Ao amigo presidente

Eleitor gravou todas as promessas de Lula e fez o próprio balanço do primeiro ano do governo

O brasileiro Hustene Pereira terminou o primeiro ano do governo Lula sem emprego e, a suprema ironia, com bursite. Foi o que o médico do plantão lhe disse depois de examinar as radiografias: ‘Tá com doença de presidente’. Não era exatamente essa a herança que ele esperava do homem que ajudou a eleger. Doía mais o coração que o braço direito quando, nos últimos dias de dezembro, Hustene trancou-se no único dormitório da casa e só saiu depois de assistir a seis horas de fitas gravadas em vídeo. Nelas, ele tinha registrado todas as promessas de Lula para que pudesse fazer seu balanço pessoal do governo. Saiu do quarto constrangido.

Desgostar do governo mas não conseguir xingar o presidente é o que há de realmente novo em sua vida. Ele acha que o país não mudou, mas continua tendo uma empatia enorme por Lula. Ao preencher quatro páginas em letra corrida numa carta endereçada ao Planalto, Hustene reclamou do desemprego, que joga gente como ele no abismo, do Fome Zero, que parece atolado no marketing, de que Lula saracoteou muito no estrangeiro quando os problemas estavam bem aqui, em sua barba aparada. ‘Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir’, diz. Assim mesmo, despediu-se com um ‘forte abraço ao amigo Lula’.

Hustene não é petista, é lulista. Sem ser filiado ao PT ou militante, ele votou em Lula em 1989, em 1994, em 1998 e finalmente em 2002. E votaria mais ä quatro vezes se fosse preciso. ‘Eu assisti à posse chorando. Tinha certeza de que voltaria ao mercado de trabalho’, cobra. ‘A gente não está pedindo absurdos. Um homem não quer esmola, vale-isso, vale-aquilo. Quer salário. A dignidade do homem é levantar, sair para trabalhar e pagar as contas.’

O último trabalho registrado na carteira de Hustene terminou em 17 de outubro de 2001. Em fevereiro do ano seguinte, ele ilustrou uma reportagem de ÉPOCA sobre desemprego. Dava rosto à estatística de milhões de pais de família que se descobriram do lado de fora da porta – depois de experimentar o gosto das ofertas nas prateleiras do consumo e de prometer aos filhos que se estudassem mais venceriam na vida. Ele sempre havia trabalhado no escritório de empresas, orgulhoso de sua datilografia e escrituração fiscal. Passou dos R$ 1.000 de salário. Em mais de dois anos de desemprego conseguiu fazer dois bicos como trabalhador braçal. No segundo, já completa um mês. Acorda às 4 horas para ajudar na carga e descarga de bebidas e alimentos. Ganha R$ 15 por dia quando há serviço. Em média, R$ 200 por mês sem benefícios.

‘Aos 44 anos de idade, estou no zero’, conclui. Ele não é do tipo que se entrega. Hustene é do gênero esperneante. Cansado de ouvir que não conseguia trabalho porque só tinha a 7ª série, bateu na porta do supletivo. Em dois anos de desemprego se formou no ensino fundamental, e faltam três matérias para ganhar o diploma do ensino médio. No meio, fez um curso de computação. Na escola, copiava tudo o que ouvia. Não perde documentário ou noticiário da TV e assim vai complementando a educação. Fez questão de escrever a carta a Lula para se certificar de que ele, Hustene, existe.

Acha que um homem precisa de futebol, fé e ideologia para não perder a sanidade. Fincou três pilares no assoalho de sua brasilidade: Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. O que sente pelo presidente é próximo do que nutre pelo Timão. Tanto um como o outro o decepcionaram no ano que passou. ‘Lula e o Corinthians empataram em 2003’, diz. ‘Jogaram para não cair.’ Mesmo assim, continuará torcendo por ambos. Não por um amor incondicional, mas por pertencerem ao reduzido rol de escolhas que definem o caráter de um homem.

Ao usar uma das metáforas preferidas do presidente, Hustene não está confundindo futebol com política. Está dizendo que perder a esperança tanto em um como no outro lhe custaria mais do que pode pagar nesta altura da vida. ‘A esperança que eu tive nestes anos todos era a de um trabalhador no governo. Se ele falhar, o que me resta? Rezo a Nossa Senhora de Fátima que ele não chute o pênalti para fora.’

Hustene escreve à noite na cozinha para não se sentir só, a mulher, a neta e dois filhos dormem no quarto, os dois mais velhos no chão da sala. Em forma de diário, manteve o ‘camarada Che’ informado. ‘Che, hoje o Brasil tem alguém digno dele’, na vitória. ‘Que o espírito guerrilheiro acompanhe o Lula nesta batalha’, na posse. ‘Aos 40 anos somos nós reserva do passado’, em junho. ‘Somos sufocados por uma herança neoliberal’, em julho. ‘Falta pulso’, em outubro. ‘É quase um ano de um governo com que tanto sonhei e não vi coisas concretas, mas espero ver ainda’, em dezembro. ‘Olha, Che, não desabafarei mais este ano. Estou preocupado com o Lula.’

No primeiro ano do governo, o Natal de Hustene passou sem peru nem presentes. O nome continuou sujo no SPC. A carteira de trabalho seguiu em branco. Hustene prometeu manter sua esperança em Lula por mais três anos. Só espera que, ao final, não lhe dêem para a vida a mesma solução que o médico deu para a bursite: ‘Não tem cura, só nascendo de novo’.

(Publicado na Revista Época em 05/01/2004)