Na minha coluna desta semana no El País tento pensar sobre a delicadeza deste momento histórico, com suas demandas de fé. Diante da descrença, percebo uma vontade feroz de crença.
Como sempre, deixo claro a partir de que lugar eu escrevo.
O momento do Brasil, culminando com as manifestações de 13 de março, mostram os riscos de uma adesão pela fé: é preciso resistir pela razão
Não se constrói um projeto político com crentes. Mas a angústia, no Brasil de hoje, se dá também pela vontade de acreditar que algo é verdadeiro num cotidiano marcado por falsificações. O perigo é que, quando o roteiro dos dias parece ter sido escrito por marqueteiros, não cabe razão nesse acreditar. Exige-se fé. Quando a política demanda adesão pela fé, é preciso ter muito cuidado. Os partidos que estão aí, puxando para um ou outro credo, podem acreditar que lhes é favorável ter uma população de crentes legitimando seus projetos de poder. Mas a adoração, rapidamente, pode se deslocar para outro lugar, como alguns já devem ter começado a perceber depois das manifestações do domingo, 13 de março. Ou pior, para um ídolo de barro qualquer. Rebaixar a política nunca é uma boa ideia para o futuro. Quem acha que controla crentes, com suas espirais de amor e de ódio, não aprendeu com a história nem entende o demasiado humano das massas que gritam.
Há uma enorme descrença nos políticos e nos partidos tradicionais, este já é um lugar comum. Mas é importante perceber que a esta descrença se contrapõe não mais razão, mas uma vontade feroz de crença. Quando os dias, as vozes e as imagens soam falsas, e a isso ainda se soma um cotidiano corroído, há que se agarrar em algo. Quando se elege um culpado, um que simboliza todo o mal, também se elege um salvador, um que simboliza todo o bem. A adesão pela fé, manifeste-se ela pelo ódio ou pelo amor, elimina complexidade e nuances, reduz tudo a uma luta do bem contra o mal. E isso, que me parece ser o que o Brasil vive hoje, pode ser perigoso. Não só para uma ditadura, como é o medo de alguns, mas para que se instale uma democracia de fachada, como já vivemos em alguns aspectos.
Uma democracia demanda cidadãos autônomos, adultos emancipados, capazes de se responsabilizar pelas suas escolhas e se mover pela razão. O que se vê hoje é uma vontade de destruição que atravessa a sociedade e assinala mesmo pequenos atos do cotidiano. O linchamento, que marca a história do país e a perpassa, é um ato de fé. Não passa pela lei nem pela razão. Ao contrário, elimina-as, ao substituí-las pelo ódio. É o ódio que justifica a destruição daquele que naquele momento encarna o mal. Isso está sendo exercido no Brasil atual não apenas na guerra das redes sociais, mas de formas bem mais sofisticadas. Isso tem sido estimulado. Quem acha que controla linchadores, não sabe nada.
Talvez o mais importante, neste momento tão delicado, seja resistir. Resistir a aderir pela fé ao que pertence ao mundo da política. Fincar-se na razão, no pensamento, no conhecimento que se revela pelo exercício persistente da dúvida. É mais difícil, é mais lento, é menos certo e sem garantias. Mas é o que pode permitir a construção de um projeto para o Brasil que não seja o da destruição. Quem sofre primeiro e sofre mais com a dissolução em curso são os mais pobres e os mais frágeis. É preciso resistir também como um imperativo ético.
Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus.
Mas nunca, desde a redemocratização, pelo menos, foi tão difícil vencer esse paradoxo: à enorme descrença se contrapõe uma enorme vontade de crença. Uma vontade desesperada de fé. E isso vale para todos os lados.
Leia o texto completo na minha coluna no El País