A vida na “Tumorlândia”

O grande polemista Christopher Hitchens conta, com a inteligência e a ironia que marcaram a sua obra, como é a vida no mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas a partir do diagnóstico de um câncer

Li o último (e aqui o último tem um sentido maior) livro do britânico Christopher Hitchens durante um voo de Porto Alegre para São Paulo, na semana passada. Quando acabou, a experiência da leitura tinha dado ao voo curto uma extensão inusitada. Sentada na janela, esperando os outros passageiros desembarcarem, eu me sentia de luto por alguém que nunca vi. Como disse Graydon Carter, editor da Vanity Fair, revista americana na qual Hitchens travou alguns de seus mais ardorosos embates, a capacidade de produzir a certeza de que ele escrevia diretamente para cada um de nós era um de seus trunfos. Em seus artigos, Hitchens ofertava-se por inteiro, com o ímpeto desassombrado e feroz que provocou amores e ódios, fez amigos e inimigos. Sempre parecendo estar muito satisfeito pela chance de enveredar por alguma polêmica cabeluda, ao atacar personagens tão diversos quanto Henry Kissinger e Madre Tereza de Calcutá. Tão destemido para escrever quanto era para beber e fumar. Não é diferente neste Últimas palavras (Globo), livro no qual Hitchens espeta seu olhar afiado na convivência com o câncer que acabaria por matá-lo, aos 62 anos, em 15 de dezembro de 2011. Ao desembarcar do avião e do livro, descobri que estava dolorida. Não apenas pelo que ele tinha vivido, não apenas porque ele tinha morrido, mas por uma razão bem egoísta: já não haveria textos de Christopher Hitchens para ler.

Provocar essa sensação no leitor ao final de um livro no qual narra o fim da própria vida mostra o enorme poder de Christopher Hitchens como escritor. O mais provável, neste tema, seria evocar pena, compaixão e lágrimas. Ou, no caso de seus numerosos opositores, uma sensação de vingança saciada pelo sofrimento ao qual foi submetido – seguido pela morte da qual não pôde escapar.

Hitchens, porém, não permite nem piedade, nem vingança. Ele termina sua vida por escrito com uma inteligência e uma honestidade intelectual tão luminosas que só conseguimos lamentar nossa orfandade de suas letras. Em suas últimas palavras, ele consegue escrever sobre si mesmo com o olhar agudo de quem escreve olhando para um outro – mas sem apartar-se de si. Olha de fora e de dentro – ao mesmo tempo.

Há quem possa se chocar quando ele trata o câncer, talvez a palavra mais intoxicada de sentidos do nosso tempo, com tanta sem-cerimônia. Mas não é desrespeito pela dor, nem a sua nem a do outro. Pelo contrário. Vale a pena perceber o quanto é importante que alguém possa olhar para o câncer que o consome também com ironia, até mesmo com humor – não porque é uma experiência menor, mas justamente porque é grande. E poucos seriam capazes dessa ousadia além de Christopher Hitchens.

Nos 19 meses entre o diagnóstico de câncer no esôfago e a sua morte, muitas foram as apostas sobre quantos dias ou semanas ele demoraria antes de capitular e sucumbir à religião – ele, que foi um dos mais dedicados defensores do ateísmo. Contra todos os prognósticos, Hitchens morreu sem perder a coerência. Como ele mesmo diz, diante da expectativa explícita de seus adversários: “Imaginar que eu descarte os princípios que sustentei por toda a vida na esperança de conseguir favores no último minuto? Espero e confio que nenhuma pessoa séria ficaria impressionada com tal escolha barata. O deus que iria recompensar covardia e desonestidade e punir dúvida irreconciliável está entre os muitos deuses em que não acredito”.

Até o fim, um tipo de cristão – mais comum do que todos nós, religiosos e não religiosos, gostaríamos – atacou-o com ódio. Como nesta “contribuição” pinçada por Hitchens na internet, entre tantas: “Quem mais acha que Christopher Hitchens ter câncer de garganta terminal (sic) foi a vingança de Deus por ele usar sua voz para blasfemá-lo? Ateus gostam de ignorar FATOS. Gostam de agir como se tudo fosse uma ‘coincidência’. Verdade? É apenas ‘coincidência’ (que) de todas as partes do seu corpo Christopher Hitchens tenha conseguido um câncer na única parte de seu corpo que usou para blasfemar? Tá, continuem acreditando nisso, ateus. Ele vai se contorcer de agonia e dor e se reduzir a nada, e depois ter uma horrível morte agonizante, e ENTÃO vem a parte realmente divertida, quando ele é mandado para sempre para o FOGO DO INFERNO, para ser torturado e queimado”.

Hitchens escuta e responde mesmo a estas demonstrações de ódio – para além de qualquer mágoa que pudesse sentir por um outro ser humano desejar-lhe tanta dor pelo simples fato de não compartilhar de suas crenças. Como fará durante todo o livro, ele desnuda cada argumento. A começar por esclarecer o crente vingativo de que blasfemou também com outras partes do seu corpo, não atingidas pelo câncer. Entre várias observações, aponta: “Por que não lançar um raio sobre mim, ou algo similarmente assombroso? A divindade vingativa tem um arsenal tristemente pobre se a única coisa em que consegue pensar é exatamente o câncer que minha idade e ‘estilo de vida’ sugeriam que eu pudesse ter”.

Se Hitchens tivesse abdicado de suas convicções no percurso do morrer, nenhum de nós deveria julgá-lo. Do mesmo modo que jamais devemos julgar alguém que tenha delatado seus companheiros durante uma sessão de tortura. A tortura e a doença letal têm causas e implicações diversas, mas compartilham de uma premissa: são dois momentos cuja dimensão e intensidade só são alcançadas por quem os experimenta – e ninguém pode garantir qual será o seu comportamento antes de ter vivido um ou outro. Podemos apenas desejar manter-nos fiéis aos nossos princípios, mas garantir jamais.

Fico contente, porém, que Hitchens tenha conseguido viver até o fim com tudo o que era. Sua coerência deu vigor a suas últimas palavras. E por causa dela ele tornou-se capaz de escrever sobre a vida no que chamou de “Tumorlândia” – como nomeou o mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas que descobrem um câncer. Importa menos concordar ou discordar de suas ideias – e importa mais a lucidez com que ele tratou o momento possivelmente mais difícil da vida de um homem. Suas últimas palavras constituem um ensaio valioso sobre o morrer – de câncer, no Ocidente, no início do século 21.

Selecionei aqui algumas de suas observações mais provocativas, para nos ajudar a pensar sobre como lidamos com a doença e a morte:

1 – Manual de etiqueta do câncer

Numa sessão de autógrafos, Hitchens foi abordado por uma mulher com “estilo maternal”. Ela multiplicou o tempo de espera de quem estava atrás na fila ao lhe contar uma história escabrosa, arrematada por um “entendo exatamente o que você está passando”. A partir do episódio, Hitchens começou a pensar na conveniência de um pequeno “Manual de Etiqueta do Câncer”. A obra seria destinada “aos doentes e também aos simpatizantes”.

Hitchens explica: “Meu manual teria de impor deveres a mim, bem como àqueles que falam demais, ou de menos, na tentativa de disfarçar o inevitável constrangimento nas relações diplomáticas entre Tumorlândia e seus vizinhos”. Ele gostaria de lembrar às pessoas, em geral, que não circulava por aí com um enorme broche de lapela no qual estava escrito: “PERGUNTE-ME SOBRE CÂNCER DE ESÔFAGO EM METÁSTASE NO QUARTO ESTÁGIO E APENAS SOBRE ISSO”.

No manual, as pessoas seriam orientadas a contar sua história com mais parcimônia, tenha ela um final triste ou feliz, e a permanecer atentas à possibilidade de a plateia não estar interessada. Na posição de “doente de câncer”, ele também se compromete a não desfiar a série de misérias cotidianas que passaram a fazer parte da sua vida diante de um corriqueiro “como vai?”. A melhor resposta para esta pergunta tão educada quanto banal não seria discorrer longamente sobre o funcionamento bipolar do seu intestino. Para conhecidos e estranhos, ele sugere: “Ainda é cedo para saber”. Para a equipe médica: “Pareço ter um câncer hoje”.

Hitchens também sugere aos muito, muito íntimos, que não se precipitem na abordagem da morte, dizendo coisas como esta: “Imagino que chegue uma hora em que você precisa considerar que tem de partir”. Ao escutar isso de alguém, ele ficou chocado. Estava pensando nisso, sabia disso, mas preferia ser ele a dizer, e não um outro, por mais próximo que fosse. A estas pessoas, ele diz: “Eu me preocupo em encarar os fatos difíceis, obrigado”.

2 – Se conselho fosse bom…

Ao ser assolado por todo tipo de conselho bem-intencionado, Hitchens lembrou de um ensaio no qual a crítica de cinema Pauline Kael descreveu Hollywood como “um lugar onde se pode morrer de encorajamento”. E completa: “Na cidade do tumor você às vezes sente que poderia expirar apenas por conselhos”.

Hitchens foi aconselhado, entre outras coisas, a ingerir essência granulada de caroço de pêssego (“ou seria damasco?”), tomar grandes doses de testosterona, abrir seus chacras para adotar um “estado mental receptivo”, adotar dietas macrobióticas e vegetarianas, congelar-se por criogenia.

Com a ironia habitual, ele apreciou apenas o conselho de uma amiga cheyenne-arapaho, que rabiscou num bilhete algo assim: “Todos os meus conhecidos que apelaram para remédios tribais morreram quase que instantaneamente. Se te oferecerem qualquer remédio nativo americano, mova-se o mais rápido possível na direção oposta”.

3 – Ah, os eufemismos…

Hitchens aponta a tendência da medicina moderna de usar eufemismos ao lidar com pessoas com câncer, dando destaque para a palavra “desconforto”: “Como estamos indo hoje? Algum desconforto?”. Diz ainda que “uma avenida de eufemismos” foi aberta pela abordagem empresarial: “Já se encontrou com nossa equipe de ‘gestão da dor’?”.

Sobre os eufemismos, ele afirma: “Assim que você ouve isso da forma errada, pode parecer um eco da prática do torturador de mostrar à vítima os instrumentos que serão usados nela, ou descrever a gama de técnicas e deixar que essas ameaças façam a maior parte do trabalho. (Galileu Galilei teria sido exposto a isso enquanto passava pela pressão gradual que acabou convencendo-o a se retratar)”.

Como jornalista, Hitchens submetera-se à tortura do waterboarding (“afogamento simulado”). No pós-11 de Setembro, comprovou-se que a CIA estava usando esse “método de interrogatório” em suspeitos de terrorismo. Diante da reação chocada de parte dos americanos, o governo de George W. Bush convocou especialistas para afirmar que não se tratava de tortura. Ao assumir a presidência, Barack Obama baniu o “procedimento”.

Durante a controvérsia, Hitchens foi afogado em segredo por membros das Forças Especiais, nas montanhas da Carolina do Norte, por vontade própria. Ele queria provar aos leitores da Vanity Fair que não era uma simulação, mas afogamento de fato. A experiência de ser torturado lhe deixou sequelas e, sempre que aspirava algum tipo de umidade, corria o risco de um ataque de pânico. Ao longo do tratamento do câncer, mostrou-se difícil para ele receber alimentação líquida através de um tubo, ou mesmo ser banhado.

Em seu livro, ele diz: “Há práticas médicas e hospitalares cotidianas banais que lembram às pessoas da tortura praticada pelo Estado. (… ) Mesmo a ideia de algumas aplicações malfeitas de água ou gás, com a intenção de hidratar e nebulizar, para combater problemas respiratórios, são mais do que suficientes para me deixar gravemente doente”.

4 – O Cristo crucificado pode não ser uma visão tranquilizadora

A exibição de crucifixos na parede dos quartos de hospital tem sua desaprovação, com base no que chama de “associações sadomasoquistas pregressas”. Hitchens lembra que os condenados nas guerras religiosas e na Inquisição eram submetidos à visão compulsória da cruz até a morte. “Em algumas das pinturas fervorosas dos grandes autos de fé, não excluindo, acho, alguns dos queimados vivos pintados por Goya na Plaza Mayor, vemos a chama e a fumaça se erguendo perto da vítima, e a própria cruz suspensa sinistramente diante de seus olhos fechados.”

5 – “O que não me mata (NÃO) me fortalece”

Hitchens discorda da frase famosa, atribuída ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Na sua experiência com o câncer, descobriu que aquilo que não o mata o enfraquece – e a fraqueza em geral é cumulativa e tem um final previsível. A partir dessa constatação, ele passou a refletir sobre a obstinação terapêutica dos médicos ou o que tem sido chamado aqui de “tratamentos fúteis”. E faz observações muito interessantes sobre este, que é um dos dilemas contemporâneos: se o avanço tecnológico assegurou vários benefícios à saúde e ampliou as possibilidades da medicina, teve como efeito colateral o prolongamento doloroso e inútil da vida.

Entre os exemplos trazidos por ele, há a extraordinária história do filósofo Sidney Hook, que morreu em 1989, mas gostaria de ter morrido antes. Depois de um angiograma ter provocado nele um derrame, numa experiência extremamente dolorosa, ele descobriu-se “na meca médica de Stanford, na Califórnia” e às voltas com o seguinte paradoxo: tinha à disposição um nível de cuidados sem precedentes na história e, ao mesmo tempo, era exposto a um grau de sofrimento que as gerações anteriores poderiam não ser capazes de suportar.

O filósofo pediu ao médico que suspendesse os mecanismos de sustentação da vida, com base em três argumentos: outro derrame doloroso poderia atingi-lo, obrigando-o a sofrer tudo de novo; sua família estava sendo obrigada a passar por uma experiência infernal; recursos estavam sendo investidos à toa. O médico recusou sua reivindicação, usando a seguinte frase: “Algum dia você perceberá a falta de sentido do seu pedido”. O filósofo cunhou então uma expressão poderosa para explicitar a situação a que a medicina condenava pessoas como ele: viver em “túmulos de colchão”.

Hitchens descobriu que algumas pessoas tinham não mais o desejo de morrer com dignidade, mas o desejo de já ter morrido.

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Estas são algumas das observações feitas por Christopher Hitchens sobre viver com câncer. Progressivamente, escrever foi se tornando uma conquista arrancada com muita dificuldade dos dias e das dores. A certa altura, ele viu sua poderosa voz, com a qual travou debates inesquecíveis, ir minguando, calada à força pelo tumor. Descobriu então – e este é um dos momentos mais belos do livro – que não tinha uma voz, era uma voz. Assim como não possuía um corpo, era um corpo. Do mesmo modo que não somente escrevia, mas era palavra escrita. “Escrever não é a apenas a minha forma de vida e de ganhar a vida, mas minha própria vida. (…) Sinto minha personalidade e minha identidade se dissolvendo enquanto contemplo mãos mortas e a perda das correias de transmissão que me ligam à escrita e ao pensamento.”

Christopher Hitchens morreu sendo por inteiro, mesmo que literalmente estivesse aos pedaços. A prova é que, como último ato de vida, ele escolheu pensar sobre a morte.

(Publicado na Revista Época em 24/09/2012)

Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?

Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?

Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado.

Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.

Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.

Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário, na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.

Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:

– E como os fregueses o chamam?

– Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.

– O senhor chama eles de doutor?

– Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor….

– É esse o segredo do serviço?

– Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.

A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.

Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.

Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?

Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.

Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.

Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?

O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.

É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do termo.

No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de “doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.

O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.

Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de intervenção.

Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida brasileira.

Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério….” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.

É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito.

Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.

Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza, os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade da sociedade brasileira.

Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2012)

 

Por que o amianto foi parar no meio do mensalão?

Em meio ao período de julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal realiza uma audiência pública com 35 expositores para debater o uso do mineral cancerígeno presente em cerca de três mil produtos do nosso cotidiano. Entenda como isso afeta – e muito – a nossa vida e o que está em jogo neste momento no Brasil e na corte

Nas próximas duas sextas-feiras (24 e 31/8), o Supremo Tribunal Federal realizará uma audiência pública sobre o amianto – também conhecido como asbesto. O tema afeta diretamente a população, que ainda bebe água de caixas d’água de amianto ou dorme sob um teto de telhas de amianto ou ainda tem em sua vida cotidiana três mil produtos fabricados com essa fibra mineral comprovadamente cancerígena. Apesar da importância da questão, já estamos na semana da audiência pública e pouco se ouve falar sequer de que ela vai acontecer – seja na imprensa, seja nas ruas, até mesmo nos corredores do próprio Supremo. A razão é óbvia: como é possível que se preste atenção em qualquer outra coisa realizada na corte em pleno período de julgamento do mensalão?

Mesmo que não estejam previstas sessões de julgamento do mensalão nestas duas sextas-feiras, ainda assim é legítimo questionar: se o principal objetivo de uma audiência pública é esclarecer os ministros em temas supostamente controversos, como os principais interessados estarão aptos a concentrar seus esforços em qualquer outra coisa que não seja o mensalão, ouvindo 35 expositores sobre um tema complexo, quando alguns já são flagrados cochilando e outros reclamam publicamente de exaustão devido à agenda semanal pesada?

A audiência pública foi pedida pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, que serve à indústria do amianto, no curso de uma ação que tenta derrubar a lei que proibiu a fibra mineral no Estado de São Paulo. Movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), esta ação (ADI 3937) alega a inconstitucionalidade da lei paulista. Mas é só uma entre várias ações relativas ao amianto que começaram a tramitar há mais de uma década no Supremo, o que permitiria supor que a corte já estaria bastante informada sobre o assunto. Mas, pelo menos no entender do relator, ministro Marco Aurélio Mello, não está. O Instituto Brasileiro do Crisotila pediu audiência pública e o ministro Marco Aurélio concedeu o pedido – marcando, dias antes do anúncio oficial do cronograma do mensalão, o debate para agosto.

Como tudo o que se refere ao amianto no Brasil, a audiência pública no meio do julgamento do mensalão é só mais um entre muitos capítulos estarrecedores. O quadro é o seguinte. A Organização Mundial da Saúde considera o amianto cancerígeno desde 1977 – há 35 anos, portanto. Segundo estimativas da OMS, cerca de 107 mil trabalhadores morrem a cada ano no mundo por doenças causadas pelo amianto. Documentos provam que a indústria já tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde os anos 30 do século passado. Nos anos 90, a contaminação por amianto tomou proporções de escândalo de saúde pública em países da Europa, como a França, onde estima-se que 100 mil pessoas morrerão de doenças relacionadas ao amianto até 2025. Em toda a Europa ocidental, as estimativas apontam que o câncer causado por amianto matará 250 mil pessoas entre 1995 e 2029. O primeiro país europeu a vetar o mineral foi a Noruega, em 1984 – quase três décadas atrás, portanto. Desde 2005, a fibra está banida em toda a União Europeia. Atualmente, o amianto está proibido em 66 países.

O Brasil é o terceiro produtor mundial, o segundo exportador e o quarto usuário de amianto. A principal ação que tramita no Supremo contesta justamente a lei federal que permite “o uso controlado do amianto”. Seu relator é o atual presidente da corte, ministro Ayres Britto. Mas, como sabemos, ele aposenta-se em novembro. A ação foi colocada na pauta de julgamentos, mas não tem data marcada para ser votada.

Hoje, o amianto é proibido em cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco – e em mais de duas dezenas de municípios. A única mina de amianto no Brasil está localizada no município de Minaçu, em Goiás. Parte dos parlamentares que formam a chamada “bancada do crisotila”, dedicada a barrar o andamento no Congresso de projetos de lei para banir o amianto no país, tem estado bastante presentes no noticiário desde que estourou o escândalo de Carlinhos Cachoeira. “Crisotila” é o nome do tipo de amianto extraído no Brasil, cuja possibilidade de “uso seguro” é defendida pela indústria junto a ministros, parlamentares e população, apesar de uma ampla gama de pesquisas, realizadas pelos mais respeitados cientistas no mundo nesta área, provar que não há nenhuma maneira segura de usar amianto.

O escândalo do amianto configurou-se no Brasil na virada do milênio. Naquele momento, vieram a público as informações sobre a doença e a morte de dezenas de trabalhadores das fábricas de amianto. As doenças mais comuns causadas pela fibra mineral são a asbestose – conhecida como “pulmão de pedra”, na qual o doente é lentamente levado à morte por asfixia – e o mesotelioma – um tumor maligno, agressivo e letal na maioria dos casos, conhecido como o “câncer do amianto”. Uma em cada três mortes por câncer ocupacional está relacionada ao amianto.

Hoje, começam a surgir os primeiros casos de contaminação ambiental também no Brasil – pessoas que não trabalharam nas fábricas, mas moravam perto de fábricas de amianto ou tiveram contato com a fibra mineral de outro modo. Em uma série de reportagens publicada em maio, o jornal O Globo mostrou o caso da doceira Adelaide de Jesus Morino, que sofre de um mesotelioma. Ela mora a 200 metros da antiga fábrica da Eternit, em Osasco, na Grande São Paulo (leia aqui).

O estarrecedor com relação ao amianto é observar que o Brasil discute hoje o que os países mais avançados da Europa discutiram 30 anos atrás, alguns, 20 anos outros. Como se esta parte do mundo não estivesse globalizada – e as informações não estivessem disponíveis. No caso do amianto, o Brasil alinha-se com as posições de países como Rússia e China – o primeiro e o segundo produtores de amianto do mundo, cujas práticas econômicas, assim como a relação com os direitos humanos e trabalhistas, são bem conhecidas.

Enquanto a Europa discute como fazer a descontaminação ambiental das cidades nas quais havia minas e fábricas de amianto para evitar o aumento do número de mortes de cidadãos, o Brasil discute se é ou não possível o uso seguro do mineral cancerígeno. Em fevereiro, o Tribunal de Turim, na Itália, condenou o multimilionário Stephan Schmidheiny, antigo dono da gigante Eternit, e o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, ex-dirigente da multinacional: a 16 anos de prisão, pela morte de cerca de três mil pessoas. Provou-se na corte que eles sabiam do potencial cancerígeno e, mesmo assim, calaram-se. Ações semelhantes são movidas em diferentes países da Europa, como você pode ler aqui. Enquanto isso, no Brasil, é marcada uma audiência pública para debater, entre outras questões, o impacto econômico do banimento do amianto.

Parece surreal? A mim, pelo menos, parece bastante. Mas, assim é que é. E por que é assim?

Para nos ajudar a entender o que está em jogo na audiência pública do Supremo que começa na próxima sexta-feira, entrevistei Fernanda Giannasi para esta coluna. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho há 29 anos, ela é a grande referência na luta pelo banimento do amianto no Brasil – e uma das principais protagonistas no cenário internacional. É conhecida como a “Erin Brockovich brasileira”, numa referência à americana que venceu uma poderosa indústria que contaminara a água de uma pequena comunidade na Califórnia, causando doenças e mortes. No cinema, Erin foi vivida por Julia Roberts, em um filme que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz.

Nesta luta, Fernanda vem sofrendo todo tipo de pressão, já chegou a receber ameaças de morte, recentemente foi vítima – mais uma vez – de uma tentativa de desqualificação, como foi mostrado aqui. Nos últimos dois meses, ela vem dormindo entre duas e duas horas e meia por noite, para atender às necessidades da preparação da audiência pública. A luta pelo banimento do amianto depende, em grande parte, do idealismo de seus ativistas, já que os recursos são escassos e a infraestrutura é pouca. Fernanda teme que, apesar de todos os esforços empreendidos, a audiência seja esvaziada por conta do período sobrecarregado do Supremo. E poucos estejam dispostos a escutá-los com a atenção que o tema merece.

O que está em jogo nesta audiência?
Fernanda Giannasi – A tentativa de adiar decisões com a composição atual do Supremo. Segundo avaliações de decisões anteriores, a maioria dos ministros hoje é desfavorável ao uso do amianto. Assim, os advogados do lobby pró-amianto pediram audiências públicas em todas as ações relativas ao tema, com o objetivo de protelar as votações, na esperança, talvez, de que a próxima composição do Supremo seja mais favorável à indústria do amianto. Uma das ações que o ministro Ayres Britto colocou em pauta, na véspera de assumir a presidência do Supremo, foi a ação que analisará a constitucionalidade da lei federal do uso controlado do amianto. Se esta lei for julgada inconstitucional pelo Supremo, todas as demais ações perdem sua razão de ser – e o amianto será banido. Mas Ayres Britto é o relator – e se aposentará no final deste ano.

Mas não é importante discutir o amianto?
Fernanda – Primeiro, as perguntas que estão postas para a audiência pública são as perguntas que foram trazidas pelo lobby do amianto. Claramente têm uma intencionalidade: reforçar a ideia de que o amianto brasileiro, o crisotila, é diferente dos outros, que o uso seguro é possível e que as outras fibras que estão sendo usadas como alternativa têm um custo alto e a substituição do amianto causaria muitas demissões. Bem, eu pretendo esclarecer duas destas questões. A primeira é que o uso seguro do amianto não se tornou viável em nenhum lugar do mundo. Apenas para dar um exemplo, minha equipe já multou caminhões que na ida carregavam amianto e, na volta, torradas e panetones de uma das empresas líderes de mercado. Não é realista imaginar que se conseguirá neutralizar os riscos da manipulação de um produto cancerígeno da mineração à construção civil e ao transporte, sem contar o consumo. A segunda questão que pretendo esclarecer é o impacto econômico e social da substituição do amianto. O lobby do amianto fala em 200 mil empregos, nos quais inclui os empregados no transporte dos produtos e da construção civil. Ora, os caminhoneiros transportam todo o tipo de produto, com ou sem amianto, e os trabalhadores da construção civil usam todo o tipo de material, com ou sem amianto. De fato, segundo os cadastros do Ministério do Trabalho, no qual sou auditora fiscal há 29 anos, a indústria do amianto gera no Brasil 5.500 empregos diretos e indiretos – enquanto as 170 empresas que substituíram o amianto geram, apenas no estado de São Paulo, 10.500 empregos diretos. Estes postos de trabalho, sim, estão ameaçados, se o amianto for mantido e começarmos a importar produtos com amianto da China, como já estamos fazendo. Nossa fiscalização mostrou que produtos com amianto estão chegando até mesmo por meio de compras pela internet. O fornecedor fica em Macau, o cliente recebe pelo federal express. Recentemente, inclusive, houve um escândalo na Austrália, onde o amianto é proibido, ao comprarem 23 mil carros e descobrirem que as juntas automotivas continham amianto. Agora, estão fazendo um recall para devolver os carros à China.

Mas não é importante mostrar tudo isso em uma audiência pública no Supremo?
Fernanda – O debate é sempre importante e temos discutido essa questão, em todas as instâncias, há pelo menos 20 anos, com grande dificuldade e, mais no passado do que hoje, até com risco pessoal. O problema é que essa audiência foi uma surpresa para nós, que lutamos pelo banimento do amianto. E me arrisco a dizer que foi uma surpresa também para alguns ministros do Supremo.

Por quê?
Fernanda – Primeiro, porque a questão do amianto tramita no Supremo há mais de uma década. A primeira ação é de 2001. Já houve decisões e, portanto, os ministros estão bem informados e esclarecidos sobre o tema. Neste sentido, é curioso realizar uma audiência para debater algo que os ministros já estão prontos para votar. Ainda assim, nós sempre estamos dispostos a debater. Portanto, tão logo o pedido de audiência pública feita pelos defensores do amianto foi deferido pelo ministro Marco Aurélio, no início de maio, começamos a empreender todos os nossos esforços para trazer os especialistas internacionais mais relevantes na área para qualificar o debate. E então, de novo fomos surpreendidos: as audiências foram marcadas para agosto, no mesmo período do julgamento do mensalão. O país inteiro está mobilizado para este julgamento: ministros, imprensa, público. Já que chamaram uma audiência pública, gostaríamos de ter a presença massiva dos ministros, a atenção do público e da imprensa, para que realmente haja foco no debate. Mas receamos ter, em vez disso, um debate esvaziado. Esta é a nossa perplexidade: a quem interessa realizar uma audiência pública sobre um tema que tramita há anos e já está na pauta de julgamentos? E, além disso, uma audiência pública realizada no mesmo período do julgamento do mensalão? Qual é o objetivo de fato desta audiência pública?

Mas quando a audiência pública do amianto foi marcada para agosto, não havia ainda a definição do cronograma do mensalão. Pelo que consta no andamento do processo no Supremo, o ministro Marco Aurélio determinou em despacho de 23 de maio que a audiência fosse realizada em agosto. E a data do julgamento do mensalão foi anunciada pelo Supremo alguns dias depois, em 6 de junho. Não teria sido apenas uma coincidência?
Fernanda – Não. Ainda que o julgamento do mensalão não tivesse sido oficialmente marcado e anunciado para agosto, quando a audiência pública foi marcada já estava sendo acertada a data do julgamento entre os ministros. Já se sabia que esta era a proposta. Sei disso porque, assim que nossos advogados souberam que a audiência seria marcada para agosto, manifestaram sua preocupação a ministros do Supremo, mencionando o mensalão. No início, pensamos que seria cancelada por conta disso, mas o fato é que não foi.

Qual é o seu temor?
Fernanda – Que a maior parte dos ministros não acompanhe o debate com a atenção e o foco que poderiam ter em outro momento, já que estão totalmente dedicados ao mensalão, numa agenda que já é pesada por si só. E você não imagina o esforço que é para o movimento social participar dessa audiência. Eu estou indo a Brasília com as minhas milhas, vou pagar o hotel do meu bolso. O Eliezer (de Souza, presidente da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto) está indo de ônibus. Estamos hospedando gente nas casas de amigos, porque não temos dinheiro para hotel. Estamos tentando conseguir recursos para pagar a tradução simultânea. E só conseguimos trazer os convidados estrangeiros porque eles obtiveram os recursos para as passagens com suas próprias universidades e centros de pesquisa. E tudo isso para algo que pode nem ter repercussão na imprensa. Ainda nem temos certeza se a TV Justiça vai transmitir a audiência. De novo: a quem de fato interessa isso? Para quem é fácil mobilizar recursos nesse nível? Só pro lobby pró-amianto. Pra nós é um sacrifício e corremos o risco de termos um resultado pífio.

Está mais do que provado que o amianto é cancerígeno, já morreram milhares de pessoas e a previsão é de que morram centenas de milhares nas próximas décadas. Por que você acha que setores da indústria, do sindicalismo e mesmo da academia no Brasil se dedicam a continuar defendendo algo que mata gente?
Fernanda – É um lobby que tem sustentáculos em várias instâncias. Inclusive no próprio parlamento, com a “bancada da crisotila”, que agora ficou em destaque com o escândalo do Cachoeira. Dentro das universidade públicas mais renomadas, como USP e Unicamp, há pesquisadores que têm suas pesquisas financiadas pela indústria do amianto. Há sindicatos financiados pela indústria do amianto, como já provamos mais de uma vez. E hoje temos três ex-ministros do Supremo que advogaram ou advogam para a indústria do amianto depois de terem se aposentado. O primeiro foi o falecido Maurício Corrêa, que foi substituído pelo Carlos Velloso e, pelo que soubemos, até mesmo o Francisco Rezek está assessorando o lobby do amianto para as questões no STF. É aquela história, o que o homem persegue? Poder, dinheiro e prestígio. Hoje, prestígio já não há, com industriais e cientistas já respondendo por crimes em tribunais europeus. Mas poder, ainda que efemeramente, sim. Há notórios lobistas do amianto mantidos pela presidente Dilma Rousseff nos ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. E riqueza rápida, certamente. É fácil perceber os indícios de riqueza na vida de alguns sindicalistas e acadêmicos.

Quantas pessoas já morreram no Brasil por causa do amianto?
Fernanda – Oficialmente, houve 2.400 casos de mesotelioma nos últimos dez anos. E o número vem crescendo ano a ano, com a melhoria dos diagnósticos e dos registros. Mas ainda vivemos o chamado “silêncio epidemiológico”. Os nossos registros oficiais não refletem o fato de o Brasil ser o terceiro produtor mundial, segundo maior exportador e quarto maior usuário de amianto. Isso não é porque a nossa crisotila supostamente seria mais segura, mas porque há problemas de registro. A Argentina comprava a nossa crisotila e tem mais casos registrados de mesotelioma do que o Brasil. Sem contar que há situações inexplicáveis, como uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que autoriza 17 empresas do amianto, entre elas a Eternit, a não informarem ao Sistema Único de Saúde quem são os seus doentes. Esta decisão existe desde 2006 e até hoje não foi revogada. Há basicamente dois mecanismos que tornam nossos dados invisíveis à sociedade: o primeiro é esta decisão imoral, e o segundo mecanismo são os acordos extrajudiciais. Temos quatro mil acordos extrajudiciais, celebrados pelas empresas com trabalhadores doentes, e seria necessário torná-los visíveis às instituições de saúde e à previdência, assim como ao público. Fizemos um enorme esforço e conseguimos ter acesso a pouco mais de mil destes acordos.

Há alguns analistas que comparam o lobby do amianto ao do tabaco. Você concorda?
Fernanda – É muito parecido com o lobby do tabaco, sim. São os chamados “mercadores da morte”. Se você tiver oportunidade, dê uma olhada num livro que os advogados da indústria americana do tabaco escreveram, chamado “O nosso produto é a dúvida” – ou seja, a cada nova certeza, eles produzem uma nova dúvida. E assim vão ganhando tempo e dinheiro enquanto as pessoas morrem. Com o amianto é a mesma coisa. Há o financiamento de uma ciência própria, com cientistas financiados pela indústria para produzir determinados resultados. E, a cada etapa que avançamos, o lobby do amianto vai gerando novas dúvidas, sempre para atrasar o processo. Do mesmo modo que agora, em outra instância, quando ações estão na pauta de votações, tratam de pedir uma audiência pública. E, assim como o cigarro, o amianto também é um lobby mundial. Os mesmos processos intimidatórios, as mesmas tentativas de desqualificar quem luta pelo banimento. As práticas se repetem.

Neste sentido, o que hoje acontece aqui é semelhante ao que acontecia na Europa décadas atrás. Atualmente, a preocupação de alguns países europeus é como fazer a descontaminação ambiental das cidades onde havia minas e fábricas. Assim como megaempresários do amianto, como os antigos donos da Eternit, são condenados por crime, como aconteceu no mês de fevereiro, em Turim. Se a Europa é o nosso futuro, no que se refere ao amianto, podemos contar como certo o banimento daqui a alguns anos?
Fernanda – Ninguém tem dúvida de que mais cedo ou mais tarde o amianto vai ser banido no Brasil. Mas eles apostam no mais tarde. Essa indústria está com os dias contados. O que eles querem conseguir é prazo. O amianto é superado no mundo desenvolvido. A OMS (Organização Mundial da Saúde) fala em banimento, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) fala em banimento. Quem hoje defende o uso do amianto? Mesmo no Brasil, aqueles que antes estavam mais em cima do muro, hoje já estão começando a se posicionar. Restaram apenas os que não podem mudar de posição e quem está usando essa disputa para ganhar dinheiro rapidamente, mesmo que isso vá custar mais tarde a perda de prestígio, poder, dinheiro e, certamente, uma enorme mancha no currículo, quando não uma ficha policial. O que eles querem é uma sobrevida – que estão conseguindo à custa de vidas.

(Publicado na Revista Época em 20/08/2012)

 

Chester prefere pagar pelo sexo

Premiado autor de histórias em quadrinhos só transa com prostitutas há mais de uma década. Em um livro inteligente e engraçado, ele critica o amor romântico e defende a normalidade da prostituição

Em junho de 1996, o canadense Chester Brown desenhava histórias em quadrinhos no apartamento que dividia com a namorada, em Toronto, quando ela anunciou: “Te amo como sempre amei e sei que sempre vou te amar, mas…. acho que me apaixonei por outra pessoa”. Chester percebeu que não estava abalado – nem se abalou quando o novo namorado passou a dormir com a recentíssima ex no quarto ao lado. Uma passagem tão tranquila que os dois decidiram continuar dividindo o mesmo apartamento, o que fizeram por muito tempo. Um ano depois, aos 37 anos, Chester chegou a uma conclusão que mudaria a sua vida: “Tenho dois desejos contraditórios: o de transar e o de não ter namorada”.

Chester acabou descobrindo que, pelo menos para ele, não havia contradição alguma. Depois de uma fase de celibato, ele deu início a uma vida sexual com prostitutas que, em geral, era bastante prazerosa. Quando as descrições dos anúncios não correspondiam aos fatos, ele podia inventar uma desculpa e cair fora – ou acabar constatando que, apesar de a mulher não ser tão gostosa quanto dizia que era, tinha outros talentos ou simplesmente era divertida.

Descobriu que, para ele, o “amor romântico” não fazia sentido algum. “Nossa cultura impõe a ideia de que o amor romântico é mais importante que as outras formas de amor”, diz ele um dia à ex-namorada. “Já não acredito nisso. O amor dos amigos e o da família podem ser tão satisfatórios quanto o amor romântico. A longo prazo, provavelmente são mais satisfatórios.”

Mais tarde, explica sua tese a uma prostituta, durante uma conversa na cama. “O amor é doação, partilha e carinho. O amor romântico é possessividade, mesquinhez e ciúme”, diz à moça. “A mãe que tem vários filhos ama todos eles. Quem tem vários amigos pode amar todos eles. Mas não se acha correto que se sinta amor romântico por mais de uma pessoa por vez. Acho que é a natureza excludente do amor romântico que o torna diferente de outros tipos de amor.”

As aventuras de Chester Brown e sua escolha pelo sexo pago são contadas por ele em uma deliciosa graphic novel (novela em quadrinhos), que acabou de chegar às livrarias do Brasil. Pagando por sexo (WMF Martins Fontes) é o relato confessional do quadrinista, escrito com rigor jornalístico. Inclusive trocando o nome das prostitutas, para não identificá-las, assim como jamais desenhando seu rosto ou suas marcas pessoais, para que não sejam reconhecidas – mas buscando ser fiel à forma de seus corpos.

Ao longo das 284 páginas, Chester vai narrando seus dilemas, seus encontros com prostitutas e suas discussões com amigos. Especialmente com os quadrinistas Joe Matt e Seth, com quem formava “os três mosqueteiros” no mundo das HQs. Estas conversas, geralmente em um bar ou café, são as partes mais interessantes do livro, já que os amigos têm dificuldade de aceitar a escolha de Chester – tanto pelo enorme preconceito existente ainda hoje com relação à prostituição, quanto pelo que essa alternativa pouco convencional produz de incômodo com relação à vida amorosa-sexual de cada um deles.

Ao final do livro, temos vontade (eu, pelo menos) de ser amiga do Chester que vai se mostrando com abissal honestidade a cada página. Sem esquecer, é claro, que, como qualquer relato autobiográfico, as verdades sobre quem escreve sobre si mesmo são filtradas por um olhar amoroso e, às vezes, complacente. Mas Chester consegue rir de si mesmo – e duvidar de si mesmo – vezes o suficiente para a história nos envolver e convencer. A certa altura, por exemplo, uma das prostitutas explica a ele por que prefere trabalhar à tarde em vez de à noite. Ela diz: “Quando a gente trabalha à noite, muitos caras chegam bêbados. Os piores clientes são os bêbados e os que têm pênis grande”. E acrescenta: “Quem dera todos os meus clientes fossem como você”.

As aventuras de Chester, porém, não são apenas deliciosas. Seu maior mérito é nos confrontar com uma visão sobre o amor, o sexo e a prostituição que contraria o senso comum. Mesmo para pessoas consideradas de “mente aberta”, a prostituição ainda é um tabu. Ainda hoje, as prostitutas são reduzidas ou a “vagabundas” ou a “vítimas da sociedade, do machismo e do patriarcado” – visões pobres e autoritárias sobre uma identidade complexa. De certa forma, sobre a prostituição há quase uma unanimidade negativa unindo setores da sociedade que discordam em quase todo o resto.

Chester incomoda também por não caber no estereótipo do que se imagina como um cliente do sexo pago. Ele não é o sinhozinho do passado, que mantinha em casa a mulher “honesta” e “mãe dos filhos”, mas divertia-se mesmo era no puteiro da cidade. Tampouco é o explorador de mulheres violento, tarado e com “vícios” inconfessáveis das histórias que viram notícia. Muito menos é o loser infeliz, desajustado e solitário que busca o prazer nos becos escuros, esgueirando-se pelo submundo.

Chester usa seu nome verdadeiro, não esconde de ninguém que transa com prostitutas e trata sua escolha com tanta naturalidade como se estivesse falando de um casamento convencional. Ao colocar um tema historicamente relegado à sombra – e ao assombro – debaixo do sol, ele torna-se algo novo. Especialmente porque tem a inteligência de não escorregar para o lado oposto – o do glamour –, o que seria desastroso.

Para Chester, transar com prostitutas é tão comezinho quanto namorar, morar junto ou casar. Como um homem da era digital, ele escolhe as mulheres pelos anúncios e avalia as “resenhas” deixadas por outros clientes em sites na internet. Paga o preço combinado e respeita os limites estipulados, porque é uma pessoa decente, e dá gorjetas até quando não gosta muito, porque talvez seja bom moço demais.

Por conta da reação persistente e quase ofendida que sua escolha causou, Chester acabou por tornar-se um defensor público da legalidade da prostituição – ainda proibida em vários países, mesmo ocidentais. Embora defenda a legalização da prostituição, porém, é contra a regulamentação da profissão, por considerar que o Estado deve ficar fora da cama dos cidadãos – qualquer que seja a relação estabelecida entre as partes. É contra também porque acredita que a partir dela se criaria uma nova distinção entre as prostitutas, que deixaria as não regulamentadas desprotegidas.

Mas Chester é, principalmente, um defensor da “normalidade” do sexo pago. Em nome dessa militância, ele faz um longo apêndice ao final do livro, dividido em 23 itens – o mesmo número de prostitutas com quem teve relações sexuais – para rebater os argumentos contrários à prostituição, que chama de “namoro pago”. Em geral, rebate os argumentos usados por uma parcela do movimento feminista, que coloca a prostituição como uma exploração da mulher – e a prostituta como uma vítima.

A seguir, alguns dos itens elencados por Chester Brown:

1) Você é dono do seu corpo. Dizer “Quero transar com você porque você vai me dar dinheiro” é tão moral quanto dizer “Quero transar com você porque eu o amo”. E isso tanto para homens quanto para mulheres.

2) Os clientes não compram as prostitutas. Quando alguém compra um livro, leva-o para casa e faz o que quiser com ele, por quanto tempo quiser. Com uma prostituta, você paga para transar durante um tempo determinado, limitado por aquilo que é combinado, e depois se separa dela. Nenhum cliente faz o que quiser com uma prostituta – nem é dono dela.

3) A violência, minoritária, é tão presente no sexo pago como no sexo não pago. Existem clientes cretinos na mesma proporção que existem maridos e namorados cretinos, que ignoram os pedidos e os limites estabelecidos pelas mulheres. Assim como há aqueles que extrapolam e as espancam. Para reprimir esse comportamento, há leis. Mas, se concluirmos que devemos criminalizar ou condenar o sexo pago porque alguns homens são cretinos e outros são violentos, então é preciso criminalizar ou condenar também o casamento e o sexo não pago. Da mesma forma, com relação ao tipo de trabalho, qualquer um acharia descabido terminar com a profissão de taxista porque alguns são assaltados, feridos e até mortos por assaltantes travestidos de clientes.

4) Não são apenas as prostitutas que muitas vezes transam sem desejo. Muitas pessoas, em relacionamentos amorosos, também transam sem vontade. A frase “Não quero transar com esse cara, mas vou transar porque preciso de dinheiro” é tão moral quanto “Não quero transar agora, mas vou transar porque ele é meu namorado e eu o amo” ou “Não sinto mais desejo pelo meu marido, mas vou transar pelo bem do nosso casamento”.

5) A prostituição não destrói a dignidade das prostitutas. A vergonha que algumas prostitutas sentem por conta da profissão é provocada pela interiorização do preconceito enfrentado na sociedade – e não pela venda do sexo em si. Assim como no passado (e ainda hoje, em alguns casos) os homossexuais sentiam vergonha, depressão, culpa e repulsa por sua orientação sexual. Isso não significava que ser gay era errado – e sim que muitos homossexuais interiorizavam os valores da cultura em que viviam, assumindo o preconceito da sociedade como vergonha e como culpa.

6) A diferença com que a sociedade trata a prostituição masculina mostra que o preconceito, como sempre, é com relação à autonomia das mulheres. Em geral, os adversários da prostituição feminina ignoram a masculina. A razão é que os argumentos usados para condenar a prostituição feminina soariam ridículos se aplicados à masculina. Nossa cultura acredita que os homens controlam a própria sexualidade. E, se um homem se coloca em uma situação potencialmente arriscada, a sociedade compreende como um comportamento inerente à natureza masculina. Já, com relação às mulheres, não. Elas são sempre vítimas, e há sempre alguém – mesmo que outras mulheres – apto a determinar o que é melhor para elas.

7) A prostituição é uma escolha. Setores contrários à prostituição afirmam que não há escolha real se a mulher tem de eleger entre ganhar um salário baixo em um emprego pouco valorizado ou se prostituir, assim como não haveria escolha se a mulher se prostitui supostamente porque foi abusada na infância, caso de parte das prostitutas (como de parte das mulheres). Mas uma escolha é uma escolha, ainda que seja uma escolha difícil. Dizer que adultos não teriam o direito de escolha porque tiveram uma infância difícil é um terreno perigoso. Estas mulheres que não poderiam escolher pelo sexo pago não estariam, então, aptas a fazer qualquer escolha sexual, mesmo amorosa, por causa do seu passado. Da mesma forma que a realidade impõe escolhas difíceis para ganhar a vida o tempo todo, tanto para homens como para mulheres. E do mesmo modo como há quem gosta do que faz e há quem não gosta em qualquer profissão. Todas as pessoas – e não só as prostitutas – são fruto de suas circunstâncias e do sentido que conseguiram dar ao vivido. Alguém tem o direito de determinar quais adultos estão aptos e quais não estão aptos a fazer escolhas sobre a sua própria vida, ainda que sejam escolhas que não agradem aos outros?

Estes são alguns dos argumentos que Chester Brown propõe ao leitor, construídos a partir de pesquisa e leituras, mas principalmente a partir da sua própria experiência no mundo do sexo pago. Na novela da vida real que ele conta em quadrinhos, cada prostituta entende sua escolha de forma diversa. Quando não contam para a família e para os amigos sobre sua profissão, em geral é por temer o preconceito – e não por desprezar o que fazem.

Por características de sua personalidade, um pouco obsessiva, Chester esmiúça o sexo pago e suas implicações com algo próximo do método científico. Meticuloso, ele escuta e duvida tanto dos outros quanto de si mesmo, o que o torna digno de ser escutado naquilo que diz. Ao terminar o livro, Chester parece ter achado o melhor para ele, pelo menos naquele momento: estava há seis anos transando com uma única prostituta, que, por sua vez, só transava com ele, numa curiosa relação monogâmica sem compromisso. Chester acredita que ela não transaria com ele se não pagasse – e acha ótimo que seja assim.

No último apêndice do livro, seu amigo Seth comenta com ironia amorosa: “A verdade é que, se no passado o envolvimento de Chet com prostitutas me incomodava, hoje eu superei isso. A prostituição pode não funcionar para todos, mas funciona para ele. O gozado em Chester é que, de todos os homens que conheço, ele talvez seja o que daria o melhor marido ou namorado para qualquer mulher… e, no entanto, foi ele que escolheu a prostituição. O mundo é muito engraçado”.

Mas Chester escorrega em pelo menos um ponto, o que é uma pena. Ao escolher transar apenas com prostitutas, por achar que o amor romântico não serve para ele, Chester é atacado por muitos – e também pelos amigos mais queridos. Afinal, manter uma relação amorosa romântica com alguém parece ser a busca maior e a redenção de boa parte das pessoas em nossa época. Para Chester, o amor romântico é apenas um mito no qual as insatisfações mútuas são mascaradas para não comprometer a sua idealização, tão cara à nossa cultura.

O problema é que Chester trata o amor romântico – e o casamento – com preconceito semelhante ao reservado à prostituição pelos seus opositores. Quando o melhor, me parece, seria não substituir um dogma pelo outro. Assim como pagar para transar pode ser a melhor solução para Chester e para muitos, o sexo não pago pode ser a melhor solução para outros. Há um zilhão de pactos diferentes que um homem e uma mulher – ou um homem e um homem, uma mulher e uma mulher – podem fazer entre si e que só diz respeito a eles. Seria melhor ter ficado por aí, mas Chester Brown, como muitos que defendem uma bandeira na contramão, acaba tornando-se dogmático pelo avesso.

Esse escorregão, porém, não tira o brilho de sua obra e da sua reflexão. É importante quando alguém nos arranca do senso comum e nos lança diante de novas perguntas – não para concordar com ele, mas para pensar com ele. E mais ainda em uma época na qual o politicamente correto tem reprimido a liberdade das ideias. Chester não provoca polêmica pela polêmica, como muitos em busca de audiência e leitores. Estuda, pesquisa, experimenta e conta. E é sua honestidade moral e intelectual que torna Pagando por sexo tão instigante.

O livro me lembrou de um evento, ocorrido há quatro anos em Porto Alegre, chamado “Um puta sarau”. Na ocasião, um folhetim escrito por um grupo de prostitutas e intitulado “Uma puta história” foi lido para o público. A certa altura, uma feminista não se conteve e disse: “Espero que um dia as mulheres não precisem mais vender o seu corpo para sobreviver”. Janete, a prostituta que estava no palco, retrucou na hora:

– Mas eu não vendo o meu corpo, eu alugo. E só um pedacinho dele. A senhora não aluga o seu cérebro para o seu patrão?

Como se vê, há muito para refletir.

(Publicado na Revista Época em 23/07/2012)

 

Ana Hickmann e a humanidade sitiada

Quando tudo o que é humano vira tumor

Duas reportagens publicadas na Folha de S. Paulo na semana passada são chocantes pelo que revelam – e pelo despudor com que revelam. A primeira saiu na coluna de Mônica Bergamo. E conta sobre o “produto” Ana Hickmann. A outra é uma matéria sobre uma reunião do Conselho Comunitário de Segurança de Santa Cecília, em São Paulo, assinada por Afonso Benites. Nela, moradores e comerciantes anunciaram uma campanha oposta àquela com que Betinho uniu o país nos anos 90: a deles é para pressionar ONGs e restaurantes a parar de dar comida aos sem-teto que vivem nas calçadas. Nesta, que pode ser chamada de “campanha pela fome”, ou os mendigos morrem de inanição ou vão assombrar ruas fora das fronteiras do bairro.

Pelas reportagens, descobrimos que Ana Hickmann, a modelo e apresentadora da Record, é uma coisa, decidiu ser uma coisa. E que os bons cidadãos de Santa Cecília consideram os mendigos não uma coisa, mas gente. É por ser gente – e não coisas – que devem ser expulsos. Ou desinfetados, como anunciou uma comerciante. Com o despudor de quem tem a certeza de que está do lado certo da força, ela contou que lança desinfetante nos que vivem em frente à sua loja.

Olhamos para Ana Hickmann, fisicamente tão bela, tão perfeita, com pernas de 94 centímetros. “Uma elfa”, como diz um amigo meu que um dia a encontrou nos corredores da Record. E aí ouvimos Ana Hickmann falar sobre como vê a si mesma. Ela diz: “Sempre me considerei um produto. Parece cruel, mas é verdade”. Diz mais: “O Alê (marido e sócio) me chama de general. Fala que sou truculenta pra caramba. E sou mesmo. Exigente, como sempre foram comigo. Nunca me deram a chance de errar”. Alexandre Corrêa, o Alê, dispara uma sequência de frases antológicas sobre a mulher e sócia: “A gente vai entregar para o mercado uma Ana Hickmann diferente, sem esses problemas (referindo-se a dificuldades de dicção, que estão sendo corrigidos por uma fonoaudióloga)”; “A palavra ‘perder’ não está no nosso dicionário”; “A Ana Hickmann tem que ir para o domingo para matar ou morrer. Tem que acordar todos os dias com sangue nos olhos. Se não odiar o concorrente, você é um frouxo. Com mão mole, não machuca ninguém. Fere, mas não tira a pessoa de combate”. O romantismo foi deixado de lado, ele explica: “por um tempo pra gente investir e enxergar nosso crescimento sem deslumbramento. Porque com romantismo vêm férias em Paris, esquiar em Aspen, fazer compras em Nova York. E o trabalho e as obrigações ficam para trás. Se ficar com ‘mela mela’, todo problema profissional vira sentimental. O circo pegando fogo e você ‘amorzinho’, abraçando o outro para se lamentar? Ah, por favor!”

Ana Hickmann e seu sócio-marido falam sobre “o produto Ana Hickmann” sem nenhum pudor. Se dizem o que dizem para um jornal de âmbito nacional, é porque acreditam que estão dizendo aquilo que é certo dizer. Mais do que certo – já que o certo ou errado não parece ser lá uma questão muito relevante nesse contexto: dizem aquilo que é valorizado no discurso contemporâneo. Algo que deveria, no seu modo de ver o mundo, despertar admiração no público. Afinal, eles são “produtos” de um mundo em que tudo pode – e deve – ser coisificado para ser consumido. E tudo o que tem valor só tem valor porque é mercadoria.

Ao contrário de como Ana Hickmann vê a si mesma, os moradores e comerciantes de Santa Cecília não veem os mendigos como “coisas”. Se fossem coisas, teriam valor, nem que fosse o valor de vendê-las para a reciclagem. Como são gente, a solução é suspender sua comida. Sim, porque gente come. Ao decidirem interromper o acesso à alimentação, eles acreditam que encontraram a solução para seus problemas. E seus problemas resumem-se a gente que não serve para nada. Nem para virar coisa.

Se alguém contraria esse discurso, em ambos os casos, pode ser acusado de hipócrita. Ou ingênuo. Porque, afinal, é assim que o mundo funciona. Ou você produz, ainda que como mercadoria com alto valor agregado, como é o caso de Ana Hickmann, ou você deve ser eliminados dos olhos e do mundo de quem produz – com desinfetante ou por inanição. Em ambos os casos, o que é humano atrapalha. Tem de ser eliminado da vida do produto Ana Hickmann, tem de ser eliminado das calçadas dos moradores e comerciantes de Santa Cecília.

Na vida do produto Ana Hickmann, são os sentimentos que têm de ser eliminados – os ligados à gente frouxa, pelo menos, que atrapalham o sucesso, já que ódio, ambição, “sangue nos olhos” são valorizados. Devem ser eliminados o romantismo, o erro, a condição falível do humano, o que seu sócio-marido tão bem define como “mela mela”. Na vida cotidiana dos moradores de Santa Cecília, o que tem de ser eliminado é gente que não produz, que não toma banho, que não se veste bem, que faz sujeira, que às vezes é mal-educada, xinga e briga. Gente que pede coisas e não tem dinheiro para pagar pelas coisas.

Ninguém gosta de ver pessoas morando na rua diante de sua casa ou pedindo comida na sua porta. Sempre imaginei que fosse porque o sofrimento do outro, a indignidade desta condição, nos afeta. Ainda que não gostemos também porque algumas dessas pessoas façam sujeira na rua e não se espera que alguém aprecie sujeira diante da sua casa ou da sua loja, o que espanta é achar que não temos nada a ver com isso. Não se trata aqui de achar que todo morador de rua é bonzinho ou de que todo sentimento humano é agradável. Trata-se sim de pensar sobre o que faz com que se acredite que ambos devam ser exterminados – da vida cotidiana do bairro, da vida de cada um.

O que espanta é acreditar que pessoas e sentimentos são sujeira, lixo orgânico, lixo não reciclável – e, portanto, sem valor. O que espanta é que Ana Hickmann se anuncie como produto e isso seja confundido com sucesso. Que pessoas vivam sem condições mínimas e um grupo de pessoas acredite que o que pode fazer de melhor é lhes tirar a comida. Ou que se sinta tão impotente a ponto de acreditar que a fome pode ser a solução. Espanta também que na reunião estivessem presentes representantes de várias instâncias do poder público: polícia, subprefeitura da Sé e guarda civil. E também do hospital Santa Casa. E que nenhuma voz tenha se manifestado contra a proposta.

Descobrir que pessoas como Ana Hickmann se veem como coisas nos dá pistas para compreender o modo como os moradores e comerciantes de Santa Cecília veem os mendigos. É como coisa que Ana Hickmann vai para a TV entreter millhões todo domingo. Ela, que ganha R$ 300 mil por mês de salário, fora todos os produtos que derivam do produto maior, é um exemplo de sucesso, de self-made woman. Ou self-made thing. Se tudo der certo e nenhum sentimento humano indesejável atrapalhar a trajetória do produto, como diz seu sócio-marido, um dia ela será “a Oprah Winfrey do Brasil, loira e de olhos azuis, num país de gente parda”.

Tudo isso é revelado, Ana Hickmann diz que é um produto, os comerciantes de Santa Cecília anunciam que vão deixar os moradores de rua sem comida. Tudo isso é estampado no jornal e, fora uma ou outra repercussão, passa, vira a página. Se passa, sem grandes alardes ou questionamentos, o que isso diz sobre nós? Nós também perdemos o pudor? Por que isso não nos espanta? Significa que é assim que olhamos para o outro e para nós mesmos? Ou achamos que podemos nos safar sem nos posicionarmos diante do mundo? Que isso não nos diz respeito?

Se alguém acredita que essa forma de ver o mundo, a si mesmo e ao outro, com a qual compactuamos em geral por omissão, não afeta sua vida, cada minuto da sua vida, desde que acorda e vai para o trabalho até a hora de ir dormir, está bem iludido. Ou de onde viria toda essa dor de existir, que transformou a depressão numa epidemia mundial? Em algum lugar desse corpo materializado em coisa, reduzido à mercadoria, há um resquício de humanidade. E é essa ínfima porção latejante, encarnada, mas desligada de toda carne que não seja a própria, que dói.

Concordar com Ana Hickmann e com os cidadãos de Santa Cecília é acreditar que nossa humanidade é um tumor que deve ser extirpado de nosso corpo coisificado. Uma sujeira que, como os mendigos, deve ser eliminada por fome e esterilizada com desinfetante. De fome, acho que muitos de nós estão se matando mesmo. Não a fome que vem da falta de comida, mas a que vem da falta de espírito, de transcendência, de sonho, de projeto coletivo, de potência transformadora, de tudo que não é estranho ao humano – só às coisas. Mas a esterilização ou anestesia por medicamentos, esta parece que não está adiantando muito.

A Ana Hickmann e ao seu sócio-marido, desejo que um dia tenham tempo para o que não é da ordem das coisas, mas do humano. Para o romantismo, o sentimento sem serventia ou controle, o vacilo. Que quando o que há de humano em Ana Hickmann errar, a agenda lhe permita se encostar ao ombro do marido e fazer o que chamam de “mela mela”. Aos bons cidadãos de Santa Cecília, peço emprestada a fala de um homem sábio que conheci. Ele se chama Muhammad Ashafa e é um líder muçulmano da Nigéria. Uniu-se a um líder cristão num país onde adeptos das duas religiões costumam se matar entre si. Juntos, estes homens que no passado quase mataram um ao outro têm defendido pelo mundo um “dia do perdão”. Contei sua história nesta coluna há quase um ano.

Deixo sua mensagem como sugestão de pauta para a próxima reunião do Conselho de Segurança de Santa Cecília, quando pensarem numa alternativa para o seu vizinho da rua que não seja lhes tirar o acesso à comida, uma que inclua ver moradores de rua como gente não descartável, mais parecida com eles mesmos do que gostariam: “Nossa segurança não está baseada nas armas, mas no quanto respeitamos o nosso próximo. Quando meu vizinho está com fome, eu vivo com medo. Se meu filho vai para a escola e o filho do meu vizinho não vai, a segurança do meu filho está em risco. Então devo investir na educação para que o filho do meu vizinho também tenha acesso a uma boa escola, para que ele não vire um marginal, forme uma gangue e queira ferir o meu filho. Devo fazer isso e não me armar e erguer muros entre mim e meu vizinho. Isso vale para as comunidades, para os governos, para cada um de nós. Quando você consegue fazer isso, você consegue dormir em paz. Porque seu vizinho tem condições de se reerguer por conta própria. Enquanto não fizermos isso, o mundo não será um lugar seguro para ninguém”.

Um tempo atrás, eu levava minha filha para o aeroporto numa das muitas manhãs cinzentas de São Paulo. Estava frio e garoava. Nós íamos caladas no banco de trás do táxi. De repente, o carro foi obrigado a parar por causa do trânsito. Testemunhamos então uma cena que guardei para a minha vida como um diamante da memória, daqueles que não podem ser comprados ou vendidos. Debaixo da marquise de uma loja, meio encoberto por papelões, um morador de rua erguia um bebê para cima com tanta alegria e tanto amor no olhar que o tempo parecia ter parado com o trânsito. Era um homem mais velho ou parecia mais velho pela brutalidade das ruas. Mas ele estava alheio ao mundo ao seu redor, à sua situação de rua, ao frio e à garoa, a tudo o que aconteceria depois. Seus olhos, seu rosto inteiro, brilhavam a ponto de chamar a atenção de quem passava. Seus olhos brilhavam de alegria pela criança que tinha nas mãos. Naquele momento, ele era um homem sem idade, sem classe social, sem classificação. Naquele momento, ele era só um homem diante do milagre da vida.

O trânsito avançou, o carro seguiu. E a cena ficou encarnada em mim. Desde aquele dia, meses atrás, eu queria contar essa história aqui, mas não encontrava jeito. Lembrei dela agora, diante de tanta gente bruta, com acesso à casa, à educação e a tudo o que o dinheiro pode comprar, mas que perdeu o acesso a si mesma. Nos cantos de mundo, nos cantos da rua, nos cantos de cada um de nós a humanidade resiste. Resiste onde menos se espera, resiste mesmo contra a nossa vontade. Resiste até mesmo quando supostamente atrapalha nossa produção, nossa performance ou nossa “coisicidade”.

(Publicado na Revista Época em 07/06/2010)

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