Entre os muros da outra escola

Está na hora de enfrentar a violência também no ensino privado

Eu a conheci anos atrás. Conquistou-me de imediato. É cada vez mais raro encontrar uma criança bem educada, que diz por favor, obrigada e com licença. Que pede desculpas se esbarra em você sem querer. Que dá oi e dá tchau. Que pergunta se você está bem. Ela é assim. É agora, aos 11, quase 12 anos. Era aos 5, quando nos encontramos. Gostava de barbie e de desenhos animados, mas vez ou outra assistia a algum filme do expressionismo alemão com interesse. Ouvia Palavra Cantada e Chico Buarque com igual deleite. Éramos ambas – e somos até hoje – fãs quase fanáticas dos livros do Harry Potter. Filha de mãe escritora, pai economista, ela tinha, ao mesmo tempo, estímulo para voos intelectuais mais largos e respeito por seus gostos infantis, o que sempre me pareceu um jeito sábio de educar. Para mim, ela sempre foi impossível de não se gostar.

É triste não poder aqui colocar o nome desta menina tão especial. Mas seu nome não será revelado para protegê-la de seus colegas, precaução por si só chocante. Na semana passada eu soube por sua mãe que ela deixaria a escola que cursa há anos. Foi sendo expulsa pelos colegas, sem que os professores nada fizessem. Estuda numa das escolas de elite de São Paulo. Bom projeto pedagógico, turmas pequenas, inclusão de crianças com necessidades especiais. Tudo de bom e de moderno, aparentemente. O que, então, aconteceu, para que uma boa aluna, uma garota afetuosa e bem educada, tenha de partir porque a escola se tornou um filme de horror?

Muito se escreve e se fala sobre a violência nas escolas públicas. E o tema é sério e relevante. Mas está na hora de prestarmos mais atenção no que ocorre na outra ponta da desigualdade social refletida no sistema de ensino brasileiro: as escolas privadas de elite. Diante da piora progressiva da qualidade da escola pública, a classe média vem esfolando o orçamento para matricular seus filhos em escolas privadas, com a convicção de que assim têm mais chance em um mundo competitivo.

Por que a classe média não brigou – e não briga – pela qualidade do ensino público em vez de se bandear para a educação privada? Eu mesma cursei o ensino médio em escola pública (uma péssima escola pública, diga-se), mas tomei o mesmo caminho de boa parte dos pais de classe média ao matricular minha filha: esfalfei-me durante 11 anos para pagar um dos colégios privados mais caros de Porto Alegre. Por que não fui brigar por qualidade de ensino dentro da escola pública? Por amor pela minha filha, sem dúvida, mas também por empatia de menos pelo destino dos filhos dos mais pobres, provavelmente. Na hora de escolher, optei por resolver o problema “dos meus”.

Muitas vezes, eu deixava de pagar todas as contas para pagar a escola. Nunca atrasei o colégio para que ela não sofresse constrangimento, nem a luz para não ficarmos no escuro. O restante das despesas atrasei todas durante boa parte desse período, o que me rendia noites recorrentes de insônia e humilhações sem fim diante de gerentes de banco. Mesmo assim, nunca me passou pela cabeça matriculá-la numa escola pública, tão certa eu estava de que fazia o melhor – para a minha filha.

O péssimo desempenho do Estado na educação e a falta de cidadania de gente como eu permitiu que essa situação se perpetuasse até níveis inacreditáveis. O resultado estamos amargando faz tempo, mas não tenho dúvida de que será muito pior em sentidos que ainda não alcançamos por inteiro. As escolas talvez sejam as maiores reprodutoras de desigualdade. Não apenas na questão da qualidade, que determina destinos. Mas no convívio cotidiano, no (não) exercício da solidariedade e do respeito às diferenças. Seja nas públicas ou nas privadas, o que encontramos é uma convivência entre iguais. Nossos filhos não conhecem a diferença, não são beneficiados pela riqueza da diversidade. Não conjugam a tolerância. Quando confrontados com a diferença – e não apenas a socioeconômica –, expulsam-na.

Foi o que aconteceu com a menina desta história. Tempos atrás, ela ligou para a mãe no recreio, implorando para que fosse buscá-la. “Eu não suporto mais ficar aqui”, disse. Suava muito, desesperava-se. Sua mãe respondeu que ela precisava permanecer. E ela está resistindo como pode até o final do ano, para então trocar de escola.

Liguei para minha pequena amiga para saber o que estava acontecendo e propus uma entrevista. Em off, para que ela não fosse mais trucidada na escola do que já é. Ela topou. E aqui está a transcrição literal da nossa conversa, para que seu testemunho possa nos ajudar a pensarmos juntos num problema que é de todos.

Eu: O que aconteceu?
Ela: Eu não sou aceita. Meus colegas me acham meio estranha. Acho que me acham idiota.

Eu: Mas por quê?
Ela: Eu não gosto das conversas deles, me sinto mal. Acho que tenho um jeito diferente de pensar que eles acham bobo.

Eu: Mas que jeito é este?
Ela: Eles gostam de ficar ridicularizando os outros. Eu não quero fazer isso.

Eu: Mas quem eles ridicularizam?
Ela: Nossos colegas que têm dificuldade (portadores de necessidades especiais). Eles às vezes precisam fazer provas mais fáceis. Aí chamam eles de burros, de idiotas. Eu acho isso muito injusto. Queria poder fazer alguma coisa, mas eu não sei o que fazer. E os professores não fazem nada.

Eu: Quem mais eles ridicularizam?
Ela: Gente que não usa roupa de marca, que não gosta do que eles gostam.

Eu: E do que eles gostam?
Ela: De funk, por exemplo. Adoram funk. Eu não gosto de funk, daquelas letras. É muito sem conteúdo. Mas gosto da Hannah Montana e da Rihanna. Eles também gostam daqueles programas de TV que ridicularizam as pessoas. Acham que isso é engraçado. E ficam falando das marcas das roupas que usam. Ah, essa calça é da marca tal. Esses dias uma menina disse para a outra: “Ah, o seu pai é milionário”. Aí essa menina respondeu: “Mi não. Bi-lionário”. Pensei: “E você é bi-polar”. Pensei, mas não disse.

Eu: E o que começaram a fazer contigo?
Ela: Eles não falam comigo. Eu pergunto, não respondem. Sabe, teve uma festa, uma balada, mesmo, que convidaram todo mundo. Eu fui uma das poucas que não fui convidada. Aí só ficavam falando nesta festa. E eu não sei por que eu não fui convidada. Eu nunca fiz nada de ruim para nenhum deles. Não entendo por que não gostam de mim. Minha melhor amiga também começou a me ignorar. Eu chego, ela sai de perto. Ela começou a ficar popular na escola.

Eu: E o que é ser popular na escola?
Ela: É usar roupa de marca e sair pisando em todo mundo.

Eu: O que mais te faz sofrer?
Ela: Ficar sozinha no recreio. Eu queria brincar, conversar, mas não tenho com quem. Só eu e o menino com problema mental ficamos sozinhos no recreio. É muito ruim ficar sozinha no recreio. Eu fico muito triste.

Eu: E por que você não fica com o menino com problema mental?
Ela: Porque ele é menino. Eu não tenho muito o que conversar com menino. Mas eu queria poder fazer alguma coisa. Porque ele fica lá sozinho, desenhando. E eu sei como é ruim ficar sozinha no recreio.

Eu: Por que você acha que seus colegas são assim?
Ela: Eles são que nem os pais deles. Nessa coisa das marcas, do dinheiro. Mas quem cria meus colegas, mesmo, não são os pais. Eles nunca ficam com eles. Eles estão trabalhando ou em jantares. Meus colegas são criados pelas babás. Elas são as mães de verdade deles.

Eu: E como eles tratam os professores?
Ela: Essa minha ex-amiga chama a coordenadora de “idiota” e de “imbecil” na frente dela. Não é pelas costas, é na frente. Ela acha que o pai vai pagar para ela passar de ano. Numa excursão, teve um colega que disse para o monitor: “Essa sua profissão é uma m…”. Eles são assim. Acham que vão herdar o dinheiro dos pais. Mas eu tenho impressão que vão gastar todo o dinheiro bem rápido. E aí não sei como vão fazer para trabalhar.

Eu: Você chora muito?
Ela: Antes eu chorava. Teve um dia que pedi para minha mãe me tirar de lá. Liguei para minha mãe no recreio. Não sei por que eu fiquei assim tão mal. Eu suava. Sabe, fiquei desesperada. Mas agora aprendi a lidar com isso. Estou administrando melhor a situação. Levo um livro para o recreio. Agora estou lendo “Coraline e o mundo secreto”. Você viu o filme? Foi baseado no livro.

Eu: E quando você decidiu mudar de escola?
Ela: Quando fui sentar ao lado de um menino e ele disse: “Desinfeta daí”. Eu fiquei sentada onde eu estava. Mas sei que ele não diria isso para outra menina. Acho que falou para mim porque eu não fui convidada para aquela festa. Eu estava aguentando, mas aí foi a gota d’água.

Eu: Você acha que no novo colégio vai ser diferente?
Ela: É uma escola maior. Tem mais gente. Então, deve ter alguém mais parecido comigo, né?

Espero que sim. Desliguei o telefone com medo dos pequenos monstros que conseguem expulsar de seu mundinho alguém tão doce quanto a minha amiga. O que eles vão fazer com o mundo maior quando crescerem? Que tipo de elite nossas escolas estão formando, para além de se dar bem no vestibular e no mercado de trabalho? O cotidiano nas escolas privadas do país pode ajudar a explicar o que acontece hoje nas esferas de poder da vida brasileira.

A crueldade infantil não é novidade. O massacre daqueles que usam óculos, são gordos ou diferentes de alguma maneira é um clássico. Bullying é a palavra inglesa para o abuso físico e psicológico cometido contra indivíduos e grupos mais fracos. Nos últimos anos, tem crescido o número de reportagens na imprensa sobre o bullying na escola. Parece-me que há algo novo neste cenário. E bem mais perverso do que as formas habituais de maldade infantil.

Minha amiga foi sendo expulsa porque está sozinha. Sua esperança na nova escola é conseguir formar um grupo com valores mais semelhantes aos dela para resistir. Para, de alguma maneira, sentir-se parte, para então ter alguma possibilidade de interlocução com outros modos de existir. O modelo brasileiro de ensino – resultado de uma das maiores desigualdades do planeta e do declínio da escola pública – caracteriza-se por um mundo escolar cada vez mais igual dentro dos muros. Nos respectivos guetos, o espaço para toda a diferença parece ter sido suprimido.

Estou generalizando? Pode ser. Mas apenas converse com um professor de escola privada de elite para que ele conte suas peripécias cotidianas com estes mais iguais que os outros. Já tenho sido vítima destas crianças sem limites, sem cultura e sem educação que me atropelam nos corredores dos shoppings e restaurantes, que gritam suas exigências e fazem cenas públicas, sem que seus pais tomem qualquer atitude além de prometer algo em troca de sua colaboração.

Acho que está passando da hora de entender que há um tipo de violência sendo exercido e perpetuado nas escolas privadas de elite. E que essa violência é refletida também lá, nas escolas de periferia, onde a agressão é armada. As violências destes mundos escolares só aparentemente antagônicos se retroalimentam. Uma existe também por causa da outra. Há uma infância supostamente protegida e com todos os acessos abertos ao conhecimento e ao melhor que o dinheiro pode comprar – e outra desprotegida de tudo, que só recebe o pior. Separadas por grades, muros e cercas eletrificadas, uma desconhece a outra. Muitas vezes vão se cruzar mais tarde, pela violência, em alguma esquina da cidade. E são os pais e as mães destes meninos desprotegidos que alguns dos protegidos desrespeitam nos corredores de suas escolas iluminadas, ao encontrarem-nos limpando o chão ou exercendo serviços que consideram, como disse o menino na excursão, “uma m.”.

A escola deveria promover a intersecção dos mundos. É nos bancos escolares que as diferentes realidades – não só a socioeconômica, mas também ela – deveriam se cruzar e dialogar. É na desigualdade de ideias, de culturas e de visões de mundo que se aprende e se avança. Esta desigualdade do bem, porém, foi banida do modelo de ensino. Em vez disso, a escola transformou-se em reprodutora da desigualdade perversa: a socioeconômica, com todos os seus (des)valores correlatos. A escola é resultado da desigualdade socioeconômica e de uma sucessão de políticas desastrosas de ensino. Mas, se é criatura deste mundo, é também criadora, ao reproduzi-lo. Ao transformar-se numa linha de produção da desigualdade que beneficia os mais iguais de sempre, deixa de educar. Este, me parece, é o dilema atual. Ou, pelo menos, um dos grandes.

A ilusão dos pais de filhos em escolas privadas é de que, ao colocá-los lá, garantem a sua proteção. Seus filhos não perdem nada. Quem perde são os filhos dos outros, que não conseguem pagar a mensalidade. Engano. Perdemos todos. A eliminação da diversidade trará consequências mais perversas do que me parece que pais e autoridades têm percebido. Sem diferença não há diálogo. É possível educar sem diversidade? Há aprendizado de fato sem dissonância? Duvido.

Nas escolas de elite, os estudantes ameaçam professores e funcionários não com pistolas, mas com outro tipo de arma: “Sou eu que pago seu salário!” ou “Meu pai vai mandar te demitir!”. Quantos professores já não ouviram frases como essa ao tentar impor limites na sala de aula para esses projetos de déspotas? Já testemunhei professores esvaindo-se em lágrimas e jurando mudar de profissão. E não davam aulas em escolas com esgoto a céu aberto.

“Estas crianças são criadas pelas babás”, disse a mãe da minha amiga. “Ou seja: elas já mandam desde pequenas naquelas que deveriam ser uma autoridade. Se elas podem demitir a pessoa que está no lugar de autoridade, o que se pode esperar?” Ela tem razão. E é bom começarmos a refletir com mais seriedade sobre esse fenômeno contemporâneo.

Minha filha sofreu muito na escola privada. Ela não tinha tênis nem roupas de grife, entre outros defeitos inaceitáveis. Eu disse a ela que o mundo era duro e que ela precisava enfrentar esse tipo de gente desde sempre. Ela enfrentou. Na vigésima vez que o filhinho de papai ridicularizou a sua roupa, ela bateu no menino. Foi uma boa saída? Claro que não. Mas foi o que ela conseguiu fazer diante da minha surdez.

O mais curioso, mas nem tanto, é que em vez de minha filha ser punida por ter agredido o colega, foi parabenizada pelos professores. Um a um eles vinham cumprimentá-la e dar parabéns. De algum modo, ela vingava a humilhação cotidiana de todos eles. Mas seria esta uma boa pedagogia? Estaria esta resposta à altura de alguém que estava ali para ensinar? O episódio não teria sido uma boa oportunidade para discutir, refletir e aprender? Parece-me que também os professores, por diversas razões – e também pela humilhação cotidiana –, não conseguiam estar no lugar que deveriam, não era possível ali a dialética entre mestre e discípulo.

“Talvez tudo o que esses garotos sabem dos pais é que são ricos. Criados por babás, tentam manter esse traço, esse significante do rico/pobre para manter em si os pais que de certo modo não existem”, comentou minha filha, hoje adulta, depois de ler este texto. “Não estou justificando”, disse. “Só pensando.” Seu comentário me fez perceber que estas crianças e adolescentes que fazem sofrer também devem sofrer muito. Afinal, eles não são monstrinhos, como tendemos a pensar. Se fossem, seria mais fácil. São gente. E gente sofre.

Desejo sorte à minha pequena amiga na nova escola. A melhor resistência é continuar sendo ela mesma. Mas temo pela sorte de todos nós no futuro próximo se não enfrentarmos a violência não apenas nas escolas da periferia, mas nos prédios imponentes e caros do lado privilegiado do mundo. Uma violência que começa não fora, mas dentro de casa, tendo os pais como cúmplices – quando não como exemplos.

(Publicado na Revista Época em 28/09/2009)

 

Por que as pessoas falam tanto?

Vivemos num mundo de surdos sem deficiência auditiva

Uma vez passei dez dias num retiro de meditação vipássana, no interior do Rio de Janeiro, para fazer uma reportagem para ÉPOCA. Havia muitas regras. Uma delas era o silêncio. Por dez dias era proibido falar. Também devíamos evitar olhar para as outras pessoas. O objetivo era silenciar a mente até que não houvesse nenhum ruído também dentro de nós. Foi uma experiência fantástica, que me mudou para sempre. Nunca antes estive tão em mim. E nunca depois voltei a estar.

O silêncio e um progressivo mergulho interno, em vez de me alienar do mundo, me conectaram a ele de um modo até então inédito para mim. Eu sentia cada segundo, por que eles demoravam a passar. Percebia o vento e as nuances das cores do céu e das folhas das árvores em detalhes. Olhava, cheirava, ouvia e tocava o mundo como se tudo fosse novo. Cada centímetro de terra era capaz de me ocupar por minutos. Sem palavras, a realidade me alcançava com mais força. Finalmente eu não apenas compreendia, mas vivia a poesia de Alberto Caeiro: “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”.

Antes que alguém tenha ideias, experimentei tudo isso sem nenhuma droga. Nenhuma mesmo. Não podíamos tomar álcool, fumar ou ingerir qualquer medicamento, nem mesmo aspirina. Minha droga era a lucidez. Naqueles dez dias, ouvi com mais clareza a mim mesma. E passei a escutar melhor o mundo em que vivia. Senti que finalmente estava no mundo. Eu era.

No décimo dia, voltamos a falar. O retiro acabaria no dia seguinte e precisávamos nos preparar para retornar a uma realidade cotidiana de ruídos e demandas excessivas. Lembro que eu não queria falar. Fiquei assustada quando todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Percebi que a maioria do que se dizia nunca deveria ter sido dito. Sobrava.

Uma parte eram fofocas que haviam sido guardadas por dias. E que poderiam ter ficado impronunciadas para sempre. Percebi, principalmente, que depois de dez dias de silêncio muitas de nós não queriam ouvir. Só falar. Poucas eram aquelas que realmente desejavam escutar a experiência da outra, a voz da outra. A maioria só queria contar da sua. Não tinham sentido falta de outras vozes, apenas do som da sua. Dez dias de silêncio não tinham sido suficientes para acabar com nossa surdez à voz alheia.

A reportagem foi publicada, com o título de “O inimigo sou eu”. Eu segui, guardando em parte o que aprendi lá. E tenho sentido falta daqueles dez dias de silêncio, agora que aumenta em níveis quase insuportáveis a poluição sonora dentro e fora de mim.

Acho que nunca escutamos tão pouco. E talvez por isso nunca fomos tão solitários. Quando faço palestras sobre reportagem, os estudantes de jornalismo costumam perguntar o que devem fazer para se tornarem bons repórteres. Minha resposta é sempre a mesma: escutem. Acredito que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta. Não apenas para ser um bom jornalista, mas para ser uma boa pessoa. Escutar é mais do que ouvir. Como repórter e como gente esforço-me para ser uma boa “escutadeira”.

É a escuta que nos leva ao mundo. E é a escuta que nos leva ao outro. Quando não escutamos, nos tornamos solitários, mesmo que estejamos no meio de uma festa, falando sem parar para um monte de gente. Condenamo-nos não à solidão necessária para elaborar a vida, mas à solidão que massacra, por que não faz conexão com nada. Não escutamos nem somos escutados. Somos planetas fechados em si mesmos. Suspeito que essa é uma época de tantos solitários em grande parte pela dificuldade de escutar.

Basta observar. As pessoas não querem escutar, só querem falar. Depois de muita observação, classifiquei cinco tipos básicos de surdos. Há aqueles que só falam e pronto. Emendam um assunto no outro. Fico prestando atenção para detectar quando respiram e não consigo. Acho que inventaram um jeito de falar sem respirar. E ganhariam mais dinheiro se entrassem em algum concurso de tempo sem oxigênio embaixo d’água. Aí, pelo menos, ficariam quietos.

Existem aqueles que falam e falam e, de repente, percebem que deveriam perguntar alguma coisa a você, por educação. Perguntam. Mas quando você está abrindo a boca para responder, já enveredaram para mais algum aspecto sobre o único tema fascinante que conhecem: eles mesmos.

Há aqueles que fingem ouvir o que você está dizendo. Você consegue responder. Mas, quando coloca o primeiro ponto final, percebe que não escutaram uma palavra. De imediato, eles retomam do ponto em que haviam parado. E não há nenhuma conexão entre o que você acabou de dizer e o que eles começaram a falar.

Existem aqueles que ouvem o que você diz, mas apenas para mostrar em seguida que já haviam pensado nisso ou que sabem mais do que você, o que é só mais um jeito de não escutar.

Há ainda os que só ouvem o que você está dizendo para rapidamente reagir. Enquanto você fala, eles estão vasculhando o cérebro em busca de argumentos para demolir os seus e vencer a discussão. Gostam de ganhar. Para eles, qualquer conversa é um jogo em que devem sempre sair vitoriosos. E o outro, de preferência, massacrado. Só conhecem uma verdade, a sua. E não aprendem nada, por acreditarem que ninguém está à altura de lhes ensinar algo.

É claro que há um mix das várias espécies de surdos. E devem existir outras modalidades que você deve ter detectado, e eu não. O fato é que vivemos num mundo de surdos sem deficiência auditiva. E uma boa parte deles se queixa de solidão.

É um mundo de faladores compulsivos o nosso. Compulsivos e auto-referentes. Não conheço estatísticas sobre isso, mas eu chutaria, por baixo, que mais da metade das pessoas só falam sobre si mesmas. Seu mundo torna-se, portanto, muito restrito. E muito chato. Por mais fascinantes que possamos ser, não é o suficiente para preencher o assunto de uma vida inteira.

Num ótimo artigo, intitulado Escutatória, o escritor Rubem Alves diz: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular”.

Quando não escutamos o mundo do outro, não aprendemos nada. Acontece com o chefe que não consegue escutar de verdade o que seu subordinado tem a dizer. A priori ele já sabe – e já sabe mais. Assim como acontece com a mulher que não consegue escutar o companheiro. Ou o amigo que não é capaz de escutar você. E vice-versa.

Tornamo-nos muito sozinhos no gesto de não escutar. Em Revolutionary Road (Sam Mendes, 2008), traduzido para as telas de cinema do Brasil como “Foi apenas um sonho”, a cena final é a síntese dessa relação simbiótica entre surdez e solidão. Não a surdez causada pela deficiência auditiva, mas essa outra de que falamos, esta que é mais triste por ser escolha. Quem viu, não esqueceu. Quem não viu, pode pegar o dvd em qualquer locadora. Essa cena final vale por alguns milhares de palavras.

Sempre pensei muito sobre por que as pessoas falam tanto – e por que têm tanta dificuldade de escutar. Qual é a ameaça contida no silêncio? O que temem tanto ouvir se calarem a sua voz por um momento? Por que precisamos preencher nosso mundo – inclusive o interior – com tantos ruídos?

Acho que cada um de nós poderia parar alguns minutos e fazer a si mesmo estas perguntas.

Percebo também que há uma pressão para que nos tornemos falantes. Ser falante supostamente seria uma vantagem no mundo, especialmente no mundo do trabalho. Mesmo que você não diga nada de novo, mesmo que você repita o que o chefe disse com outras palavras. Mas falar, qualquer coisa, é marcar presença, é uma tentativa de garantir-se necessário. E ser quieto, calado, é visto como um tipo invisível de deficiência. Como se lhe faltasse algo, palavras. Mas será que as palavras estão ali, nessa falação desenfreada? Ou melhor, será que quem fala está realmente naquele discurso? Tenho dúvidas.

Por qualquer caminho que se possa pensar, me parece que o silêncio soa ameaçador. Em parte, pelo que ele pode dizer sobre nós. Enchemos nossa vida de barulho, da mesma forma que atulhamos nossos dias de tarefas, com medo do vazio. Tarefas em uma agenda cheia constituem outro tipo de ruído. E o vazio também é uma forma de silêncio.

Em rasgos de intolerância, achava que os falantes compulsivos eram apenas muito chatos e muito egocêntricos. Que as pessoas não escutavam – o silêncio e o outro – por prepotência. Mas acredito que é bem mais complicado que isso.

Há dois livros muito interessantes que pensam sobre a escuta. A Hermenêutica do Sujeito, de Michel Foucault (Martins Fontes), e Como Ouvir (Martins Fontes), um livrinho pequeno e precioso de Plutarco. Eles mostram que escutar é se arriscar ao novo, ao desconhecido. Na audição, mais do que em qualquer outro sentido, a alma encontra-se passiva em relação ao mundo exterior e exposta a todos os acontecimentos que dele lhe advêm e que podem surpreendê-la. Ao ouvir, nos arriscamos a sermos surpreendidos e abalados pelo que ouvimos, muito mais do que por qualquer objeto que possa nos ser apresentado pela visão e pelo tato.

Faz muito sentido. As pessoas não escutam porque escutar é se arriscar. É se abrir para a possibilidade do espanto. Escancarar-se para o mundo do outro – e também para o outro de si mesmo.

Escutar é talvez a capacidade mais fascinante do humano, por que nos dá a possibilidade de conexão. Não há conhecimento nem aprendizado sem escuta real. Fechar-se à escuta é condenar-se à solidão, é bater a porta ao novo, ao inesperado.

Escutar é também um profundo ato de amor. Em todas as suas encarnações. Amor de amigos, de pais e de filhos, de amantes. Nesse mundo em que o sexo está tão banalizado, como me disse um amigo, escutar o homem ou mulher que se ama pode ser um ato muito erótico. Quem sabe a gente não experimenta?

Escutar de verdade implica despir-se de todos os seus preconceitos, de suas verdades de pedra, de suas tantas certezas, para se colocar no lugar do outro. Seja o filho, o pai, o amigo, o amante. E até o chefe ou o subordinado. O que ele realmente está me dizendo?

Observe algumas conversas entre casais, famílias. Cada um está paralisado em suas certezas, convicto de sua visão de mundo. Não entendo por que se espantam que ao final não exista encontro, só mais desencontro. Quem só tem certezas não dialoga. Não precisa. Conversas são para quem duvida de suas certezas, para quem realmente está aberto para ouvir – e não para fingir que ouve. Diálogos honestos têm mais pontos de interrogação que pontos finais. E “não sei” é sempre uma boa resposta.

Escutar de verdade é se entregar. É esvaziar-se para se deixar preencher pelo mundo do outro. E vice-versa. Nesta troca, aprendemos, nos transformamos, exercemos esse ato purificador da reinvenção constante. E, o melhor de tudo, alcançamos o outro. Acredite: não há nada mais extraordinário do que alcançar um outro ser humano. Se conseguirmos essa proeza em uma vida, já terá valido a pena.

Escutar é fazer a intersecção dos mundos. Conectar-se ao mundo do outro com toda a generosidade do mundo que é você. Algo que mesmo deficientes auditivos são capazes de fazer.

(Publicado na Revista Época em 21/09/2009)

Segurem o tempo que eu quero descer!

Nos tornamos deuses escravos: em vez de viver, estamos sendo consumidos

Começou. A qualquer lugar aonde vou, alguém fala que o ano está acabando. Passando rápido demais. Há anos o ano começa a acabar no meio. E todo ano isso se repete. E a cada ano acho que piora. Se levar em conta a percepção geral, a cada ano o ano passa mais rápido e acaba mais cedo. Eu já estava com vontade de gritar diante da próxima pessoa que repetisse esse comentário. Um grito longo, silencioso e interno. Fora de mim, um sorriso educado. E aquele comentário: “Que loucura, né?”. Então, o Reginaldo, taxista amigo, perguntou: “Quando o ano vai parar de passar rápido?”. Ótima pergunta. E não era uma pergunta retórica. O Reginaldo queria saber, mesmo. Eu, que para variar estava sem tempo, fiquei também sem resposta.

Desde então, a pergunta do Reginaldo não me sai da cabeça. Tenho, algumas vezes, a sensação de que estamos todos, cada um a sua maneira, vivendo uma gincana, rigidamente cronometrada. Parece que nunca trabalhamos tanto. E nunca faltou tanto para fazer. Cada vez acordamos mais cedo e dormimos mais tarde. E estamos sempre atrasados e devendo tarefas para todo mundo. Não é maluco precisar de agenda para saber o que fazer? Ou no início da manhã de segunda-feira já estar atrasado para as necessidades do mundo?

Toda a parafernália eletrônica que supostamente deveria servir para nos libertar só aumentou nossas tarefas. Agora, é encarado como ofensa grave desligar o celular para não ser encontrado ou para almoçar sem ser perturbado. Vejo todo mundo almoçando com seus aparelhos na bandeja, jantando com o iPhone ao lado do prato. Há celulares ao lado das velas em jantares românticos. Tornou-se normal fazer sexo ou mesmo dormir com o celular ligado. Desde quando nos tornamos imprescindíveis para o mundo? Será que somos tão importantes assim que não podemos ficar desconectados? Por que deveríamos ser alcançados o tempo todo? Desde quando o planeta deixa de girar porque alguém não nos achou?

Menos, menos. Muito menos.

O celular toca o tempo todo. Recebemos centenas de e-mails exigindo resposta imediata. De repente, tudo virou urgente. Todos que nos procuram têm demandas. E tudo era para ontem. A tecnologia nos deu um atributo que antes pertencia só aos deuses, a onipresença. Mas nos tornou escravos. Somos deuses escravos.

Temos até uma espécie de onisciência, porque somos superinformados por sites, blogs e agora também pelo twitter. Posso saber, em tempo real, o momento exato em que um avião caiu do outro lado do mundo e o momento exato em que uma celebridade pintou as unhas com esmalte vermelho-paixão. Não é fantástico?

Desconfio que não. É claro que existem coisas realmente interessantes. Mas a maioria, convenhamos. Percebo agora o quanto deve ser chato ser Deus. O twitter nos mostrou isso. Já imaginou? Se a cor do esmalte ou o aviso de que vai tomar banho são as revelações que alguns acham bacana contar, já parou para pensar o que não acham bacana? Já imaginou ser obrigado a assistir a isso?

Não, não. Eu realmente não quero nem preciso saber da maioria das coisas que me informam. Acho que ninguém precisa. Também não quero estar em toda parte. Não me interessa estar no blog, no MSN e no twitter ao mesmo tempo. Mal consigo estar em um lugar de cada vez.

Tampouco quero ser encontrada 24 horas por dia. Gosto de desligar o celular e desaparecer. Não entendo por que tanta gente fica ofendida quando encontra apenas minha voz simpática na caixa-postal. É isso. Continuo gostando de você, mas não estou. Sumi. Volto quando puder.

Adoro receber e-mails. Guardo muitos deles e, alguns, releio várias vezes. Tento resistir à tentação de imprimir, em nome das árvores, mas vez ou outra sofro recaídas. E-mails queridos são como cartas. Alimentam-nos de intangível. Mas, exceto os urgentes, que são poucos, neste momento estou respondendo aos da terceira semana de agosto.

Tenho certeza: ninguém vai entrar em depressão profunda porque não recebeu uma resposta imediata. E não, não estou tuitando, por enquanto. Acho que nunca vou conseguir dizer nada muito importante em 140 caracteres. Sou prolixa, como quem me lê já descobriu. Sou perdulária nas frases. Não consigo economizar palavras. Lamento.

Não sei vocês, mas descobri, depois da pergunta do Reginaldo, que precisava resistir. Costumava salvar algumas horas da semana só para encarar meu vazio, ficar contemplando o nada. Mas, nos últimos tempos, estava cada vez mais difícil. Percebi que estava embarcando na ideia de me tornar deus. Atributos divinos são sempre muito sedutores.

Comecei a ter enxaquecas. E a acordar cada vez mais cedo e já atrasada. A contar com os finais de semana e com as férias para trabalhar. Um dia, percebi que estava indo encontrar amigas queridas como se fosse mais uma tarefa a ser riscada na agenda. No caminho, já pensava nas próximas que ainda me aguardavam. O que estava acontecendo comigo?

Algo estava muito errado. O Reginaldo me acordou. Deveria ter pagado mais por aquela corrida de táxi. Pelo menos no meu caso, o ano só vai parar de passar rápido quando voltar a me apropriar do meu tempo, estabelecer minhas prioridades. E não viver em função da pressa alheia, que agora me alcança pela parafernália eletrônica que preencheu nossa vida e roubou nossas horas. Agora, minha meta mais importante na agenda é fazer essas máquinas fantásticas, brilhantes e barulhentas trabalharem para mim. E não o contrário. No momento, estou querendo inventar a oniausência.

Um parêntese. Sabe outra coisa que começa a me deixar enjoada? As decorações dos shoppings centers. Acabou a do Dia dos Pais, daqui a pouco teremos a do Dia das Crianças e, depois, cada ano mais cedo, a do Natal. Sei que é feio, mas tenho vontade de arrancar aquelas guirlandas e bolas coloridas e dar um chute no boneco do Papai Noel. Quero mandar ele e as renas e os duendes todos de volta para o Pólo Norte.

Desculpa. Reconheço que não é um sentimento elevado. Mas me sinto uma trouxa quando dividem meu ano em datas de consumo e ficam tentando fazer com que eu gaste todo o meu dinheiro me seduzindo com falsos sentimentos. Eu sempre caio, é uma desgraça. Aí o ano nem acabou e eu já estou endividada para o próximo. Atrasada para tudo, adiantada nas contas. O Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa existem, mas não são boas pessoas.

Voltando. Depois da tal pergunta do sábio Reginaldo, percebi que não lembro o que fiz na semana passada. Se me esforçar, recordo. Mas não é automático, preciso pensar. Quando lembro, percebo que fiz coisas bem legais. Como pude, então, esquecer? Como é possível parecer que faz um ano que algo tão importante aconteceu? Seria porque vivi, mas não senti que vivi? Por que o ano passa rápido demais e todas as horas são preenchidas por tarefas? Por que não temos tempo para elaborar o que vivemos?

Algo está errado se acordamos na segunda-feira pela manhã e já estamos atrasados, já estamos devendo, já estamos cansados. Ainda que excitados com o que estamos fazendo, como é o meu caso. Algo está bem errado quando a vida vira uma sucessão de tarefas, mesmo que as tarefas sejam bem interessantes. Algo está errado quando até o lazer se torna uma tarefa. Algo está muito errado quando precisamos marcar na agenda para passear com os filhos ou namorar. Algo está definitivamente errado quando precisamos pensar para lembrar do que vivemos no dia anterior.

Não sei se acontece com você, mas tenho sentido falta de viver o que vivi. O que vivo. De sentir o tempo passar. De ter tempo para elaborar o vivido. E também de ter tempo para ficar no vazio, apenas contemplando o silêncio dentro de mim.

Não gosto quando os dias se tornam uma sequência de ruídos, de luzes que piscam em telas variadas, simulando uma falsa urgência, exigindo atenção. Não gosto de me sentir consumida até que o tempo se esgote dentro de mim. Ano após ano que acaba no meio, ano após ano que acaba rápido demais.

Como disse um filósofo, o tempo é uma criança que brinca com ossos. É preciso não esquecer. Um dia tudo vai mesmo acabar, e não queremos perceber nesse último momento que nossa vida foi consumida. Ao final de cada frase desse texto deixo para trás minutos mortos, vida que se foi. Quero, então, ter certeza que não me deixei consumir. Quero ter certeza que vivi cada um dos meus segundos.

Não lembro qual foi o pensador que disse essa frase: “Nem todos os anos que passam se vive: uma coisa é contar os anos, outra é vivê-los”. Como se conta então os anos que começam a acabar no meio?

Tempo é tudo o que temos. Se não temos tempo, nada temos. Só um ano que acaba no meio e passa rápido demais.

Ao dizer que não temos tempo, o que estamos dizendo é que não temos subjetividade. O que vivemos não foi sentido. Se não é sentido, não é vivido. Se não é vivido, não há sentido.

Quando o tempo vai parar de passar rápido demais? Talvez, Reginaldo, quando pararmos um minuto para termos, de fato, um minuto. Quando nesse minuto nos dermos conta que, ao final dele, estaremos um minuto mais mortos. E, então, nos apropriarmos do nosso tempo para viver segundo um calendário próprio – e não segundo as leis de uma agenda que nos aliena daquilo que sempre foi nosso. Daquilo que é nossa única riqueza ao nascer, quando então começa a contagem regressiva da nossa vida. Essa existência sem nenhuma garantia, que pode ser interrompida a qualquer momento. Por isso viver sentindo que se vive não é algo adiável para amanhã.

Acredito muito na resistência pelos detalhes, começando pelas pequenas coisas. Vou desligar o celular nas refeições, quando chegar em casa, nos fins de semana. Quero reservar um tempo determinado para verificar e-mails, responder conforme minhas possibilidades. Pretendo me tornar mais seletiva na hora de buscar informações na internet. E levantar para conversar com alguém que está perto em vez de mandar um e-mail ou um torpedo. Quero voltar a ter mais tempo para livros, filmes, viagens por estradas reais e pessoas que amo.

Só desejo ser o deus do meu tempo. Às vezes vou passear por blogs, twitters, chats que valem a pena. Mas não moro lá. Quando olhar para mim mesma, espero não ver nada piscando nem buzinando. Não quero mais ser inquilina de outros mundos. Só aspiro agora habitar minha própria vida.

Parei. Meu ano acaba em dezembro e não passa rápido demais.

(Publicado na Revista Época em 14/09/2009)

A grande aventura

Amar é mais arriscado que desbravar a natureza selvagem

Acabo de chegar do cinema. Fui sozinha assistir “Up – Altas aventuras“, a nova animação da Pixar. É aquele filme em que um velhinho sai voando em sua casa suspensa por balões quando vêm buscá-lo para levá-lo para um asilo. Ele voa com toda a sua vida junto. Vai para o futuro, rumo a um sonho do passado. Quer justificar a sua vida – talvez mais que a sua, a da mulher que ama. Conheceram-se quando eram duas crianças que sonhavam viver grandes aventuras, explorar o mundo. Agora viúvo, cheio de dores, apoiado em sua bengala, Carl Fredricksen (esse é o nome dele) voa em busca da terra das cachoeiras gigantes de sua infância, naquela que parece a mais arrojada de todas as expedições de uma vida que vale a pena. Descobre então que não há aventura maior – e mais arriscada – que a vida compartilhada com quem se ama.

Não, eu não contei o fim do filme. Só a vida de todos nós. Uma fábula que, de tão banal que é, nem sempre alcançamos. Nos últimos anos, por diferentes motivos, acompanhei o fim da vida de muitas pessoas. Algumas delas não morreram, mas viveram a experiência de ter a morte bem concreta, logo ali no dia seguinte. Bem perto do fim, o que elas queriam saber é se a vida delas havia sido uma vida plena. O que precisavam ter certeza é que sua existência tinha valido a pena. Percebi que só morriam em paz aqueles que se reconciliavam com a vida vivida. Com todas as suas perdas, desistências e covardias. Com os limites todos, sendo o maior deles a morte logo ali adiante. Os que não conseguiam olhar para sua própria vida com generosidade, morriam agitados, convulsos. Nessa hora, não havia morfina que aplacasse sua dor.

Não há vida que não tenha sua cota de desistências, perdas e covardias. Seja a de um astro de Hollywood que ganha milhões por filme, seja a do mendigo que carrega a casa nas costas, seja a de qualquer um de nós. Nossas semelhanças são avassaladoras. “Up”, essa animação tão adulta (não leve seus filhos com menos de 6 anos), nos dá a chance de uma reconciliação. Não precisamos, como Carl Fredricksen, chegar perto dos 80 anos para descobrir que os pequenos morros que escalamos com nossas pernas nem sempre em forma e nossos pulmões ofegantes foram pelo menos tão altos quanto o Everest. Quanto mais cedo nos reconciliarmos com nossa aventura pessoal, mais cedo estaremos livres para nos lançarmos em descobertas outras.

Há uma frase de Russell, o menino que acompanha Fredricksen nesta aventura, que pode nos ajudar a olharmos para a nossa vida, nem sempre no topo, com a generosidade necessária. Quando já estão em meio à natureza selvagem, a externa e a de si mesmos, o garoto lembra que costumava observar as cores dos carros que passavam com seu pai. E diz a Fredricksen: “Eu sei que é chato, mas são as coisas chatas as que eu mais me lembro”.

É um exercício que vale a pena empreender. Do que você se lembra, o que guardou por todos esses anos? Ouso apostar que, como Russell, você também guarda na sua caixa de jóias da memória as “coisas mais chatas”, as supostamente banais. Eu fiz esse exercício. Lembrei de uma cena, repetida em muitos domingos da minha infância, que pode ser considerada ultrajantemente

Quase todo domingo, meus pais nos botavam no fusca verde-milico (depois substituído por uma Brasília verde-limão). Partíamos felizes para um programa que eu adorava. Chamava-se “ver as casas bonitas”. Eu ficava no meio, por ser a caçula, espremida entre meus dois irmãos. Embora atrapalhasse um pouco a vista, eu gostava porque me sentia quentinha. E então percorríamos o mesmo roteiro que já sabíamos de cor. Invariavelmente fazíamos os mesmos comentários. E cada um de nós tinha a “sua” casa, aquela que considerava “a MAIS bonita de todas”.

Em geral, quem tinha “casas bonitas” em Ijuí eram os médicos, os dentistas e os empresários que haviam se dado bem no tal do Milagre Econômico da ditadura militar. Como se pode imaginar, a cidade não era exatamente um pólo de expansão imobiliário. Demorava para aparecer algo novo no nosso roteiro. Quando acontecia, nós acompanhávamos com rigorosa atenção cada passo da construção do que nos parecia uma mansão. Se o arquiteto tivesse nos ouvido, algumas imperfeições teriam sido corrigidas a tempo. Quando finalmente alguma casa era concluída, para mim era uma final de Copa do Mundo com placar de 5X0 contra a Argentina.

Meu pai dava uma paradinha discreta, para não chamar a atenção dos donos. A gente olhava e se assombrava. Junto com isso vinha uma sociologia caseira. Cada casa motivava uma avaliação de como fulano tinha ganhado tanto dinheiro de repente. Ou, ao contrário, algum pequeno drama que havia obrigado sicrano a interromper uma construção que nos prometia grandes momentos.

A vistoria das casas bonitas acontecia no finalzinho da tarde de domingo e acabava junto com a luz do sol. Depois voltávamos para a nossa casa bem menos bonita, mas iluminada por dentro. Não havia nenhuma inveja nesse olhar. A gente só gostava de ver coisas bonitas. E eu de tentar imaginar o que acontecia lá dentro, como viviam as pessoas bonitas das casas bonitas.

Foi disso que eu lembrei, acordada pela frase de Russell. Era tão estúpido e, ao mesmo tempo, tão sensacional. Voltei então ao presente. Há algum tempo, não muito, descobri que a maior aventura de todas é amar alguém que escolhemos – e que nos escolhe. O amor é sempre território não desbravado. Entregar-se a ele com toda a verdade de que somos capazes é um enorme risco. Porque damos ao outro um grande poder, o poder de nos refletir.

Aprendi que vale a pena amar aquelas pessoas que, quando nos vimos nos olhos delas, temos vontade de ser alguém melhor do que somos. Elas vêem não apenas aquilo que realmente somos, mas aquilo que podemos ser. Tudo aquilo de bom e de generoso que podemos ser. Não significa que não enxergam nossas imperfeições e mesquinharias, mas que vêem além delas. Então, do lado de cá do espelho, ficamos desejando nos tornar o que vemos refletido lá.

O homem que eu amo tem esse olhos que me vêem boa e bela. E quando ele olha nos meus olhos também se vê bom e belo. A cada ano que passamos juntos, tempos em que a vida nos exigiu muito, cada um de nós chega mais perto do que vê de si no olhar do outro. E isso não tem nada a ver com sermos outros, mas com a capacidade que só o amor generoso tem de nos tornar mais radicalmente o que somos.

Muita gente se pergunta se está com a pessoa certa. Não entendo bem o conceito de “pessoa certa”. Em geral, acho que essa pergunta já diz que algo está errado. Mas se existe um jeito de saber, eu acho que é esse. Quem diz me amar faz de mim alguém não diferente do que sou, mas melhor? Eu faço de quem amo alguém não diferente do que é, mas melhor? Pelo olhar do outro me torno mais o que sou? E vice-versa?

Observo muito as pessoas e suas relações amorosas. Vejo que vão se tornando muito parecidas com aquilo que o outro da relação diz que ela ou ele é. Quando esse olhar não é amoroso, não é generoso, é uma tragédia. Já sabemos disso muito antes da vida adulta, pelo que se tornam as crianças que são realmente amadas, amadas o suficiente para que os pais gastem tempo lhes dando também limites. Mas não só. Amadas o suficiente para serem enxergadas e escutadas e acariciadas. E o que se tornam aquelas que foram aniquiladas pelo olhar dos pais.

Quando crescemos, alguns de nós, que receberam na infância um olhar pouco generoso ou mesmo ausente, reincidem ao buscar um companheiro ou companheira para a vida que repete esse olhar aniquilador. Atribuem para si a missão fadada ao fracasso de mudar o outro. Alterar esse olhar, transformar o outro e o olhar do outro para redimir toda uma vida. E, tentativa após tentativa, encontrando sempre esse mesmo olhar mesquinho, acaba acreditando que é ela ou ele que não vale a pena. É bem triste. Em geral, esses casais passam a vida massacrando um ao outro, já que duas pessoas só ficam juntas se algo nelas se encaixa. Mesmo que seja uma tremenda neurose. É preciso que um dos dois consiga quebrar esse espelho ruim e partir para algo que faça bem a si mesmo.

Dias atrás aterrissou nas minhas mãos um livro da desenhista Carla Caffé, lançado há pouco. Chama-se “Av. Paulista” (CosacNaify). Fui virando as páginas e me encantando de tal maneira que já presenteei pessoas queridas com ele. O que encanta tanto? Carla é uma mulher que senta pelas calçadas da cidade e desenha prédios, praças, túneis, monumentos. Mas o que torna o livro deslumbrante é que Carla desenha a cidade com o olhar de quem ama. A Paulista de Carla é aquela que pode vir a ser. É a Paulista, mas a Paulista depois de se descobrir amada.

Veja o que Carla diz em depoimento no fim do livro. “Gostaria que os meus desenhos transmitissem a mesma generosidade que Saul Steinberg dedicou a Nova York. No cinema de Woody Allen há muito disso. Em Hannah e suas irmãs, duas moças dentro de um carro disputam a atenção de um arquiteto. No caminho, ele vai mostrando os prédios mais bonitos da cidade. É uma maneira de o cineasta educar o olhar das pessoas. Através de seus filmes descobrimos uma cidade fascinante e ainda inexplorada. Passado algum tempo, todos começam a desejar que ela se preserve ou se transforme naquilo. Isso humaniza as pessoas (…) Eu queria fazer uma cidade bonita, um metrô bonito, os prédios bonitos, a rua Augusta bonita. Acho que a gente tem que desenhar mais a nossa cidade. Com amor”.

Descobri recentemente que as casas bonitas de Ijuí não eram tão bonitas assim. Eram até bem sem graça. Mas elas se tornavam bonitas porque meus olhos eram amorosos, meus olhos as viam bonitas. Apertados dentro de um fusca, nós éramos uma família amorosa,olhando para o mundo com olhos generosos. Esse olhar me carregou pela vida afora.

Ao sair do cinema depois de assistir à “Up – Altas Aventuras“, passei no supermercado apenas para comprar, para o homem que me enxerga com os olhos do amor, todas as coisas boas que ele gosta de comer. Ele passou o final de semana trabalhando. Eu sabia que não podia ligar, porque ele estava submerso no caos da gravação de um programa de TV. Mas eu tinha de dar um jeito de alcançá-lo. Mandei então um torpedo dizendo “te amo”. Banal assim. Clichê e piegas. Mas foi a única coisa que me ocorreu para agradecer a ele pela grande aventura que compartilhamos juntos.

Quando ele voltou para casa, nosso apartamento saiu voando. E nem tinha balões.

(Publicado na Revista Época em 07/09/2009)

O doping dos pobres

Promover saúde não é sufocar a dor da vida com drogas legais

Parte da minha família tem origem rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.

Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão à lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu suportava com brios de filósofo estóico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “fulana sofre dos nervos”.

Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento e recusavam-se a juntar o marido bêbado na bodega do povoado. Rebelavam-se. Por culpa dos nervos.

Eu criava ouvidos de Dumbo – não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério dos ataques de nervos. Será que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã, perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram nervos e pronto. E não eram assunto de criança.

Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível. Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico não tratasse com alguma beberagem de cor estranha. Minha teoria pessoal é que não existia vírus ou bactéria ou até mesmo nervos capaz de suportar o cheiro daqueles troços. Mas o velho Chico morreu, não sei dizer se antes ou depois dos nervos. E agora tudo é tratado com comprimidos de cores variadas.

Quando comecei minha aventura de repórter, no final dos anos 80, ainda encontrava referência aos nervos por onde andasse, fosse em zonas rurais de norte a sul, fosse na periferia das grandes cidades. Com o tempo, especialmente a partir dos anos 90, as mesmas queixas começavam a ser embaladas em termos médicos. Nos últimos anos, tenho ficado embasbacada ao entrevistar gente analfabeta que fala em depressão como se fosse o nome de alguém da família. A terminologia médica invadiu a linguagem em todas as classes sociais e regiões – e se inscreveu na cultura.

Há algum tempo penso nos muitos significados dessa enorme mudança. Significa que as pessoas estão sendo mais bem tratadas e tendo acesso a medicamentos? Talvez. Mas não me parece que seja isso. Ou pelo menos apenas isso. Estou preocupada com o que tenho testemunhado pelas periferias do Brasil. Antes, quando batia na casa das pessoas mais humildes, os pais de família me apresentavam sua carteira de trabalho. Isso sempre me devastou, porque revelava a violência silenciosa que vitimava os mais pobres. Com o gesto, eles queriam provar que eram trabalhadores, gente de bem – e não vagabundos ou bandidos porque eram pobres. Eu tentava explicar que não era autoridade nem tinha direito algum de ver seus documentos. Mas o homem diante de mim, estendendo a carteira de trabalho, carregava na alma séculos de humilhação. Então, eu examinava e elogiava seu documento.

Hoje, quase não acontece mais. De uns tempos para cá, o que muita gente tem me mostrado são, adivinhem: “seus” medicamentos. Com um sentido diverso. Acreditam que, por ser jornalista, tenho um conhecimento que eles não têm, sou capaz de esclarecer suas dúvidas. Estou lá, sentada no único sofá ou na melhor cadeira da casa, quando acontece. Depois da prosa inicial, que no meu caso leva umas duas horas, já estamos todos bem à vontade. Então o pai ou a mãe ou a avó fazem sinal para a menina mais nova. E lá vem a criança carregando uma lata da cozinha. Deposita entre as minhas mãos, como uma hóstia. Olho e já sei o que vou encontrar: cartelas de comprimidos até a boca.

Querem saber se faz bem mesmo. Se posso explicar como devem tomar. Se acho que o guri que só apronta na escola deveria tomar também. Me arrepio. Examino o conteúdo. Procuro as bulas. Boa parte são antidepressivos e tranquilizantes. Pergunto quem toma e por que toma. O avô porque não dorme, a mãe e a avó porque estão deprimidas, o pai porque é nervoso e o filho porque é “muito agitado”. Com variações, claro. Mas em geral as deprimidas são as mulheres. Lembro que eram elas também as que mais sofriam dos nervos. Não que os homens não sofram, mas sinto que resistem mais antes de assumir publicamente que são “deprimidos”. Em geral eles não dormem ou são “nervosos”. Muitas vezes, os pais bebem álcool, os filhos são usuários de drogas.

Com delicadeza, explico que não sou médica, que precisam procurar o posto de saúde. Respondem que a próxima consulta é só daqui a três meses. Descubro então que trocam de medicamentos. Quando acham que o seu não está resolvendo, tentam o do outro. Consciente da minha ignorância, afirmo apenas o que posso afirmar: não tomem o medicamento que é do outro nem dêem para as crianças. Semanas atrás uma mulher me perguntou se podia dar um tranquilizante para a sua sobrinha, de 9 anos, que estava muito agitada. Eu disse que de jeito nenhum, “é muito forte”. Minutos depois, veio me contar com um sorriso. Tinha encontrado uma solução: “Dei só a metade”.

A medicalização da dor de existir não é nenhuma novidade. Antidepressivos e tranquilizantes estão disseminados em todas as classes sociais. Para boa parte das pessoas tomar uma pílula para conseguir “aguentar a pressão” é tão trivial quanto tomar um cafezinho. Mas penso que, se você é de classe média, tem mais acesso à informação, à terapia, a um tratamento mais competente. Tem mais acesso à escuta da sua dor.

É importante fazer a ressalva. Não sou contra antidepressivos e tranquilizantes. Nem tenho autoridade para ser. Acho que medicamentos têm sua hora e seu lugar. Mas não é preciso ser médico para saber que, em geral, seu uso deve ser temporário, monitorado e acompanhado por outros recursos. Como psicoterapia e análise, em muitos casos. Ou seja, devem ser usados com muita parcimônia, critério e acompanhamento. E não como se fossem pílulas de açúcar, que podem ser tomadas por todos a qualquer sinal de dor psíquica.

O que tenho visto é um doping social. Combate-se a maconha, o crack, até o cigarro, ótimo. Mas e as drogas médicas que estão pelos barracos e pelos palácios? São menos drogas porque dadas por um doutor?

Minha percepção é de quem anda bastante por aí. Por ser repórter, tenho o privilégio de entrar por várias portas, escutar a narrativa de muitas e diferentes vidas. Para escrever este texto conversei com psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que trabalham na rede pública de saúde. Queria ir além do meu testemunho. Seus relatos são mais assustadores que o meu.

“Basta chorar”, afirma uma psiquiatra muito conceituada. “Há poucos psiquiatras na rede pública, em qualquer parte do país. Em geral, as pessoas vão ao médico por algum outro motivo. Então choram. E o médico, seja qual for a sua especialidade, receita um antidepressivo ou um benzodiazepínico (tranquilizantes – ansiolíticos e hipnóticos). Meses depois a pessoa volta. E continua chorando. Aí ganha um mais forte. Ou ganha dois. E ela continua chorando. Mas tudo o que ouve é que é doente e tudo o que lhe dão são remédios. Só que ela continua chorando.”.

“As pessoas são levadas a acreditar que o remédio pode acabar com a sua dor, uma dor que tem causas muito concretas. Não resolve, claro. Um exemplo. Uma mulher tinha dois empregos, um de dia, outro de noite. O que ganhava não dava para pagar as contas. Os ônibus que pegava para chegar até esses empregos eram lotados. Ela vivia num barraco. Aí procurou o posto de saúde e lhe trataram com antidepressivos. Não adiantou. Deram-lhe outro medicamento. Nada. Um dia, sem nenhuma esperança ou recurso, ela tentou suicídio”, conta uma psicóloga. “A questão é que não há promoção de saúde, porque isso implicaria se preocupar com projeto de vida, com perspectiva de vida, com melhoria das condições de vida. O que há é medicalização da vida. Vemos o tempo todo gente que foi viciada em ansiolíticos nos postos de saúde.”.

“A gente vê um monte de gente sofrendo. E sofrendo muito. Mas o atendimento funciona assim: está chorando?, toma um antidepressivo; não dorme?, pega um benzodiazepínico. É uma supermedicalização sem critério. As pessoas estão tomando remédios como se fossem bolinhos”, afirma um psiquiatra. “Vivemos uma época de sedativo social. O médico não tem tempo de escutar, dá um remédio para que parem de chorar ou reclamar, e as pessoas vivem a fantasia de que são atendidas. Não funciona, claro. Elas continuam sofrendo. Então voltam e o procedimento se repete. E assim vai diminuindo a pressão social.”.

Vale a pena parar e refletir. Nossa época está produzindo gerações de anestesiados? A medicalização da dor psíquica é um fenômeno relativamente recente. Pelo menos nesta proporção, com essa enorme variedade de medicamentos disponíveis e muito mais sendo produzido em escala industrial e vendido em licitações para a rede pública em suas variadas instâncias. Cada comprimido de diazepam (benzodiazepínico), por exemplo, custa menos de um centavo para a rede pública. Bem mais barato, digamos, que uma sessão de psicoterapia.

Se pensarmos que a medicação da população com antidepressivos e tranquilizantes se acentuou a partir dos anos 90, que tipo de sociedade teremos daqui, digamos, uma ou duas décadas? O que acontece com as pessoas quando têm a sua dor de existir abafada, mascarada, calada a golpes de pílulas? Não sei. Mas acredito que são perguntas que devemos nos fazer. Nós todos, não apenas os governantes ou os profissionais da saúde. Estamos vivendo uma mudança cultural das mais profundas. E não me parece que estamos suficientemente atentos a suas causas, significados e implicações. Que tipo de mundo e de gente estamos criando quando a resposta para toda dor é uma pílula?

De novo, não sou contra o uso responsável de medicamentos. E me sinto bastante satisfeita por viver numa época em que é possível curar – ou pelo menos controlar – muitas doenças graças ao avanço da ciência. Mas não é disso que se trata. O que tenho testemunhado não é tratamento – mas doping. E do pior tipo, o legalizado, aquele que é travestido como promoção de saúde e promovido pelo Estado, sob a pressão da indústria farmacêutica. E, atenção: cada vez mais cedo. Em todas as classes sociais, as crianças começam a ser medicadas nos primeiros anos de vida, bastando para isso não ter um comportamento na escola considerado “normal”.

Na passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos. Desde criança, convivo com as muitas dores de existir. Como quase todo mundo. Às vezes “a vida dói como uma afta”. Mas nem sempre – talvez até raramente – seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são doença. Sentimos tristeza, melancolia, medos, lutos. Tanto pela perda de quem amamos como pela perda de amantes como pelas pequenas perdas de cada dia.

A dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que conseguimos transformar dor em criação. Elaboramos nossas muitas dores criando poesia, pintura, escultura, música, vestidos, bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência, histórias. Cada um a sua maneira. Se em vez de elaborar a dor e transformá-la em expressão, tomamos comprimidos que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos fazendo conosco e com o nosso mundo?

Se você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é humilhado pelo seu chefe, mora num barraco e não tem dinheiro para pagar as contas, você está deprimido porque não tem mais forças para suportar esse cotidiano ou está doente porque não consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para saber que ninguém pode estar bem em condições de vida como essas. Sua alternativa não é se entupir de tarja-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma vida melhor, pressionar o poder público, criar uma associação comunitária para exigir seus direitos, construir um projeto de vida com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se tornar possível.

Ser ativo e ser parte é ter saúde. Não há nada mais doentio e aniquilador do que o sentimento de impotência. E, quando a questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e transformadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. Por isso, fico muito preocupada quando entro nas casas e os moradores me mostram suas pílulas.

Tenho o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do Brasil. Em especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. Das mais diversas regiões da Grande São Paulo, toda noite de quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o criador da Cooperifa, pode passar horas contando sobre gente que chegou lá aniquilada, com a espinha quebrada, a vida por um triz. E, ao ser escutada, sentir-se parte, transformou a sua vida. Gostaria que alguém fizesse uma pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a saraus de poesia, rodas de samba, posses de hip-hop, oficinas de arte, associações comunitárias e a população que não pertence a nada, nem a si mesma.

Penso que o conceito de saúde – e de saúde mental – não existe se não abarcar projeto de vida.

O primeiro texto que escrevi, aos 9 anos, foi inspirado pela abissal melancolia de um domingo de manhã em que eu estava sozinha enquanto todos em casa dormiam. Era escrever ou a melancolia me engolir. Aos 11 anos, eu já tinha um livro de poesias. Todas elas elaboravam momentos diversos da minha dor de existir. Para mim, a escrita foi a maneira que encontrei de elaborar a minha angústia, “os meus nervos”. Acabei fazendo disso um projeto de vida.

Já vivi muitos momentos duros, inúmeros traumas. Posso afirmar, sem exagero, que fui vítima da maioria dos artigos do Código Penal, com exceção de assassinato. Estive algumas vezes à beira do precipício. E por duas vezes na minha vida precisei de medicamentos. Tive a sorte de encontrar profissionais competentes, humanistas, que acreditavam no que faziam, no que eram. O uso de medicamentos foi pontual, parcimonioso, controlado e com tempo para acabar. Sempre acompanhado por sessões de psicanálise. Superei cada um deles não me anestesiando, mas elaborando a dor. E criando furiosamente.

Tudo o que vivi uso para escrever. E tudo o que vivi me ensinou a escutar. Quando entro na casa das pessoas como repórter e elas me mostram seus medicamentos, o que esperam de mim é que as escute. E é o que talvez eu faça de melhor. Fico horas em suas casas, apenas ouvindo. Escutando de verdade. A narrativa da vida é um reconhecimento da vida. A escuta da dor é um reconhecimento da dor. Se alguém que sofre procura um médico e, em vez de escutá-lo, ele o entope de comprimidos, o que aconteceu ali não é promoção de saúde, é promoção de doença. E o médico que se sujeita a isso pode estar tão doente quando aquele que o procura. O sistema de saúde não pode funcionar como um reprodutor de impotências. Uma linha de produção de impotências, que em vez de apertar parafusos, coloca bolinhas na boca. Como sabemos por pesquisas, é significativo o número de médicos que não apenas dopa, mas também se dopa.

Promover saúde é promover vida. E a vida começa pela escuta da vida. É o que faço como contadora de histórias reais. Mas quando as pessoas me mostram uma lata de comprimidos, que todos tomam, da criança mais nova ao avô, não é de mim que elas precisam. Para não me sentir impotente, escrevo este texto. Na esperança de que alguém me escute.

(Publicado na Revista Época em 31/08/2009)

Página 93 de 98« Primeira...102030...9192939495...Última »