelo nacional, fator fundamental de desigualdade, a educação. O slogan “Pátria Educadora”, deste mandato, já nasceu morto pelas mãos dos marqueteiros. A própria ascensão do que se convencionou chamar de “nova classe média” ou “classe C”, na medida de uma inclusão não só, mas principalmente pelo consumo, começa a ficar comprometida pela crise econômica. E o Bolsa Família, obrigatório diante da indigência criminosa de parte da população brasileira, avançou pouco para além da política compensatória.

Isso não significa deixar de reconhecer os avanços de um governo petista, no tempo em que o PT governou. É possível pensar que a ampliação do debate fundamental sobre o racismo, hoje colocado em outros termos, se deve muito ao protagonismo da primeira geração de negros que alcançou a universidade pelas cotas raciais. Parte dos movimentos políticos que hoje emergem, inclusive confrontando a política partidária, podem ser pensados (também) a partir da experiência de inclusão assegurada por ações afirmativas. Não há dúvida de que hoje uma parte da população que tinha pouco a perder tem mais a perder – e quer mais.

A percepção destes avanços, porém, tem sido corroída pela crise política e econômica. Isso fica claro, por exemplo, numa recente pesquisa do Datafolha, ao mostrar que, concretamente, a renda de todos os brasileiros melhorou consideravelmente nos 13 anos do PT. Todos ganharam, mas os mais pobres ganharam mais (129%). Ainda assim, apenas 31% dos brasileiros reconhecem que sua vida melhorou. Essa é a tragédia do partido. Ou uma delas. Perderam, pelo menos temporariamente, a batalha da memória.

A corrupção, por sua vez, não é um dado menor. É fato que ela atravessa a maioria dos partidos brasileiros, como o Mensalão Mineiro, do PSDB, finalmente começa a mostrar – e as investigações da Lava Jato já provaram. Mas também é fato que do PT, que se apresentava como aquele que restauraria a ética na política, se exige, com toda a justiça, muito mais.

É possível defender um partido – e o governo de um partido que se corrompeu ao ser governo –, mesmo que tenha feito avanços importantes para o país? Ou este é um limite ético? Desta pergunta, incômoda, não dá para escapar nem tergiversar.

Mas é na opção pelo tipo de desenvolvimento que o PT se torna, para parte da esquerda, mas não só, indefensável. Toda anatomia que agora se desvela tem sido denunciada por lideranças na Amazônia há muitos anos, quando Lula e depois Dilma estavam no auge da sua popularidade. E recebida com ouvidos surdos, por que quem se importa com os gritos de indígenas e ribeirinhos, afinal? Quem se importa com o que acontece lá na floresta e nas cidades corroídas da região que sempre foi vista pelo centro-sul como um corpo para exploração e exportação de matérias-primas?

O olhar histórico do centro político-econômico do Brasil sobre a Amazônia é o do colonizador, e ainda hoje não mudou. O projeto de Lula e de Dilma para a região revelou-se muito semelhante ao da ditadura militar. A política das grandes obras, na aliança com as grandes empreiteiras que ocupam Brasília desde que a construíram, tem na Usina Hidrelétrica de Belo Monte a sua síntese maior, ainda por ser inteiramente desvendada. É também lá que os mais desamparados foram jogados para fora da lei. E é lá que o processo de conversão de indígenas e ribeirinhos em pobres nas periferias urbanas levanta questões sobre a visão de mundo do partido. É lá ainda, bem longe do centro-sul, que as contradições do PT no poder se revelaram em toda a sua complexidade e muito mais cedo.

Me refiro à Amazônia, mas vale a pena olhar com atenção também para o Nordeste e mais especificamente para a transposição do Rio São Francisco, como obra-símbolo de uma visão de mundo sem nenhuma sensibilidade socioambiental, nenhuma escuta dos que lá vivem, nenhum respeito pelo conhecimento de uma população reduzida pelo poder público a objeto.

Esta é a pergunta mais complicada. Agora não mais o que o PT abriu mão com a justificativa – questionável – da “governabilidade”, uma palavra que foi se tornando mais e mais obscena. Mas a pergunta sobre o que o PT efetivamente escolheu quando tinha todo o capital político para governar.

4) Há fundo no poço sem fundo?

Tem se afirmado que 2015 foi um ano de paralisia. Antes fosse. Andar para trás ainda é andar. O ano de 2015 foi de retrocesso acelerado, e não só no aumento do desemprego e da inflação, ou na queda do PIB. basta ver todos os projetos colocados em pauta graças a Eduardo Cunha e à Bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala), sem contar o terrorismo da lei antiterrorismo. Em 2015 se perdeu muito. Conquistas históricas dos trabalhadores foram atingidas. Chantageou-se com a legislação ambiental, ameaçou-se os direitos constitucionais dos indígenas, atacou-se a saúde reprodutiva, retomou-se um conceito de família da Bíblia. E a Licença de Operação de Belo Monte saiu sem o cumprimento de condicionantes.

O ano de 2015 foi também aquele em que as alternativas do espectro político-partidário, que já eram escassas, se arruinaram. Ao embarcar na chantagem do impeachment, compactuando com uma figura sinistra como Eduardo Cunha e fazendo declarações vergonhosas, o PSDB e seus próceres se apequenaram. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, que sustentava um lugar simbólico de alguma respeitabilidade, manchou sua imagem. Geraldo Alckmin, Aécio Neves e José Serra perderam qualquer pudor ao escancarar que o impeachment ganhava legitimidade ou não conforme seus respectivos projetos de poder. Algo como “a medida sou eu”.

Com esse comportamento constrangedor, o PSDB, que já tinha perdido muito do respeito que chegou a ter em anos (bem) passados, quando era considerado uma alternativa de centro-esquerda, revelou que apodrece. Restou, como reserva ética, Marina Silva. Mas Marina saiu da campanha de 2014 desgastada, tanto pelos ataques abaixo da linha da cintura do PT quanto por seus próprios erros e contradições – e a Rede, partido que finalmente conseguiu viabilizar, nasceu sem o capital de novidade de quando foi lançada. Se Marina, que até hoje não conseguiu ecoar entre os mais pobres, ainda é capaz de representar uma alternativa para uma parte suficiente dos brasileiros é uma incógnita.

Se a opção imediata é um governo do PMDB de Michel Temer, o vice que entrega cartas “pedalando”, e se a alternativa à chantagem do pemedebista Eduardo Cunha é a do pemedebista Renan Calheiros, pelo menos até a Lava Jato alcançar o presidente nada probo do Senado, o Brasil não chegou ao fundo do poço porque os dias têm provado que o poço não tem fundo.

O problema é menos o agora, e mais o depois. O impasse, como já escrevi, é infinitamente maior do que o impedimento ou não de Dilma Rousseff. Se fosse disso que se trata, seria até fácil. O drama maior, porém, é aquele que não acaba nem com Dilma ficando, nem com Dilma saindo. A tragédia é que neste teatro sobram vilões e faltam virtudes. O abismo é o país que por tantas gerações se viu como um futuro que nunca chegava, acreditou ter finalmente alcançado o presente e descobre-se atolado no passado.

Qual é o projeto político, de fato político, e não meramente um projeto de poder, para o presente-futuro do Brasil? Qual é o projeto político capaz de enfrentar as velhas forças que se rearranjam para manter tudo como sempre foi?

Este é o desafio para o qual não parece haver respostas convincentes. Por isso a sensação de que 2015 não vai acabar nunca – ou pelo menos vai levar muitos anos para acabar. Não é só uma questão de resgatar a política, no seu sentido amplo e profundo, como diálogo entre diferentes no espaço público, mas de criar uma nova política.

Mas como?

Diante do tamanho do abismo, me arrisco a apenas três afirmações que dizem respeito aos temas que acompanho como jornalista. Não há projeto de fato sem enfrentá-las. A primeira é a de que este país não pode mais adiar seus conflitos históricos: entre os principais, o racismo. A segunda é que não se enfrentará nem o racismo nem a desigualdade nem a violência nem a tragédia educacional, intimamente interligados que são, sem que as elites econômicas, políticas, sociais e também culturais compreendam que vão precisar perder privilégios. E não me refiro apenas à renda, mas perder privilégios menos contabilizáveis, que talvez sejam até mais difíceis, como o de falar sozinho, por exemplo, ou o de ter razão sozinho, ou o de estabelecer os limites até onde é permitido questionar os próprios privilégios. Privilégios mais sutis, daqueles que nem mesmo se acha que são privilégios, tão assimilados estão, que têm sido colocados à prova em embates do feminismo e do próprio racismo neste último ano. Ninguém – ninguém mesmo – está fora disso. E o terceiro é que não há saída sem sensibilidade socioambiental, que passa por reconhecer o conhecimento e a riqueza das experiências dos povos tradicionais. Não apenas para deter os vários etnocídios em curso, assim como encontrar maneiras para fazer o diálogo entre os Brasis, mas também para encontrar caminhos diante dos enormes desafios representados pela mudança climática.

5) A desesperança como imperativo ético

Agora, de volta ao princípio. Ou à ideia mais dura deste artigo, também a de maior potência.

Este é um país em que se declarar sem esperança é visto como uma falha de caráter, uma traição ao coletivo e a si mesmo. Como assim, você não tem esperança? A esperança é como a felicidade na lógica capitalista: objeto de consumo que mede o sucesso de uma vida. Esperança é palavra invocada por todos os lados na atual conjuntura do Brasil. Seja de forma espontânea, seja como construção marqueteira. Conforme a posição daquele que a evoca, a esperança seria algo a ser recuperado, tanto para o partido que perdeu o país recuperar seu lugar, como para o país recuperar a si mesmo. Esse resgate de um e de outro passaria pelo resgate da esperança. Mas também desponta como palavra de acusação ao PT, o partido que teria sequestrado a esperança dessa enigmática entidade a que se dá o nome de “povo brasileiro”. A reposição da esperança, e de quem a pode repor, supondo-se que perdida está, é campo de disputa. O que une essas tantas narrativas é de que seria ela, a esperança, aquela capaz de recosturar o tecido rasgado chamado Brasil.

A esperança como conceito alcança no Brasil suas próprias particularidades, que ainda merecem ser investigadas com maior profundidade. Como invocação, ela tem um lugar estratégico nos 13 anos do PT no poder. Marca a primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002: “a esperança para vencer o medo”. Era uma reação à afirmação da atriz Regina Duarte, no programa do oponente, o PSDB, ao dizer que tinha medo de uma vitória do petista. No pleito de 2014, para a reeleição de Dilma Rousseff, Lula afirmou: “Agora temos de fazer uma campanha para a esperança vencer o ódio”. Em 2015, um dos programas do PT, assombrado pela presidente mais impopular desde a redemocratização e sob ameaça de impeachment, apontava a saída para a crise pelo “caminho da esperança”.

Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido.

Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.

(Publicado no El País em 21 de dezembro de 2015)

É política sim, Geraldo

Enquanto o Brasil vive o rebaixamento do exercício político, os estudantes paulistas mostraram que é possível estar com o outro no espaço público

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

O Brasil no final de 2015: a bacia do Rio Doce foi destruída, e a lama avança sobre o oceano; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), um homem investigado por crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, que escondeu contas na Suíça, dá início ao processo que pode resultar no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), depois de constatar que deputados petistas votariam contra ele no Conselho de Ética, numa ação que pode cassar seu mandato; a Polícia Militar do Rio de Janeiro dispara 111 tiros e fuzila cinco jovens negros porque passeavam de carro à noite; as brasileiras não podem engravidar porque há um surto de microcefalia causado por vírus transmitido pelo Aedes aegypti e aquelas que estão grávidas foram condenadas a viver em pânico diante do zumbido de um mosquito; o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza a PM a jogar bombas de gás e a bater em estudantes de escolas públicas.

Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.

Diante desse despedaçamento, há que se cuidar para que as palavras disponíveis, aquelas que dão nome a conceitos cuja construção é o que de melhor a humanidade criou, não sejam pervertidas e restem também elas obscenas. É neste ponto, profundo, que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) cometeu um ato simbólico de extrema violência, para além da truculência concreta de sua polícia nas ruas de São Paulo. Em 2 de dezembro, no Palácio dos Bandeirantes, ele afirmou:

– Não é razoável obstrução de via pública, é nítido que há uma ação política no movimento. Há uma nítida ação política.

A frase do governador foi amplificada pela imprensa, em títulos de jornais e chamadas nas rádios, TV, internet. O governador denunciando o movimento dos estudantes que ocupavam as escolas públicas de São Paulo em protesto contra um plano que, em nome da “reorganização escolar”, fecharia mais de 90 escolas e remanejaria mais de 300.000 alunos. Mas, vale repetir, o que o governador denuncia? Que o movimento é político. Qual seria a acusação? É óbvio que o movimento é político. E a melhor qualidade do movimento é justamente a de que é político.

É pelo exercício da política que se alcançou o que de melhor existe na experiência humana. E não pela força, pela imposição, pelo extermínio do diálogo e das ideias e, vezes demais, das pessoas que discordam. Onde a política é suspensa, a aniquilação se instaura. Para Alckmin, porém, a julgar pela sua declaração e pelos seus atos, a política é obscena. Tanto que ele precisa denunciá-la. E insinuar que os estudantes estão sendo instrumentalizados por interesses partidários e ideológicos. É fundamental que se preste atenção a um governador, com ambições de ser presidente da República, que iguala a política à obscenidade. Ou à abominação, outra palavra que pode nos iluminar nesse momento em que a crise de representação alcança também as palavras.

Voltemos à declaração do governador: “Não é razoável obstrução de via pública”. É assim que a frase começa. Para ele, protesto, manifestação, algo do cerne da democracia, é “obstrução da via pública”. O que se impõe nesta afirmação de Alckmin? A voz que vale é a daquele que quer passar. A via pública pertence àqueles que querem passar com seus carros. Passar, portanto, sem parar para escutar. É forte, porque Alckmin tem demonstrado governar assim, passando sem escutar. Se necessário, passando por cima, como se viu.

O que foi a imposição da “reorganização escolar” sobre a comunidade, senão um “passar sem escutar”? E o que aconteceu? O ato autoritário foi enfrentado com política. Os estudantes ocuparam o espaço público para reafirmar a necessidade de dialogar, para dizer que imposição não era possível num regime democrático. A reação foi recebida pelo governo como uma afronta à ordem e à autoridade. Mas como, se esta é uma democracia? Quem não dialoga é ditador. Diante do impasse, entre considerar a política uma obscenidade e, ao mesmo tempo, governar num estado democrático, Alckmin fez o quê? Se ele queria passar sem escutar, com seu carro e com seu decreto, o governador fez o quê? Chamou aquela que restou da ditadura: a Polícia Militar.

Como afirmou Fernando Padula Novaes, chefe de gabinete da Secretaria de Educação, é “guerra”. A palavra reveladora de como o governo se relaciona com aqueles que discordam, neste caso os estudantes, foi usada mais de uma vez numa reunião cujo áudio foi divulgado pela repórter Laura Capriglione, do coletivo Jornalistas Livres. O encontro com cerca de 40 dirigentes de ensino contou também com a anunciada presença de um militante da Ação Popular, movimento de jovens do PSDB. Na reunião, Padula demonstrou a necessidade de “desqualificar” o movimento de resistência e mostrar que a “radicalização” estava “do lado de lá”.

E, assim, na lógica de “guerra”, Geraldo Alckmin respondeu ao exercício da política com bombas de gás, com golpes de cassetete e agressões físicas e psicológicas, como humilhar e carregar à força um garoto de 18 anos pendurado de cabeça para baixo. Respondeu com repressão, como já tinha feito nas manifestações de 2013. Respondeu como um general alinhado ao golpe de 1964 responderia durante os anos de chumbo. A Polícia Militar é o que sobrou de lá, aqui. E, se como analistas de segurança pública têm dito, a polícia está descontrolada, está descontrolada porque governantes precisam controlar. E impor: passar sem escutar. Passar sobre a política. “Limpar” as ruas dos pretos e dos pobres e também dos que fazem política.

Enquanto as imagens nas ruas expunham a violência da Polícia Militar contra os estudantes, a maioria deles adolescentes, este era o discurso do governador: “A polícia dialoga, a polícia conversa, a polícia pede para as pessoas saírem, a polícia dá tempo para as pessoas saírem. Agora, não pode prejudicar quem precisa trabalhar. Então, é preciso ter o mínimo de bom senso. A polícia faz todo o trabalho, ela é capacitada, é treinada, tem paciência…”. O governador, e esta não é uma constatação banal, está satisfeito com a ação da PM. A desconexão entre o discurso da autoridade máxima do estado de São Paulo e a realidade documentada por vídeos e fotografias nas ruas de São Paulo é um fato a ser levado a sério.

É uma enormidade o que os estudantes paulistas deram ao país neste mês de resistência. Enquanto a política em Brasília, aquela feita por profissionais do ramo, era rebaixada a chantagens e tomaladacá, adolescentes deram ao país uma lição de política em sua expressão mais completa. Organizaram-se, ocuparam 196 escolas, responsabilizaram-se por elas – consertando, limpando e cuidando – e impediram que, num país e num estado em que a péssima educação pública escava um abismo, mais de 90 escolas fossem fechadas por decreto. Foram reprimidos violentamente por isso. Muitos apanharam, dezenas foram detidos, centenas sofreram as consequências das bombas de gás. Mas resistiram. E venceram. E, como o que venceu foi a política contra o autoritarismo da verdade única e da força bruta da PM, vencemos todos.

Em 4 de dezembro, o governador foi obrigado a recuar: suspendeu a “reorganização escolar”. O secretário de Educação, Herman Voorwald, deixou o cargo. Geraldo Alckmin recebeu uma lição de política dada por crianças e adolescentes. Ao ver sua popularidade despencar, conforme pesquisa do Datafolha publicada no mesmo dia em que anunciou o adiamento das mudanças até 2017, o político que iguala a política à obscenidade descobriu que não era mais possível mandar a Polícia Militar passar por cima do povo para sua verdade única passar.

Geraldo Alckmin recuou com uma frase do Papa Francisco: “Sempre que perguntado entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma solução sempre possível, o diálogo”. Ainda que óbvio, é uma questão de respeito restabelecer os fatos para não perverter as palavras. “Indiferença egoísta”: pode ser relacionada ao governo, que tentou impor sem debate um projeto controverso, criticado por educadores, que fechava quase uma centena de escolas e atingia centenas de milhares de alunos. “Protesto violento”: fotografias e imagens documentam a violência da PM contra os estudantes. “Diálogo”: é o que os alunos reivindicavam, enquanto no interior do governo se anunciava “guerra”. Diálogo é justamente política. Como aquilo que se faz é mais revelador do que aquilo que se fala, o governador fez seu anúncio e deixou a sala sem falar com a imprensa.

Não foi apenas Geraldo Alckmin que aprendeu algo importante com os alunos da escola pública –ou deveria ter aprendido. Há dois pontos aos quais é preciso prestar bastante atenção. Um deles, que já havia se tornado claro nas manifestações de 2013, é o de como uma parcela da imprensa da redemocratização ainda está intoxicada pelos tempos da ditadura e da censura, entre outras hipóteses para a escolha dos termos usados na cobertura. Adolescentes levam bombas e borrachadas das forças de segurança do Estado e parte da imprensa chama de “confronto”. A cada protesto nas ruas, várias reportagens começavam pelas agruras causadas pela interrupção do trânsito, como se o trânsito fosse a entidade mais importante desse acontecimento político, relacionado à grande tragédia nacional, a educação, numa hierarquia de valores bastante iluminadora. Adolescentes eram encurralados e agredidos pela PM e parte da imprensa definia como “confusão”. A PM reprimia violentamente os alunos que protestavam e uma parcela da mídia descrevia o fato como um ato de “dispersão”. Nomear os fatos com precisão é tarefa obrigatória do jornalismo.

Ao pensar nas manifestações contra o aumento das passagens do transporte público, em 2013, desponta outro ponto crucial: qual é o limite da opinião pública? Ou, de forma mais explícita: em quem a polícia pode bater sem causar assombro e reação, ou sem que isso provoque a queda de popularidade do governador? O que os protestos contra o fechamento das escolas mostraram é que usar violência contra alunos adolescentes é um limite para os cidadãos. Desta vez, não foi possível transformar os estudantes em “vândalos” e ganhar a opinião pública, como ocorreu em 2013, usando como justificativa a ação violenta dos black-blocs. Geraldo Alckmin apostou que conseguiria repetir 2013, quando num primeiro momento houve uma reação massiva contra a violência da polícia e, em seguida, com a conversão de manifestantes em “vândalos”, na narrativa de parte da imprensa, a opinião pública passou a apoiar a repressão policial, por ação ou omissão.

É importante pensar sobre isso, porque enquanto a violação da lei pela polícia não for rechaçada, independentemente de contra quem for, seguiremos muito mal. Se pode bater neste, mas não naquele (ou matar, como acontece nas periferias e favelas), continuaremos involuindo no pacto civilizatório. E os governantes autoritários seguirão com chance de passar sua verdade única sobre a política, calando a democracia com bombas de gás e golpes de cassetete.

O fracasso na conversão de estudantes em “vândalos” para a opinião pública, apesar de todos os esforços, revela que a escola ainda têm um lugar forte no imaginário coletivo. A educação pública, tão abandonada, tão desrespeitada, tão desinvestida nestas últimas décadas, ainda ecoa na população como um valor. Ainda ressoa a consciência de que uma escola, neste país, não pode ser fechada. Muito menos dessa maneira. A escola, tão maltratada, ainda é um símbolo positivo.

Há aqui uma lição profunda que os estudantes das escolas públicas deram não apenas ao governador, mas ao conjunto da sociedade que acredita em saídas individuais, em geral na de matricular o filho na escola privada para pelo menos salvar o seu da tragédia educacional brasileira. Quando já se tornava difícil acreditar que houvesse uma saída, os estudantes se apropriaram das escolas e, com a ajuda de parte dos pais, passaram a cuidar dela. Coletivamente, como comunidade, como cidadãos. Cuidam do que ninguém mais de fato cuidava.

Acho que ainda não chegamos perto de alcançar o tamanho desse gesto, que nestas últimas semanas levou gente que nunca tinha pisado numa escola pública a oferecer de comida a serviços. Pessoas de todas as áreas têm se apresentado para dar aulas nas escolas ocupadas. Alunos de universidades prestigiadas, aquelas em que os estudantes da escola pública foram ensinados a acreditar que nunca entrariam, pediram para os secundaristas irem até a faculdade explicar o movimento. Os estudantes conseguiram derrubar muros que quase ninguém acreditava que ainda poderiam cair. E uma estudante ouviu de uma visitante no domingo, na Escola Estadual Fernão Dias Paes, a primeira ocupada na capital paulista, uma frase simbólica: “Tenho orgulho de viver numa cidade em que você existe”. Como escreveram os repórteres Felipe Resk e Rafael Italiani, do Estadão, a escola que tem o nome de um bandeirante “se tornaria símbolo da resistência ao Palácio dos Bandeirantes”. Recusando tal pai-fundador, os alunos cobriram a estátua do “matador de índios”, na frente da escola, com um saco preto.

Os estudantes que ocuparam escolas e ruas estavam até então na posição de restos. Eram os estudantes que o Estado fingia educar, em escolas abandonadas, caindo aos pedaços, em aulas com professores muito mal pagos, desmotivados e despreparados. Eram os alunos que nunca teriam muita chance na vida porque recebem uma péssima educação. Eram os estudantes “violentos” e “perdidos” da escola pública, eram também os pretos e os pobres da escola pública. Eram aqueles que restavam na condição de objetos, também de discursos eleitoreiros e de slogans indecentes. Os herdeiros do processo de redemocratização lento, frágil e precário que vivemos há 30 anos, das ações imperfeitas de inclusão social, provaram que, se a moldura do espaço público for a democracia, há lugar para as diferenças, há lugar para o outro. Aqueles que muitos acreditavam “sem futuro”, porque sem presente, ensinaram aos adultos que a política é o exercício de estar com o outro no espaço público.

De onde veio a boa notícia no rio de lama e de obscenidades que se transformou o país, no concreto e no simbólico? Dos meninos e meninas das escolas públicas. Educaram o governador, educaram a sociedade. E fizeram o que parecia impossível no atual momento do Brasil: resgataram a política.

(Publicado no El País em 7 de dezembro de 2015)

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