“Eu sou média”

O que acontece quando você percebe que não será uma celebridade no mundo?

Uma noite dessas fui jantar com uma grande amiga. Temos aquele tipo de amizade que resiste aos desencontros da vida, à falta de tempo, às diferenças todas. Lá pela metade da garrafa de vinho, ela me disse: “Sabe, eu aceitei que sou média. E isso para mim foi uma enorme libertação”. Não lembro do que falávamos. Era isso o que ela queria me dizer, era isso o que importava. Eu abri a boca para dizer que ela não era média coisa nenhuma. Mas fechei antes de cometer essa bobagem. Tentar convencê-la de que não era “média”, ali, naquele momento, seria violar o presente que ela estava me dando. Chegar a essa conclusão havia lhe custado um naco da existência. Admiti-la para mais alguém além de si mesma era de uma enorme coragem. E era grande a confiança com que ela me honrava ao me escolher para essa confissão.

Mais tarde, mais um tanto da garrafa de vinho, seu rosto se iluminou todo, os olhos brilharam, e ela disse: “Quem olha para mim, só vê o comum em mim. Mas, Eliane, dentro de mim há um mundo rico”.

Essa conversa foi um dos momentos belos da minha vida. Já o guardei na minha caixinha invisível de memórias impalpáveis. Desde então, essa noite não me sai da cabeça. Tenho uma outra amiga que se bate cotidianamente com a ideia de que é “média”. E entende isso como um fracasso. Ela, que quis tanto quase tudo, beira os 40 sem ter conseguido. Nada que eu diga a ela a convence de que há outros modos de medir a existência. Então ela sofre. E nada do que faz está à altura de suas grandes esperanças sobre si mesma. Nunca estará. Deixou que sua vida fosse medida pelo que está sempre além, sempre fora.

Não acho que ela é a única. E acho uma pena que tanta gente sangre com isso. Pensei então em entrevistar minha amiga, a que está em paz com sua “medianidade”. Ela que, só ao se aceitar como “média”, foi capaz de descobrir a grandeza que mora dentro dela e não vai para a capa das revistas de celebridades.

Minha amiga topou. Pediu para não ser identificada porque costuma se chocar com o despudor com que as pessoas – eu incluída – se expõem na internet. Compartilha sua experiência, mas sem sair do seu cantinho. Aí está a nossa conversa para a coluna.

Eu: Você me disse que a virada da sua vida aconteceu no momento em que você aceitou que é média. Como foi isso?

Ela: Aos 35 anos, minha vida andava atrapalhada. Achei que precisava dar uma ordem naquilo tudo. Comecei a fazer terapia e a vasculhar tudo o que me chateava, avaliar o que tinha e o que ainda precisava ou queria atingir. Acho que todos, num momento da vida, fazem um balanço, e foi isso que fiz. Depois deste, já passei por outros processos semelhantes de avaliação, buscando priorizar o que vale mesmo a pena. Nesse processo, eu tentava me conhecer melhor, revirando meus sentimentos e questionando muitos dos meus conceitos e das verdades que me cercavam. Lutava muito contra mim mesma por querer corresponder a uma demanda de destaque. Não sei bem de onde vinha aquilo tudo, pois nunca fui cobrada claramente. Acho que eu me exigia esse desempenho e não aceitava o lugar-comum. Naquele período de minha vida, envolvida por essa busca de destaque, negava toda qualidade, competência ou conquista. No dia em que consegui me conciliar com minha condição de pessoa mediana, acho que me tornei uma pessoa melhor. Tirei um peso de minha vida. Não precisava mais ser celebridade, nem provar talento algum.

Eu: Mas o que é “ser média”? Média segundo o parâmetro de quem, média em quê? Você não acha que “ser média” é um embuste de uma sociedade construída sobre os valores do consumo?

Ela: Sou mediana porque levo uma vida comum, sem notabilidade, obras reconhecidas ou talentos premiados. Sou reconhecida apenas pela família e pelos amigos.

Eu: Você acha que há uma pressão para que as pessoas pensem que precisam ser excepcionais para que suas vidas valham a pena, segundo um critério determinado histórica e culturalmente como o que é excepcional?
Ela: Acho que sim. Queria que me explicassem porque as pessoas, quando não conseguem se destacar – porque nem todos serão célebres –, são tomadas pelos sentimentos de frustração e de desvalia. Quem disse que devemos nos conformar e nos adequar aos padrões estabelecidos de atuação, de beleza e de comportamento?

Eu: Por que aceitar “ser média” foi uma espécie de libertação? Você me pareceu tão bem consigo mesma, tão em paz, quando me contou isso…

Ela: Eu vivi em conflito durante muito tempo, até ter uma noção exata da minha dimensão. Para aceitar essa condição mediana, foi preciso que percebesse minhas qualidades e habilidades, assim como minhas limitações. Foi preciso me conhecer melhor para poder tirar proveito dessas habilidades e limitações. Acho que funcionou assim: não sou uma celebridade, mas também não sou uma porcaria.

Eu: Aceitar “ser média” libertou você também para descobrir outras partes não mensuráveis de si mesma? Eu achei muito lindo quando você falou que há um mundo largo dentro de você…

Ela: É difícil definir, mas penso que todas as pessoas, mesmo as comuns, têm um mundo interior muito rico e muito pouco reconhecido. Aceitando essa condição de ser médio, nos libertamos de um esforço e gasto de energia que passam a ser canalizados para outras descobertas. E estas são descobertas que podem gerar muito prazer, mesmo não sendo fruto de atos grandiosos.

Ela não disse isso. Mas eu, que a conheço há tanto tempo, testemunhei essa transformação, sem saber que era construída por essa descoberta. E por essa aceitação. Minha amiga percebeu que é uma mãe maravilhosa e se tornou uma chefe que é amada pelos subordinados, ao conseguir revelar o que cada um deles tem de melhor e único. Devagar, foram se extinguindo nela os traços de amargura e talvez por isso ela tenha uma pele quase sem rugas depois dos 50 anos, sem nunca ter usado cremes nem feito qualquer cirurgia plástica. E num domingo ensolarado descobriu que gostava de cozinhar e se transformou na senhora das especiarias. Como os acontecimentos causam mudanças em cadeia, a profunda descoberta da minha amiga colocou em mim alguns quilos aparentes.

Todos nós temos grandes expectativas sobre nossa passagem pelo mundo. E não me parece que devemos deixar de tê-las. A sabedoria consiste em compreender que é preciso medir a grandeza com nossa própria fita métrica. Se nos tornamos reféns de algo que hoje é determinante na nossa época, por exemplo, que é o reconhecimento da importância de alguém pela quantidade de aparições na mídia, estamos perdidos. Render-se a uma determinação ditada pelo mercado é tão destrutivo como passar a vida tentando agradar a um pai opressor e para sempre insatisfeito, como vejo tanta gente. Em ambos os casos, estaremos sempre aquém, sempre em falta. E, mesmo quem vive sob os holofotes, vive em pânico porque não sabe por quanto tempo conseguirá manter as luzes sobre si.

Mas de que luzes precisamos para viver? E a quem queremos agradar? Quem e o que importam de verdade? Essa reconciliação é o que nos leva de fato à vida adulta, no que ela tem de melhor. Acredito que crescemos quando conseguimos nos apropriar da medida com que avaliamos nossa existência, nosso estar no mundo. Ninguém tem de ser isso ou aquilo, ninguém “tem de” nada. Quem disse que tem? É preciso duvidar sempre das determinações externas a nós – tanto quanto das internas. Por que mesmo eu quero isso? é sempre uma boa pergunta.

Minha amiga só se transformou em uma chefe capaz de ajudar a transformar para melhor a vida de quem trabalhava com ela quando se reconciliou com suas próprias expectativas, quando descobriu em si uma grandeza que era de outra ordem. Só se tornou uma mãe capaz de libertar os filhos para viver seus próprios tropeços e acertos (e não os dela) quando se apaziguou consigo mesma. E, surpresa das surpresas, descobriu que era talentosa numa área, a cozinha, onde até então não via nenhum valor. Ao descobrir-se cozinheira, não pensou em empreender uma nova maratona, desta vez na tentativa de virar uma chef e fazer um programa de TV. Já estava sábia o suficiente para exultar de alegria ao acabar (humpft) com a boa forma de suas amigas mais queridas.

Como minha amiga e como todo mundo, eu também acalentei grandes esperanças sobre minha própria existência. Depois do fracasso da minha carreira de astronauta, desejei ser escritora. Acho que ser escritora é o que quis desde que peguei o primeiro livro na mão e consegui decifrá-lo. É claro que eu não queria apenas escrever um livro de entretenimento, um pulp fiction ou coisa parecida. Naquele tempo, pré-Tarantino, pulp fiction não era grande coisa. Eu escreveria, obviamente, a maior obra-prima da humanidade. Meu primeiro livro já nasceria um clássico. Eu reinventaria a linguagem e ditaria novos parâmetros para a literatura. Depois de mim, Proust e Joyce estariam reduzidos ao rodapé do cânone.

Não é divertido? Acreditem, eu rio muito. E até me enterneço. No meu quarto amarelo, lá em Ijuí, eu fiz o seguinte plano. Emily Brontë escreveu O Morro dos Ventos Uivantes aos 19 anos. Logo, eu deveria escrever minha masterpiece aos 17, no máximo 18. Pois não é que os 18 anos passaram e eu estava mais ocupada com fraldas e com beijos na boca? Bem, eu já não seria tão precoce assim, mas me conformei. Afinal, minha obra seria tão acachapante, tão revolucionária, que mesmo aos 20 e poucos eu seria considerada um prodígio. E os 20 passaram, assim como os 30, e lá vou eu aumentando cada vez mais os “e tantos” dos 40.

Juro para vocês: até não muito tempo atrás eu sempre tinha na manga algum escritor que tinha começado um pouco depois da idade que eu tinha no momento – e arrasado. Eu gastava meu tempo procurando essas referências. Então li em algum lugar que o argentino Ernesto Sabato escrevera seu primeiro romance, O Túnel, aos 76 anos. Essa informação me garantiu a paz por muitos anos. Pensava: se eu estiver viva até lá, já vou ter rido muito disso tudo.

Pois não é que a informação estava totalmente errada? Sabato publicou seu primeiro romance aos 37 anos. Por sorte, quando eu finalmente fui checar a informação, eu já ria muito disso tudo. E nem pensei em correr atrás de alguém que tivesse publicado seu primeiro romance aos 100 anos. Ufa. (E não é que – acabo de descobrir – Emily Brontë publicou O Morro dos Ventos Uivantes aos 29 anos – e não aos 19, como eu passei a vida inteira acreditando e suspirando? Não que faça alguma diferença… Whatever.).

Não desisti de um dia escrever um romance, não. Acho mesmo que ele está mais perto, agora que eu me absolvi de escrever a grande obra da literatura mundial. Mas foi só depois de me apropriar da medida da minha vida que me descobri estonteantemente feliz como repórter, como contadora de histórias reais. Quando finalmente escrever um romance de ficção, ele só será possível porque vivi mais de duas décadas embriagada de histórias absurdamente reais e gente de carne, osso e nervos. E só será possível porque deverá estar à altura apenas de mim mesma. Só precisarei ser fiel à minha própria voz.

Porque é esta, afinal, a grande aventura da vida. Desvelar a nossa singularidade, o extraordinário de cada um de nós – descobrir a voz que é só nossa. Mesmo que essa descoberta não se torne jamais uma capa de revista. O importante é que seja um segredo nosso, um bem precioso e sem valor monetário, que guardamos entre uma dobra e outra da alma para viver com furiosa verdade esse milagre que é a vida humana.

Redescubro agora, escrevendo para vocês, de pijama e descabelada, esparramada no sofá azul da minha sala, na manhã de domingo, entre uma cuia de chimarrão e outro: adoro escrever essa coluna! Adoro! E o mais bacana nessa relação que a gente estabelece aqui é que essa conversa continua. Esse texto continuará sendo escrito não mais por mim, mas por vocês, nos comentários que virão. Essa é a mágica da internet. O texto começa e nunca termina, numa multiplicidade de vozes que o vão transformando em novas possibilidades, segundo quem acrescenta seu verbo e seu ponto. E assim uma conversa que começou noites antes, entre duas mulheres em torno de uma garrafa de vinho e uma amizade profunda, se amplia e ganha outros significados, segundo a experiência compartilhada de cada um. E não poucas vezes sou eu que me encanto, aprendo e agradeço.

Isso é grande, médio ou pequeno? Como disse minha amiga “média”, dentro de mim mora uma vida larga.

(Publicado na Revista Época em 12/10/2009)