Os Silva são diferentes

Lula e Marina, os dois fenômenos políticos mais fascinantes da história recente, são filhos de Brasis que se desconhecem

 

Há uma ideia no Brasil de que os pobres são todos iguais. É uma visão de senso comum, mas que assinala a análise também de intelectuais. Ela explica a afirmação de que Luiz Inácio Lula da Silva e Marina Silva têm biografias parecidas – e a de que Marina teria sido a sucessora mais natural de Lula, não fossem as divergências que a levaram a deixar o Ministério do Meio Ambiente e depois o PT. Para chegar ao poder num país desigual como o Brasil, Lula e Marina fizeram uma travessia impressionante, uma espécie de jornada de herói. Mas as semelhanças acabam aí. Há enormes diferenças entre a trajetória de um filho de sertanejo que fez o caminho de São Paulo e se tornou operário e depois líder sindical, na região mais industrializada do país, e a trajetória de uma filha de seringueiro, seringueira ela também, na floresta amazônica, que iniciou sua carreira política em um estado como o Acre. Para alcançar a riqueza desse momento histórico do Brasil é preciso compreender que os Silva são diferentes.

Lula e Marina são ambos filhos do Brasil, mas de Brasis bem diversos. E é exatamente por causa de diferenças fundamentais de visões de mundo que, a certa altura, Marina não encontrou mais lugar no projeto do “lulismo”, usando a expressão do cientista político André Singer. A explicação para que a inserção de milhões de brasileiros, no governo Lula, tenha se dado pela via do consumo, é complexa. Mas pelo menos uma parte dela pode ser encontrada no desejo de Lula. No que significa para um operário ascender na escala social. Casa melhorada, roupa boa, geladeira nova e cheia, TV de tela plana, um carro na garagem.

Lula não encarna o sertanejo com uma relação íntima com o sertão, entendido aqui como natureza e cultura. Mas o movimento de transição de um mundo decodificado como passado, para um outro que é futuro. Ele é filho de uma família retirante que queria primeiro fugir da fome, depois subir na vida pelo ingresso na fábrica, pela via do “progresso” e da industrialização. Vencer na vida no mundo do Outro, apropriando-se dele e tornando-o seu pelo acesso aos seus signos. É esse universo de sentidos que ele compreende e com o qual dialoga, talvez como nenhum outro político da história do país. E é para estes pobres que seu governo significou inclusão social.

Marina, não. Ela se cria na floresta e é moldada por ela. Seu pai, migrante nordestino, tinha naquela região amazônica um ponto de chegada. Mesmo quanto a família tentava sair, era para o seringal que acabavam voltando. A iniciação política de Marina se dá nos “empates”, uma tática de resistência na qual homens, mulheres e crianças se dão as mãos para fazer uma corrente em torno da área ameaçada e impedir o seu desmatamento – e, com ele, sua expulsão daquele mundo. O mentor de Marina é Chico Mendes e a luta ali, naquele momento, é expressão de uma relação profunda com a mata, na qual um não se reconhece sem o outro. É uma luta por permanência, não por partida.

O conhecimento que funda Marina, analfabeta até os 16 anos, está contido nessa cultura em que é preciso saber a vocação de cada pé de pau para dominar a tecnologia complexa que permite a sobrevivência, na qual a terra não é mercadoria, mas vida. Sua capacidade de fazer a ponte entre esse saber, transmitido de geração em geração pela oralidade, com a palavra escrita, os livros e a produção acadêmica, é um dos capítulos mais bonitos da sua biografia. Marina só vai chegar ao centro-sul aos 36 anos de idade, já como senadora. Seu movimento pelo mapa se dá com o objetivo de levar ao coração do poder político o universo de sentidos do mundo que deixou não como passado, mas para que possa ser futuro. Se para Lula a possibilidade de ascender está na inclusão no mundo do Outro, para Marina o Outro é aquele que se experencia para alcançar a si mesmo.

Não se trata de dizer que Lula é melhor do que Marina – ou Marina melhor do que Lula. Apenas assinalar que Lula e Marina, os fenômenos políticos mais interessantes da história recente do país, carregam experiências diferentes de brasilidades. Às vezes, as necessidades imediatas da disputa eleitoral borram as nuances mais fascinantes. Se a ascensão de Lula ao poder já produziu no Brasil, só pelo fato em si, uma enorme mudança simbólica, a de Marina ainda é potência e incógnita. A incógnita aqui não colocada como um defeito, mas como possibilidade.

É bastante claro por que Dilma Rousseff, uma mulher urbana, de classe média, com tendência desenvolvimentista, tenha sido, para Lula e o conjunto de valores que o constitui, uma opção muito mais lógica como sucessora. Dilma é alguém com quem Lula tem muito mais afinidades do que Marina, apesar das evidentes diferenças entre eles. É nos sucessivos embates com Dilma, quando esta era ministra de Minas e Energia e depois ministra-chefe da Casa Civil, e Marina ministra do Meio Ambiente, que a ex-seringueira vai perdendo espaço dentro do governo do ex-operário e, em seguida, do Partido dos Trabalhadores. É óbvio que as opções de Lula e do PT se devem a questões de ordem política e econômica, a maioria delas bem pragmáticas, mas não se pode nem se deve esquecer a influência do universo de sentidos que forma o homem e do lugar a partir do qual ele enxerga o país. Para ser objetivo é necessário jamais perder de vista as subjetividades.

A partir do final do segundo mandato de Lula, algumas das lideranças históricas dos movimentos sociais na Amazônia, como por exemplo Antonia Melo e o bispo Dom Erwin Kräutler, ambos do Xingu, começam a perceber que o ser/estar no mundo dos povos da floresta, se antes pelo menos em tese tinham lugar no governo, já não têm mais espaço. E, a partir de Dilma Rousseff, nem mesmo interlocução. Para eles, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se a prova definitiva de que o projeto para a Amazônia de Lula e de Dilma guardava semelhanças com o da ditadura civil-militar: a floresta seguia sendo um corpo para exploração, e os povos da floresta um entrave a um tipo de desenvolvimento que nega sua existência e seu modo de vida. Nesse olhar, a Amazônia, para virar futuro, precisa tornar-se passado.

Lula – e Dilma ainda menos do que ele – pouco entendem dessas outras formas – e é importante assinalar que elas tampouco são homogêneas – de perceber o Brasil e de viver no Brasil. Mas, talvez mais grave do que não compreender outras maneiras de ser brasileiro é não achar que é preciso compreender. Compartilham essa ignorância com uma parte significativa da população, para a qual a Amazônia é longe demais em múltiplos sentidos, o que torna mais fácil perpetuar os crimes contra povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Assim como continuar ignorando, apesar dos sinais inequívocos que já marcam a vida cotidiana, que a mudança climática e as questões socioambientais nela implicadas são, senão o maior, um enorme desafio para qualquer governante desse tempo. Para essa parcela da população, o sonho de todo índio ou ribeirinho é ser pobre na periferia de uma cidade grande. E a pauta socioambiental é coisa de idealistas, sonhadores ou “ecochatos”, incapazes que são de perceber tanto a crise do planeta quanto o fato de que questões como saneamento básico, escassez de água e proliferação da dengue são socioambientais.

Em 2011, quando se começava a implantar o canteiro de Belo Monte, na região de Altamira, no Pará, passei um dia com o chefe de uma das famílias que seriam obrigadas a deixar a terra onde viviam para a construção da maior obra do governo. A certa altura, ele abraçou uma castanheira e desandou a chorar. Tentava me explicar por que ele não podia ser – sem ser ali. Ou a impossibilidade de habitar um mundo sem aquela árvore específica. De repente, o choro estancou e sua voz se encheu de raiva. Ele disse: “Fico revoltado quando Dilma diz que somos pobres. Por que ela pensa que somos pobres? De onde ela tira isso? Essa é a maior mentira”.

Aquele homem quase nada tinha de bens materiais, nem os desejava. Sequer os conhecia e, se conhecesse, não teriam lugar no seu cotidiano. Seu conceito de pobreza e de riqueza era totalmente outro, incompreensível para os fazedores de política do momento. E taxarem-no de pobre, no discurso de Brasília, o ofendia, porque se considerava rico. Não como um discurso bonito e um tanto abstrato, mas porque era de fato como rico que se enxergava, na medida em que a floresta lhe dava tudo o que precisava. Não só no nível concreto, mas também no simbólico. Para ele, a vida que ali tinha era boa.

Me parece que esses ricos e esses pobres Lula – e Dilma menos ainda – jamais conseguiram, ou mesmo quiseram, entender. Embora, como já foi dito, Lula tenha compreendido e dialogado com outros pobres – e com outros ricos. Quando Marina Silva afirma, no primeiro debate entre candidatos à presidência, na Rede Bandeirantes, que o líder seringueiro Chico Mendes, assassinado por sua resistência, era elite, é a partir dessa outra visão de mundo que ela também fala.

Essa ponte entre os vários Brasis, ainda inédita no comando da nação, Marina é a mais apta a fazer. Se de fato o fará, não há nenhuma garantia. Nem Lula foi um operário na presidência, nem Marina é hoje uma seringueira, ambos acrescidos e transformados por outras experiências vividas no curso de trajetórias bem extraordinárias. Mas, assim como Lula levou pela primeira vez ao poder uma visão de mundo muito diversa dos que antes haviam ocupado o Planalto, Marina poderá, caso for eleita, ser a primeira a carregar para o centro das decisões a experiência de quem vive na floresta e a compreensão de que o futuro pode não existir se essa experiência não for incluída no projeto de país. Nesse sentido, ela é muito mais século 21 do que sua principal rival na disputa pela presidência.

Uma curiosidade. Na campanha de 2002, quando Lula se elegeu pela primeira vez presidente, depois de outras três tentativas, havia um encantamento com sua presença vestida em ternos de grife nos salões de parte do PIB paulistano. Recebido pelo casal Eleonora (psicanalista) e Ivo Rosset (empresário, dono da Valisere, entre outras marcas), amigos de Marta Suplicy, Lula era uma espécie de operário que havia chegado ao paraíso. No poder, sua mulher, Marisa Letícia, logo fez plásticas, aplicou botox, mudou o figurino e adotou Wanderley Nunes, um dos cabeleireiros da moda. Muito antes, ainda em 1979, quando despontava como líder sindical nas greves do ABC paulista, Lula assim respondeu aos ataques por ter ido jantar no Gallery, a boate dos ricos e famosos da época, a convite da revista Manchete: “Eu quero que todo operário ganhe o suficiente para frequentar o Gallery”. Desde essa época ele já repetia que “pobre gosta de se vestir bem”.

Marina, a “seringueira, empregada doméstica e negra”, circula de outro modo nos salões paulistanos. Suas roupas são sóbrias, com detalhes étnicos, como a usada na entrevista do Jornal Nacional. Os adereços usam materiais naturais, como sementes da Amazônia, o batom é feito por ela mesmo, com suco de beterraba, já que tem alergia a produtos industrializados. O cabelo é um coque. Marina é vista como chique e moderna, dona de seu próprio estilo, em especial por um tipo de rico que vê na ostentação uma vulgaridade. Sua principal interlocutora nesse mundo é a socióloga Maria Alice Setúbal, mais conhecida como Neca Setúbal, acionista do Banco Itaú, mas também fundadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), uma das organizações mais respeitadas na área educacional. Se Lula era “pop”, Marina é “cool”. Vale a pena prestar atenção em como são decodificados aqueles que até há pouco tinham outro lugar nessa geografia para, de novo, não perder as nuances.

É preciso ter cautela com os fundamentalismos. Quem acusa Marina de ser “fundamentalista” está pasteurizando diferenças. Marina não é uma fundamentalista ambiental, como a acusam setores do agronegócio. Para uma parte do movimento socioambiental, o defeito de Marina é justamente ser menos radical do que os desafios do momento histórico exigem. O “desenvolvimento sustentável” que ela defende, para muita gente respeitável é apenas um conceito vazio, palatável para conversas bem comportadas, mas que oculta contradições profundas.

Marina tampouco é uma fundamentalista evangélica. Dizer isso é acreditar que Marco Feliciano, o deputado-pastor que barbarizou a comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, e Marina Silva são iguais. É confundir denominações religiosas que estão sob o mesmo guarda-chuva, mas que guardam diferenças bastante substantivas entre si. Compreender o Brasil evangélico, em toda a sua complexidade, é um desafio dessa época.

A quem interessa chamar Marina Silva de fundamentalista? A muitos, em especial a lideranças ruralistas, no que se refere à discussão socioambiental, e aos religiosos de fato fundamentalistas, no que diz respeito a questões como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao fazê-lo, rebaixam o debate, na tática mais do que conhecida, e forçam mudanças que beneficiam seus interesses e fortalecem seu lugar de representantes de seus respectivos públicos.

Isso não significa que o eleitor deva deixar de prestar – grande – atenção ao fato de Marina Silva ter posição contrária às pesquisas com células-tronco embrionárias, já ter se declarado “pessoalmente não favorável” ao casamento gay, ter defendido na eleição de 2010 um plebiscito para o aborto e, principalmente, ter cometido na semana passada o ato lamentável, para dizer o mínimo, de voltar atrás no seu programa de governo, um dia depois de tê-lo lançado, no que se refere às políticas para a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).

Com Marina Silva com chances de ganhar, o que se desenha para o Brasil é uma eleição muito mais desafiadora e complexa. É legítimo afirmar que seu discurso é “difuso”, assim como a “nova política” que diz encarnar pode ter ecos de um passado perigoso. Mas é preciso perceber que esta é a sua força nas urnas, não sua fraqueza. A tal “pauta difusa”, uma das fragilidades que setores da sociedade e da mídia viram nas manifestações de junho de 2013, mobilizou multidões. Marina atua nas redes sociais há muito e sabe escutá-las. Circula por elas desenvolta, enquanto outros as frequentam apenas em épocas eleitorais ou em momentos estratégicos, fazendo uma paródia digital das tradicionais visitas de políticos às favelas para as quais não voltam depois, tão à vontade em um e outro lugar quanto bagres num shopping.

“Amadora” e “aventureira” é como Marina têm sido chamada por seus opositores. “Improviso” é outra palavra escolhida para atacar seu discurso. Sem entrar nem em juízos de valor nem na adequação ou não desses termos à Marina Silva, vale a pena lembrar a quem os esgrime, na tentativa de provocar rejeição à candidata, que eles deixaram de ser ofensas há algum tempo, para se transformar em virtudes. A “indefinição”, outra palavra usada para atacá-la, parece ter sido até agora a opção de parte dos eleitores, para os quais a “definição” de outros candidatos é sentida como insuportável. Tudo indica que, de várias maneiras, este é um momento em que, para muitos, os pontos de interrogação soam como possibilidades – e o risco parece ter se tornado uma alternativa melhor do que certezas que preferem rejeitar.

O que isso significa? A chance de começar a desvendar os tantos sentidos dessa eleição fascinante é devolver a complexidade aos protagonistas. Compreender, por exemplo, qual Silva é Marina.

(Publicado no El País em 01/09/2014)

 

A ditadura que não diz seu nome

O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

 

“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”

A declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5º Batalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:

– Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.

É uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz, o presente precisa ser iluminado com urgência.

Há vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu ideário. E o mantê-lo na democracia.

A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a “interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia.

É primeiro no governo Lula, e com mais força e empenho a partir da posse de Dilma Rousseff, que grandes obras previstas pelos militares, como a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu – a mais polêmica, mas não a única – são impostas aos povos da floresta. O conturbado processo que forçou a construção de Belo Monte, entre outras arbitrariedades violou tanto a Constituição quanto tratados internacionais. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assegura aos indígenas o direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo tradicional de vida – e não foram. Outras hidrelétricas estão em curso, com grande resistência de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, como as usinas previstas para o rio Tapajós, no Pará.

É nesse governo eleito que a Força Nacional baixa sobre as comunidades tradicionais que vivem há séculos na área dos megaprojetos com a justificativa, entre outras, de garantir a segurança dos pesquisadores que farão o inventário socioambiental. Na prática, é usada para reprimir a resistência legítima desses povos, cujos direitos são amparados pela Constituição. É na democracia que grandes empresas financiadas pelo dinheiro público do BNDES executam obras que alteram o ecossistema regional sem cumprir suas obrigações, na forma de condicionantes, causando estragos irreversíveis e aniquilando vidas, como se viu agora na enchente histórica do rio Madeira.

É também nesse período democrático que um instrumento criado na ditadura, a “Suspensão de Segurança”, tem sido usado para garantir a continuidade dos megaempreendimentos, como foi denunciado no último 28 de março na Organização dos Estados Americanos (OEA). O instrumento permite a tribunais superiores anular decisões judiciais de instâncias inferiores, independentemente do mérito, se as cortes entenderem que as sentenças representam risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas”. O mecanismo controverso tem sido usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras, como Belo Monte e a estrada de ferro de Carajás.

E a maioria dos brasileiros não estranha – ou estranha muito pouco – essa versão do “Brasil Grande” da ditadura que se consolida com outros nomes na democracia. Não decodifica essa violência como violência, não decodifica o autoritarismo como autoritarismo. O mais perigoso é sempre aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como inevitável – e na Amazônia a violência de Estado tornou-se natureza.

Poderia ser uma surpresa o fato de o mito amazônico forjado na ditadura persistir na democracia. Mas não chega a ser, porque é esse mito, convertido em verdade única, que permite que a Amazônia siga sendo tratada como objeto de espoliação, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada. Um corpo a ser violado, à disposição de exploradores de passagem, sejam eles técnicos do governo, políticos de amplo espectro partidário, grileiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros. Quem nesse território permanece, nele nasce, tem raízes e constrói memória torna-se um obstáculo, como os povos indígenas. Um não-ser, como os ribeirinhos e quilombolas, os invisíveis entre os invisíveis. Um obstáculo não ao desenvolvimento, como se repete à exaustão, mas à manutenção desse mito – à continuidade do ideário que legitima, há décadas, a destruição da floresta e dos povos da floresta para acomodar os interesses dos centros de poder.

Esta é uma entre várias razões para que a afirmação de pertencimento dessas populações seja vista como ilegítima, já que a floresta não seria terra para a vida, mas para a exploração e o uso. Como reivindicar a construção de sentidos naquela que é objeto de passagem e de dilapidação? A Amazônia serve ao centro, numa lógica que ainda obedece, na segunda década do século 21, aos preceitos do sistema colonial, na qual a periferia serve à matriz.

Para muitos, incluindo burocratas do governo instalados em ministérios como o de Minas e Energia, a Amazônia é apenas uma fonte de matérias-primas e de energia para as grandes indústrias que produzem para exportação. Tem sido, também, uma fonte de pagamento de compromissos não pronunciados de campanha, na forma de grandes obras financiadas pelo BNDES. A floresta é também aquela que pode ser derrubada para expandir a fronteira agropecuária, num momento em que os ruralistas constituem a maior bancada suprapartidária, em um Congresso que se pauta pela chantagem, e alcançam níveis inéditos de influência em um governo que assegura apoio pela barganha. É ainda uma reserva simbólica para unir o Brasil que a desconhece num ufanismo tortuoso contra “os gringos que querem tomar a Amazônia”. Nada parece mais eficaz do que criar uma ameaça externa para engordar nacionalismos de ocasião, que só favorecem aos mesmos de sempre. Se é disso que se trata, convém perceber que há um tipo de “gringo” que há muito está lá, em megaprojetos de multinacionais que expulsaram as populações locais com o apoio de sucessivos governos. Na ditadura, mas também na democracia.

A Amazônia é devastada em nome de várias manipulações, concretas e simbólicas. Para que continue a servir aos interesses dos centros de poder, é preciso que o modelo de exploração persista. E, para que persista, quando o aquecimento global e a destruição do meio ambiente se tornam temas vitais no mundo, quando a questão da água ascende ao topo da pauta, é preciso forjar novos inimigos. É nesse contexto que os povos indígenas passam a ser vendidos à população, predominantemente urbana do país, como “entraves ao desenvolvimento”. Isso no discurso tanto de setores conservadores da sociedade quanto em falas oficiais de setores do atual governo.

Aqueles que pertencem à terra são convertidos em despertencidos, o sentido mais profundo de “entrave”, para que a Amazônia se mantenha no mesmo lugar de corpo para violação. Em nome de “interesses nacionais”, quando, de fato, o que se mascara como nacional são, historicamente, projetos de poder de grupos políticos específicos e projetos de lucro de grupos econômicos privados. Estes, fazem alianças circunstanciais ou permanentes para manter a lógica de espoliação intacta. Fizeram na ditadura, fazem na democracia. Sem que se estranhe o suficiente, porque a distância da Amazônia não é apenas geográfica. Para compreendê-la é preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de estar no mundo.

Os povos indígenas resistem desde 1500, mas nesse século ampliaram sua voz, pelas possibilidades abertas pela internet, e passaram a divulgar suas narrativas múltiplas. Em comum, a resistência ao genocídio que segue em curso e ganhou roupagens mais sofisticadas. É também por isso que os ataques contra esses povos se acirraram, não apenas na forma de agressões físicas e destruição de aldeias, mas nos vários projetos que tramitam no Congresso e que significam, na prática, sua aniquilação física e cultural. Como não é mais possível silenciar a sua voz, é preciso transformá-los em inimigos. O inimigo não se escuta, diga o que disser, porque não lhe é reconhecida a legitimidade para dizer. Esse é o objetivo da bem sucedida propaganda em curso, que coloca os mais de 200 povos indígenas, habitantes também de outros ecossistemas além da Amazônia, como “entraves ao desenvolvimento” do Brasil. Por estarem no caminho das grandes obras, por estarem coletivamente sobre as terras cobiçadas para lucros privados.

Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa também é parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa questão do “índio verdadeiro” e do “índio falso”, como se existisse uma espécie de “certificado de autenticidade”. Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam, porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal seria transformar todos em pobres, moradores das periferias das cidades, dependentes de programas de governo. Nesse lugar, geográfico e simbólico, nenhum privilégio seria colocado em risco. E não haveria nada entre os grandes interesses sem nenhuma grandeza e o território de cobiça.

Quando alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que “índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os povos da floresta. No momento em que o Brasil disseca o golpe que completou 50 anos, tão importante quanto jogar luz sobre o passado é compreender o que dele permanece entre nós – com a nossa estreita colaboração.

(Publicado no El País em 31/03/2014)

Índios, os estrangeiros nativos

A dificuldade de uma parcela das elites, da população e do governo de reconhecer os indígenas como parte do Brasil criou uma espécie de xenofobia invertida, invocada nos momentos de acirramento dos conflitos

A volta dos indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores sobre a impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer não só sobre o seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para uma parcela das elites, da população e do governo, algo que poderíamos chamar de “estrangeiros nativos”. É um curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que aqui estavam são vistos como os de fora. Como “os outros”, a quem se dedica enorme desconfiança. No processo histórico de estrangeirização da população originária, os indígenas foram escravizados, catequizados, expulsos, em alguns casos dizimados. Por ainda assim permanecerem, são considerados entraves a um suposto desenvolvimento. A muito custo foram reconhecidos como detentores de direitos, e nisso a Constituição de 1988 foi um marco, mas ainda hoje parecem ser aqueles com quem a sociedade não índia tem uma dívida que lhe custa reconhecer e que, para alguns setores – e não apenas os ruralistas –, seria melhor dar calote. Para que os de dentro continuem fora é preciso mantê-los fora no discurso. É isso que também temos testemunhado nas últimas semanas.

Entre os exemplos mais explícitos está a tese de que não falam por si. Aos estrangeiros é negada a posse de uma voz, já que não podem ser reconhecidos como parte. Sempre que os indígenas saem das fronteiras, tanto as físicas quanto as simbólicas, impostas para que continuem fora, ainda que dentro, é reeditada a versão de que são “massas de manobra” das ONGs. Vale a pena olhar com mais atenção para essa versão narrativa, que está sempre presente, mas que em momentos de acirramento dos conflitos ganha força.

Desta vez, a entrada dos indígenas no noticiário se deu por dois episódios: a morte do terena Oziel Gabriel, durante uma operação da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, e a paralisação das obras de Belo Monte, no Pará, pela ocupação do canteiro pelos mundurucus. O terena Oziel Gabriel, 35 anos, morreu com um tiro na barriga durante o cumprimento de uma ordem de reintegração de posse em favor do fazendeiro e ex-deputado pelo PSDB Ricardo Bacha, sobre uma terra reconhecida como sendo território indígena desde 1993. Pela lógica do discurso de que seriam manipulados pelas ONGs, Oziel e seu grupo, se pensassem e agissem segundo suas próprias convicções, não estariam reivindicando o direito assegurado constitucionalmente de viver na sua área original. Tampouco estariam ali porque a alternativa à luta pela terra seria virar mão de obra barata ou semi-escrava nas fazendas da região, ou virar favelados nas periferias das cidades. Não. Os indígenas só seriam genuinamente indígenas se aceitassem pacífica e silenciosamente o gradual desaparecimento de seu povo, sem perturbar o país com seus insistentes pedidos para que a Constituição seja cumprida. Aí já há uma pista para o que alguns setores da sociedade brasileira entendem como identidade “verdadeira”: ser índio seria, quando não desaparecer, ao menos silenciar.

No caso dos mundurucus, questionou-se exaustivamente a legitimidade de sua presença no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, por estarem “a 800 quilômetros de sua terra”. De novo, os indígenas estariam extrapolando fronteiras não escritas. Os mundurucus estavam ali porque suas terras poderão ser afetadas por outras 14 hidrelétricas, desta vez na Bacia do Tapajós, e pelo menos uma delas, São Luiz do Tapajós, deverá estar no leilão de energia previsto para o início de 2014. Se não conseguirem se fazer ouvir agora, eles sabem que acontecerá com eles o mesmo que acabou de acontecer com os povos do Xingu. Serão vítimas de um outro discurso muito em voga, o da obra consumada. A trajetória de Belo Monte mostrou que a estratégia é tocar a obra, mesmo sem o cumprimento das condicionantes socioambientais, mesmo sem a devida escuta dos indígenas, mesmo com os conhecidos atropelamentos do processo dentro e fora do governo, até que a usina esteja tão adiantada, já tenha consumido tanto dinheiro, que parar seja quase impossível.

Adiantaria os mundurucus gritarem sozinhos lá no Tapajós, para serem contemplados no seu direito constitucional, respaldado também por convenção da Organização Internacional do Trabalho, de serem ouvidos sobre uma obra que vai afetá-los? Não. Portanto, eles foram até Belo Monte se fazer ouvir. Mas, como são indígenas, alguns acreditam que não seriam capazes de tal estratégia política. É preciso resgatar, mais uma vez, o discurso da manipulação – ou da infiltração. Já que, para serem indígenas legítimos, os mundurucus teriam de apenas aceitar toda e qualquer obra – e, se fossem bons selvagens, talvez até agradecer aos chefes brancos por isso.

Quando os indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos indígenas como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses, inclusive o de tirar do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de quem o difunde. Mas esse discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão de uma parte significativa da população brasileira. E esta adesão se dá, me parece, por essa espécie de xenofobia invertida. Estes “estrangeiros nativos” ameaçariam um suposto progresso, já que seu conhecimento não é decodificado como um valor, mas como um “atraso”, sua enorme diversidade cultural e de visões de mundo não são interpretadas como riqueza e possibilidades, mas como inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de como esse olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta atendia “da toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o ministro situa o ápice da civilização e também o seu oposto.

Há ainda uma dupla invocação do estrangeiro nesse discurso, já que a única coisa pior do que ser “massa de manobra” de ONGs nacionais seria ser das estrangeiras. Evocar a ameaça externa parece sempre funcionar, como naqueles SPAMs, que volta e meia reaparecem, de que “os gringos estão invadindo a Amazônia” – esta também, tão nossa que podemos destruí-la, tarefa a que temos nos dedicado com afinco. Ao denunciar uma suposta apropriação do corpo simbólico dos indígenas por outros, o que se revela, de fato, é a frustração porque esse corpo não se deixa expropriar e manipular pelas elites como antes. Porque apesar de todas as violências, há uma voz que ainda escapa – e que demanda o reconhecimento de seu corpo-terra, de seu pertencimento. Aquele que é visto como o de fora se torna um incômodo quando diz que é parte.

Vale a pena prestar atenção em quem amplifica o discurso dos indígenas como “massa de manobra”, para verificar que fazem exatamente o que acusam outros de fazer: afirmam o que os indígenas, todos eles, precisam e querem. Parece haver um consenso, inclusive, de que o verdadeiro desejo dos indígenas seria se tornar um trabalhador assalariado e urbano ou, pelo menos, o beneficiário de algum programa de transferência de renda do governo.

Nesta posição, eles não atrapalhariam ninguém – e menos ainda os produtores rurais. Este é o momento chave para a entrada de outro discurso recorrente: o de que os indígenas querem terra “demais”. Basta fazer as contas, como fez o jornalista Fabiano Maisonnave, na Folha de S. Paulo: com uma população de 28 mil indígenas em Mato Grosso do Sul, os terenas têm sete reservas, somando cerca de 20 mil hectares; já o produtor rural Ricardo Bacha, em cuja fazenda foi morto o terena Oziel Gabriel, tem cerca de 6.300 hectares, dos quais 800 em litígio. Se é de concentração de terra na mão de poucos que se pretende falar, há muitos números ilustrativos que podem ser citados. Outro dado interessante vem de uma pesquisa da Embrapa, citada em artigo do engenheiro florestal Paulo Barreto, no site O Eco: há 58,6 milhões de hectares de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. “A Embrapa tem demonstrado que já existem as tecnologias para aumentar a produtividade dos pastos degradados. Assim, ocupar terra indígena é, além de inconstitucional, prova de incompetência”, afirma Barreto. A Embrapa é um dos novos atores que deverão ser chamados para opinar sobre as demarcações, numa manobra para esvaziar a Funai e agradar a bancada ruralista.

O lugar de estranho indesejado,supostamente sem espaço no Brasil que busca o desenvolvimento, tem permitido todo o tipo de atrocidades contra indivíduos e também contra etnias inteiras ao longo da história. Seria muito importante que cada brasileiro reservasse meia hora ou menos do seu dia para ler pelo menos as primeiras 16 páginas do resumo do Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012 por Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7 mil páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. A íntegra também está disponível na internet.

O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes, cujos responsáveis foram nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos” infligidos pelos funcionários aos indígenas, como crucificações e uma tortura conhecida como “tronco”, na qual a vítima tinha o tornozelo triturado. Crianças eram vendidas para abusadores, mulheres, estupradas e prostituídas. Duas aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para atender aos interesses de políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena inteira foi extinta por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer tentassem protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões do governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato Grosso, de várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando estricnina ao açúcar, além de caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre ocorreu em 1963, ainda no período democrático, portanto, e os que ainda assim sobreviveram foram rasgados com o facão, “do púbis a cabeça”.

A lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na época de Pedro Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na década de 60 do século XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico. Cabe enfatizar ainda que os crimes foram infligidos aos indígenas, num comportamento disseminado por todo o país, por representantes do Estado brasileiro. Menciono o relatório não só porque acredito que precisamos conhecê-lo, mas porque ele demonstra que tipo de olhar permite que atrocidades dessa ordem tenham se tornado uma política não oficial, mas exercida como se fosse – e não por um único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas esposas, com o apoio e às vezes a ordem da direção do órgão criado para proteger os povos tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era território a ser violado, como violada foi a sua terra. Como aqueles sem lugar, os indígenas não eram reconhecidos como iguais, nem mesmo como humanos. Eram o que, então? O procurador responde: “Tudo como se o índio fosse um irracional, classificado muito abaixo dos animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse da produção, certa assistência e farta alimentação”.

Para quem imagina que este capítulo é parte do passado, vale a pena lembrar que apenas nos últimos dez anos, nos governos Lula-Dilma, foram assassinados 560 indígenas. A Constituição precisa ser cumprida, as demarcações devem ser feitas, os fazendeiros que possuem títulos legais, distribuídos pelo governo no passado, têm direito a ser indenizados pelo Estado. Mas há um movimento maior, mais profundo, que é preciso empreender. Como “estrangeiro nativo”, uma impossibilidade, só é possível perpetuar a violência.É necessário fazer o gesto, também em nível individual, de reconhecer o indígena como parte, não como fora. Para isso é preciso primeiro desejar conhecer, o gesto que precede o reconhecimento. Só então o Brasil encontrará o Brasil.

(Publicado na Revista Época em 10/06/2013)

 

À margem do pai

Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

Prostrado diante dos dois filhos agonizantes, Antonio da Rocha se descobre só. Sua brasilidade é de papel. À beira de um rio da Amazônia, ele está à margem da Constituição. Na Terra do Meio, no oeste do Pará, Antonio parece o personagem de um quadro de Portinari, um homem da cor do tronco das árvores, por volta de seus 40 e poucos anos, feito só de músculos. Está cercado pela mulher e por filhos que não o chamam “meu” pai, mas “o” pai. Antonio é o pai impotente que chora na noite do mundo.

É quinta-feira, 28 de março. E agora vamos precisar voltar algumas horas no tempo.  Avistamos Antonio e os filhos mais velhos movendo-se como gatos humanos na mata. Nas costas eles trazem o jamanxim, um cesto trançado em palha para carregar os frutos da floresta. Estão embrenhados na selva para catar patauá, de cuja semente se extrai óleo, e açaí, para fazer vinho para a Sexta-Feira Santa. São homens que não estão na floresta – são floresta. É por gente como eles, que é onde muitos apenas estão, que a Terra do Meio ainda resiste.

A tragédia acontecerá daqui a alguns minutos, mas vale a pena nos afastarmos do quadro enquanto eles evolucionam pela floresta. Agora há só verde a perder de vista, um verde quase opressor, um verde que uma vida inteira não é suficiente para esquecer. A Terra do Meio é assim chamada por se estender entre dois grandes maciços de terras indígenas, e entre dois rios, o Xingu e o Iriri. Essa geografia dificultou a devastação oficial, promovida pela ditadura militar nos anos 70, e retardou a devastação não oficial, promovida pelos grileiros ao longo das décadas – e ainda neste exato momento. Mas se a Terra do Meio é hoje uma das regiões amazônicas mais preservadas, com cerca de 90% da floresta em pé, é ao mesmo tempo o centro de um sangrento conflito por terras que a hidrelétrica de Belo Monte só fez piorar.

Agora falta apenas um minuto para a tragédia. Pode parecer uma banalidade aqueles homens coletando frutos numa tarde de quinta-feira. Mas a banalidade é uma ilusão. Antonio pertence a uma comunidade formada por descendentes de soldados da borracha arrancados do Nordeste quando o preço do látex estava em alta e abandonados na mata quando o preço caiu. Esses ribeirinhos extrativistas firmaram resistência quando os grileiros tentaram sangrar a floresta no início dos anos 2000, rasgando estradas, queimando casas, expulsando e matando gente como eles. Sem documentos, o Povo do Meio sequer existia para o Brasil oficial. Mas se fez enxergar e, ao fazê-lo, construiu um épico escrito por analfabetos. Conquistou a primeira reserva extrativista da Terra do Meio, a Resex Riozinho do Anfrísio, assinada por Lula em 2004. Com essa certidão de nascimento, o Brasil reconhecia o Brasil.

Agora não há mais tempo para o passado. São 17h30. Antonio e seus filhos movem-se pela floresta como parte, não como fora. Valdeci, de 19 anos, sente a fisgada. Nem vê a cobra. “Viu de viagem, não deu pra conhecer”, explicaria depois Lindomar, de 20. Quase ao mesmo tempo Francenildo, de 13, dá um grito. Tinha sido ferroado por um escorpião. Um “lacrau preto ovado” que Lindomar mata com o terçado. A Valdeci é dada a única dose de Específico Pessoa, um elixir contra veneno de cobra, aranha e escorpião que trazem sempre consigo. Não há mais Específico Pessoa para Francenildo. Ele mesmo ainda não sabe que está quase morto e faz questão de carregar seu jamanxim nas costas até o rio.

Antonio da Rocha já nasceu sabendo que não se pode aguar a picada, que se a ferida molha a vítima pode sentir uma sucessão de choques no corpo que levam à morte. Ele atravessa o charco até a canoa carregando o filho agonizante nos braços. Francenildo vem logo atrás. Num repente, o menino dá um único gemido e cai espumando. Antonio da Rocha tinha acabado de depositar o primeiro filho na canoa quando corre até o segundo, enfia as duas mãos na boca do menino e só tira de lá espuma. A ferida está molhada. Lindomar junta o jamanxim dos irmãos e carrega-os penosamente. “Fiquei esperando por Deus o que ia acontecer.”

Uma tempestade cai sobre eles. Ser alcançado por uma borrasca numa canoa no meio de um rio da Amazônia é como testemunhar uma convulsão do mundo, um princípio e um fim. Antonio da Rocha carrega dois filhos que morrem e sua alma ruge em uníssono com o temporal. Já não há mais dentro e fora, o encerado que cobre a canoa não é capaz de protegê-los. Quando alcançam o porto, a casa e a família, eles viraram água. É água doce, mas Antonio, que tem sobrenome de rocha, chora sal.

É preciso fazer um minuto de silêncio antes de continuar a ler para compreender a solidão de um pai, impotente diante dos filhos que agonizam, no coração não metafórico da floresta amazônica.

(um minuto de silêncio)

Não é possível alcançar a dor de Antonio, porque não a conhecemos. Ou, pelo menos, a maioria de nós tem a fortuna de não a conhecer.

Um dia antes, ele havia dito: “Sou um homem de sorte. Tenho 14 filhos, só perdi um. E todos vivem comigo”. Seis mulheres e sete homens vivos, uma sétima filha morta por “vento caído” ainda bebê. No dia seguinte, ele dirá: “A sorte acabou”.

Há postos de saúde na Terra do Meio, três, construídos por meio de um termo de cooperação entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a prefeitura de Altamira. Mas estão vazios. Não há auxiliares de enfermagem, nem equipamentos ou remédios, não há nada nem ninguém. A explicação da prefeitura à imprensa é que não consegue gente qualificada para trabalhar porque a Norte Energia, responsável por Belo Monte, oferece salários muito mais altos, a do governo do estado do Pará é de que essa assistência é atribuição da prefeitura e a do governo federal é de que repassou recursos à prefeitura. Não há postos de saúde, portanto, nem no Riozinho do Anfrísio, nem nas outras reservas extrativistas da Terra do Meio. Quem protege a floresta não é protegido – nem tem assegurado seus direitos constitucionais.

Antonio da Rocha está só de mais de uma maneira. À meia-noite, quando a quinta-feira vira Sexta-Feira Santa, Francenildo morre. Com 13 anos presumidos, aparentando menos de 10, botando sangue pelo nariz e pela boca. A mãe e as irmãs enrolam seu corpo franzino em trapos. Uma fralda com bichinhos, um lençol listrado, um pano branco, uma camiseta amarela. Como se fosse uma múmia egípcia, com as mãos cruzadas sobre o peito. Ou um menino ninja, só com os olhos de fora. Referências do mundo de lá, porque de fato ele é um menino da floresta com a mortalha possível, porque sem mortalha acreditam que não se encontra a porta do céu.

Francenildo é velado sem vela, o que causa imensa aflição ao pai e à mãe. Sem luz também não se encontra a porta do céu. Colocam duas lamparinas, mas é preciso velas para velar direito. Há algum tempo eles se converteram evangélicos, mesmo sem desacreditar nem de rezas de outra tradição, nem de visagens que lhes dão notícias do além. Então alguém coloca uma daquelas Bíblias baratas de capa colorida sobre o corpinho mirrado de Francenildo. De tempos em tempos um dos meninos menores vai lá, resgata a Bíblia e fica folheando o livro fingindo ler. Como Antonio, o pai, todos são analfabetos. Francenildo morre sem letras. E para esta escuridão nada mais poderá ser feito.

Enquanto tudo isso acontece, Valdeci agoniza.

Os vizinhos chegam para o velório em rabetas ou remando suas canoas. Ser vizinho na Terra do Meio é estar a horas de distância, quando muito perto, a um dia quando perto, a alguns dias quando meio perto. Para Valdeci tudo está longe demais, especialmente Altamira, nesta época do ano a dois dias de rio na voadeira, o barco mais veloz, a cinco dias na seca. Longe demais para Valdeci viver. Mas Antonio da Rocha ainda é um homem de sorte, embora possivelmente ele não ouse mais se definir deste modo. Um dia antes haviam passado pela região uma procuradora da República, Thais Santi, que investigava as condições de saúde e de educação na Terra do Meio, e dois pesquisadores a serviço da Associação de Moradores do Riozinho do Anfrísio, Maurício Torres e Daniela Alarcon. Ainda estão nas redondezas, a quatro horas de rabeta, quando são avisados do acontecido. Testemunham o que Maurício assim definiria: “o triste dia a dia de uma gente para quem não morrer é um golpe de sorte”.

Ao descobrir que um menino já tinha morrido e o outro morreria em breve, Thais e Daniela tentam contato com Altamira por rádio, em busca de socorro aéreo. Mesmo para uma procuradora leva horas para se conseguir um helicóptero, que pousa sobre um campo de futebol na terra indígena de Cachoeira Seca, no rio Iriri. É muitas vezes aos índios, que com muita luta conseguiram uma unidade de saúde capenga, que os ribeirinhos extrativistas vão pedir ajuda.

Antonio da Rocha nunca tinha se separado de um filho. Ele é como o seu barco que batizou de “Pai e filhos”, um todo indivisível navegando em águas brutais. Agora um homem-barco partido. Finca seu olhar bem dentro dos olhos de Maurício antes de entregar-lhe Valdeci. Não é um olhar que pode ser descrito. As palavras para descrever esse olhar ainda não foram inventadas.

No alto do barranco homens, mulheres e crianças choram na despedida como se fosse morte. Com Valdeci vai Lindomar, encarregado de representar a família no mundo estrangeiro da cidade. Com um filho nas águas, o outro na terra, Antonio da Rocha soçobra. No velório as conversas dão conta do seu fracasso. “Deu Específico Pessoa para o filho errado”, diz um. “Deixou molhar”, emenda outro. Antonio parece só sentir uma culpa, e esta vai arrastar consigo verde afora. A de não ter braços em número suficiente para carregar dois filhos. Como ele poderia escolher que filho carregar em seus braços de pintura de Portinari? Como ele pôde deixar um enquanto carregava o outro? Como se vive depois de descobrir que apenas dois braços faz do pai um aleijado?

Quando Valdeci alcança primeiro a Cachoeira Seca, depois o hospital de Itaituba e por fim o de Altamira, um médico ri ao saber que ele tinha recebido uma dose de Específico Pessoa. “Isso não adianta nada, é uma bobagem”, gargalha. Há um mundo inteiro que não se mede em quilômetros entre o médico e Antonio. Um mundo em que Específico Pessoa é a medicina possível, porque os médicos que riem das suas crenças preferem não ir tão longe. Lindomar traz uma lista de precisões para comprar na cidade e levar de volta para casa junto com Valdeci vivo, depois de três dias de internação. Nesta lista, uma tese de antropologia inteira: dois antibióticos e um anti-inflamatório, aguardente Alemã (que livra de todo mal), Pílula Contra tudo (contra tudo o que é ruim), Pílula de Vida. Específico Pessoa.

E velas para Francenildo achar seu caminho.

(Publicado na Revista Época em 08/04/2013)

 

Dom Erwin Kräutler:

 “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”

 

O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

Eliane Brum

Nesta segunda-feira, um homem grande, de sorriso caloroso e cabelos brancos, embarcou em um avião para o Brasil. Para o Brasil apenas, não. Para a Amazônia. Depois de 40 dias na Áustria, a terra onde nasceu, ele sente falta da geografia que escolheu para ser sua desde o momento em que, ainda jovem e tropeçando no português, descobriu maravilhado que o Reno é “um igarapé comparado ao Xingu”. Dom Erwin suspira de saudades do rio, das gentes, dos cheiros e até do clima da cidade paraense de Altamira, com temperaturas e humores tão intratáveis que só agrada aos mais fortes. Este homem, que circulava livremente por ruas imaculadas na primavera austríaca, onde foi garimpar recursos para projetos sociais na Amazônia, volta agora para sua rotina de prisioneiro. Há seis anos, Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, não dá um passo no Brasil sem estar sob a escolta dos quatro policiais que se alternam para proteger sua vida.

Perto de completar 73 anos, Dom Erwin, que acolheu e depois enterrou a missionária assassinada Dorothy Stang, vive na mira de pistoleiros. Homens contratados por gente graúda para calar uma voz que há quase meio século eleva o tom na defesa dos mais pobres e dos mais frágeis, dos indígenas, dos ribeirinhos e dos extrativistas da Amazônia. Dom Erwin tem escrito, com rara coerência, um capítulo crucial de uma história pouco contada no Brasil: o papel da Igreja Católica, especialmente a dos religiosos ligados à Teologia da Libertação e às comunidades eclesiais de base, na proteção dos povos da floresta – e da própria Amazônia – a partir da segunda metade do século XX.

A maioria das etnias indígenas e das comunidades amazônicas que conquistaram direitos e terras nas últimas décadas deve parte de sua organização aos setores mais progressistas da Igreja Católica. Assim como parte das lideranças políticas que hoje influenciam os rumos do país surgiu na atuação de base da Igreja. Isso vai muito além da religião – é História. E uma história cujo sentido as alas mais conservadoras da própria Igreja preferem enfraquecer. Neste capítulo, Dom Erwin, capaz de falar tão bem o grego clássico quanto a língua dos Kayapó, é um dos protagonistas mais fascinantes.

E resistente. A cada ano, apesar da idade avançada e das dores na coluna, ele visita 15 paróquias do Xingu. Ao alcançá-las, peregrina pelas comunidades dos cafundós. Dorme no barco, dorme em rede. Acostumou-se tanto à dieta local, que fica feliz por comer peixe no almoço e no jantar, de segunda a segunda. É adorado pelo povo mais pobre – e odiado sem reservas por parte da elite paraense, que o ataca também pela imprensa de Belém do Pará.

Desde a decisão de Lula, e agora de Dilma Rousseff, de arrancar Belo Monte do papel, o quase lendário bispo do Xingu tem feito uma oposição incansável contra a hidrelétrica que provoca controvérsia dentro e fora do Brasil. Por causa dela, tornou-se uma presença incômoda para setores do governo e do PT que um dia apoiou – inclusive com o seu voto. Incômoda, especialmente, porque é difícil destruir a reputação de um bispo que mantém a coerência desde a ditadura militar em uma das regiões mais conflagradas do país, ajudou a escrever os artigos da Constituição de 1988 que garantem os direitos indígenas e não recuou nem mesmo diante da ameaça de perder a própria vida.

Nesta entrevista, Dom Erwin diz o que pensa contra antigos aliados com o mesmo desassombro com que denunciou grileiros e estupradores no passado recente. Acusa o PT de “traidor” – e diz que alguns petistas são “fanáticos religiosos”. Afirma que Lula e Dilma implantaram uma “ditadura civil” ao “desrespeitar os direitos indígenas assegurados na Constituição”. E afirma que Lula passará para a História como “o presidente que destruiu a Amazônia e deu o golpe nos povos indígenas”.

Às vésperas da Rio + 20, o depoimento de Dom Erwin Kräutler abre uma janela para a compreensão da história contemporânea. A entrevista a seguir foi feita na casa do bispo, em Altamira, com os policiais militares que o protegem do lado de fora da porta, mas atentos. Os quatro policiais demonstram uma preocupação que transcende o dever: adoram Dom Erwin, que conhece suas mulheres e filhos e escuta suas aflições de cada dia.

Em três horas de conversa, Dom Erwin não evitou nenhuma pergunta. Vale a pena abrir um espaço para escutar com atenção um homem capaz de apontar as contradições e ampliar a complexidade do momento estratégico vivido pelo Brasil, no qual as escolhas tomadas hoje determinarão o que seremos amanhã.

“QUANDO EU VI O XINGU, PERDI O FÔLEGO”

– O que o senhor faz quando está na Áustria e qual é a sensação de viver sem escolta, sem policiais ao redor?

Dom Erwin Kräutler – É necessário que eu passe todos os anos pelo menos um mês na Áustria, com a finalidade de conseguir recursos para manter e sustentar as obras sociais e pastorais do Xingu. Tenho, além disso, muitos convites de universidades e organizações que defendem os Direitos Humanos e o Meio Ambiente. Quando é possível, eu me hospedo na minha casa materna/paterna e vivo, fora dos compromissos, uma vida de “eremita”. Isso me faz um bem enorme. Ando livremente pelos bosques da terra onde nasci. Admiro a natureza, as flores, os campos, as árvores que na primavera se revestem de sua folhagem de tons tão diversos. Levanto antes das 5 horas para poder “ouvir o silêncio” matutino e ver os primeiros raios do sol. É maravilhoso. É uma sensação de liberdade total que faz bem à alma e ao coração.

– Como um austríaco escuta pela primeira vez a palavra Xingu e acaba se mudando para o Brasil e fazendo do Xingu a sua casa?

Dom Erwin – Ouvi a palavra Xingu pela primeira vez aos 4 ou 5 anos, durante a Segunda Guerra Mundial. A minha mãe sempre falava do irmão dela, Dom Eurico Kräutler, na época Padre Eurico, que estava no Brasil desde 1934. Uma vez ele mandou, junto com a carta, algumas fotos. Eu lembro perfeitamente das casas de palha – ele na frente, naquele tempo de batina, com uma criança, um indiozinho, mostrando a câmara com o dedo. Como a gente diz: Olha o passarinho! Foi a primeira foto do Xingu que vi na minha vida.

– O que o senhor sentiu?

Dom Erwin – (rindo) Senti uma profunda simpatia por aquela criança, que era diferente, que estava pintada. Desde então, nós sempre perguntávamos à minha mãe sobre os índios. Meu tio mandava as cartas, que eram lidas em casa pela minha mãe, depois passavam para a minha tia, e então para a minha madrinha, iam passando por todos os parentes. Tínhamos a foto de um índio na parede. Eu lembro até o nome dele: “Patoit”. Significa “braço forte”. Temos a foto dele lá em casa (na Áustria), com a mulher e o filho.

– Essa foto ainda existe?

Dom Erwin – Sem dúvida. No meu quarto, na casa de meus pais, ela foi substituída por uma foto mais recente, de uma índia Araweté com seu neném. Para nós, os Kayapó eram pessoas distantes, diferentes, mas pareciam parentes. Porque quando a gente falava do tio Eurico falava também dos indígenas do Xingu. Meu tio só pôde voltar para a Áustria depois do fim da guerra, em 1948. Eu tinha 9 anos e era coroinha, então eu lembro muito bem quando ele chegou. Meu tio fazia palestras, sabe, com slides. E ele mostrou muito sol nascendo, pôr do sol… Mas meu tio tinha a sua ideia a respeito dos índios, com as quais eu não compartilharia hoje. Eu tive outra visão.

– Qual era a ideia dele?

Dom Erwin – A ideia dele, e é preciso entender que ele era filho do tempo dele, era a de “civilizar”, “apaziguar”, palavras que não me passam pelos lábios. Não é por aí.

– É por onde?

Dom Erwin – São povos diferentes. E nós os respeitamos na sua alteridade. E não apenas os respeitamos, precisamos dar um passo a mais. Nós os amamos. Eu fiz essa experiência. Lembro quando fui para uma aldeia aqui, dos Kayapó, e eu não falava uma palavra em kayapó. Nada. Eu disse: “Nunca mais eu piso nessa aldeia sem saber kayapó”. E aprendi. Não vou dizer que falo do mesmo jeito que eu falo português, mas aprendi. E, na segunda vez em que fui lá, você não imagina. Meu Deus! O sorriso mais largo e mais amigo, mais íntimo, eu diria: “Agora ele é nosso, ele fala a nossa língua”. Eles sabem que a gente se esforça e, através da comunicação por palavras, compreendemos o mundo deles.

– Quando o senhor estava em Koblach, sua cidade natal na Áustria, que movimento interno fez com que o senhor atravessasse o oceano e ficasse aqui por quase meio século, já? O que o levou a fazer um movimento tão largo, tão radical?

Dom Erwin – Eu era um jovem como qualquer outro. Estudei, fiz faculdade de Filosofia, tocava violão, fazia teatro. Tenho uma juventude muito bonita, com muitos amigos e amigas. Depois veio o pessoal de outras províncias, que não falavam a nossa língua, o nosso dialeto. E eram colocados à margem. E isso me doía. Mas por quê? Simplesmente porque são diferentes, porque falam outra língua, são excluídos? Nós começamos, então, na juventude, a criar nossos movimentos e a buscar essa gente que ficava na margem. Nós conseguimos integrá-los. Foi nesse momento, ao me confrontar com a exclusão pela diferença, que surgiu a ideia de ser padre. Estudei Teologia, me ordenei. Era da mesma congregação do meu tio, dos Missionários do Sangue de Cristo. Naquele tempo, meus superiores queriam que eu continuasse os estudos de filologia antiga: grego e latim. Eu gosto disso até hoje. Leio a Bíblia em grego, o Novo Testamento…. Mas, de repente caiu a ficha: “Eu vou para o Xingu”. Quer dizer, a gente não dizia: “Eu vou para o Brasil”. A gente dizia: “Eu vou para o Xingu”.

– Por que “eu vou para o Xingu”?

Dom Erwin Acho que aí tem também toda a história da criança, que eu nunca esqueci. O Xingu era exatamente onde estão os Kayapó. E não apenas os Kayapó, mas seringueiros, pescadores, e uma cidadezinha miúda, pequenininha, que era Altamira. Altamira em 1950 tinha 1.800 habitantes. E eu então sonhei com isso. E disse para os superiores que queria ir para o Xingu: era 12 de janeiro de 1965. Ordenei-me padre em julho de 1965. Despedi-me de casa no dia 2 de novembro, aniversário do meu pai. Fui para Hamburgo, no norte da Alemanha, e vim com um cargueiro. Eram só dois passageiros, fora a tripulação. Eu nunca tinha visto mar, esse tipo de coisa. Era um rapaz novo, 26 anos. E atravessei o Atlântico.

– Quantos dias, naquela época?

Dom Erwin – Nós saímos no dia 4, à noite, e depois atracamos em Tenerife, nas Ilhas Canárias, no dia 11 de novembro. Passamos lá um dia, zarpamos de novo e chegamos no dia 18. Eram 4h da tarde quando pisei pela primeira vez em terra brasileira, em São Luís do Maranhão, onde fiquei quatro dias, antes de seguir viagem, ainda de navio, para Belém. Lá em São Luís dormi no convento dos franciscanos e comecei a aprender português.

– Não sabia nada?

Dom Erwin – Nada.

– O que tinha na sua mala?

Dom Erwin – Eu não trouxe lembranças da minha terra, não trouxe nada. Uma ou outra foto da família. O que eu trouxe eram coisas que eu queria dar para as crianças daqui. Porque o pessoal de lá me encheu de mil e uma coisas pra trazer. Veio tanta criança aqui nesta casa: “Quem é o padre que trouxe boneca?”. Fiquei feliz da vida. Boneca pra cá e pra lá. Depois surgiu um problema, porque alguém disse: “Mas o senhor deu boneca até para crente, e nós não ganhamos ainda nada”. E eu respondi: “Vou perguntar se era crente ou católico? Para mim se tratava de uma boneca – e boneca bonita!”. De coisas pessoais eu só trouxe os cadernos do tempo da universidade, tanto da faculdade de Filosofia quanto da de Teologia. Tenho até hoje! Fora isso, um crucifixo que ganhei e um cobertor. Até hoje eu tenho esse cobertor. Está na minha cama.

– Qual a diferença que o senhor sentiu entre o Xingu mítico, do seu imaginário, e o Xingu real, daquele primeiro olhar?

Dom Erwin – O Xingu me impressionou de uma maneira que eu nunca tinha sentido. Porque lá na Áustria nós temos o rio Reno, mas é um igarapé, em comparação com isso aqui. Então, na primeira vez que vi, em 21 de dezembro de 1965, a bordo de um avião DC3 da Cruzeiro, vindo de Belém, Nossa Senhora, que maravilha! Eu fiquei tão encantado com essa terra, e até hoje estou. E essa é uma das razões de ter reservas muito grandes quanto à destruição que está pairando sobre o Xingu e sobre todos nós. Eu fiquei tão impressionado, que faltaram palavras. Acho que perdi o fôlego. Não era um chorar… Era uma alegria. Uma mistura de alegria e de se maravilhar por alguma coisa. Você fica olhando e olhando… Você não precisa falar, você assimila, por assim dizer, essa maravilha toda. E fica encantado. Utiliza-se no português a palavra “encantado”. O Xingu encanta.

– Por quê?

Dom Erwin – O Xingu é diferente de todos os outros rios do mundo, ao menos daqueles que eu conheço. Talvez algo mítico, também, por causa dos povos indígenas que há milhares de anos vivem aqui. Então, eu vejo como os índios veem. Os Kayapó não chamam de Xingu, chamam de Bytire. “Tire” significa grande, majestoso. O “by”, segundo a explicação de um velho kayapó, quer dizer algo muito misterioso, inexprimível. E, por isso, sagrado, intocável, inviolável. Eu disse: “Aqui eu vou viver”. Eu nunca pensei em voltar, sabia? Nunca.

– O senhor sente que esta é a sua terra?

Dom Erwin – Eu não vou negar as raízes, claro… O mundo de lá agora é diferente, e eu me sinto um peixe fora d’água. Passo um mês na Áustria, mas depois volto para cá. A minha vida é viver aqui.

– No Brasil inteiro, e especialmente no Norte, existe o uso político de um sentimento que pode ser resumido pela seguinte frase: “Os gringos estão invadindo a Amazônia”. O senhor é tratado como um gringo?

Dom Erwin – Não. Nunca fui. Também o pessoal raramente me pergunta onde eu nasci. Naturalizei-me brasileiro. Tenho passaporte brasileiro, carteira de identidade, título de eleitor, tudo.

– O senhor é brasileiro?

Dom Erwin – Sou.

– Um brasileiro que nasceu na Áustria… Eu já vi o senhor dizendo isso.

Dom Erwin – Sempre digo isso: um brasileiro nascido na Áustria. Não fui mandado para cá. Foi uma decisão minha. Eu me identifiquei com o Xingu, com o Brasil. Claro que não nasci aqui, meus pais e meus antepassados são de outro país. Meus ancestrais já moravam lá em 1400 e pouco. Trata-se de uma família muito tradicional. Mas cada um faz a sua escolha. Quando cheguei aqui, eu sabia que ia ficar. Eu podia ter voltado no dia seguinte, se eu não me agradasse. Tem muito trabalho em qualquer canto do mundo. Mas nem por um segundo isso me passou pela cabeça.

“EU NUNCA PENSEI QUE O LULA PUDESSE MENTIR NA MINHA CARA”

– O senhor é uma das vozes mais críticas contra Belo Monte. Por que o senhor não quer uma hidrelétrica no Xingu?

Dom Erwin – Altamira sofreu o primeiro “choque” com a construção da Transamazônica. Eu me lembro de quando chegou aqui o presidente Médici (Emílio Garrastazu Médici, general que foi presidente do Brasil no período mais violento da ditadura militar, de 1969 a 1974). Ele deu início às obras, no lugar chamado “Pau do Presidente”. Você foi lá ver (o “pau do Presidente”)?

– Ainda não…

Dom Erwin – Não perde nada. Só ficou aquele tronco da castanheira, a placa roubaram… Eliane, você naturalmente sabe que aqui se usa essa expressão “pau do presidente” com certa malícia!

– Posso imaginar… O senhor presenciou a derrubada da castanheira?

Dom Erwin – Sim. Todo o pessoal delirando no palanque… delirando mesmo! Batendo palmas! Gente, derrubando uma árvore daquelas! E dizendo que era o progresso que estava chegando. Cortou-me o coração… Como é que pode? Aplaudir que a rainha das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com um estrooondo tremendo. Como é possível? Está escrito na placa que roubaram: “O presidente da República dá início à conquista deste gigantesco mundo verde”. E havia uma placa em uma das três colunas feias, bem feias que fizeram: “Depois de XX meses o presidente voltará para inaugurar, dando mais um passo para integrar…”. Era essa a época: “Integrar para não entregar” e “Brasil, ame-o ou deixe-o”… Coisas desse tipo. Eu vi.

– Isso tudo o senhor estava assistindo de onde?

Dom Erwin – No meio do povo que foi lá ver o presidente. Tinha dois bispos, vestidos com trajes episcopais, que pensavam que seriam chamados a subir no palanque: o bispo daqui, que era meu tio, e o bispo de Marabá. Não os chamaram lá para cima porque o de Marabá não era amigo dos militares. Ele tinha denunciado um monte de coisas. Naquele tempo era a guerrilha do Araguaia, então não chamaram os bispos para subir no palanque… Eu pensei: “Bem feito!”. Mas eu não tinha coragem de dar minha opinião, porque era menino recém-chegado. Mas os bispos também achavam que o progresso estava chegando… Altamira era uma cidade esquecida, no meio da mata.

– É muito simbólico derrubar uma castanheira, uma árvore gigante, como símbolo da chegada do progresso e do desenvolvimento, não?

Dom Erwin – Depois se falava em “benefício”. Tem que “beneficiar” a terra para você encaminhar, por exemplo, um crédito bancário. Então tinha que derrubar.

– O que era Altamira antes da Transamazônica?

Dom Erwin – Era uma cidadezinha esquecida. De dia faltava água, de noite faltava luz. Tinha um motor da prefeitura que tinha funcionado pela última vez nos 15 anos da filha do prefeito. Nos anos 60 queriam fazer uma picada para Santarém para ligá-la ao mundo e mataram não sei quantos índios. Depois veio a Transamazônica. Um compadre meu, que trabalhava como telegrafista naquele tempo, disse: “Olha, compadre, agora vem o progresso. Tinha um telegrama de um tal de Incra dizendo que vão construir uma estrada. Estão dizendo que vai chover dinheiro”.

– Um discurso muito parecido com o de agora, não? Vai “chover dinheiro”, o progresso vai chegar…

Dom Erwin – Essa é a ideia: o “progresso” vai desbravar toda essa região. Então, de fato, começou no quilômetro 5, com a derrubada daquela árvore, onde tudo era mato. E hoje você vê tudo descampado. O traçado da Transamazônica já foi feito assim porque se pensou em futuras hidrelétricas, como Belo Monte. Nos anos 70 já fizeram toda a pesquisa. Em 1950, Altamira tinha 1.200 habitantes. Em 1960, 2.800. E depois, acho que de 1965 em diante, uns 4 mil, 5 mil. Mas depois veio o boom… o pessoal veio do Nordeste, primeiro, depois do Sul. Aí Altamira ganhou outras feições. E com a Transamazônica, em 1975, se falava numa possível hidrelétrica, mas era uma coisa muito distante. Nos anos 80, então, a coisa já pegou mais vulto, até que, em fevereiro de 1989, vieram os índios…

– O senhor estava presente no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989? (Na ocasião, Tuíra, índia kayapó, encostou a lâmina do seu facão no rosto de Antonio Carlos Muniz Lopes, da Eletronorte, para expressar sua indignação contra o projeto de Belo Monte, naquela época chamado de Kararaô. A foto da cena correu o mundo).

Dom Erwin – Não. Eu estava na Suíça… Os índios vieram falar comigo. Queriam marcar o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Então eu encontrei, naquele tempo, não vou dizer o primeiro escalão, mas o segundo escalão do Banco Mundial, em Berna. E me avisaram: o Banco Mundial só vai fornecer o crédito (para a obra) se a cláusula indígena e a cláusula ambiental forem observadas e cumpridas. Isso, para mim, foi o sinal de arquivamento. Pensei: esse perigo já passou. Enquanto eu estava lá, ocorreu o episódio com a Tuíra, aqui. Eu conheço muito bem esse Antonio Carlos Muniz…

– Como o senhor o conheceu?

Dom Erwin – Ele me convidou, quando estive em Brasília, nos anos 90, para o gabinete dele, e me mostrou todas as coisas. Ele queria cativar-me, conquistar-me para o projeto. Fui muito bem tratado, sabia? Mas quando a gente é tratado tão bem, com beijinho etc, é preciso ficar cismado. Quando é assim, tem boi na linha. Não é porque te querem bem, mas eles querem te preparar, querem aproveitar que você está sozinho e te convencer.

– Brasília o assusta, nesse sentido?

Dom Erwin – Sim, me assusta. Meu Deus! Estive duas vezes com o Lula, também, e com outras pessoas. Eu tinha contatos bons, gente boa em Brasília que estava no nosso lado. Agora, ultimamente, estamos num certo isolamento. Porque aquele povo que antigamente lutava conosco, que estava do nosso lado, que defendia a mesma coisa, que lutou pela mesma causa, agora defende o contrário.

– Quando o Lula foi eleito, o movimento social da Amazônia tinha certeza de que Belo Monte estava definitivamente sepultada. Como foram seus encontros com o Lula?

Dom Erwin – A primeira vez foi em 19 de março de 2009. Fui com um advogado do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), amigo meu de longa data, e com um assessor político do CIMI, que agora foi conquistado para ser membro do gabinete da presidente. Fiquei com o Lula uns 20 minutos, talvez meia-hora. Apresentei as nossas angústias e as nossas preocupações, e ele foi o primeiro a insistir que houvesse um diálogo construtivo, que se avaliasse os prós e os contras. Eu disse: “Olha, eu queria que o senhor ouvisse o povo”. Ele perguntou: “Que povo?”. Eu disse: “O povo do Xingu, os representantes do povo do Xingu”. Ele disse (Dom Erwin imita a voz e o jeito de Lula): “Manda chamar!”. Acertamos então uma segunda visita. Lembro que, ao final desse primeiro encontro, eu disse: “Lembranças para Marisa, sua esposa”. O Lula ficou até assustado, porque não estava acostumado a receber saudações para sua esposa. Quando alguém se encontra com o presidente, não lembra que ele é casado. Senti o Lula como alguém muito amigo, simpático.

– Foi a primeira vez que o senhor o viu?

Dom Erwin – Não, já tinha visto em campanha.

– Como o senhor percebeu o Lula?

Dom Erwin – Ele era aquele trator, falava pra cá e pra lá. A gente via que ele estava em campanha, que a gente era uma peça lá daquela campanha. Dá a mão, tira foto… Mas, em 2009, foi um encontro… muito amistoso. Eu ainda esperava que ele fosse se convencer de que não era por aí. Até escrevi: “Graças a Deus, Lula entendeu”. E nós marcamos outra audiência, em 22 de julho do mesmo ano. Foi muito interessante. Levamos dois índios, dois ribeirinhos, a Antonia Melo (uma das principais lideranças do Xingu), dois procuradores da República e o professor Célio Bermann (do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP). Mas o Gilberto Carvalho (chefe de gabinete do então presidente Lula, hoje ministro da Secretaria Geral da Presidência da República no governo Dilma) queria que só eu falasse em nome de todos. Do outro lado havia o setor energético do governo, todos os figurões… Nós, de um lado, humiiildes, coitados, nos sentindo como um peixe fora d’água e, do lado de lá, essa gente que mandava e até hoje está mandando… Mas a gente tinha segurança daquilo que nós queríamos. E, quando o Lula chegou, ele sentou-se ao meu lado. Eu disse: “Presidente, o senhor vai ter que ouvir esse povo. Esse povo veio de longe, quer falar com o senhor. Não pode pegar só dois que representem os outros, porque eles vão sair com uma frustração que não tem tamanho!”. O Lula então disse (e Dom Erwin imita o vozeirão do então presidente): “Deixa comigo! Vamos fazer!”. Então, de fato, ele deu a palavra a todos.

– O que eles disseram?

Dom Erwin – O povo falou de sua angústia, de que não podiam deixar a sua terra. Depois, os procuradores da República falaram das inconstitucionalidades do projeto de Belo Monte, de que os índios não tinham sido ouvidos. O Célio Bermann colocou então os pontos técnicos e financeiros que tornavam o projeto inviável. E aí é que eu vi o Lula levando susto. Ele olhou para a turma dele, dizendo: “Vocês vão ter que dar uma resposta imediata para o professor”. Mas esta resposta não veio até hoje.

– O senhor acha que o Lula estava sendo sincero ou era teatro político?

Dom Erwin – Era teatro, jogo político… Depois ele me segurou no braço e disse (imitando a voz): “Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja. Conte comigo. O diálogo tem que continuar. Segundo: o Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragens, e essa dívida, até hoje, não foi sanada. Tem muita gente perambulando por aí que não recebeu a indenização, e a vida praticamente foi cortada para eles. Terceiro: Nós não vamos repetir (a hidrelétrica de) Balbina. Balbina é um monumento à insanidade. E quarto: o projeto só vai sair se for vantagem para todos”.

– O Lula disse isso?

Dom Erwin – Disse! Textualmente, sentado ao meu lado, me segurando nesse braço (mostra o braço esquerdo). Eu pensei, bom… o presidente não iria falar isso se não fosse verdade. Mas, as mulheres têm mais sensibilidade, têm mais intuição. A comadre Antonia Melo não quis nem tirar retrato. Os outros todos bateram foto com o Lula. Eu fiquei até estranhando, mas ela sentiu, naquele tempo, que era apenas um show. Engraçado, as mulheres, neste ponto, têm uma intuição que os homens não têm. Eu pensei: “Não, o Lula não vai mentir na minha cara!”. E ainda por cima segurando no meu braço… (Imita novamente a voz de Lula): “Dom Erwiiiin….”.

– O senhor imita bem a voz do Lula… O senhor saiu aliviado?

Dom Erwin – Aliviado não vou dizer, mas muito esperançoso, porque no final ele ainda disse: “O diálogo vai continuar, nós vamos nos encontrar de novo”. E aí, de repente, eu me dei conta de que não houve diálogo nenhum. Porque ele falou, mas não perguntou quais eram as nossas ideias, não perguntou o que nós achávamos, nem como pensávamos que seria possível resolver certos impasses.

– Como foi o clima dessa reunião?

Dom Erwin – A primeira parte da audiência com o Lula foi sem ele. Só com o setor energético, Funai e outras instâncias do governo. Esse pessoal do governo xingou os procuradores da República, dizendo que eles não entendiam nada, que não era do ramo deles, que estavam se metendo em assunto que não dizia respeito a eles. E até foram alteando a voz, viu? Fiquei até assustado, pensando que a educação tinha passado muito longe daqueles senhores. Lembrei-me de que quem grita revela que não tem argumentos para convencer o interlocutor. No fundo, essa turma tinha que admitir que a razão e o bom senso estavam do nosso lado. Assim, optaram por atitudes autoritárias e de prepotência, querendo nos intimidar, dizendo que não entendíamos nada do assunto. Do nosso lado, ninguém perdeu em nenhum momento a compostura. Não respondemos aos gritos. Os berros saíram da goela deles. Neste exato momento, o Lula entrou “em cena”, perguntando: “Vocês estão vivos?”. Porque era um berreiro, não era diálogo. A entrada do Lula na sala parecia uma ducha de água fria em cima da turma dele. De repente, eles se recompuseram. Achei ridículo! Pareciam meninos briguentos na sala de aula que, quando o professor entra de repente, ficam com medo de algum castigo ou de nota baixa e então se ajeitam. Aí o Lula me cumprimentou efusivamente, como se fôssemos amigos de longa data, “companheiros” de luta desde a primeira hora. E, não nego, me senti bem à vontade e agradeci a ele por ter nos recebido, elogiando esse gesto aberto de busca de “diálogo”. Pois naquele momento acreditei realmente no diálogo.

– E não foi?

Dom Erwin – Só caí na real quando, em outubro do mesmo ano, passei uma semana em Brasília esperando a continuação desse diálogo. A audiência foi adiada de uma manhã para a tarde, de um dia para o outro, até que, finalmente, recebi um telefonema na sexta-feira à noite em que Gilberto Carvalho me pedia desculpas, dizendo que não era mais possível ser recebido pelo presidente, pois ele tinha precisado viajar para a Venezuela. Essa viagem certamente já estava programada no início daquela semana e servia de pretexto para evitar o constrangimento de ser obrigado a me dizer que o presidente e seu staff não estavam mais interessados na continuação do “diálogo”. Em 23 de setembro de 2009 eu tinha escrito uma carta ao Lula, tratando-o ainda de “meu presidente”. Nunca recebi resposta.

– O senhor tinha acreditado na promessa de diálogo feita pelo Lula?

Dom Erwin – Eu acreditei. Havíamos dado um passo importante, porque havíamos chegado até lá. E agora, aquele setor do governo, embora tenha gritado antes, teria que dar resposta por ordem do presidente. Mas nunca houve diálogo. Naquele encontro nós mostramos o que ia acontecer, o absurdo dessa obra em todos os sentidos, inclusive em sua viabilidade financeira. E ninguém nunca nos respondeu nos provando que estávamos errados. O Célio Bermann falou, e eu entreguei para o Lula um resumo da posição do Oswaldo Sevá Filho (professor e pesquisador de Engenharia Mecânica da Unicamp), que não pôde nos acompanhar porque estava doente, assim como a posição de outros grandes professores e pesquisadores dessa área no Brasil. E todos mostravam a inviabilidade de Belo Monte, assim como a destruição que ela vai provocar. Por que esse povo não recebeu uma resposta?

– Por quê?

Dom Erwin – Porque não há resposta. Os argumentos são imbatíveis. Tem que desmontar a opinião das maiores cabeças dessa área no Brasil, tem que ter argumentos fundamentados na realidade, mas o governo não tem. E, se não tem, precisaria assumir: “Nós temos que fazer isso. É uma decisão política, e não técnica”. Se a decisão fosse técnica, Belo Monte jamais seria feita. Por isso, o diálogo foi abortado desde o início. Aquilo que Lula fez era só um show para agradar ao bispo.

“HÁ GENTE DO PT QUE PARECE FANÁTICO RELIGIOSO”

– No caso de Belo Monte, o governo defende que os índios não serão atingidos. Mas muitos ambientalistas e pesquisadores refutam essa afirmação, mostrando que não é possível barrar um rio sem que isso afete as comunidades que vivem em torno dele. Como o senhor vê essa questão?

Dom Erwin – Se o projeto de Belo Monte se concretizar, esses povos que moram na Volta Grande do Xingu serão atingidos. O governo nega, porque, para o governo, atingir o povo indígena é só quando se inunda, alaga a aldeia. A inundação, de fato, não vai acontecer. Mas o contrário acontece: corta-se a água. Se você observar o mapa, vai perceber que, nos 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, vai se chegar a um mínimo de água. Tenho absoluta certeza de que não haverá mais condição de pescar e de abastecer esses povos. Depois, será prejudicada a agricultura. E, por fim, eles não terão como se locomover. Ficarão barrados. Um povo submetido a uma vida nessas condições não sobrevive. Ou sobrevive por um tempo, depois acaba. Vão se esfacelar. Talvez se tornem índios citadinos. Perderão a cultura, perderão a língua. Estarão aqui, em algum subúrbio de Altamira. Não vou dizer que deixarão de serem índios, mas já não serão mais indígenas que vivem dentro de seu próprio contexto, com suas organizações e com a sua língua.

– É uma cultura que morre, um jeito de estar no mundo que morre, é isso?

Dom Erwin – Temos que fazer uma distinção: existe a morte física e existe a morte cultural. E aqui no Xingu, por causa de Belo Monte, poderão acontecer as duas coisas. A morte cultural, porque arrancarão deles a possibilidade de sobreviver em determinado espaço que, para eles, é muito significativo, porque é o chão de seus mitos, de seus ritos, é onde enterraram seus antepassados. Se você arranca isso dos indígenas, você corta o cordão umbilical deles com a terra. Precisamos compreender que eles têm outro relacionamento com a terra, diferente do nosso. Para nós, a terra é coisa que se compra e se vende. Para eles, não. Além da morte cultural, é provável que também aconteça a morte física, porque eles não estão preparados para viver na cidade. Os Arara, por exemplo, foram dizimados por doenças depois de serem contatados. Essa história nunca foi bem contada.

– O senhor afirma que Belo Monte é só a primeira de muitas barragens, uma forma de vencer a resistência para impor um projeto que é muito maior e que vai destruir o Xingu por completo. Como o senhor tem tanta certeza disso?

Dom Erwin – Todos os argumentos científicos sérios mostram que essa hidrelétrica não vai funcionar durante o ano todo. No verão, o Xingu baixa muito de nível e não existirá volume de água suficiente para fazer funcionar as turbinas. Portanto, vão investir bilhões e bilhões de reais em uma hidrelétrica que durante meses não funciona. Isso é um absurdo. E o governo sabe perfeitamente que é um absurdo. Então, é lógico que Belo Monte será só a primeira barragem. É preciso fazer tudo para que a população aceite essa primeira barragem, depois de décadas de resistência. Para, então, virem as outras. Porque só com as outras Belo Monte será um bom negócio. A segunda, a terceira e a quarta vão barrar o rio até lá em cima, em São Félix do Xingu. E aí, todas essas áreas que estão nas margens esquerda e direita do Xingu, que são áreas indígenas já homologadas, vão sofrer. E aí, os Assurini, os Araweté, os Paracanã, os Arara, e os Kayapó vão ser atingidos. É por isso que os Kayapó lá de cima, até mesmo os do Parque Nacional do Xingu, estão contra, embora estejam a mil quilômetros de distância. Eles já conhecem essa história. Depois de construir a primeira barragem, a tempestade passa, a resistência diminui – e aí completar a obra fica mais fácil. Esta é a estratégia do Governo. E aí eu afirmo: é o golpe fatal. Vão matar os índios, cultural e fisicamente.

– Parte da população brasileira acredita que os índios têm terra demais e há, inclusive, aqueles que acreditam que os indígenas são um entrave para o desenvolvimento. Por que parte dos brasileiros pensa assim?

Dom Erwin – Bom, primeiro precisamos entender que, para os índios, a terra não é uma mercadoria. Vou contar uma história real para que as pessoas entendam melhor essa relação totalmente diversa que o índio tem com a terra. Um branco mostrou um papel em que estava escrito: “República Federativa do Brasil, Título Definitivo de Terras, deste igarapé até o outro, fazendo frente com o rio Xingu e de fundos 2, 3, 5, 10 quilômetros”. Então, o índio perguntou: “Como você pode, com esse papel, dizer que é dono? Como? É um papel. Você fez a mata? Não. E a caça que está dentro da mata? Não. Você fez o rio e os peixes que estão no rio? Não. Você faz chover? Não. Você faz o sol brilhar? Não. Então, como você pode me mostrar um pedaço de papel e dizer que é dono?”.

– São formas de ver o mundo totalmente opostas, né? Só que uma delas tem o poder de impor sua visão de mundo como verdade única…

Dom Erwin – Essa cultura se choca com a cultura da sociedade majoritária, que trata a terra como mercadoria. E como mercadoria a terra tem de ser aproveitada, porque ela só faz sentido se for exaurida. Então, “aproveita” até arrasar a terra. Enquanto não tiver tirado a última gota de sangue, isto é, enquanto não tiver arrancado o minério e todas as riquezas do solo e do subsolo, o homem forjado nessa mentalidade não estará satisfeito. É claro, portanto, que as pessoas que veem a terra como mercadoria, num sistema de livre mercado, vão achar que o índio tem terra demais. O interessante é que essas mesmas pessoas nunca disseram: “Tal fazendeiro tem terra demais”. Não, isso não. Quando um fazendeiro bota uma placa e diz que a terra é dele – e aqui a grilagem de terra, como se sabe, é enorme, essas mesmas pessoas não reclamam. Mas, quando se faz a demarcação de uma área indígena, todo mundo grita. E, o mais curioso, há cidadãos que de repente aprendem geografia: “Eles têm uma terra do tamanho da Bélgica! Têm uma terra do tamanho de Portugal, uma terra do tamanho da Suíça!”.

– O que é terra, para os índios?

Dom Erwin – Para os índios, terra é vida. E, para o sistema da maioria dos brasileiros, terra é mercadoria. Talvez se consiga ainda fazer com que uns e outros entendam, pelo menos, que, ao demarcarmos as áreas indígenas na Amazônia, nós salvamos um pedaço da Amazônia.

– O senhor acredita que parte da Amazônia ainda está preservada por causa desse embate de visões de mundo?

Dom Erwin – Sim. E as pessoas precisam lembrar que a Amazônia tem uma função reguladora do clima mundial. Quer dizer: se a Amazônia acaba, o gaúcho lá embaixo, o mineiro, o capixaba vão sofrer as consequências. E nós ainda não sabemos qual é o alcance real dessas consequências. Se a temperatura aumentar três ou quatro graus, só para ficar num exemplo, será terrível! A verdade é que as consequências da destruição da Amazônia não cessarão nas fronteiras nem do Norte, nem do Brasil. Assim, os brasileiros de todas as regiões deveriam agradecer que há áreas de preservação indígena, há reservas extrativistas e há parques nacionais. É só porque existem essas reservas que há uma parte da Amazônia ainda preservada. Mas, infelizmente, as pessoas não percebem que a destruição da Amazônia também atingirá a sua vida.

– É curioso como as pessoas se sentem a salvo, não?

Dom Erwin – Pelas informações que recebi, estão planejadas 61 hidrelétricas para o Brasil, a maioria delas aqui na Amazônia. E mesmo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) não nega que serão atingidas diretamente áreas indígenas e também parques nacionais. Falam na maior cara de pau. Então, eu gostaria de saber o que vai sobrar.

– A maioria dos setores da sociedade, inclusive o governo, fala em “desenvolvimento sustentável”. Ninguém diz que não quer o desenvolvimento sustentável. Mas, na prática, o discurso que atravessa a sociedade é o de uma oposição entre desenvolvimento e meio ambiente. Por que o senhor acha que essa visão ainda persiste com tanta força?

Dom Erwin – É um mito. Que desenvolvimento é esse? Quem vai ser beneficiado com esse desenvolvimento? Basta ver hoje a situação em que está Altamira. E a obra está só no começo. Das condicionantes prometidas, nada. De 40 condicionantes colocadas pelo próprio Ibama, e outras 24 da Funai, quase nada. Não tem infraestrutura, nem habitação, nem saúde, nem educação. Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte, em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui, desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos, não é para o povo.

– A população tem medo de um “apagão”…

Dom Erwin – Sim. Esses grupos, favoráveis às grandes obras na Amazônia, ficam também operando com o fantasma do blecaute, do apagão. Ficam dizendo: “Olhe, os gaúchos que se cuidem, porque no inverno gaúcho não terá mais chuveiro elétrico, e depois não vão mais poder ver a novela das oito”. Mentira! Essa energia será exportada em forma de lingotes de alumínio. E ela não é nada limpa… E muito menos barata. Nós não temos excelentes universidades, cientistas de primeira classe, tecnologia de ponta? Por que não se investe agora para procurar fontes alternativas de energia? Aqui, nós temos sol das seis da manhã às sete da noite. No sul da Alemanha, por exemplo, não há mais uma casa que não tenha placa solar. E olha que eles têm um inverno comprido. Lá, em dezembro, o sol nasce às 9h, 10h, e às 5h da tarde já está escuro. E nós, aqui, às 6h já assistimos ao sol nascer. Temos sol até às 7h da noite. Por que não aproveitamos essa dádiva divina? E depois existe o litoral… O Brasil tem um litoral enorme, que não tem fim. Por que não aproveita um pedaço, pelo menos, onde não há turismo, para investir mais em energia eólica? E, ainda, grande parte dos linhões de transmissão está obsoleta. Perde-se uma enormidade de energia por causa dessa deterioração. Por que não investir no reparo e no restauro dos linhões de transmissão?

– Por que o senhor acha que o governo quer tanto fazer Belo Monte?

Dom Erwin – Esta é minha grande pergunta. Eu não tenho resposta. Apenas vou adivinhando. Por que o Lula era contra e de repente está a favor? Por que o PT era contra Belo Monte e depois de chegar ao governo passou a defender exatamente aquilo que antes combatia? Por que os deputados que nós elegemos aqui hoje são a favor e não sabem nem por quê? O que há por trás? Por que essa metamorfose camaleônica? Na campanha era contra, como é o caso do deputado Zé Geraldo (PT-PA), que andava aqui embaixo, na beira do rio, dando as mãos e rezando, de camisa branca, participando de místicas. E agora, meu Deus! Ele defende exatamente o contrário: “Belo Monte tem que sair, a gente não pode colocar a Amazônia debaixo de uma redoma”. Ninguém está propondo uma Amazônia intocável. O que nós que nos unimos na posição contra Belo Monte defendemos é que as riquezas da Amazônia sejam usufruídas de uma maneira inteligente – e não de uma maneira burra.

– Historicamente, o movimento de resistência à Belo Monte sempre apoiou o Lula. O que aconteceu?

Dom Erwin – Aqui, a resistência contra Belo Monte se identificou com o PT, ou o PT se identificou com a resistência contra Belo Monte. Isso até o Lula tomar posse. Quando descobrimos que o Lula tinha mudado de ideia, caímos das nuvens. Meu Deus, como é que pode? E então os petistas daqui também mudaram de lado. Começaram, inclusive, a hostilizar as pessoas que ainda defendiam o Xingu contra esse monstro. Há gente que antigamente sentava aqui nesta sala e que hoje não aparece mais, porque sabe que o bispo permanece na sua posição contra Belo Monte. Há gente do PT que parece fanático religioso. Fanático religioso é terrível, né?

– Por quê?

Dom Erwin – Porque não tem discussão, não tem diálogo. Com fanático você nunca vai entabular um diálogo que preste, ele já se julga dono da verdade, tem a sua certeza. Então, o PT diz: “As razões defendidas pelo partido têm que estar acima da própria consciência dos partidários”. E muita gente reza pela cartilha do PT porque acha que aí está tudo resolvido. Na realidade eu não posso, por causa da minha filiação partidária, ter opinião própria, ou opinião divergente. Aqui, quem tinha opinião própria e não quis trair a sua consciência, como Antonia Melo, se desfiliou do partido.

– Foi um golpe muito grande essa mudança de posição com relação à Belo Monte?

Dom Erwin – Foi uma traição, um golpe tremendo. É muito duro você ser traído por pessoas a quem você deu as mãos. Inclusive foram perguntar, à boca pequena: (fala baixinho): “Bispo, em quem vai votar? O senhor não pode falar isso no sermão, mas em quem o senhor vai votar?”. Eu disse: “Eu vou votar no Lula. Afinal de contas, é o partido que nasceu e surgiu das bases, etc. Temos que lutar por outro Brasil, gente”. Tempos depois o povo passou a dizer: “Agora o bispo está engolindo…”.

– Está sendo difícil engolir o que o senhor chama de “traição”?

Dom Erwin – Eu nunca falei em público sobre o meu voto, mas todo mundo sabia que nós queríamos um Brasil diferente, um Brasil justo, fraterno, sem corrupção, um Brasil com ética e com todos esses ideais que nós tínhamos e ainda defendemos. Mas os caciques do PT da primeira hora foram embora. Quem está aí dos antigos? Se afastaram. Notaram que foram traídos também. Eu me sinto traído. Agora dizem: “O bispo era a favor dessa petezada”. E agora eu tenho que engolir os sapos…

“HOJE VIVEMOS EM UMA DITADURA CIVIL”

– O senhor acha que a construção de Belo Monte marcará negativamente a biografia de Lula e de Dilma Rousseff?

Dom Erwin – Se Belo Monte se concretizar, o Lula será lembrado como aquele que destruiu a Amazônia, e deu o golpe nos povos indígenas. É a expressão mais macabra de seu orgulho: fazer um monumento para si à custa de povos que, através do mesmo monumento, condenou à morte. E, no fundo, no fundo, este monumento irá ajudar mais o Exterior do que o Brasil. O Lula vai entrar para a História como aquele que arrasou o Xingu. Não apenas com o rio, mas também com os povos do Xingu. E eu não gostaria de carregar uma fama como essa nas minhas costas, até morrer – e ainda para além da minha vida neste mundo.

O que o senhor quer dizer com “monumento”?

Dom Erwin – O Lula quer ter esse monumento no nome dele. O Lula não tem ideia de desenvolvimento. Desenvolvimento para ele é ter mais dinheiro à disposição e exportar, exportar, exportar, aumentar o PIB. Só que essa obra não terá ressonância na melhoria da vida do povo. Pelo contrário.

– O senhor acredita, então, que o Lula não entende a Amazônia?

Dom Erwin – Nunca entendeu. E muito menos entende de índio. Ele nunca se deu ao luxo de se aprofundar nisso. Para a Amazônia, ele só veio em campanha. Mas ele não tem ideia da complexidade da Amazônia e também nunca perguntou… Você não pode comparar o Rio Grande do Sul com o Pará. Quando visito o Sul, me dizem: “Mas onde o senhor mora?”. Eu respondo: “Altamira”. Eles então dizem: “Ah, é, Altamira? Nós também temos uma tia no Recife”. Recife. As pessoas nem sabem direito onde fica o Norte. Confundem com o Nordeste. As culturas aborígenes aqui, as culturas autóctones, são diferentes. E tem que viver aqui para compreender isso. O Lula nunca entendeu – e nunca achou que era preciso entender. E, no final do mandato, ele entrou em delírio.

– Delírio?

Dom Erwin – Delírio. Poder. Ele se deleitava com as cifras, com as estatísticas. Aqui mesmo ele falou lorota.

– Lorota?

Dom Erwin – Disse que o pessoal que é contra Belo Monte são uns “meninos e umas meninas que não compreendem”. Disse que ele também, quando era mais novo, era contra Itaipu, porque diziam, naquele tempo, que ia alagar a Argentina. Ele zombou da dor e das reivindicações legítimas das pessoas de Altamira com ideias e vivências diferentes das dele. Eu disse, ao ouvir o seu discurso: “Meu Deus, e isso na boca do presidente!”.

– Desqualificou quem protestava?

Dom Erwin – Desqualificou. Em 2006, num banquete oferecido pelo então governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, ganhador do troféu “motosserra de ouro” por sua contribuição ao desmatamento do país, Lula também havia se deixado levar a uma declaração comprometedora. Identificou os índios, os quilombolas, os ambientalistas e até o Ministério Público como “entraves” para o progresso. Considerou ainda “penduricalhos” os artigos da legislação ambiental, pois estes parâmetros legais estariam travando o desenvolvimento do país. Por isso a ordem é de desconsiderar ou, pelo menos, não dar tanta importância a impactos sociais e ambientais. Caso contrário o país, na opinião de Lula, estaria condenado à estagnação. Pode até ser que o presidente posteriormente tenha se arrependido do que falou de improviso, mas a mídia já havia divulgado a gafe.

– Como o senhor vê o discurso do “A Amazônia é nossa!”, que parece servir para tudo, inclusive para destruí-la?

Dom Erwin – A Amazônia é nossa… (ri) Ninguém nunca duvidou da soberania do Brasil sobre a Amazônia. Quem vai duvidar? Quem vai acreditar em algo como: “Agora vêm uns americanos apoderar-se daqui….” Não faz nenhum sentido. Isso não vai acontecer. Quem vê, em sã consciência, a configuração do mundo de hoje sabe que isso não vai acontecer nunca. Agora, o mesmo Lula e presidentes anteriores que disseram “A Amazônia é nossa” entregaram parte dela para as multinacionais que mandam aqui. De onde vêm essas firmas todas? São todas multinacionais. Têm a sua parte brasileira, sem dúvida. É preciso ter nome brasileiro, mas o capital…

– Mas esse discurso xenófobo costuma funcionar, né? Ele transforma um outro hipotético em inimigo maior e tira o foco do que realmente está em jogo… A gente vê isso em toda parte, inclusive com nossos vizinhos…

Dom Erwin – Sim, é um nacionalismo besta, nós já o conhecemos da História. E em que deu? Nacionalismo é ruim, sempre traz ao povo a aversão contra o que vem de fora. Deteriora todo o relacionamento, porque o recado é: “Nós somos os tais, os outros não são nada!”. Inclusive reclamam disso, às vezes, quando a gente anda lá fora, em outros países latino-americanos. Eu me lembro de um encontro do qual participei e todos tinham de se apresentar. Então eu disse: “Soy el obispo de la circunscripción eclesiástica más grande de Brasil”. O Xingu é a maior prelazia do Brasil e eu achei que era importante dizer, para que entendessem de onde eu vinha. Mas me olharam com certo desdém e disseram: “En Brasil, todo es lo más grande”. Os países latino-americanos têm uma aversão muito forte ao imperialismo brasileiro.

– É como se o Brasil fosse “os Estados Unidos da América do Sul”, né? Ouço essa expressão por onde ando…

Dom Erwin – Eu me calei e não disse mais nada. Então, se nós, dentro do Brasil, criamos esse tipo de xenofobia, precisamos nos dar conta de que isso é do tempo do onça, pertence a uma época histórica ultrapassada. Temos de mudar a nossa cabeça para estarmos à altura desse novo momento histórico. Num mundo chamado globalizado não podemos viver desse jeito. Por que não nos irmanamos realmente? Aqui no Brasil nós gritamos nossa aversão contra o estrangeiro e, quando o brasileiro vai lá fora, ele sente o mesmo na pele.

– O senhor viveu na Amazônia o projeto da ditadura militar, a mentalidade do “Brasil Grande”. O senhor encontra semelhanças entre o projeto de desenvolvimento para a Amazônia da ditadura e o projeto de desenvolvimento para a Amazônia dos governos democráticos de Lula e de Dilma?

Dom Erwin – Sim. Para mim, a única diferença é esta: hoje, temos uma ditadura civil… eleita.

– Por que uma ditadura?

Dom Erwin – Ditadura é quando alguém manda sem respeitar a Constituição: “Quem manda sou eu”. O paradigma é Belo Monte. Ao contrário do que o Lula afirmou, é um projeto imposto. As audiências públicas, previstas em lei, foram meros rituais para inglês ver. Montaram um enorme aparato policial para intimidar quem é contra Belo Monte. Os que serão realmente atingidos pela barragem não tiveram oportunidade de se manifestar. A maioria deles nem conseguiu se fazer presente, porque não mora na cidade em que a tal de audiência aconteceu. Sustento até hoje a convicção de que as licenças concedidas para o início da obra são inconstitucionais. As condicionantes previamente estabelecidas pelo próprio governo através do Ibama, como já falei, não foram cumpridas. O caos em Altamira é a prova mais eloquente de que o governo desrespeitou uma cidade com mais de 100 mil habitantes, tratando-a como o lixo do mundo. Os parâmetros constitucionais que amparam os cidadãos em termos de saúde, educação, habitação, saneamento básico, segurança, transporte simplesmente não foram e não estão sendo respeitados. E o governo faz vistas grossas. Não está nem aí. E ainda há político que, com a maior cara de pau, afirma que se trata do preço a ser pago pelo progresso. Verdade é que nem ele mesmo e nem a sua família o pagam. É o Pará que continua sendo tratado como “colônia”, explorado e aviltado, condenado a pagar, em termos ambientais e de prejuízos para seu povo, um preço exorbitante pelo “progresso” do resto do Brasil.

– De que forma os presidentes Lula e Dilma teriam desrespeitado a Constituição?

Dom Erwin – Os artigos 231 e 232, que na Carta Magna do Brasil tratam dos indígenas, estão sendo desrespeitados. As oitivas indígenas previstas em lei não aconteceram. Podemos inclusive provar que os índios foram enganados. Prometeram-se oitivas a eles e, depois, maquiaram de “oitiva” um simples encontro informal em que os índios foram meros ouvintes e em nenhum momento lhes foi perguntada a sua opinião. Má fé! Enganação! Pouca vergonha! Se o governo toma posições que não se coadunam com a Constituição Federal, então o Brasil, como Estado democrático de Direito, corre sério risco. O governo não está acima da Constituição. Se o governo se comporta de modo inconstitucional, então vivemos novamente numa ditadura.

– O Edison Lobão, ministro de Minas e Energia, falava em “forças demoníacas contra as hidrelétricas”. E o senhor já se referiu à Belo Monte como “monstruosidade apocalíptica”. Quando o senhor fala em “monstruosidade apocalíptica”, o senhor está dizendo exatamente o quê?

Dom Erwin – Demoníacas são as forças que o Lobão emprega para arrasar o Xingu. A destruição não vem de Deus. E o Lobão fala sem conhecer nada daqui. Nunca o vi por aqui. De lá, da altura do Planalto, são decididas as coisas. Aliás, é essa a nossa triste sina aqui na Amazônia. As decisões são sempre tomadas alhures, sem conhecer a nossa realidade, sem perguntar nada a ninguém. O nosso Pará e a Amazônia continuam sendo tratados como província. Antigamente o Brasil era uma “colônia”. A metrópole era Lisboa. Hoje a metrópole pode ser São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre. Nós aqui somos tratados como colônia. Uma colônia é onde a gente vai buscar as coisas. É por isso que a Amazônia é apelidada de “província mineral”, “província madeireira”, “província energética” e “última fronteira agrícola”. O pessoal vem, tira o que tem, e não sente nenhum remorso, ou o dever de pagar a conta. Carajás é o caso mais emblemático: arranca-se o minério, o que sobra é uma paisagem de crateras lunares. Quando a referência é a riqueza natural, se afirma em alto e bom som: “A Amazônia é nossa”. Por outro lado, quando a Amazônia necessita realmente de colaboração efetiva, de solidariedade concreta, tem-se a impressão de que nem pertence ao Brasil, é outro país. São dois discursos conflitantes. “A Amazônia é nossa”, mas na prática ela não é nossa – ou só é nossa quando precisamos dos recursos dela. De resto, está lá longe, que ela mesma se vire.

– Por que o senhor acha que essa relação colonial de exploração se perpetua na Amazônia até hoje?

Dom Erwin – É uma relação histórica. Vale inclusive lembrar que o Pará só aderiu à independência um ano depois do assim chamado “Grito do Ipiranga”. A Amazônia sempre pareceu outro mundo. E esta realidade se perpetuou até os dias de hoje. A Amazônia é “outro Brasil”, é “colônia” para o resto do Brasil, é a “província” prenhe de riquezas naturais para os outros, não para o uso e benefício próprio. Creio que o estado do Pará seja o mais rico em recursos naturais. No entanto, continua um dos mais pobres do Brasil.

“NÃO HÁ PALAVRAS PARA O QUE SENTI DIANTE DO CAIXÃO DA DOROTHY”

– O senhor acha que a luta contra Belo Monte é perdida?

Dom Erwin – Não, não acho. Eu não sou o tipo que pendura as chuteiras logo.

– A resistência parece estar diminuindo, agora que as obras já começaram e comunidades inteiras foram retiradas. Qual é a sua percepção?

Dom Erwin – Parece que a resistência está diminuindo. Mas as aparências enganam. Tem menos palanque, menos passeatas, menos manifestações públicas. Mas tem mais imprensa. Belo Monte, nos meios de comunicação nacional e internacional, continua sendo manchete, até de forma mais intensiva. De onde não se esperava nenhum apoio, surgem hoje vozes bem críticas e questionadoras. Há gente que anos ou até meses atrás defendeu Belo Monte e que hoje se manifesta contra. Logicamente, o caos que se instalou em Altamira ajuda o povo refletir. Foi isso que nós esperávamos? É esse o progresso tão sonhado? É esse o desenvolvimento prometido pelo governo e cantado e decantado em verso e prosa pelos políticos como “salvação do oeste paraense”?

– Como é a convivência em Altamira, entre opositores de Belo Monte e o pessoal do Consórcio Norte Energia, que executa obra? Afinal, Altamira é uma cidade não muito grande…

Dom Erwin – Nós sempre usamos meios pacíficos para expressar e manifestar nossa posição. Quem reage de modo agressivo é o governo e seu Consórcio Norte Energia S.A., que lapida e viola direitos, fere a própria Constituição Federal e chega ao absurdo de interditar a presença de representantes do Movimento Xingu Vivo para Sempre nas proximidades do canteiro de obras. Eu sou e sempre fui contra qualquer emprego de violência. Eu sou pela não violência, mas uma não violência ativa. Vamos usar de todos os meios não violentos para conseguir derrubar essa obra monstruosa. A prova que a violência está do outro lado é que estou há seis anos completos sob proteção policial. Por que teriam decidido me colocar sob a tutela da Polícia militar, se não estivessem com medo de alguma agressão que poderia ser fatal? Quem matou a Irmã Dorothy? Quem matou o Dema (Ademir Alceu Federicci, líder comunitário assassinado em 2001 no Pará)? Quem mandou matar tantos outros na Amazônia? Será que foram os engajados na defesa dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente na Amazônia contra as investidas inescrupulosas dos facínoras de paletó e gravata em todos os níveis da política e da economia, das grandes empresas e dos grileiros de plantão?

Como o senhor lida com a necessidade de escolta 24 horas por dia, todos os dias? Imagino que seja bem difícil…

Dom Erwin – A gente não se acostuma. O relacionamento com os militares é muito bom, eles são muito respeitosos, são discretos. Agora, por exemplo, como você está aqui, eles não vão ficar na porta para ouvir o que você está falando, porque você havia telefonado, e o nosso encontro estava combinado. Mas eles são muito sensíveis quando desconfiam. É uma vida complicada para mim. Ao atravessar a praça para rezar a missa, ou para almoçar, ou para qualquer movimento meu, tenho que levar os policiais comigo. Ao ser convidado para um aniversário, para um batizado, tenho que dizer: “Vão dois ou três policiais comigo”. Se você me convida, vamos supor, para jantar hoje à noite, na beira do cais, comer um peixe, tenho que avisá-la: “Aceito, mas eu vou com dois homens”. Assim, geralmente declino de qualquer convite social.

O senhor não tem mais privacidade…

Dom Erwin – Não. Desde 29 de junho de 2006, às 22h. Nesta data, neste horário, apareceu o comandante com dois policiais aqui e, desde então, estou sob escolta. Para mim, a vida mudou muito desde então. Proibiram-me tudo. Em vez de andar às 5 horas da manhã na beira do Xingu, é aqui nesse corredor que eu ando: 65 passos para frente, 65 para trás.

– E vai ser assim para sempre?

Dom Erwin – Pelo que eu vejo… Em 26 de janeiro de 2009, o superintendente regional da Polícia Federal no Estado do Pará, Manoel Fernando Abbadi, me recebeu em audiência. Foi muito gentil e compreensivo. Naquela ocasião, ele me aconselhou seriamente a não solicitar a saída do programa de proteção. Ao me desligar do programa, eu me tornaria alvo fácil dos que querem me eliminar e poderiam fazê-lo sem maiores obstáculos, já que viajo muito pelo interior.

Por que o senhor está ameaçado de morte?

Dom Erwin – Acho que há quatro motivos. O primeiro é a Dorothy (Stang). Esse pessoal que a matou, que mandou matá-la, sabe que tenho as informações. Eles não me veem com bons olhos.

– Informações?

Dom Erwin – Eu sempre tomei partido em favor dela. Disseram que a Dorothy estava armando o povo e não sei mais o quê… Eu, que aceitei essa mulher aqui, sempre a defendi. Tinha falado para ela: “Cuidado, Dorothy”. Alguém até fretou um avião aqui em Altamira para me encontrar em São Félix do Xingu. Pediram que eu tirasse a Dorothy “de circulação” e a mandasse de volta para os Estados Unidos. Fretaram, sim, um avião! Uma hora e meia de voo. Eram 9 horas da manhã. Eu rezava o breviário na casa paroquial, pouco antes de ir para uma comunidade. De repente, bateram na porta, e eu abri: “O que vocês fazem aqui?”. Eram fazendeiros. “Temos que falar urgente com o senhor, fretamos um avião para encontrar o senhor. O senhor vai ter que tirar essa mulher de Altamira”.

– E o senhor já disse isso para a polícia?

Dom Erwin – Polícia? Naquele tempo eu não falei com a polícia. Não falei porque não confiei, mas aguardei ser chamado em juízo para contar o que sei. Isso nunca aconteceu. Não se lembraram de que fui eu que a admiti em 1982 na prelazia do Xingu e sugeri a ela que fosse para a Transamazônica-Leste, para a área que hoje corresponde ao município de Anapu. Em 15 de fevereiro de 2005 enterrei a Dorothy. Enterrei. Você não imagina o que passa no coração de uma pessoa quando está diante de alguém que durante tantos e tantos anos trabalhou e que deu o melhor que podia dar. Que pediu para mim para trabalhar entre os pobres mais pobres. E eu disse: “Mulher, tu não vais aguentar isso. Tu vens lá dos Estados Unidos, com conforto e tudo, tu não vais aguentar”. E ela: “Mas me deixe”. Deixei, e ela ficou até o dia em que foi assassinada. De repente, no aeroporto de Belém, quando estou voltando para cá, recebo um telefonema: “Mataram a Dorothy”. E aí foi aquela confusão toda, e finalmente a enterrei, lá em Anapu.

– O que o senhor sentiu?

Dom Erwin – É uma experiência terrível! Terrível! Impossível de descrever. Vieram senadores, deputados, representante do Lula, vieram tantos políticos para o enterro. Ficamos lá, diante do caixão, bandeira brasileira por cima do caixão…. Eu posso lhe dar todos as homilias que eu fiz nos aniversários de morte da Dorothy. A cada ano que passa celebramos a morte dela, e eu faço um homilia especial. Mas o que eu senti lá naquele momento, diante do caixão, não tenho palavras para expressar, não há palavras para mim. (Faz um longo silêncio). Mataram a Dorothy. Não morreu de morte morrida, como se diz, mas de morte matada. E por quê? Porque se colocou do lado de pobres coitados que não têm onde cair morto. E o fato de ela se colocar ao lado dos pobres coitados fez com que a ganância e a ambição desses insaciáveis fosse colocada em xeque.

– O que mudou depois da morte dela?

Dom Erwin – É até constrangedor para mim responder a esta pergunta. Houve avanços, sim, na gestão e na administração dos PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável). O povo simples até hoje se sente respaldado pela morte da Irmã na luta pelos seus direitos à terra e à sobrevivência naquela terra. A Romaria da Terra, que se realiza em Anapu todos os anos, no mês de julho, é prova de que o povo daquela área rural continua firme e decidido na defesa do que é dele. Mas há o outro lado, que é muito triste. Por isso digo que é constrangedor responder. Há gente que hoje ocupa cargos políticos e melhorou de condições de vida que antes andava de braços dados com a Irmã Dorothy e conosco. Hoje está do outro lado e defende o que antes condenou. Chamo esse tipo de gente de traidor, como também chamo o partido que incorpora hoje essas pessoas de traidor. Venderam a mãe, traíram os ideais, perderam a ética.

– E quais foram as outras razões, além da morte da Irmã Dorothy, para a sua escolta permanente?

Dom Erwin – A segunda razão para a proteção é que eu sou presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e me empenho em favor dos povos indígenas. Sempre lutei ao lado deles. Sei que a Igreja cometeu muitos erros ao longo da sua história, mas não adianta lamentar o passado e condenar o que aconteceu. O importante é fazer diferente. Como o nosso papel foi fundamental na inserção dos direitos indígenas na Constituição Brasileira, foi neste contexto que eu sofri um acidente em 1987.

– Um acidente ou uma tentativa de homicídio?

Dom Erwin – Até hoje nunca investigaram. Eu fiquei seis semanas no hospital. Quebrei a cara, literalmente. Mas me consertaram. Um padre morreu, com apenas 31 anos. Os primeiros dias foram terríveis. Eu aprendi o que era dor no hospital, sem poder dormir. A noite não passa, e você começa a avaliar também a sua vida. Pensei muito na família do padre que morreu, único filho homem daqueles pais. Foi terrível.

– Como foi esse acidente?

Dom Erwin – Em agosto de 1987, durante cinco dias, um dos jornais de maior circulação no país publicou matérias horríveis contra o CIMI. Acusaram-nos de tudo. E eu era presidente do CIMI. Foi constituída uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Você ouviu falar em Márcio Thomaz Bastos, né? Naquele tempo ele era presidente da OAB. Encontrei-me com ele na sede da CNBB. Dom Luciano Mendes era o presidente da CNBB e meu grande amigo, defensor intransigente dos povos indígenas e de seus direitos. Considero-o um santo! Pois bem, Márcio Thomaz Bastos me disse: “Dom Erwin, não se preocupe. Essas acusações não têm nenhum fundamento, são grosseiras e de baixo nível. Vamos elaborar um dossiê completo e responder a cada calúnia”. Os advogados do CIMI me pediram que eu não saísse de Altamira, ou pelo menos que não fosse distante. Brasil Novo fica a cerca de 45 quilômetros de distância. E as comunidades da Transamazônica estavam reunidas lá para exigir do governo o conserto das estradas. O inverno, período das chuvas, estava chegando, e as estradas estavam intrafegáveis. Não tinha acesso para hospital, para médico e até uma dor de dente podia ser fatal. Eu então fui me solidarizar com esse povo no dia 15 de outubro de 1987. Rezamos missa, cantamos. E aí me perguntaram se eu não poderia voltar no outro dia, porque seria o encerramento da manifestação deles. Mas caíram na besteira de avisar pelo alto-falante: “Olha, nosso bispo vai voltar amanhã, e às 3h da tarde vamos celebrar a missa. Depois a gente encerra a nossa manifestação lendo a carta de nossas reivindicações”. Aí eu fui lá. Exatamente no meio do caminho, o acidente aconteceu. No topo da ladeira, eu vi um carro de cor clara. E pensei que esse carro viesse ao meu encontro. Mas ele não veio até hoje. Dizem que estava lá apenas para dar o sinal. Bem no topo da ladeira, que abre para uma reta, veio um caminhão e abalroou o nosso Gol. Mesmo gravemente ferido, eu não perdi a consciência em nenhum momento e vi ainda dois homens descerem do caminhão e empreenderem a fuga. Bati no ombro do padre ao meu lado e chamei o seu nome. Não respondeu mais. Estava morto.

– Foi uma tentativa de homicídio?

Dom Erwin – Era o que se dizia. Mas até hoje não foi feita nenhuma investigação. O motorista desapareceu. No carro que estava lá no topo da ladeira para dar o sinal de que estávamos vindo estava o delegado de Brasil Novo. Ele foi morto poucos meses depois, quando assistia à televisão, na sua casa. Queima de arquivo? Não sei. Só sei que eu fiquei fora de combate e até hoje não fui chamado à Brasília para depor e tomar posição frente às calúnias e difamações criminosas. O processo foi arquivado. Um desconhecido foi ver o padre falecido no necrotério do hospital em que me internaram para os primeiros socorros. Afastou o lençol da cabeça do falecido e declarou: “Foi o errado que morreu!”. Coisa macabra! Até hoje há pessoas que não admitem o meu trabalho junto aos índios. E xingam: “Esse bispo não tem o que fazer, fica defendendo esses caboclos”. A defesa dos índios, então, é a segunda razão para que minha vida seja protegida. A terceira razão é Belo Monte. No jornal O Liberal estava escrito: “Esse religioso que está em Altamira tem que ser eliminado”.

– Mas quem disse isso?

Dom Erwin – Em 2006, empresários e políticos declararam guerra contra o bispo do Xingu e os movimentos sociais. Gritaram do alto de seus palanques: “Vamos para a guerra!“. E prometeram “descer o cacete“, numa explícita incitação à violência. Alicerçaram essa sórdida investida em um artigo publicado na página 11 do jornal “O Liberal”, de Belém do Pará, de 5 de junho de 2006. O artigo era assinado pelo economista Armando Soares e intitulado: “Reagir é a palavra de ordem”. Até a própria CNBB moveu um processo. Então, entre outras coisas, sempre gritavam: “Enquanto esse bispo existir, Belo Monte não vai sair”. Uns meses atrás, um cara ainda gritou na frente de uma funcionária nossa: “Mataram a Dorothy, que não tinha nada a ver. Quem tinha de estar morto era esse bispo”. É com toda essa hostilidade que alguns me tratam. É uma minoria, eu diria até insignificante, mas muito barulhenta. Uma máfia. O povo não está contra o bispo, disso tenho certeza. Pelo contrário, nunca recebi tanta declaração de amor como a partir desses episódios. Na igreja, botaram faixas: “Nós te amamos”. Uma mulher veio ao altar, pegou o microfone, chorou e disse: “Dom Erwin, eu sei o que o senhor está passando. Mas, olhe, não entregue os pontos, pelo amor de Deus. Nós estamos ao seu lado! Nós te amamos…”. E a quarta e última razão, que pode até ser a gota d’água, o que fez a coisa transbordar, foram os abusos sexuais de meninas. Outro capítulo terrível que vivi. Nós já lutamos naquele tempo dos emasculados (uma série de meninos castrados e assassinados na região de Altamira), não sei se já ouviu falar…

– Sim.

Dom Erwin – Aconteceu de 1989 a 1993. A prelazia assumiu a defesa dessas famílias e até hoje nós movemos os processos. Ninguém fez nada, até que a prelazia assumiu a causa. E fomos gritar pelo Brasil e pelo mundo afora. E, de repente, em março de 2006, vieram as mães e as professoras dizendo: “Bispo, a coisa está ruim mesmo. Tem uns absurdos acontecendo aqui. O pessoal foi na delegacia dar parte, mas chamaram as nossas filhas de ‘putinhas’”. Pegavam as meninas aqui no colégio, na sexta-feira à tarde. Meninas de 12, 13 anos, bonitinhas, em um carrão, dizendo: “Vamos dar uma volta!”. Levaram-nas para uma chácara e fizeram sexo com elas. Rolou álcool e drogas. Verdadeiras orgias. E, como se isso não bastasse, filmaram tudo. Podia pegar um DVD aqui, em qualquer canto, com as mocinhas do colégio daquele jeito. Aí vieram falar comigo. Aí assumi essa causa. Fiz logo uma carta para o secretário Paulo Vannuchi (secretário nacional de Direitos Humanos no governo Lula), e depois para o ministro da Justiça, para o secretário de Estado de Segurança Pública, e para tudo quanto era gente grande. E, de fato, houve uma repercussão. Mandaram uma delegada, e ela me pediu que falasse o que sabia. Convidou-me para um encontro na Delegacia da Mulher. Aí contei tudo. Mas disse: “Olhe, a única coisa que não vou lhe dizer são os nomes, porque as pessoas que me confidenciaram isso podem correr riscos”. Ela concordou. Então assinei o depoimento. E quando eu saí daquele gabinete já vi um daqueles caras sentado. Ele me reconheceu, e eu também o reconheci. E aí logo correu a notícia pelas ruas da cidade de que o bispo tinha denunciado aquela quadrilha. Depois os canais de TV vieram entrevistar-me e eu, naturalmente, não tive mais papas na língua. Na hora da entrevista eu disse, diante da televisão: “Esses caras são todos uns monstros, que têm de ser presos e trancafiados. Eles não merecem viver no meio da sociedade!”. Aí houve uma virulenta, uma forte campanha contra mim, inclusive com faixas.

– Como o senhor lida com a impotência, no sentido de que, apesar de todos os seus esforços, são muitas as derrotas e, como o senhor contou, muitas as traições?

Dom Erwin – Precisamos entender que nem tudo é derrota ou fracasso. Se eu comparar a época de 1965 e o tempo atual, vejo que o povo também se tornou mais maduro. O povo não engole mais qualquer sapo. Antigamente, o político vinha aqui, comprava uma grade de cachaça, embriagava todo mundo, mandava matar um porco e saía eleito. Hoje, não. O pessoal simples do povo ganhou maturidade política. E nós formamos as comunidades desde a construção da Transamazônica, lideranças que estão na frente até hoje. Quando vejo, também, os direitos indígenas na Constituição, os artigos 231 e 232, sei que fiz a minha parte. Eu não posso dizer que sou um frustrado, de jeito nenhum.

– Me chama atenção o número de mulheres à frente da luta contra Belo Monte. Fora um ou outro homem, são as mulheres que estão liderando a resistência. Como o senhor vê esse fenômeno?

Dom Erwin – Para mim se trata de uma predisposição psicológica que as mulheres tem. Os homens são imediatistas. A gente escuta isso: “Vai ter dinheiro na praça!”. Digo até que os homens são ingênuos. Havia comerciante que pensou que iria “enricar” por conta de Belo Monte. Mas uns já começaram a ficar com o pé atrás, porque estão notando que o dinheiro não chegou até agora. Mas a mulher está ligada, pelo seu ser, por seu coração e por sua psique à geração que vem. A mulher coloca gente no mundo, dá à luz, e está quase que instintivamente preocupada com o futuro da prole. Essa tese se sustenta pela antropologia e pela psicologia. Eu tenho percebido nesses anos todos que as mulheres sempre têm muito mais visão para o futuro porque se trata do filho, da filha, do neto, da neta, cujas vidas estão em jogo. E o homem pensa no dinheiro, no imediato. Não digo todos os homens, mas uma grande parte. Políticos também. Políticos falam na salvação e redenção do oeste do Pará. Com raras exceções não têm visão que ultrapassa a ambição de ganhar votos e manter-se no cargo. E mais uma vez eu volto para o índio. Em 2007, no final de uma reunião, um índio subiu na carroceria do caminhão, pegou o microfone e disse: “Olhem para o Xingu e pensem o que será de nossas crianças. Nós não vamos permitir que a cultura dos nossos antepassados vá para o fundo do rio”. Ele fez a ponte entre o futuro e o passado.

– Mas há notícias de que a maior parte das etnias indígenas abriu mão da resistência em troca de “benefícios”, de cestas básicas a voadeiras e televisões. Qual é a sua percepção?

Dom Erwin – Há uma nova maneira de acabar com os povos indígenas, o “auricídio”, além do genocídio e do etnocídio. Mata-se a cultura e a organização comunitária indígena com o dinheiro. E esta agressão talvez seja pior e mais sutil e desavergonhada, pois mata a cultura e as organizações sociais dos povos indígenas sob a aparência de solidariedade – e sob o manto da indenização para mitigar impactos e efeitos negativos de Belo Monte. Nunca digo que o índio está a favor de Belo Monte. Depois de viver séculos à margem da sociedade, passando necessidades e rejeitado pela sociedade majoritária, de repente está na berlinda e é brindado com todo o tipo de presente e benefício. Quem vai aconselhá-lo a não receber tais benefícios? Só que atrás desses presentes existe um sistema, uma estratégia de quebrar a resistência dos povos indígenas.

– Quando o senhor fala da liderança das mulheres, na luta contra Belo Monte, atribui sua motivação à preocupação com as gerações futuras. Como o senhor enquadraria a presidente Dilma Rousseff nessa visão?

Dom Erwin – É, a Dilma, não sei o que dizer…

– Ela é a primeira mulher na presidência do país…

Dom Erwin – Eu gosto de uma mulher na presidência, mas eu pensei que, como mulher, ela ficaria mais sensível à nossa situação. Mas foi a Dilma quem pariu o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Então, politicamente, ela nunca vai se afastar disso. A gente pode fazer a manifestação que fizer. Mas ela corta qualquer diálogo, já na raiz. Belo Monte não é tema para discutir. Ela é muito dura, intransigente, não aceita opinião divergente. Parece estar obcecada pela ideia de ser a construtora da terceira maior hidrelétrica do mundo e, talvez, ser a presidente que fará funcionar as primeiras turbinas. Meio ambiente, índio, ribeirinho, povo de Altamira, para a Dilma nada disso importa. Construir Belo Monte não foi uma decisão técnica, mas sim política, tomada contra as advertências de cientistas e professores de nossas melhores universidades. A história da Amazônia, do Brasil e da Terra julgarão logo mais o Lula e a Dilma, de modo muito severo, como depredadores inescrupulosos e causadores de impactos que alteraram irreversivelmente o clima do planeta. Todos nós sabemos da função reguladora do clima que a Amazônia exerce. Belo Monte surtirá um efeito dominó. Com Belo Monte se dá luz verde a dezenas de outras hidrelétricas já projetadas para a Amazônia. Belo Monte é o punhal empunhado por Lula e Dilma et caterva para ferir mortalmente o coração da Amazônia.

– Como é o seu Xingu hoje? O senhor teve o Xingu mítico da sua infância e depois o Xingu de quando chegou aqui… Mas como é o Xingu de quem está com quase 73 anos de idade e 47 anos de Xingu?

Dom Erwin – Para mim, o Xingu simboliza a resistência desse povo e dos povos que estão aqui. Antigamente nem sonhei que precisava resistir, era óbvio. Mas, hoje, o Xingu conta a história dos povos daqui e também dos massacres dos séculos passados. E massacres que não estão tão distantes assim, no tempo, quando arrasaram aldeias inteiras. O Xingu tem história de sangue derramado, mas hoje tem também a história da resistência de um povo. Por isso a gente fala do Xingu Vivo para Sempre (movimento contra Belo Monte que reúne várias organizações sociais). Porque não podemos acreditar que será dado o ultimato para o Xingu, que esse rio grandioso vai virar simplesmente uma cloaca.

– Qual é o tamanho dessa perda, para o senhor?

Dom Erwin – Para mim é sempre o último pedaço do paraíso que Deus criou. Esse impacto… Não posso concordar com isso. Não é por sentimentalismo. Mas o Xingu não é só o rio, a água, as praias, é também os povos daqui, que viviam desde tempos que se perdem na História, e depois os ribeirinhos que vieram nos séculos 18, 19, início do século 20. E depois os imigrantes que também vieram nos anos 70. Eles hoje já se identificaram com o Xingu, já pertencem ao Xingu. Têm olhos azuis e cabelo loiro, mas são daqui. Esse povo todo, misturado, para mim é o Xingu.

– O senhor lutou tantas décadas contra Belo Monte. O senhor acha que há alguma chance de vencer essa luta, com a construção já em andamento e com tanta gente desistindo dela? Qual é o cenário hoje e quais são as suas expectativas?

Dom Erwin – Posso ser considerado ingênuo, mas eu ainda não acredito que estejamos na “casa do sem jeito”. Tenho até a sensação de que o próprio rio Xingu não vai ficar “quieto” enquanto querem matá-lo. Os geólogos e gente que entende do assunto falam no Xingu como rio que ainda está “in statu fieri”. Quer dizer: ainda não está pronto, ainda se constitui, se constrói, se mexe, se impõe. O Xingu é um rio “vivo”. Não confio, em absoluto, nos estudos dos que defendem Belo Monte. Os estudos foram feitos simplesmente para corroborar uma decisão política já tomada – e estudos desse tipo para mim carecem de seriedade. O Xingu é enigmático e imprevisível em sua maneira de reagir. Mas penso também que os homens e mulheres que até agora defenderam Belo Monte um dia vão cair na real. Espero apenas que, quando caiam na real, o estrago já não seja total.

– O Brasil vai sediar, nos próximos dias, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, duas décadas depois da Rio 92. O senhor tem alguma esperança nessa conferência?

Dom Erwin – Sim, tenho esperança. Não tanto nas discussões oficiais, mas sim naquilo que acontecerá na margem ou ao redor da Rio + 20. Eu sei que gente de toda parte vai aproveitar os espaços e não vai se calar. E também o Xingu e Belo Monte e a Amazônia serão temas discutidos por pessoas de ponta, tanto em nível do Brasil como do mundo todo. E tem mais. Enquanto acontece a Rio + 20, no Xingu acontecerá a Xingu + 23, lembrando nossa luta contra Belo Monte, que já dura 23 anos e seguramente não será uma luta perdida.

Reportagem publicada na Revista Época

Página 27 de 29« Primeira...1020...2526272829