A cara da vagina

A descoberta de um rosto para A Origem do Mundo, obra-prima do pintor Gustave Courbet, não retira o véu sobre a obra. Ao contrário, é a tentativa de colocar sobre ela um véu definitivo

E cá estamos nós, mais uma vez. De volta às aventuras do quadro mais famoso do pintor Gustave Courbet, A Origem do Mundo. Não sei se existe outra obra de arte com tanta capacidade de provocar polêmica, mesmo um século e meio depois de ter sido realizada. Para quem não conhece a pintura, ela mostra uma vagina. Ou, segundo uma definição menos cultural e mais anatômica, uma vulva. Ela desponta entre as coxas femininas abertas, coberta de pelos. Há ainda a barriga e um seio. Não há o restante das pernas, não há braços, não há rosto. Pelo menos não havia até a quinta-feira, 7/2, quando a revista francesa Paris Match chegou às bancas. Na capa se anunciava, com grande estardalhaço, que havia sido encontrado “o rosto de A Origem do Mundo” – “a parte de cima da obra-prima de Courbet”. A vagina teria uma cara. E até um nome, uma nacionalidade e uma biografia, já que sua dona seria a irlandesa Joanna Hiffernan, modelo retratada em outras telas de Courbet, amante de outro pintor, Whistler. Cabe a pergunta: por que a vagina precisaria de um rosto?

A Origem do Mundo, a pintura, assim como as palavras “vagina” e “boceta” viveram uma série de percalços no Brasil e no mundo no ano passado. A novidade trazida pela Paris Match neste mês de fevereiro mostra que ainda haverá muitas peripécias. O psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), que foi o último dono do quadro antes de a obra ingressar no acervo do Museu D’Orsay, em Paris, costumava dizer: “O sexo da mulher é impossível de representar, dizer e nomear”. E por isso exibia a pintura de Courbet a uma plateia seleta de intelectuais da época, num ritual cheio de suspense. Mais do que exibir, ele a desvelava, na medida em que A Origem do Mundo era ocultada atrás de uma outra pintura.

Primeiro, uma breve retrospectiva dos acontecimentos recentes. Em junho de 2012, escrevi sobre o quadro a partir de um grito que ecoou dentro da minha casa. Este era o título da coluna: “Por que a imagem da vagina provoca horror?”. Se você não a leu, pode ler aqui. Nela, conto a conturbada trajetória da pintura desde que Courbet (1819-1877) a fez, em 1866, e sugiro algumas hipóteses para o impacto tanto da imagem quanto das palavras, ainda hoje, quando corpos femininos nus se movimentam na internet a um clique.

Em setembro, o incômodo, que tanto a imagem quanto as palavras provocam, foi comprovado, mais uma vez, em dois episódios. No primeiro, a Apple censurou a palavra “vagina” . O título do livro de Naomi Wolf, respeitada escritora americana, passou de Vagina, uma nova biografia para V****a, uma nova biografia. Neste caso, a apresentação do livro feita na livraria virtual resultou numa prova bastante irônica da atualidade da abordagem: “É um impactante novo trabalho que muda radicalmente como pensamos, discutimos e compreendemos a v****a. A autora olha para o passado e nos mostra como a v****a foi considerada sagrada por séculos até ser vista como uma ameaça”.

Na mesma época, a transmissão da palestra de Jorge Coli pelo site da Academia Brasileira de Letras (ABL) foi interrompida. O corte ocorreu no momento em que Coli, respeitado crítico de arte e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrava uma imagem de A origem do mundo e pronunciava a palavra “boceta”. De novo, uma prova mais do que irônica da pertinência do debate.

A conferência integrava o ciclo “Mutações – O futuro não é mais o que era”, organizado pelo filósofo Adauto Novaes, e discutia “as noções de pornografia, erotismo e sexualidade dentro das artes”. Na sua reflexão, Coli sublinhava “o caráter conservador do moralismo atual e criticava os puritanismos repressivos que oprimem o imaginário, mas não apenas ele”. Censura consumada, os imortais da ABL aprovaram o ato “com louvor”.

Como se vê, 2012 foi um ano difícil para a vagina, seja como palavra, seja como imagem. E agora, logo no início de 2013, a novidade. Segundo a reportagem da Paris Match, apresentada como um “furo internacional”, o rosto de A Origem do Mundo teria sido descoberto por um amante da arte num percurso de romance.

Em janeiro de 2010, um homem identificado apenas como “John” entrou numa lojinha de antiguidades de Paris para se refugiar da chuva. Sobre uma cômoda, o rosto de uma mulher o capturou. No quadro, a “bela lasciva”, como é descrita, parecia ter sido imortalizada depois do ato de amor. E, de imediato, ele a quis. Pechinchou um pouco, pagou pela pintura não assinada o que tinha no momento e a encaixou debaixo do braço quando a chuva amainou. Ao chegar em casa, descobriu que aquela cabeça parecia ter sido cortada. E passou a buscar a origem e o restante do corpo da mulher como um detetive de histórias de mistério.

Depois de dois anos de obsessão e pesquisas, “John” chegou à conclusão de que o rosto feminino era a outra parte de A Origem do Mundo. Levou sua investigação até o Instituto Gustave Courbet. Depois de testes e análises, Jean-Jacques Fernier, considerado um dos grandes especialistas na obra do pintor, afirmou que a cabeça corresponde mesmo à pessoa.

Ao juntá-las, num quadro só, a pintura seria, segundo Fernier, um ângulo muito mais ousado de outro nu feminino de Courbet, chamado A Mulher e o Periquito, exibido no Metropolitan, de Nova York (para quem entende francês, há um vídeo aqui). Nesse caso, A Origem do Mundo se revelaria um quadro muito maior e faltaria ainda encontrar outras partes, como o próprio periquito em questão. No jornal Le Monde, especialistas levantaram dúvidas pertinentes sobre a veracidade da descoberta. O Museu D’Orsay, onde a pintura é exibida desde 1995, divulgou uma nota chamando a conclusão de “fantasiosa”. E dizendo: “A Origem do Mundo não perdeu sua cabeça”.

É nesse ponto que estamos. Mas o que, afinal, essa cabeça significa? Caso a hipótese se mostre verdadeira, o que ainda é bastante duvidoso, ninguém pode negar que a história seja quase irresistível. A Paris Match não demonstrou nenhum pudor com as palavras, ao exagerar no tom: “A Origem do Mundo tem enfim um rosto. Um amante da arte descobriu a outra parte do quadro mais audacioso da história da pintura. A parte de baixo causou escândalo, a de cima provocará uma revolução”.

Por enquanto, a história toda já se mostrou um excelente negócio, mesmo que a cabeça continue sem corpo. A reportagem ganhou repercussão internacional e foi replicada no mundo todo. O rosto, que custou ao seu dono 1.400 euros (cerca de R$ 3.700) em 2010, pode deixá-lo milionário, caso seja aceito como a cabeça de A Origem do Mundo, multiplicando seu valor para 40 milhões de euros (R$ 105 milhões), segundo estimativa da revista. Já vale agora muito mais do que quando era apenas mais um quadro num antiquário, entre móveis antigos e bibelôs de avós.

Mas, voltando à questão que move esta coluna, por que A Origem do Mundo precisaria de um rosto? Entre as várias polêmicas que o quadro gerou ao longo de século e meio, uma delas era a acusação de que ao pintar uma vagina sem rosto, braços ou pernas, Courbet estaria esvaziando a história da mulher, reduzindo-a a um órgão sexual. Ela nem teria identidade, nem movimento, muito menos protagonismo. Seria apenas um objeto inerte, à mercê do desejo do homem.

Com a descoberta do rosto perdido, pelo menos esse “problema” estaria resolvido. Agora, a mulher teria não só cara, como até nome e biografia. Juntos, estes separados no nascimento apaziguariam corações e mentes. A vagina não seria mais o centro perturbador – apenas parte, fragmento. O quadro de Courbet se tornaria apenas um nu muito ousado. Jean-Jacques Fernier, o especialista que avalizou a cabeça, chegou a lamentar que o rosto elimina o mistério e o simbolismo, a possibilidade que cada um tinha até então de imaginar o restante da mulher, completar a imagem a partir de suas experiências e fantasias.

Segundo a revista, “John”, o anônimo “amante da arte” que descobriu o rosto, sonha com expor as duas partes no Museu D’Orsay. Assim, de certo modo, o quadro estaria “inteiro” pela primeira vez. Mas o que é “inteiro”, valeria a pena perguntar? Ainda que aceitemos que o pintor também tenha feito um rosto, por alguma boa razão Courbet decidiu que ele seria uma outra inteireza. A Origem do Mundo existe inclusive para além de seu criador. Uma obra de arte é também quem a fez, o que fizeram dela ao longo de sua trajetória e o que é para cada um. Não existe uma essência a ser resgatada. No caso de A Origem do Mundo, ao supor pedaços e tentar juntá-los é que se rompe a integridade da obra.

Numa das charges sobre o episódio, um casal discute a “descoberta” diante do quadro do rosto de A Origem do Mundo. Em seguida, estão diante da Mona Lisa. A mulher percebe que o marido está pensando sobre a parte que, por dedução lógica, estaria faltando na enigmática Gioconda. “O que você está pensando?”, intima ela. E ele, todo aflito: “Nada! Juro!”.

É importante lembrar que, ao longo de sua turbulenta história, A Origem do Mundo sempre foi coberta por um véu. De tecido, como na casa de seu primeiro dono, o diplomata turco Khalil-Bey, que a escondia atrás de uma cortina verde num banheiro. Atrás de um outro quadro, como preferiu seu último dono, o psicanalista Lacan, ao instalá-la em sua casa de campo. Apenas a partir de 1995 a pintura passou a ser exposta sem véu algum no Museu D’Orsay.

Ao anunciar a “descoberta”, a reportagem da Paris Match afirmou: “Dois anos de pesquisa nos permitem retirar o véu e descobrir um enigma que tem apaixonado o mundo da arte e o grande público desde a origem do quadro”. Mas o rosto da mulher nunca foi o enigma. Nem me parece que a possibilidade de imaginá-lo seja o ganho ao se manter o mistério. O enigma é de outra ordem – e está em lugar diverso.

É a capacidade de representar o enigma que tornou esse quadro tão polêmico, na medida em que ele não representa o irrepresentável – o sexo da mulher. O que ele representa é justamente o enigma. Esta é a sua transgressão. Esta é a razão de provocar um incômodo que atravessa o tempo.

Se há algo que falta, não me parece que alguma vez tenha sido o rosto da mulher, os braços, as pernas. Se há algo perdido, não é a cabeça. O que está perdido – ou o que falta – não pode ser achado. Ou talvez o que falta seja preenchido pelo olhar de quem olha apenas no instante fugaz em que a pintura se torna também o olhar de quem a vê.

A “descoberta” de um rosto, ainda que se mostre verdadeira, não significa a retirada do véu, como se pretende. É exatamente o oposto. É mais uma tentativa de colocar um véu sobre A Origem do Mundo. Apenas que, desta vez, é uma tentativa mais perigosa, porque se pretende um véu definitivo. Por paradoxal que possa parecer, este rosto é não “uma revolução”, como quer a Paris Match, mas apenas mais um ataque de um moralismo conservador contra “a obra mais audaciosa da história da pintura”.

O rosto é o véu que jamais poderá ser arrancado.

(Publicado na Revista Época em 11/02/2013)

A menina quebrada

Uma carta para Catarina, que descobriu que até as crianças quebram

Era uma festa. Comemorávamos a vinda de um bebê que ainda morava na barriga da mãe. Eu havia acabado de segurá-la para que ela passasse a pequena mão na água da fonte do jardim. Ela tentava colocar o dedo gorducho no buraco para que a água se espalhasse, como tinha visto uma criança mais velha fazer. Parecia encantada com a possibilidade de controlar a água. Tem 1 ano e oito meses, cabelos cacheados que lhe dão uma aparência de anjo barroco e uns olhos arregalados. Com olheiras, Catarina é um bebê com olheiras, embora durma bem e muito. De repente, ela enrijeceu o corpo e deu um grito: “A menina…. A menina…. Quebrou”.

Era um grito de horror. O primeiro que eu ouvia dela. Animação, manha, dor física, tudo isso eu já tinha ouvido de sua boca bonita. Aquele era um grito diferente. Não parecia um tom que se pudesse esperar de alguém que ainda precisava se esforçar para falar frases completas. Catarina estava aterrorizada. “A menina… A menina…” Ela continuava repetindo. Olhei para os lados e demorei um pouco a enxergar o que ela tinha visto em meio à tanta gente. Uma garota, de uns 10, 12 anos, talvez, com uma perna engessada. “Quebrou…” Catarina repetia. “A menina… quebrou.”

Ela não olhava para mim, como costuma fazer quando espera que eu esclareça alguma novidade do mundo. Era mais uma denúncia. Pelo resto da festa, ela gritou a mesma frase, no mesmo tom aterrorizado, sempre que a menina quebrada passava por perto. Nos aproximamos da garota, para que Catarina pudesse ver que ela parecia bem, e que os amigos se divertiam escrevendo e desenhando coisas no gesso, mas nada parecia diminuir o seu horror. Os adultos próximos tentaram explicar a ela que era algo passageiro. Mas ela não acreditava. Naquele sábado de janeiro Catarina descobriu que as pessoas quebravam.

Eu a peguei, olhei bem para ela, olho no olho, e tentei usar minha suposta credibilidade de madrinha: “A menina caiu, a perna quebrou, agora a perna está colando, e depois ela vai voltar a ser como antes”. Catarina me olhou com os olhos escancarados, e eu tive a certeza de que ela não acreditava. Ficamos nos encarando, em silêncio, e ela deve ter visto um pouco de vergonha no assoalho dos meus olhos. Era a primeira vez que eu mentia pra ela. E dali em diante, ela talvez intuísse, as mentiras não cessariam. Naquela noite, depois da festa, fui dormir envergonhada.

O que eu poderia dizer a você, Catarina? A verdade? A verdade você já sabia, você tinha acabado de descobrir. As pessoas quebram. Até as meninas quebram. E, se as meninas quebram, você também pode quebrar. E vai, Catarina. Vai quebrar. Talvez não a perna, mas outras partes de você. Membros invisíveis podem fraturar em tantos pedaços quanto uma perna ou um braço. E doer muito mais. E doem mais quando são outros que quebram você, às vezes pelas suas costas, em outras fazendo um afago, em geral contando mentiras ou inventando verdades. Gente cheia de medo, Catarina, que tem tanto pavor de quebrar, que quebram outros para manter a ilusão de que são indestrutíveis e podem controlar o curso da vida. E dão nomes mais palatáveis para a inveja e para o ódio que os queima. Mas à noite, Catarina, à noite, eles sabem.

E, Catarina, você tem toda a razão de duvidar. Depois de quebrar, nunca mais voltamos a ser como antes. Haverá sempre uma marca que será tão você quanto o tanto de você que ainda não quebrou. Viver, Catarina, é rearranjar nossos cacos e dar sentido aos nossos pedaços, os novos e os velhos, já que não existe a possibilidade de colar o que foi quebrado e continuar como era antes. E isso é mais difícil do que aprender a andar e a falar. Isso é mais difícil do que qualquer uma das grandes aventuras contadas em livros e filmes. Isso é mais difícil do que qualquer outra coisa que você fará.

Existe gente, Catarina, que não consegue dar sentido, ou acha que os farelos de sentido que consegue escavar das pedras são insuficientes para justificar uma vida humana, e quebra. Quebra por inteiro. Estes você precisa respeitar, porque sofrem de delicadeza. E existe gente, Catarina, que só é capaz de dar um sentido bem pequenino, um sentido de papel, que pode ser derrubado mesmo com uma brisa. E essa brisa, Catarina, não pode ser soprada pela sua boca. Ser forte, Catarina, não é quebrar os outros, mas saber-se quebrado. É ser capaz de cuidar de seus barcos de papel – e também dos barcos dos outros – não como uma criança que os imagina poderosos, de aço. Mas sabendo que são de papel e que podem afundar de repente.

Não, acho que eu não poderia ter dito isso a você, Catarina. Não naquela noite, não agora. Ao lhe assegurar, cheia de autoridade de adulto, que tudo estava bem com a menina quebrada, com qualquer e com todas as meninas quebradas, o que eu dei a você foi um vislumbre da minha abissal fragilidade. Esta, Catarina, é uma verdade entre as tantas mentiras que lhe contei, ao tentar fazer com que acreditasse que eu seria capaz de proteger você. Vai chegar um momento, se é que já não houve, em que você vai olhar para todos nós, seus pais, seus “dindos”, seus avós e tios, e vai perceber que nós todos vivemos em cacos. E eu espero que você possa nos amar mais por isso.

Essa conversa, Catarina, está apenas adiada. Talvez, daqui a alguns anos, você precise me perguntar como se faz para viver quebrada. Ou por que vale a pena viver, mesmo se sabendo quebrada. E eu vou lhe contar uma história. Ela aconteceu alguns dias depois daquela festa em que você descobriu que até as meninas quebram. Nós estávamos na fila do caixa do supermercado perto de casa, com uma cesta cheia de compras, e havia um homem atrás de nós. Era um homem vestido com roupas velhas e sujas, parte delas quase farrapos. E ele cheirava mal. Poderia ser alguém que dorme na rua, ou alguém que se perdeu na rua por uns tempos. Ficamos com medo de que o segurança do supermercado tentasse tirá-lo dali, ou que a caixa o tratasse com rispidez, ou que as outras pessoas na fila começassem a demonstrar seu desconforto, como sabemos que acontece e que jamais poderia acontecer. Enquanto pensávamos nisso, ele nos abordou. E pediu, com toda a educação, mas com os olhos dolorosamente baixos: “Por favor, será que eu poderia passar na frente, porque tenho pouca coisa?”.

Quando lhe demos passagem, vimos que o homem não tinha pouca coisa. Ele só tinha uma. Sabe o que era, Catarina?

Um sabonete. Era o que havia entre as mãos de unhas compridas e sujas, junto com algumas moedas e notas amassadas, como em geral são as notas que valem pouco. Aquele homem, que parecia ter perdido quase tudo, aquele homem talvez ainda mais quebrado que a maioria, porque tinha perdido também a possibilidade de esconder suas fraturas, o que ele fez? Quando conseguiu juntar uns trocados, o que ele escolheu comprar? Um sabonete.

Catarina, talvez um dia, daqui a alguns anos, você volte a me olhar nos olhos e a dizer: “A menina… quebrou”. Ou: “Eu… quebrei”. E talvez você me pergunte como continuar ou por que continuar, mesmo quebrada. E eu vou poder lhe dizer, Catarina, pelo menos uma verdade: “Por causa do sabonete”.

(Publicado na Revista Época em 28/01/2013)

 

Perdão, Aaron Swartz

A morte de um gênio da internet, aos 26 anos, é um marco trágico do nosso tempo. É hora de pensar sobre nossas ações – ou omissões

– Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.

Aaron Swartz tinha 22 anos quando explicou por que fazia o que fazia, era quem era. Aos 26, ele está morto. Foi encontrado enforcado em seu apartamento de Nova York na sexta-feira, 11 de janeiro. Provável suicídio. Talvez a maioria não o conheça, mas Aaron está presente na nossa vida cotidiana há bastante tempo. Desde os 14 anos, ele trabalha criando ferramentas, programas e organizações na internet. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Isso significa que, aos 26 anos, Aaron já tinha trabalhado praticamente metade da sua vida. E, nesta metade ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento que abre esta coluna, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.

E queria mudar o mundo como alguém da sua geração vislumbra mudar o mundo: dando acesso livre ao conhecimento acumulado da humanidade pela internet. E também usando a rede para fiscalizar o poder e conquistar avanços nas políticas públicas. Movido por esse desejo, Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: “A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si”.

Indignado com a passividade dos acadêmicos diante do controle da informação por grandes corporações, ele conclamava a todos para lutar juntos contra o que chamava de “privatização do conhecimento”. Baixou milhões de arquivos do judiciário americano, cujo acesso era cobrado, apesar de os documentos serem públicos. Chegou a ser investigado pelo FBI, mas sem consequências jurídicas. Em 2011, porém, Aaron foi alcançado.

Em alguns dias, ele baixou 4,8 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, cujo acesso é pago pelas universidades e instituições. Aaron usou a rede do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology) para acessar o banco de dados, fazendo download de muitos documentos ao mesmo tempo, o que era – é importante ressaltar – permitido pelo sistema. Não se sabe o que ele faria com os documentos, possivelmente dar-lhes livre acesso. Mas, se era esta a intenção, Aaron não chegou a concretizá-la. Ao ser flagrado, ele assegurou que não pretendia lucrar com o ato e devolveu os arquivos copiados para o JSTOR, que extinguiu a ação judicial no plano civil.

Havia, porém, um processo penal: Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. “Roubo é roubo, não interessa se você usa um computador ou um pé-de-cabra, e se você rouba documentos, dados ou dólares”, afirmou a procuradora dos Estados Unidos em Massachusetts, Carmen Ortiz (United States Attorney). Aaron seria julgado em abril. E, se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares.

Aaron Swartz morreu antes, aos 26 anos. E, como disse Kevin Poulsen, na Wired: “O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida”. Na The Economist, ele assim foi descrito: “Chamar Aaron Swartz de talentoso seria pouco. No que se refere à internet, ele era o talento”. Susan Crawford, que foi conselheira de tecnologia do governo de Barack Obama, afirmou, como conta John Schwartz, no The New York Times: “Aaron construiu coisas novas e surpreendentes, que mudaram o fluxo da informação ao redor do mundo”. E, acrescentou: “Ele era um prodígio complicado”.

Li em vários artigos que Aaron seria depressivo. Em alguns textos, a suposta depressão foi citada como causa de sua decisão, como se a doença pudesse estar isolada – e não associada aos possíveis abusos cometidos contra ele no curso do processo judicial. É evidente que qualquer pessoa, e especialmente se ela for saudável, sofreria com a perspectiva de passar as próximas três décadas na cadeia – mais ainda se isso significasse um tempo superior à toda a sua vida até então. Esta é uma possibilidade capaz de abater até o mais autoconfiante e otimista entre nós, o que não equivale a dizer que todos lidariam com esse pesadelo da mesma forma. Se é perigoso encontrar um culpado para uma escolha tão complexa quanto o suicídio, também é perigoso quando a depressão é vista como algo apartado da vida vivida – e a patologia é colocada a serviço da simplificação. Se as doenças falam do indivíduo, falam também do seu mundo e de seu momento histórico. (leia mais sobre a trajetória de Aaron aqui e aqui.)

Se Aaron Swartz encerrou a própria vida, esta foi a sua decisão. Tornar-se adulto é também bancar as suas escolhas – e, neste sentido, estar só. Digo isso para que a nossa dor não esvazie de protagonismo o último ato de Aaron, o que equivaleria a desrespeitá-lo. Aaron é responsável por sua escolha, por mais que ela possa ser lamentada. E só ele poderia afirmar por que a fez.

Isso não significa, porém, que vários atores do caso judicial que envenenou a vida de Aaron nos últimos dois anos, com aparentes excessos, não precisem também assumir responsabilidades e responder por suas respectivas escolhas.Um dos mentores de Aaron, Larry Lessig (escritor, professor de Direito da Universidade de Harvard, cofundador do Creative Commons) afirmou que ele tinha errado, mas considerou a acusação e a possível punição uma resposta desproporcional ao ato. Logo após a morte de Aaron, escreveu: “(Ele) partiu hoje, levado ao limite pelo que uma sociedade decente só poderia chamar de bullying”.

Colunistas como Glenn Greenwald, do Guardian, acreditam que o processo penal era uma resposta do governo dos Estados Unidos contra o seu ativismo libertário: “Swartz foi destruído por um sistema de ‘justiça’ que dá proteção integral aos criminosos mais ilustres – desde que sejam membros dos grupos mais poderosos do país, ou úteis para estes –, mas que pune sem piedade e com dureza incomparável quem não tem poder e, acima de tudo, aqueles que desafiam o poder”. Em declaração pública, a família afirmou: “A morte de Aaron não é apenas uma tragédia pessoal. É produto de um sistema de justiça criminal repleto de intimidações”. A família também responsabilizou o MIT pelo desfecho.

Em comunicado, o presidente do MIT, L. Rafael Reif, anunciou a abertura de um inquérito interno para apurar a responsabilidade da instituição nos acontecimentos que levaram à morte de Aaron. Reif escreveu: “Eu e todos do MIT estamos extremamente tristes pela morte deste jovem promissor que tocou a vida de tantos. Me dói pensar que o MIT tenha tido algum papel na série de eventos que terminaram em tragédia. (…) Agora é o momento de todos os envolvidos refletirem sobre suas ações, e isso inclui todos nós do MIT”.

É tarde para o MIT, é tarde para nós. Mas, ainda assim, necessário. É importante pensar sobre o significado da tragédia de Aaron Swartz. E, para começar, só o fato de ela poder significar algo para todos, sendo ele um jovem americano encontrado morto num apartamento em Nova York, é bastante revelador desse mundo novo que Aaron ajudava a construir. Esse mundo que nos une em rede, simultaneamente, que faz o longe ficar perto. Nesse contexto, a tragédia de Aaron Schwartz não é apenas um episódio, mas o marco de um momento histórico específico. Nele, diferentes forças econômicas, políticas e culturais se batem para impor ou derrubar barreiras no acesso ao conhecimento na internet. E este é, junto com a questão socioambiental, o maior debate atual. E é ele que está moldando nosso futuro.

Como disse Tatiana de Mello Dias, em seu blog no Estadão, “poucas pessoas traduziram tão bem a época em que nós estamos vivemos quanto Aaron Swartz”. Isso faz com que possamos pensar que sua morte é também, simbolicamente, um fracasso da geração a qual pertenço. Essa geração que testemunhou o nascimento da internet, que está decidindo – na maioria dos casos por omissão – como o conhecimento vai circular dentro dela e que, por ter crescido num mundo sem ela, nem chega a compreender totalmente o que está em jogo. E por isso deixa a geração de Aaron tão só.

Obviamente sou capaz de perceber os poderosos interesses envolvidos nas decisões relacionadas à internet, boa parte deles conduzidos também por gente da geração a qual pertenço. Mas me refiro aqui à passividade de muitos, no exercício da cidadania, diante de um dos debates cruciais do nosso tempo. E aqui vale uma observação: quando se diz que a juventude atual é alienada, que não trava lutas políticas como seus pais e avós, não é também deixar de enxergar o que se passa na internet, a “rua/praça” de uma série de movimentos políticos levados adiante pelos mais jovens? Já não é um tanto estúpido pensar em mundo real/mundo virtual como oposições? Criticar o “ativismo de sofá” dos mais jovens, menosprezando as ações na rede, não seria má fé ou ignorância? Talvez, como pais e adultos desse tempo, parte de nós tenha apenas medo e vergonha daquilo que não compreende. E, em vez de tentar compreender, num comportamento humano tão triste quanto clássico, desqualifica e rechaça. Afinal, literalmente, a internet tirou o chão que acreditávamos existir debaixo dos nossos trêmulos pés. Ou, pelo menos, nos mostrou que não havia nenhum.

Aaron não era apenas um gênio da internet, ainda que essa palavra “gênio” já tenha sido tão abusada. Talvez o maior ato político de Aaron tenha sido o que fez com seu talento. Ele usou-o para lutar pelo acesso livre ao conhecimento, via internet. Isso, em si, já o tornaria perigoso para muitos. Mas há algo que pode ter soado ainda mais imperdoável: Aaron não queria ganhar dinheiro com o seu talento. Ele não era aquilo que as crianças são ensinadas a admirar: um jovem gênio milionário da internet, como Mark Zuckerberg, o criador do Facebook. Aaron Swartz era um jovem gênio que não queria ser milionário. E, convenhamos, nada pode ser mais subversivo do que isso.

Ao ler sobre a morte de Aaron Swartz, lembrei de dois versos. Ao fim ou diante dele, apesar de todos os argumentos, é só a poesia que dá conta da tragédia. Um é do eternamente jovem Rimbaud (1854-1891): “Por delicadeza, perdi minha vida”. E o outro foi escrito por um Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) já velho: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer”.

Quando lemos o que Aaron Swartz escreveu, ouvimos o que disse, ele que acreditava tanto em mudar o mundo, é difícil não pensar: por que ele desistiu de nós, ele que acreditava tanto? Que mundo é esse que criamos, onde alguém como Aaron Swartz acredita não caber?

Então, é isso. Ele nos deixou sozinhos no mundo que legamos à sua geração. Entre os tantos feitos admiráveis deixados por Aaron em sua curta trajetória, ao morrer ele deixou também um outro legado: a denúncia do nosso fracasso.

Perdão, Aaron Swartz.

(Publicado na Revista Época em 21/01/2013)

 

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