Reprodução assistida – ou desassistida?

O caso das trigêmeas e o lugar da maternidade em nosso tempo

No início deste ano, imprensa e público se chocaram com o caso de um casal paranaense que teve trigêmeas, depois de se submeter a técnicas de reprodução assistida, e quis dar uma delas para adoção. As meninas nasceram em janeiro de um parto prematuro e ficaram por quase um mês na UTI neonatal de uma maternidade de Curitiba. Os pais já haviam manifestado a intenção de entregar um dos bebês para ser adotado antes do nascimento. Mas, “denunciados” pelos funcionários do hospital ao Conselho Tutelar por “rejeitar” uma das filhas, supostamente a mais frágil, perderam a guarda das três. Em fevereiro, as meninas foram colocadas em um abrigo por intervenção judicial. Os bebês ficaram afastados dos pais por dois meses e meio, com visitas restritas a duas horas semanais. Em maio, a Justiça deu a guarda temporária a parentes e permitiu que os pais pudessem visitá-las diariamente. Desde o início, os pais declararam-se arrependidos de terem desejado dar uma das crianças para adoção e tentaram reaver a guarda das três filhas. O médico que acompanhou o casal em todo o processo da reprodução assistida, disse à imprensa: “Eu nunca vi um casal rejeitar os filhos após um tratamento para engravidar. Muito menos rejeitar um ou rejeitar dois. Isso realmente é uma novidade”.

Quando o caso tornou-se público, o casal virou uma espécie de monstro. A ideia, disseminada no senso comum, era: como pais, que desejaram tanto ter filhos, a ponto de se submeter a um procedimento caro e nem sempre bem sucedido, tiveram a coragem de “abandonar” a mais frágil das crianças? Danielle Breyton, Helena Albuquerque e Verônica Melo estavam entre as poucas vozes dissonantes. Psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, elas pesquisam as questões da reprodução assistida desde 1997, no grupo denominado “O feminino no imaginário cultural contemporâneo”.

Impressionadas com o linchamento dos pais pela sociedade, elas escreveram um texto para a imprensa intitulado “Responsabilidades no caso das trigêmeas”. Tiveram dificuldade para encontrar espaço para publicá-lo, apesar da qualidade do trabalho e da experiência de 14 anos de estudos da questão da reprodução assistida. Vale a pena pensar se a falta de espaço pode significar uma resistência a escutar algo que adicione maior complexidade ao debate e algo que nos implique a todos – em vez de apenas demonizar os pais.

No texto, que tive a oportunidade de ler, as psicanalistas fazem algumas perguntas incômodas: “De quem é a responsabilidade pela implantação de três ou quatro embriões no útero de uma jovem de 28 anos? A quem cabe a decisão que implica tamanhos riscos? Ao casal? À equipe médica? Ao Estado?”. Desde o início deste ano, uma norma do Conselho Federal de Medicina determina que, no caso de mulheres com até 35 anos, devem ser implantados no máximo dois embriões, já que uma gravidez múltipla traz riscos para a mãe e para os bebês, sem contar as demais sequelas físicas e psíquicas. Entre os 36 e os 39 anos recomenda-se implantar três embriões. E apenas mulheres com mais de 40 anos podem ter quatro embriões implantados.

As psicanalistas apontam que, no caso das trigêmeas, os pais incorporaram algo que faz parte do discurso hegemônico, plenamente assimilado pela sociedade e amplamente divulgado pela mídia em centenas de reportagens. Neste discurso, os termos “escolha, doação, descarte e redução” são corriqueiros na área da reprodução assistida. No texto, elas criticam a desimplicação de todos no caso, a começar pelo médico, e afirmam que as trigêmeas não são apenas filhas de seus pais – mas de uma cultura. Neste sentido, são filhas de todos nós.

Quando o caso tornou-se público, chamou a atenção a incapacidade da maioria das pessoas que se manifestaram de parar para pensar, ainda que por um instante: “Como deve se sentir uma mulher de 28 anos com três bebês prematuros ao mesmo tempo?”. Quem tem apenas um, saudável e nascido de nove meses, sabe que não é fácil, especialmente nos primeiros tempos. É possível para qualquer um imaginar como pode ser difícil e assustador cuidar de três prematuros. Reconhecer a dor do outro não significa tirar-lhe a responsabilidade, apenas admitir que é preciso ter mais cuidado antes de julgar. Por que a condenação dos pais pela sociedade foi imediata e massiva é algo que vale a pena pensar. E talvez as imagens estampadas em jornais e revistas, assim como nas telas da TV, de casais sorridentes com sua ninhada de filhos nascidos na mesma gestação, que todos nós já vimos alguma vez, possam ser uma pequena parte da explicação.

O caso provoca ainda uma série de questões. Que Justiça é esta que prefere colocar três recém-nascidas em um abrigo em vez de deixá-las com os pais, que se dizem arrependidos e dispostos a criar as três filhas? Por que, como disse a advogada do casal, não ajudá-los a lidar com as dificuldades em vez de puni-los? E que sociedade é esta que se apressa a linchar o casal, preferindo transformar os pais em monstros e assim se afastar por completo do que a horroriza, em vez de pensar se não tem nada a ver com isso? O debate vale a pena não para que possamos encontrar outro culpado, mas para compreender o que tudo isso diz da época em que vivemos.

Convidei Danielle, Helena e Verônica para uma conversa nesta coluna. Não apenas sobre o caso das trigêmeas, mas sobre a reprodução assistida e o lugar da maternidade no nosso tempo. Na entrevista a seguir, destaco três temas que considero mais instigantes. O primeiro é a percepção de um paralelo entre parto natural e cesárea/reprodução natural e reprodução assistida. As psicanalistas perceberam, ao acompanhar grupos de pais à espera do procedimento, que, se o parto natural tornou-se exceção no Brasil, com prevalência da cesariana na maioria dos nascimentos, o mesmo começa a acontecer com a reprodução: um número crescente de mulheres, cada vez mais jovens e cada vez mais cedo, se consideram inférteis e incapazes de engravidar naturalmente, em relações sexuais com seus parceiros.

Outro tema muito interessante é que a tecnologia é amplamente usada e festejada no processo da reprodução e do nascimento, mas assim que o filho nasce volta-se imediatamente ao mito do amor materno: todos aqueles que colaboraram e às vezes até decidiram os processos relativos à reprodução e ao parto saem de cena, e o filho volta a ser dos pais e principalmente da mãe, já que é ela que tem licença maternidade de quatro ou seis meses. E então a sociedade exige que esta mãe ame incondicionalmente e de imediato seu filho e dê conta de tudo, mesmo que sejam três prematuras, como no caso que gerou a polêmica. Esta mãe não pode ter conflitos, dúvidas ou medos. Qualquer sentimento menos nobre diante de um bebê que chora sem parar ou que ela teme perder é considerado “antinatural” e ameaçaria um determinado ideal de maternidade. Da mulher se espera que seja uma supermãe – ou então correrá o risco de a sociedade transformá-la numa bruxa a ser queimada na fogueira midiática.

Por fim, vale a pena pensar no que a tecnologia deu às mulheres. É importante sublinhar que a tecnologia deu muito. Mas o reconhecimento dos benefícios deve servir também para nos estimular a problematizar as questões. Na conversa a seguir, Danielle, Helena e Verônica mostram que, de certo modo, o controle de novo está fora das mulheres – e na mão do poder hegemônico sobre o corpo na nossa época, que é o da Medicina. Perguntar sempre vale a pena. E pode nos levar a respostas intrigantes. É isso que tento fazer na conversa a seguir.

– Como surgiu a ideia de pesquisar a reprodução assistida?

Helena Albuquerque –  A ideia do grupo era pesquisar o feminino na cultura e buscar respostas para uma série de perguntas. Mudou alguma coisa em relação à mulher? Os conflitos e as angústias das mulheres são os mesmos? A mulher lida melhor com a sexualidade do que já lidou numa época mais repressiva? O grupo intercalava o estudo de textos psicanalíticos sobre o feminino com as questões da cultura e da clínica. Estávamos às voltas com a questão da reprodução assistida no consultório, e o tema surgiu na discussão. Resolvemos montar, então, um pequeno grupo para estudar os efeitos da tecnologia da reprodução assistida no feminino: na mulher, no jeito de conceber de um casal, no jeito de conceber a gravidez, o parto, a criança; se estas coisas se mantinham no mesmo lugar, se mudavam de lugar. Depois de um tempo de estudo teórico, fomos fazer uma pesquisa de campo no Hospital Pérola Byington, onde há um Serviço de Reprodução Humana totalmente gratuito que atende mulheres do Brasil inteiro. O foco da nossa pesquisa era investigar como ficava a ideia da infertilidade uma vez dado o diagnóstico: como os casais processavam isso subjetivamente, o que para eles era infertilidade, o que o diagnóstico causava em suas vidas. Trabalhamos com dois grupos de casais que selecionamos na fila de espera do Serviço de Reprodução Humana.

– Por que vocês escolheram este tema e não outro?

Verônica Melo – Acho que partimos de situações que a gente vivia, ou na clínica, ou com pessoas próximas, amigos que estavam buscando a reprodução assistida.

A mulher começa a se atrapalhar com coisas que sempre foram sentidas como sendo dela, sobre as quais tinha uma maior apropriação: menstruação, gravidez, amamentação passam a ser tomadas por uma parte da Medicina e da Mídia quase como se fosse doenças, disfunções. Ou seja, ficam na fronteira da patologia. Aparecem situações como, por exemplo: se a menstruação atrapalha, uma injeção a elimina.

A Psicanálise nasce, como todo mundo sabe, a partir das mulheres histéricas. Na época de Freud, a mulher tinha como marco de valor a procriação. Era este o papel social dela. Então, vamos estudando o que foi se passando na história da cultura e que lugares a mulher foi percorrendo e foi assumindo. E aí chegamos hoje a uma mulher que pilota aviões, mas se atrapalha com a amamentação. Começamos a prestar atenção nas propagandas de laboratórios e de clínicas especializadas em reprodução assistida, chamando a mulher com um tipo de mensagem mais ou menos assim: “Você não precisa mais ter de decidir entre progredir na carreira e ter filhos. Não se incomode com isso, porque você pode congelar óvulos, você pode congelar os embriões e postergar. Você pode ter filho lá pra frente”.

Danielle Breyton – O que inclusive não é verdade, não é? É uma propaganda enganosa. Porque uma mulher, depois dos 40 anos, mesmo com reprodução assistida possivelmente vai ter dificuldades para engravidar.

– O que começa a chamar a atenção de vocês é uma espécie de ilusão de controle da mulher sobre o seu próprio corpo?

Verônica – Sim, é uma armadilha para a mulher. Como se ela tivesse o poder nas mãos dela de decidir: “Então eu posso parar a minha menstruação; então eu posso ter uma carreira brilhante e depois eu vou ser mãe”. E é uma mentira porque, na verdade, depois de tudo o que ela conquistou, vai acabar sucumbindo, de novo, a uma demanda da cultura. De certo modo, depois de tudo o que conquistou acaba virando um objeto da Medicina.

Danielle – De um lado, temos um discurso supostamente libertador, de autonomia sobre o próprio corpo. De outro, há um controle absoluto sobre os corpos e sobre o tempo.

Helena – E este é outro tema forte na nossa pesquisa. Como se dá o discurso médico, qual é a proposta da Medicina. Não é que todo médico seja assim, mas é o que prevalece. Percebemos que, desde que o parto foi transferido para a mão da Medicina, ele foi, de certa forma, patologizado. E o discurso feminista, de uma forma enviesada, acaba submetendo a mulher a um controle maior do corpo, via Medicina. Parece que antes havia mais espaços para a mulher ocupar por conta própria do que depois que a Medicina se impõe com um discurso muito hegemônico. Décadas atrás, o problema da mulher era a fertilidade e a tentativa de ter uma vida sexual sem engravidar. Isso dá uma virada muito impressionante. O filho não é mais algo que acontece um pouco imprevistamente, sem planejamento. Você decide ter um filho. Então, tem uma conta a fazer: é preciso saber se o filho cabe no orçamento. É muito comum ouvirmos: “Olha, a gente vai ter um filho só. Não vai ter o segundo filho porque não temos dinheiro”. Então, há uma contabilidade. Há a questão da carreira, do corpo, do tempo e do filho, entre outras. Há uma decisão que precisa ser ser tomada e que torna mais difícil ter um filho. Sem contar que agora seu filho tem de ser feliz. (Risos)

Danielle – E você tem de continuar com seu corpo incrível e trabalhando como você sempre trabalhou…

Helena – E seu filho tem de ter um carro, uma casa…

Verônica – Tem um custo que já é pré-avaliado do filho. Em reunião de escola, há pais falando: “Olha, com a mensalidade dava para comprar um carro por ano…”.

Helena – Com uma equação colocada desta maneira, ter um filho torna-se uma decisão difícil de ser tomada.

– Vocês acham que a mulher perdeu muito nessa mudança?

Helena – Ela ganhou muito também.

Danielle – Ganha e perde. Problematizar isso não é questionar todo o ganho que as mulheres tiveram, pelo contrário.

– Vocês mencionaram a questão do controle do corpo e do tempo. Como a questão do tempo entra na infertilidade e na reprodução assistida?

Verônica – Quando a gente entrou no tema da infertilidade, nos deparamos com trabalhos que apontavam para uma mudança. Se antes considerar que uma mulher tinha problemas de infertilidade se dava após um certo tempo de pesquisa, de estudo da própria mulher mesmo, da fisiologia dela e tal, este tempo foi sendo suprimido. Hoje, o diagnóstico é dado num tempo muito mais curto: “É infértil, vamos começar a fazer tratamento”.

– Mais ou menos quanto tempo?

Verônica – Na Europa, eram dois anos de espera. E nos Estados Unidos um ano. Aqui também, mas está diminuindo.

Danielle Três meses…

Helena – Três meses, elas estão ansiosas, e os médicos – alguns, outros não – as encaminham para começar uma reprodução assistida, que vai virando um pouco uma questão mercadológica, né? São procedimentos caros. Em nossa pesquisa, percebemos um paralelo com a questão do parto normal e da cesariana. A cesariana salva a vida de muitas mulheres que têm complicações no parto, assim como de bebês. Mas virou uma distorção, na medida em que hoje, no Brasil, 80% dos partos são cesarianas. Da mesma forma, há um paralelo entre engravidar com relações sexuais, do jeito natural, e ter filhos via reprodução assistida. É como se um deslocamento parecido começasse a ser feito. O francês Jacques Testart (responsável pelo nascimento do primeiro bebê de proveta na França, em 1982) disse que engravidar normalmente vai virar coisa de ecologista. E aí temos vários filmes sobre esse tema, como “Gattaca – A Experiência Genética” (Andrew Niccol, 1997).

Danielle – É como se a liberdade passasse pelo controle. É uma questão do controle esse deslocamento da cesariana. Se organiza, planeja e ponto. Já há muitos casais que resolvem partir para a reprodução assistida com esse intuito: controlar, já. De uma vez só tem dois filhos e já resolve o problema.

Verônica – E para os médicos também. No parto normal, por exemplo. Uma coisa é ficar ali, com um trabalho de parto que vai levar cinco, seis, sete horas. A outra é marcar horário e resolver. Na questão da reprodução há este mesmo paralelo. Como determinar se ali existe um caso de infertilidade, de esterilidade? Quanto tempo se espera a gravidez acontecer sem intervenção? O tempo está diminuindo, mesmo para casais muito jovens. Nos chamava muito a atenção os números do ESCA (Esterilidade Sem Causa Aparente). Essas estatísticas agora estão diminuindo, porque é necessário justificar o procedimento e acabam achando uma causa. Acham a causa, às vezes, e um mês depois a mulher engravida sem intervenção nenhuma.

– É como se o médico, simbolicamente, fosse para a cama com o casal, não?

Helena – Ele passa a fazer parte da cena…

– Vocês perceberam, ao longo da pesquisa, que alguns casais que se declaravam inférteis no consultório médico nem mesmo tinham relações sexuais. Precisavam de reprodução assistida porque não transavam…

Danielle – Há, inclusive, um livro sobre isso, (“Mal-Estar na Procriação – As mulheres e A Medicina da Reprodução”), de uma psicanalista francesa, Marie-Magdeleine Chatel. Ela percebeu que, nas entrevistas médicas, o médico não perguntava sobre as relações sexuais. Então, numa das consultas, das quais participava como observadora, ela pergunta sobre a frequência com que tinham relações sexuais, e o casal responde que não tinha. Mas não ocorria aos médicos fazer essa pergunta.

Verônica – Essa é outra escuta que tem de ser incluída na entrevista médica. Porque não existe um olhar para algo que possa também ser coadjuvante nessa infertilidade.

Helena – É como se não interessasse, não precisasse. A relação sexual fosse supérflua.

Verônica – Tanto é que os folhetinhos que a gente ia arrecadando nas clínicas de fertilização falavam para a mulher o seguinte: “Se distraia, não pense no assunto, vá ao shopping…”. (Risos)

– Vocês perceberam que, assim como as mulheres estão se sentindo incapazes de assumir seu próprio parto, de dar à luz naturalmente, elas também começam a se sentir incapazes de engravidar sem a ajuda do médico e da Medicina?

Helena – E isso é também efeito de um discurso que está na cultura. As razões são muitas. Acho que há o medo da responsabilidade, na medida em que vira uma decisão de tantas consequências econômicas e corporais. E há um certo distanciamento do próprio corpo, dos processos que acontecem no corpo e que assustam. Muitas mulheres empresárias, executivas não menstruam mais, por exemplo.

– O que vocês estão dizendo é que supostamente as mulheres teriam hoje um maior controle sobre o próprio corpo. Mas, de certo modo, as decisões estão sendo delegadas à Medicina?

Danielle Exatamente.

Verônica É interessante pensar que lá atrás havia uma leitura nas Ciências Sociais de que a mulher sofria mais repressão na cultura porque, por causa desses processos fisiológicos, a mulher tinha um pé mais dentro da natureza. A hipótese era de que, por isso ser ameaçador, então o homem/a cultura exercia um controle maior sobre a vida dela. Se a gente atualizar essa ideia, hoje, ao tentar reassumir o controle sobre o corpo, a mulher está sendo novamente controlada. Acho que é isso que a gente foi observando.

– Outra questão que vocês levantam na pesquisa é que, para ser mãe, é preciso deixar de ser filha. E parece que esta tem sido uma passagem difícil para muitas mulheres…

Verônica – Dentro dessa cultura que valoriza muito a imagem, essa coisa de não poder envelhecer, de não haver diferenças entre gerações, encontramos também isso. Para ser mãe, você tem que deixar de ser filha, você tem que deixar agora o seu filho acontecer. Então, passar para este lugar, o de deixar de ser filha para ser mãe, exige uma operação subjetiva muito grande. É muito difícil.

Helena – Justamente. E aí entra a questão de como se lida com as perdas atualmente. Os lutos e as perdas. Está mais difícil fazer luto hoje. E virar mãe implica em um luto. O luto da filha, o luto de uma posição. Isso também estaria dificultado, na cultura atual, onde não se pode perder nada.

Verônica – E nada pode deixar marcas. Nem marca da velhice, nem marca da gravidez. Então você pega os famosos, que são formadores de opinião/imagem: mulheres que têm filhos e já aparecem na sequência com um corpo sem marca nenhuma de uma gravidez. Nessa cultura, nada pode fazer marca, nada pode fazer ruga.

– E como entra esta questão, que também é muito presente na nossa cultura, de que não há limites, de que se pode tudo?

Verônica – Percebemos isso… Se eu tenho vontade, eu posso. Que vai até para a coisa da educação da criança, da falta de limites, de eu não poder lidar com o meu desejo. O meu desejo impera, é imperativo. Então, eu QUERO ter um filho, e a qualquer custo eu vou ter esse filho. Agora, esse filho, às vezes, muitas vezes até, não está no lugar de filho mesmo. Ele está mais como objeto de satisfação narcísica para esse casal, para essa mulher. A gente continua achando que existe uma tendência para isso: para não poder lidar com a perda, com a frustração, com o limite que às vezes o próprio corpo impõe. Só que a coisa se complica bastante porque às vezes, muitas vezes, essa limitação que o corpo mostra é um sintoma. É um sintoma dessas próprias dificuldades, da própria falta de condições de exercer a maternidade. A certa altura, propusemos, em nossa pesquisa, uma divisão entre vontade e desejo. Quando a mulher chega para o médico e fala “eu quero ter um filho”, seria importante se ele pudesse sugerir questões para essa mulher, levando-a a diferenciar entre vontade e desejo. Eu posso querer ter um filho, e te digo que quero, mas desejo mesmo? Inconscientemente talvez o desejo desta mulher não seja este. Se você percebe isso, você consegue trabalhar com essa pessoa, ajudando-a a desfazer esse conflito que está lá dentro, o de querer e não querer, e poder falar que quer e não quer. Porque fala muito que quer, mas onde há espaço para aparecer a parte que não quer? E o “não quer” também não é absoluto, né? Porque tem um lado que quer também.

Danielle –  É importante deixar claro que a questão não é com a técnica, ou com quem procura essa tecnologia. A questão é cultural. Diz respeito ao lugar que tem um filho hoje, ao lugar dos corpos, ao lugar do controle. A gente não está discutindo os casos de reprodução assistida, mas o que isso nos faz ver sobre os tempos em que vivemos.

Verônica – Quando a mulher chega ao consultório, a dor daquela mulher que quer ter um filho é verdadeira. Achamos que ela pode ter um filho, mas achamos também que é preciso tomar cuidado. Aquela mulher vive a deficiência como sendo dela, quando a gente acha que essa infertilidade diz respeito à forma como está sendo processada toda essa questão na cultura: da mulher, do lugar de mãe, do lugar da maternidade. Não se trata de ser contra a reprodução assistida, mas de questionar como estamos lidando com a tecnologia. E o que essa forma de lidar diz da nossa época.

– Uma das questões da reprodução assistida trazida por vocês é a de que, já que você pagou tão caro e se submeteu a tantos procedimentos para engravidar, então está provado que você deseja este filho e é certo que você vai amá-lo. A realidade tem mostrado que as relações humanas são mais complicadas que isso…

Helena –  Eu acho que uma coisa muito complicada em relação a isso é a questão da ambivalência. Porque toda grávida, toda mãe, é ambivalente em relação aos filhos. Quer, não quer; ama e odeia… Uma vez feita a reprodução assistida, o filho tem de ser amado. É como se a ambivalência pudesse ser eliminada da cena.

Danielle – É como se o fato de ter procurado a reprodução assistida eliminasse, automaticamente, qualquer ambivalência. Isso é uma loucura completa.

Helena – E isso penaliza as mães, porque, afinal, fizeram tanto esforço… Ou seja, a mulher usou essa tecnologia que custa tão caro, que no SUS não estão pagando, e depois fica em conflito com a gravidez, com a maternidade? Como assim? Parte-se da ideia de que a tecnologia pode tornar o processo da maternidade asséptico e sem conflitos. Só que, na realidade, não é assim que acontece. O conflito não some, a ambivalência não some porque usou tecnologia para engravidar.

– Pegando este gancho, me deparo hoje com um certo desamparo dos pais. Porque, para se tornar pai e mãe é preciso abrir um espaço interno. Não é só transformar uma parte da casa em quarto do bebê e chamar uma decoradora. Mas parece que esse processo de abrir um espaço interno e se preparar internamente para receber o filho não é vivido por muitos pais ao longo da gestação. E então, de repente, estão com um filho nos braços, mas sem espaço interno, porque os conflitos não foram vividos no seu tempo – e nem mesmo se admite que os conflitos existam. Então, esses pais ficam muito angustiados, às vezes desesperados… Faz sentido para vocês o que estou dizendo?

Helena –  Achamos que não ter espaço interno tem a ver com a efetividade atual. Por que a efetividade hoje em dia prevalece sobre a afetividade. Deu uma virada nisso. Por falta de espaço interno.

Verônica – Temos uma situação ocorrida no grupo que pode traduzir isso. O que a gente vai vendo com essas mulheres é que assumem muito cedo a questão da infertilidade. Elas assumem o discurso da infertilidade de uma forma intensa. E num desamparo muito grande. Tivemos um momento no grupo em que, depois de falar sobre a Medicina e a técnica, lá pelas tantas uma delas começou a lembrar que a mãe fazia um caldo de galinha, elas começaram a lembrar do resguardo, e que no tempo de suas avós ou mães não se podia lavar o cabelo durante a menstruação. E aí começa um movimento no grupo que foi muito interessante, o de resgatar algo do simbólico mesmo, algo de um corpo olhado pelo outro. Disso que a gente estava falando: de as mulheres trocarem informações sobre o que está acontecendo com o próprio corpo.

– De um saber que não é médico….

Helena – Sim, de um saber que era herdado das mães. Porque hoje você não pergunta mais para a mãe, para a avó: “Como é que faz isso?”. Antes, o pedido de como se faz isso ou aquilo era para as mulheres da família. Hoje, elas ligam para o pediatra. Acho que é importante pensar o quanto o processo de reprodução assistida, e todas essas questões, repercutem na forma como os pais se apropriam dos filhos.

– Eu escuto muito a seguinte frase dita por mulheres as mais diversas: “Acho que não vou conseguir engravidar…”. Assim, do nada. Ao longo da pesquisa, vocês chegaram a perceber se as mulheres já se consideravam inférteis antes dos exames e do diagnóstico? Se o médico apenas confirmava uma infertilidade em que elas já acreditavam mesmo antes de procurá-lo?

Danielle – Eu me lembro de exemplos do consultório. Acho que atualmente a questão da infertilidade está muito presente. As mulheres, realmente, de 25, 27, 28 anos, se perguntam se vão conseguir engravidar, se vão ter dificuldade… Faz parte, já, do discurso. E este discurso costuma ser confirmado muito facilmente. Bastam seis meses de tentativa e já partem para a tecnologia.

Helena – A forma como a idéia da reprodução aparece na mídia já traz embutida a ideia de que as mulheres são inférteis, que precisam de uma assistência para engravidar.

– Vocês acham que toda essa questão também se dá, em parte, por uma relação de consumo? Porque há um momento em que a maior parte dos casais se sente obrigada a ter um filho. Não parece só ser uma questão de desejo, para alguns, mas também de imagem. Aí tem o filho. Só que ter um filho não é como ter um carro. Não dá pra vender e comprar outro – ou devolver se não está satisfeito com o desempenho. Nem dá para escolher o modelo, o sexo ou a cor dos olhos. Há algo da ordem do incontrolável de ter um filho que parece estar surpreendendo alguns pais…

Danielle – Tive uma paciente que fez um lapso a respeito do filho. Ela o chamou de carro. E o trabalho foi entender que, naquele momento, o que ela queria era um carro – e não um filho. Um carro em que ela escolhia a cor, o tamanho, o preço… Naquele momento da análise, para ela, soltou alguma coisa. Ela investiu no carro, ela e o marido compraram um carro incrível. Porque o projeto era esse mesmo. Muito mais tarde, ela começou a se preparar para ter um filho, e daí toda a história já era outra: os sonhos, como fazer ninho etc. Porque daí a história passa por como é que você vai lidar com a situação da ordem do não-controle mesmo. Era importante distinguir estas duas coisas e ficar tranquila. No momento em que o projeto é carro, o projeto é carro. Mas carro e filho não vão coincidir, não são a mesma coisa. Não dá para comprar um filho. E aí você protege a mãe e protege o filho.

Verônica – Lembrei de uma psicanalista que fala dos efeitos da tecnologia sobre a subjetividade humana. Acho que isso também é uma das coisas que assusta no fato de ter filhos, isso de que supostamente a felicidade do filho teria de ser garantida pelo oferecimento de TUDO pelos pais. O filho tem de ser feliz e você tem de dar todas as respostas para ele, tem de supostamente atender todas as necessidades dele. Essa psicanalista fala que um dos efeitos da tecnologia, por exemplo, se dá sobre a experiência do tempo de espera. Antigamente, você ligava a televisão e esperava a válvula esquentar, a imagem demorava a aparecer. Depois, você passa a apertar o botão e a imagem imediatamente aparece. E ela começa a notar no consultório que antes os filhos chamavam a mãe puxando a saia, puxando a roupa. (Verônica mostra o movimento de puxar.) E que depois passou a ser apertando assim… (Ela simula o toque em um controle remoto). É uma imagem de como a resposta tem de ser imediata. Se aperta, tem de responder. Então, eu acho que tem isso, essa coisa do controle, de que eu posso programar ter um filho, faço as contas de quanto vai custar. E também parece que é necessário se antecipar a tudo. Não é algo que está dado, e vamos ver o que acontece. É como se você não contasse com a experiência vivida. Que a experiência, no processo de construção desta maternidade e desta paternidade, fosse abrindo caminhos e trazendo elementos para você construir uma resposta para a situação. Essa questão do tempo é fundamental. E ela aparece em todas as etapas do processo.

– Por que vocês se indignaram com o tratamento dado aos pais que manifestaram a intenção de entregar para adoção uma das trigêmeas?

Helena – A gente foi lendo na imprensa e se dando conta de que havia um linchamento moral daquele casal. Uma mulher de 28 anos teve três meninas. Desde o início o casal se angustiou e anunciou que queria dar uma das meninas para adoção. E, quando nasceram as três, eles reafirmaram esse desejo. Não dá para ter certeza, porque as informações dadas pela imprensa são desencontradas, mas é possível que tenham escolhido dar para adoção a mais frágil das três. E aí o hospital denuncia para o Conselho Tutelar que esses pais estão rejeitando uma das crianças e a medida da Justiça é separá-las dos pais. Mandaram as trigêmeas para um abrigo. E os pais só poderiam vê-las durante duas horas por semana. Achamos que toda essa história tem que ser contextualizada para que a responsabilidade não recaia apenas sobre o casal. Há outros atores e fatores em cena.

– Vocês acham que os pais foram abandonados?

Danielle – Foram.

Verônica – Mas acho que eles não foram abandonados neste momento. Porque não deveria ser assim: eu tenho três filhos e escolho um. Você já sabe disso antes, e o que vai fazer. Porque aí vem de novo essa coisa da vontade. Do controle. Dessa coisa de que eu posso tudo. Então, se eu engravidei de três eu posso querer só dois. Como é que você se implica naquilo que acontece na sua vida? Eu me desfaço disso? É que nem novela? Mata, porque aquele personagem está demais? Descarto? O que nos chama a atenção é o que a gente vinha falando: como uma questão que é montada culturalmente – faz parte do discurso da cultura – é jogada, e esse casal passa a ser o único representante da falha. Quando é muito claro que a falha está em todo o processo. A questão não passa por tirar a responsabilidade do casal, mas a falha começou muito antes e estamos todos implicados nela. Qual é o discurso da Medicina, amplamente divulgado pela mídia? Implanta, escolhe, descarta, reduz…

– Aí, de repente, fica todo mundo surpreendido, não é? Somos todos inocentes… Nunca ninguém tinha falado nisso…

Helena – Nos cabe perguntar sobre a responsabilidade pela implantação de três embriões no útero de uma jovem de 28 anos. De que forma essa decisão foi tomada? A decisão cabe ao casal ou à equipe médica responsável pelo procedimento da reprodução assistida? Os casais são suficientemente esclarecidos sobre todo o processo da fertilização in vitro e sobre o destino dado aos embriões que não forem utilizados? É certo que o procedimento de implantação de embriões numa mulher jovem tem mais chances de dar certo, de os embriões se fixarem e seguirem se desenvolvendo, do que numa mulher de mais idade.

Vale a pena lembrar também da existência da técnica de redução embrionária, muito discutida no âmbito da medicina reprodutiva e praticada, embora proibida, no Brasil. Trata-se da técnica que permite a eliminação de um ou mais embriões, ainda em fase celular, em pacientes que geraram mais de um. Também chamada de técnica de “descarte de embriões”, é defendida por uma parte dos médicos como sendo necessária em mulheres com gravidez de risco por se tratar de uma gestação múltipla.

É evidente que o dilema vivido pelo casal não é um dilema que só lhes diz respeito, pois é explicitamente trazido à cena e posto em prática pela Medicina, cujas tecnologias de reprodução assistida estão à disposição no mercado. Este casal está, então, inserido em uma cultura em que a opção de “descartar um dos fetos” está colocada.

Já vimos reportagens, antes deste caso, contra as quais ninguém se manifestou ou se indignou. O título de uma delas, manchete de uma revista, era o seguinte: “A escolha mais difícil. O aumento no numero de gestações múltiplas coloca o dilema: abortar ou não alguns dos fetos?”. Quer dizer, está na manchete de uma revista, mas, na hora em que isso se encarna em alguém, que eu posso escolher, que eu posso descartar, porque está na Mídia, está na Medicina… há toda essa reação. E, paradoxalmente, na hora em que a Justiça determina a separação entre as crianças e os pais, como uma medida supostamente protetora, a amamentação é interrompida e impõe-se o abandono das crianças.

Danielle – Fala-se, por exemplo, da gravidez de risco. Mas há outra questão, que é o risco subjetivo, que fica completamente anulada. A gravidez é de risco não apenas porque são três bebês. Mas também porque lidar com três crianças que nascem, em geral, superprematuras, em situações de uma fragilidade extrema e absoluta, é um risco gigantesco. Porque é complicado fazer laço com três filhos ao mesmo tempo; é complicado fazer laço com três bebês que nascem frágeis, perigando morrer, perigando ter mil sequelas. Todas essas questões ficam muito negligenciadas no processo da reprodução assistida.

Verônica – Assim como fica negligenciada a figura do médico, que surge numa fala totalmente impávida neste caso. Ele disse: “Nunca vi um caso desses acontecer antes, de uma mãe rejeitar o filho”.

Helena – Ele foi o médico da mulher, foi ele quem implantou os embriões. Ela era paciente dele, e em vez de defendê-la e dizer “Eu conheço esta pessoa…”, ele se desimplica de um jeito muito irresponsável.

– Por que vocês acham que este casal sofreu um linchamento moral?

Helena – No cenário da reprodução assistida se intensifica de novo a questão do mito do amor materno. É isso o que, afinal, o médico enfatiza no discurso dele: “Eu nunca vi pais que, depois de quererem engravidar, rejeitam um filho…” Parece que, no mundo da reprodução assistida, não pode existir dor, perda, luto, conflito, ambivalência. Fica uma coisa chapada, onde só cabe sucesso, sentimentos positivos, potência, amor. Há um nível de negação muito intenso neste mundo. Há uma negação intensa de todo o lado do sombrio, digamos assim. E a positivação e a intensificação muito hipócrita, inclusive, de que não há conflito, não há ambivalência.

Danielle – Neste mundo obviamente todos querem ter um filho, obviamente todos querem ter muitos filhos e obviamente todos vão amá-los. De repente, há um encontro com o avesso disso. Então, é o seguinte: eu não tenho nada a ver com isso. Isso é ela – não eu. Jogam o conflito para cima do mais frágil.

Helena – Quando surge algo assim, como neste caso das trigêmeas, vira um escândalo. O médico diz: “Bom, nunca vi isso”. É hipócrita, é cruel, é uma negação. Há uma coisa muito negadora, em vários campos, como o menino lá do Realengo que matou todo mundo. A sociedade, a escola, não tem nada a ver com isso. Ele é um monstro que fez isso. Então, acho que há um certo parentesco de colocar a monstruosidade no indivíduo e, assim, a sociedade pode negar ter qualquer relação com essa violência, ambivalência, rejeição. O problema está no indivíduo. Há várias situações em que todo mundo se exime da responsabilidade. Nós não somos violentos – o violento é o outro. Não só violento, como um monstro. Como neste caso das trigêmeas. Ninguém diz: “Não cuidamos direito desta menina, que engravidou de três bebês”. É melhor negar e simplificar. Agora, você imagina o estrago que foi feito nesse começo de família, nestes pais e nestas filhas…

– Ao analisar o caso das trigêmeas, vocês afirmam o seguinte: “Tomemos, que o filho é nosso!”. O que significa isso?

Helena – Acho que “o filho é nosso” neste sentido, de que a gente precisa se comprometer com aquilo que está em jogo.

Danielle – E que a gente, como cultura, está veiculando e fazendo aparecer. Então acho que a ideia do “nosso” é: precisamos nos implicar e nos responsabilizar por aquilo que estamos fazendo acontecer.

Verônica – O que este casal está explicitando da nossa cultura? Por que causaram tanta indignação? São questões que precisamos nos colocar. Há uma banalização do processo todo, doação e descarte de óvulos, há uma banalização do que é ter três filhos ao mesmo tempo. Pensar sobre isso é responsabilidade de todo mundo. Esta, afinal, é uma produção da nossa cultura. Neste sentido é que “o filho é nosso”. É preciso também olhar para a idealização desse controle. Porque, de fato, não existe controle nesse nível. Implantam-se cinco embriões para tentar que dois deem certo. Então, os médicos jogam com isso. Só que o problema de jogar com isso é que no final da linha há um bebê. Ele está ali. E, agora, faz o que com ele?

Helena – Estamos todos implicados. Mas, em vez de problematizar, acusamos. E nos retiramos da cena. A ideia do “Tomemos, que o filho é nosso!” é reconhecer que estamos todos dentro da cena. O casal também tem de se responsabilizar. O problema foi responsabilizar a eles, exclusivamente, deixando-os sós. Eu acho que o “Tomemos que o filho é nosso!” é assim: este é um fruto da nossa cultura. É filho da cultura, não só deste casal.

– O que eu acho muito curioso é que existe essa tecnologia toda, nada precisa ser natural, nem o parto nem a reprodução, que pode ser feita num tubo de ensaio e não na cama, e no fim disso tudo a sociedade abre uns olhos espantados e exige a sacralidade do amor materno. “Como assim, essa mãe não acha maravilhosos ter três bebês ao mesmo tempo? Ah, nunca se viu uma coisa dessas…” Voltamos ao mito, como vocês disseram.

Helena – Eu acho que a mãe volta ao lugar idealizado via tecnologia. Ela foi destituída desse lugar tão idealizado, e ela volta a ser restituída a esse lugar com a tecnologia da reprodução assistida. O que volta com a reprodução assistida é justamente o mito do amor materno.

– Como assim?

Helena – Desse jeito. Se ser mãe passa a não ser mais tão valorizado – ser executiva talvez tenha mais valor, ou ser uma grande esportista, ou ter dinheiro, ou ter um carro bacana… As tecnologias de reprodução assistida possibilitam que as mulheres voltem a ser mães. Essa mãe que eles fabricam, que eles possibilitam/produzem, tem de ser uma mãe com letra maiúscula: uma mãe sem conflito com a maternidade, que nunca vai rejeitar o filho. De certo modo, a tecnologia possibilita a volta de “A Mãe”. E esta mãe não tem sombra, não tem marca. É a mãe com o letreiro e as luzes piscando. Ela retorna, e tem de refazer o mito do amor materno, porque também isso justifica a existência das tecnologias, da pesquisa, das ampliações dessas fronteiras tecnológicas. Então, é como o médico das trigêmeas falou: “Nossa, toda essa tecnologia, todo esse empenho, e eu nunca vi uma mãe depois de tudo isso não querer um filho”.

– O médico parece ter se sentido traído, né?

Verônica – Nesta pesquisa, a gente participou de algumas reuniões dos médicos do setor de reprodução. Em uma das discussões, eles debatiam a taxa de fertilidade. Um dos participantes disse: “Bom, a inseminação artificial bovina é perfeita, ela tem resultados ótimos, porque você usa o melhor reprodutor com aquela que tem mais condições de reproduzir. Nossos pacientes aqui são os piores reprodutores. As matrizes que a gente tem são falhas”. O que pensamos é que essa idéia remete ao biológico, ao corpo como uma máquina de procriação.

Helena – A gente fala muito que a Medicina retira o sujeito de cena, né? Acho que tem um pouco a ver com isso. O sujeito é aquele que é dividido, que tem conflitos. Sem conflitos não há sujeito.

(Publicado na Revista Época em 25/07/2011)

A doença de ser normal

Com medo da liberdade, preferimos aderir à manada

Na semana passada, li uma entrevista do professor José Hermógenes de Andrade Filho, uma lenda no mundo da ioga no Brasil. No texto, ele conta ter criado uma palavra – “normose” – para dar conta daquele que talvez seja o grande mal do homem contemporâneo. “Normose” seria a “doença de ser normal”. O professor explica: “Como diz o título de um documentário que fizeram sobre mim: ‘Deus me livre de ser normal!’. Pois, na dita normalidade em que vivemos, somos constantemente alimentados pelo que nos aliena de nós. Com isso, perdemos a noção das coisas, do sentido de nossa vida, deixando que o mundo interfira muito mais do que deveria. (…) Essa normalidade nunca esteve tão distante da verdade”.

A entrevista faz parte de uma coletânea de boas conversas com pessoas ligadas ao universo da espiritualidade – não necessariamente religiosa – no Brasil e no mundo, escrito em dois volumes pelo jornalista mineiro Lauro Henriques Jr., com o título “Palavras de poder” (LeYa, 2011). Ganhei os dois livros de uma pessoa especial na minha vida e por isso comecei a ler com curiosidade. Me deparei com a “normose” do professor Hermógenes. E fiquei instigada a pensar sobre ela.

No mesmo período, o psicanalista e romancista Contardo Calligaris fez na Flip, em Paraty, um comentário bem provocador: “Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é o mal.”

Acredito que, por caminhos diferentes, Hermógenes e Calligaris nos estimulam a pensar em algo que vale a pena, que um chamou de “normose” e o outro de “comportamento de grupo”. Daqui em diante, enveredo pelas minhas reflexões a partir das provocações de ambos – que possivelmente sejam diversas do que eles pensaram ao propô-las. A responsabilidade, portanto, é minha.

No passado, a vida no Ocidente era determinada pela tradição. O destino de cada um era imutável, definido pela sua origem, pela categoria social a qual pertencia, e não havia dilemas sobre o que seria a sua passagem pelo mundo: se você fosse homem, seguiria os passos do pai; se fosse mulher, os da mãe. De todos era esperado o cumprimento de um roteiro previsível, que, se você nascesse homem, consistia em dar sequência aos negócios ou ao ócio da família, ou trabalhar para o mesmo patrão ou senhor do pai; e, se nascesse mulher, casar-se com alguém do mesmo nível social, em contratos arranjados previamente, reproduzir-se e cuidar da sua própria casa ou servir na casa em que a mãe serviu. Além disso, esperava-se que cada novo núcleo familiar seguisse a religião dos pais e participasse da comunidade do jeito de sempre, cada um no seu lugar determinado pelo estrato social.

A modernidade embaralhou tudo isso. E fomos, como disse Sartre, “condenados a ser livres”. É o preço que o indivíduo paga para ser indivíduo. Ainda que, em países desiguais como o Brasil, a classe social na qual se nasce influencie as chances que cada um vai ter, mesmo aqui estamos muito longe de ter o lugar cimentado da tradição do mundo de ontem. E cada governo democrático, se quiser garantir a continuidade de seu projeto no poder, precisa agora prometer trabalhar para igualar as bases de onde cada cidadão partirá para construir sua história. No mundo contemporâneo, cada um é o principal responsável pelas suas escolhas, pelos seus desejos e pelas suas desistências.

Embora existam muitos órfãos da tradição, suspirosos de nostalgia, penso que a prisão daquela vida determinada desde antes do nascimento era mais assustadora do que a liberdade de se estrepar que a modernidade nos deu. É verdade, porém, que para viver hoje é necessário um outro tipo de coragem, já que cada homem ou mulher virou em si um projeto em constante construção e desconstrução. Não é que não exista mais chão, mas ele é pantanoso, e cada um precisa escolher diante de um emaranhado de trilhas. E, se cada uma delas leva a lugares diferentes, é fato que nenhuma é segura.

É aí que a “normose” ou o “comportamento de grupo” se encaixa. Qual é o desafio de cada um de nós hoje? Desde que você não esteja na faixa da população em que toda energia e talentos são gastos na luta pela sobrevivência mais básica, o desafio que se impõe diante de cada um é a busca da sua singularidade. E esta é a busca de uma vida inteira. Não como se você tivesse uma essência que precisasse encontrar e, tão logo encontrada, estivesse tudo resolvido. Pelo contrário, esta procura leva à invenção de nós mesmos – e nunca está nada resolvido, já que sempre podemos nos reinventar. Não sem limites, mas às voltas com eles.

A proposta da modernidade e da ideia de indivíduo, muito mais libertária do que nossos antepassados amarrados pela tradição jamais sonharam, parece ótima. O problema é que dá uma angústia danada, já que, a rigor, não haveria ninguém para culpar por uma escolha equivocada ou porque o enredo que inventamos para a nossa vida saiu diferente do nosso desejo. Então, com medo de nos “enforcarmos nas cordas da liberdade”, como diz o ator Antônio Abujamra no programa “Provocações” (TV Cultura), em vez de nos arriscarmos a criar uma vida, nos responsabilizando por ela, aderimos à manada. E aqui, é importante deixar bem claro, não estou me referindo a lutas coletivas movidas por indivíduos unidos por suas singularidades, mas à adesão que implica se deixar possuir pelo grupo para não se arriscar a ser possuído por si mesmo.

Nesta adesão à manada, a “normose” ou o “comportamento de grupo” substituiria ilusoriamente o vazio deixado pela tradição. Com medo da liberdade e dos riscos inerentes a ela, muitos de nós colam no grupo. Seja ele do tipo que for: religioso, corporativo, profissional, cultural, intelectual, político, de orientação sexual ou até esportivo. Cada um deles garante, ainda que de forma muito mais frágil do que a tradição, um certo jeito de se comportar e de se vestir, um tipo de ambiente a frequentar, temas que merecem ser debatidos, gêneros de lazer e de viagens para as férias e para os fins de semana, crenças para compartilhar e até bens para adquirir. Um tipo de “normose” – que, paradoxalmente, mas com muita lógica, dentro do grupo é tratada como “diferentose”, já que, como coletivo, contrapõe as suas verdades a dos outros grupos, em geral vistos como inferiores ou limitados.

E como estas são as pessoas com quem se convive, torna-se meio inevitável namorar e ter filhos com gente da mesma turma. Assim como a tendência é reproduzir mais e mais os mesmos padrões e visão de mundo. Sem questionar, porque questionar possivelmente levaria a uma ação. E todos nós conhecemos gente, quando não nós mesmos, que prefere deixar tudo como está, ainda que doa, para não se arriscar ao desconhecido. É assim que muitos de nós abrem mão da época histórica mais rica de possibilidades de ser em troca de uma mercadoria bem ordinária: a ilusão de segurança. Mas, como sabemos, lá no fundo sentimos que algo está bem errado. Especialmente quando fica difícil levantar da cama pela manhã para seguir o roteiro programado.

Suspeito que o mal-estar contemporâneo tem muito a ver com não estarmos à altura do nosso tempo. No passado, havia “outsiders”, gente que desafiava a tradição para inventar uma outra história para si. Hoje, com a (bendita) falência da tradição, talvez o que se exija de nós seja que todos sejamos “outsiders” à nossa própria maneira – não no sentido de contrariar o mundo inteiro, mas de encontrar o que faz sentido para cada um, arriscando-se ao percurso tortuoso do desejo. Ciente de que, logo adiante, vamos perder o sentido mais uma vez e teremos de nos reinventar de novo e de novo, num processo contínuo de construção e desconstrução movido pela dúvida – e não pelas certezas.

Vivemos numa época de intenso movimento interno, em que se perder seja talvez o melhor caminho para se achar, mas nos agarramos à primeira falsa promessa como desculpa para permanecermos imóveis. Voltados sempre para fora e cada vez com mais pressa, porque olhar para dentro com a calma e a honestidade necessárias seria perigoso. Queremos garantia onde não há nenhuma, sem perceber que o imprevisível pode nos levar a um lugar mais interessante. Podemos finalmente andar por aí desencaixotados, mas na primeira oportunidade nos jogamos de cabeça numa gaveta com rótulo. Ainda que disfarçada de vanguarda.

Mas o que pode ser mais extraordinário do que inventar uma vida, ainda que com todas as limitações do existir? E que utopia pode ser maior do que nos igualarmos pela singularidade do que cada um é?

Acho que vivemos um momento histórico muito rico. Só precisamos de mais coragem. Como diz o professor Hermógenes, do alto dos seus 90 anos, “Deus (seja ele o que for – ou não – para cada um) me livre de ser normal!”.

(Publicado na Revista Época em 18/07/2011)

Meu filho, você não merece nada

A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

(Publicado na Revista Época em 11/07/2011)

O teste da caneta e o motorista gay

Quando a crueldade vem travestida de fé

Deve ter sido um junho tenebroso para os católicos que vivem verdadeiramente o evangelho. Para quem não é católico, para os que praticam outra religião, para os agnósticos e os ateus também. Para qualquer pessoa minimamente decente, confrontar-se com o discurso da crueldade – travestido de fé – é uma experiência aterradora. Foi o que aconteceu quando Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo da diocese de Guarulhos, no estado de São Paulo, falou em entrevista sobre o estupro de mulheres. Depois, o choque se repetiu no pronunciamento de Myrian Rios, deputada pelo PDT do Rio de Janeiro e, segundo ela mesma, “missionária católica da Canção Nova”, ao discursar sobre gays e pedofilia – e confundir as duas coisas.

Quando duas pessoas públicas, com responsabilidade e ressonância de pessoas públicas, dizem o que Dom Bergonzini e a deputada Myrian Rios disseram, é preciso prestar atenção. Não é banal, não é folclórico. É sério – e tem consequências.

Primeiro, Dom Bergonzini – que, em seu blog, aparece várias vezes com o título de “o leão de Guarulhos”. Em entrevista à repórter Cristiane Agostine, do jornal Valor Econômico, publicada em 13 de junho, o bispo afirmou que há “uma ditadura gay” em curso e que uma “conspiração da Unesco transformará metade do mundo em homossexuais”. Esta forma de ver a conjuntura internacional poderia, por si só, chocar boa parte dos leitores, mas o bispo se supera no trecho da reportagem que reproduzo aqui:

“Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima… É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil”, comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. “Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre… Há os casos em que não é bem violência… [A mulher diz] ‘Não queria, não queria, mas aconteceu…’”, diz. “Então sabe o que eu fazia?” Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. “Eu falava: bota aqui”, pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. “Entendeu, né? Tem casos assim, do ‘ah, não queria, não queria, mas acabei deixando’”. (…) O bispo continua o raciocínio. “A mulher fala ao médico que foi violentada. Às vezes nem está grávida. Sem exame prévio, sem constatação de estupro, o aborto é liberado”, declara, ajeitando o cabelo e o crucifixo.

Sim, no teste do bispo, a vagina da mulher é uma tampa e a caneta é o pênis do estuprador. Se a mulher não quer ser violentada, basta que ela não permita que a tampa encaixe na caneta. Simples assim. É com esta humanidade que Dom Bergonzini escuta, há 52 anos, como ele faz questão de enfatizar, as católicas violadas que buscam acolhida e compaixão na sua igreja. E então passam por uma acareação através do método da tampa-vagina e da caneta-pênis.

Agora, Myrian Rios. Aliás, só descobri nesse episódio que hoje ela é deputada estadual. Até então, só a conhecia como ex-atriz e ex-mulher do cantor Roberto Carlos. A deputada do PDT apresentou-se como “missionária católica” e discursou no plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 21 de junho, sobre a PEC-23, que inclui a orientação sexual entre as características pelas quais um cidadão não poder ser discriminado. Reproduzo um trecho do seu discurso aqui, mas sugiro que o leitor ouça da própria deputada, na íntegra, em vídeo de menos de 12 minutos, postado no YouTube.

O vídeo é todo coberto por textos em amarelo, num discurso sobreposto em defesa da deputada. Pede apoio a ela e faz, inclusive, um alerta: “Cuidado com a imprensa e a mídia”. Sugiro escutar Myrian Rios, sem prestar atenção ao texto. E, em seguida, assistir ao vídeo novamente, só lendo os textos em amarelo. Ambos – o discurso e a defesa do discurso – são muito reveladores. Para alguns, pode parecer uma perda de tempo, mas vale a pena o esforço para compreender o mundo onde estamos metidos.

A seguir, uma amostra da fala de Myrian Rios no plenário da Alerj:

“Eu não sou preconceituosa e não discrimino. Eu prego o amor e o respeito ao próximo. (…) Se somos todos iguais, com os mesmos direitos, eu também tenho que ter o direito de não querer um funcionário homossexual na minha empresa. (…) Digamos que eu tenha duas meninas em casa, que eu seja mãe de duas meninas, e eu contrate uma babá. E esta babá mostre que a orientação sexual dela é ser lésbica. (…) Se minha orientação sexual não for esta, for contrária, e querer demiti-la, eu não posso. (…) O direito que a babá tem de mostrar que a orientação sexual dela é lésbica eu tenho como mãe na minha casa de não querer que ela seja babá das minhas filhas, dá licença? (…) Com esta PEC, eu não tenho esse direito. Eu vou ter de manter a babá na minha casa, cuidando das minhas meninas, e sabe Deus se ela não vai inclusive cometer a pedofilia com elas.

(…) Então, se o rapaz escolheu ser homossexual, o problema é dele. (…) Ele escolheu ser homossexual, ser travesti, aí eu o contrato para ser motorista da minha casa e eu tenho dois meninos em casa. Ele começa então a trabalhar vestido de mulher, travestido, porque é essa a orientação sexual dele. Aí eu, como mãe dois meninos, digo opa, não é essa a minha orientação sexual aqui em casa. Aqui em casa eu gostaria que meus filhos crescessem pensando em namorar uma menina para perpetuar a espécie, como está em Gênesis. Deus criou o homem e a mulher para perpetuar a espécie. (…) No momento em que eu descobri que o motorista é homossexual e poderia estar, de uma maneira ou de outra, tentando bolinar o meu filho… não sei, pode de repente partir para uma pedofilia com os meninos, eu não vou poder demiti-lo, a PEC não me permite. (…) Se essa PEC passa, e o rapaz tem uma orientação sexual pedófilo (sic), se a orientação sexual do rapaz é transar, é ter relacionamento sexual com um menino de 3 a 4 anos, nós não vamos poder fazer nada, porque ele está protegido pela lei.

(…) Eu estou defendendo as crianças e os jovens de uma porta para a pedofilia. (…) Não vou permitir que, por uma desculpa de querer proteger ou para que se acabe com a violência, a homofobia, a gente abra uma porta para a pedofilia! (…) Deus abençoe a todos, tenham uma boa tarde, que o Espírito Santo possa hoje, nesta Assembleia, cair fogo do céu aqui. Muito obrigada.”

É constrangedor fazer alguns esclarecimentos pela sua obviedade. Mas já que discursos desse nível existem – e são feitos por representantes democraticamente eleitos – é preciso dizer à deputada que: 1) homossexualismo e pedofilia não são a mesma coisa; 2) pedofilia não é uma orientação sexual, mas um crime; 3) se um funcionário da sua casa ou da sua empresa ou qualquer pessoa, em qualquer lugar, tenha a orientação sexual que tiver, cometer o crime de pedofilia, deverá ser denunciado e preso, independentemente da PEC-23, porque está previsto no Código Penal.

Se Myrian Rios cometeu esse discurso por ignorância ou por má fé, só ela, com sua consciência, pode resolver consigo mesma. E aqui uso o “má fé” em dois sentidos: tanto na tentativa de manipular a opinião pública, fazendo com que os cidadãos do estado do Rio de Janeiro pensem que não vão poder demitir criminosos se a PEC-23 for aprovada, como por sua controversa interpretação do evangelho que diz praticar.

Após a repercussão dos respectivos discursos, tanto Dom Bergonzini quanto Myrian Rios manifestaram-se como de hábito: a questão não foi o que disseram, mas uma interpretação equivocada de suas palavras. É curioso como a responsabilidade é sempre do outro. No caso, do leitor, da jornalista, do espectador, do eleitor. Mas as respostas, tanto de Dom Bergonzini quanto de Myrian Rios, são autoexplicativas. E iluminam melhor do que eu seria capaz de fazer as verdades dos fatos.

O bispo reproduziu a reportagem do Valor Econômico em seu blog. Sem desmenti-la, fez uma chamada em vermelho, acima da matéria: “Obs: sobre estupro, leia aqui”. Depois, repetiu o alerta no ponto da reportagem em que discorre sobre o tema. Neste novo link, ele declara: “Só um insano diria que a mulher é culpada pelo estupro”. Aqui, sou obrigada a concordar com ele. O religioso continua: “A violência contra a mulher é mostrada diariamente pela imprensa. As mulheres, de qualquer idade, são atacadas, brutalmente violentadas e assassinadas por maníacos sexuais em praças, vias públicas, locais mal iluminados e até em casa. A lei presume a violência em crimes de estupro praticados contra menores e pessoas especiais”. Dom Bergonzini termina esse tópico dizendo: “Jamais afirmamos que a mulher não é a vítima. O criminoso é o culpado pelo crime que ele cometeu”.

O bispo parece não apenas duvidar da dor e do testemunho das mulheres violentadas, mas também da inteligência e da capacidade de discernimento do leitor. Todos puderam ler o que disse Dom Bergonzini à jornalista do Valor Econômico e aprender sobre o “teste da caneta”. Portanto, cada um pode tirar suas próprias conclusões.

Já a deputada Myrian Rios (PDT) divulgou uma nota, através de sua assessoria. No texto, ela pede desculpas pelo discurso, mas responsabiliza o público por uma compreensão equivocada de suas palavras: “Se entenderam dessa maneira, peço desculpas”. Reproduzo a nota na íntegra: “Iniciei meu discurso de 21 de junho na tribuna da Alerj relatando a minha condição de católica, missionária consagrada da comunidade Canção Nova (ligada ao movimento de Renovação Carismática) e, como tal, eu prego o respeito, o amor ao próximo, o perdão. Destaco que Deus ama a todas as pessoas, pois Ele não faz diferenciação. Em um dos trechos, afirmo: não sou preconceituosa e não discrimino. Repudio veementemente o pedófilo e jamais tive a intenção de igualar esse criminoso com o homossexualismo. Se entenderam desta maneira, peço desculpas. Conto na minha família com parentes e amigos homossexuais e os amo, respeito como seres humanos e filhos de Deus. Da mesma forma repudio a agressão aos homossexuais, pois nada justifica tamanha violência. Votei contra a PEC-23 por minhas convicções e não contra este ou aquele segmento de determinada orientação sexual”.

Graças à internet e à tecnologia, o leitor pode assistir ao discurso da deputada na íntegra. E tirar suas próprias conclusões sobre as intenções da “missionária católica” ao dizer o que disse.

Percebo que existem pessoas que, ao falarem em nome de sua fé, seja ela qual for, acreditam ter o patrimônio do bem, da ética e da verdade. Às vezes, até do “amor”. Como alguém já disse, muita gente tortura os números para que eles digam aquilo que pode comprovar a sua tese. Lendo, escutando e assistindo à fala de alguns religiosos, tenho a impressão de que torturam a Bíblia para que possam seguir com a propriedade de uma verdade única – a sua. O caminho da sabedoria, porém, inclusive para os grandes teólogos da Igreja Católica, passou e passa pelo exercício da dúvida, constante e tenaz. É preciso se despir da vaidade das certezas para alcançar a dor do outro – movimento imprescindível para o amor.

De minha parte, acho que o mundo pode abrir mão de demonstrações de “amor ao próximo” como a de Dom Bergonzini e Myrian Rios.

(Publicado na Revista Época em 04/07/2011)

Nunca estamos onde queremos

Conto de fadas de Woody Allen discute os limites do presente

Depois de alguns minutos, o novo filme de Woody Allen – “Meia-Noite em Paris” – nos provoca um delicioso sorriso bobo, que permanece até o final. O diretor no presenteia com uma história de Cinderela para adultos. À meia-noite, o protagonista embarca em um calhambeque tinindo de novo e pronto, está onde sempre quis estar: na animada Paris dos Anos 20. Gil Pender, como boa parte de nós, acha o presente insuficiente. O passado era melhor. Não qualquer passado, mas o idealizado por ele. Como uma fada madrinha do nosso tempo, Woody Allen realiza, com essa varinha de condão que é o cinema, o desejo que é de todos. E por isso abrimos um sorriso encantado.

Me convenci a dar uma espiada para o lado e para trás e vi no público a mesma boca aberta de antecipação e deleite das crianças quando escutam um conto de fadas. Desde o surgimento do calhambeque, a gente já sabe o que vai acontecer. É porque queremos muito que aconteça que é tão prazeroso. Como as crianças que pedem para repetir mil vezes a mesma história, a gente tem vontade de gritar: “De novo! De novo!”.

A identificação com o protagonista é imediata. O ator Owen Wilson vive Gil Pender, mas, ao mesmo tempo, encarna Woody Allen com tanta competência, que às vezes enxergamos o próprio. No filme, ele é um roteirista de Hollywood que tenta escrever um romance enquanto visita Paris com uma noiva mimada e um casal de sogros tão digestivos quanto óleo de rícino. Os personagens são todos estereotipados como num bom conto de fadas.

A noiva é uma típica menina rica, fútil e ambiciosa, mais preocupada com a aparência da vida e dela mesma do que com a vida em si. Os sogros são americanos bem sucedidos, republicanos do Tea Party, com todos aqueles valores que conhecemos melhor ao acompanharmos a trajetória de Sarah Palin. Ao chegarem a Paris, a noiva encontra um casal de amigos. Ele, um homem pelo qual já foi apaixonada, é também um personagem comum do nosso tempo: um especialista em tudo, de vinhos a Rodin. E, desde o início do filme, o detestamos como se deve fazer com um bom vilão que não causa mais mal do que abusar da nossa paciência e da de Gil com seu pedantismo e seu conhecimento de Wikipedia, programado para impressionar um certo tipo de moça. Já Gil, nosso herói, é doce, sensível e com aquele ar meio perdido de quem quer muito ir, mas não sabe direito para onde. Também um personagem clichê da nossa época.

Nesta escolha dos personagens, há algo interessante que podemos pensar. Esses dois estereótipos masculinos representam em parte a confusão do que significa ser homem hoje em dia. Ambos inseguros depois do naufrágio do papel masculino definido por uma tradição que já não existe. Mas com respostas diferentes para a questão. E, como a mulher deste milênio, a noiva também oscila entre esses dois homens sem saber bem se quer aquele que sabe tudo sem saber (e que jamais saberá qualquer coisa porque não tem planos de parar de fingir) – ou deseja aquele que admite que não sabe, mas um dia talvez possa descobrir porque procura.

Esta não é a questão principal do filme, mas Woody Allen sempre foi hábil em falar da (bendita) confusão dos papéis masculinos (e femininos) de nossos dias – e seu conto de fadas não poderia ser diferente. O dilema central de nosso Cinderelo é que ele queria viver onde não vive.

Gil Pender desembarca na cidade dos seus sonhos – e Woody Allen também nos dá, desde o início, uma Paris de cartão postal, com direito a própria Carla Bruni interpretando uma guia turística. Mas Gil está acompanhado pela noiva fútil, os sogros fúteis, o casal de amigos fúteis e fazendo coisas fúteis com todos eles. Preso, portanto, a um presente que não quer, mas que não tem forças para mudar. Como acontece com boa parte de nós aqui, em nossa vida cotidiana – e também em férias idealizadas das quais voltamos com fotos em que estamos sorridentes, sobre as quais contamos maravilhas para os amigos e parentes, mas secretamente sabemos que não foram tão perfeitas assim.

Então, à meia-noite, num determinado lugar, a carruagem passa e o carrega para a Paris que deseja. E Gil Pender encontra, entre outros personagens fascinantes que se reuniram em Paris nos Anos 20, Zelda e Scott Fitzgerald, Cole Porter, Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Luis Buñuel. E consegue dar seu romance para a própria Gertrude Stein avaliar. Todos esses personagens reais que fizeram a efervescência e a lenda dos (pelo menos para nós e para Gil Pender) gloriosos Anos 20 estão lá não como são – mas como nosso Cinderelo os vê. É o passado idealizado por ele – não o passado como foi para quem o viveu. Só assim, afinal, é possível ter um conto de fadas.

Posso contar tudo isso aqui porque, como nas fábulas, não importa o que acontece, importa que tenhamos certeza que acontece. Por isso as crianças querem ouvir a história tantas vezes e viver seus medos protegidas pela segurança do enredo conhecido. Depois dos primeiros 15 minutos de filme, sabemos o que Woody Allen vai nos dar. E então é só a delícia de assistir ao desenrolar dos fatos que já antecipamos.

Mas Woody Allen nos trai com uma personagem clandestina, que não faz parte do roteiro das fábulas – a mulher comum. Aquela que esteve na história, mas não foi registrada nela. Aquela que não sobreviveu à morte como memória. É a partir das inquietações dela, que em determinado momento torna-se o espelho dele, que Gil Pender tem de fazer uma opção que é a de todos nós: entre o tempo que não há e o tempo que há. Ele precisa fazê-la na prática. Nós temos de fazê-la dentro de nós, como uma escolha interna que determina todo o enredo da história que é nossa.

Gil Pender, nosso Cinderelo, coloca o impasse entre a idealização da vida e a vida como ela é com uma das sacadas geniais que fazem Woody Allen ser quem é: “Você se dá conta que esses caras vivem sem anestesia nem antibiótico?”. A frase é bem melhor do que esta, mas eu não tinha nenhum bloquinho para anotar. É quando o homem que procura encontra algo – e descobre que precisa fazer uma escolha se quiser viver onde está – não importa se na Paris dos Anos 20, na Paris da Belle Époque ou na Paris de hoje. Para quem o viveu, o passado era presente.

Assim como não há passado, só presente – não há vida idealizada, só vida. É com essa vida, no presente, que temos de fazer o melhor que pudermos, mesmo que sempre nos pareça insuficiente. Para, quando chegar ao final que sempre chega, termos a chance de concluir: “Que pena que acabou. Mas vivi, não tudo o que quis, mas o melhor que pude”. E só dá para ter certeza de que fizemos o melhor possível com nossa vida imperfeita quando temos a coragem de fazer escolhas. Que, inclusive, podem dar errado – e muitas vezes dão. Mas também podem dar certo, ou dar errado dando certo de um jeito que não sabíamos que existia.

Do contrário, vamos ficar fingindo que conhecemos o enredo, como o chato da história, e ninguém encontra nada sem se arriscar ao vazio e às perguntas difíceis, com respostas às vezes indigestas. Não há final feliz – o final é sempre a morte, como nos repetiram tantos poetas. O que temos é o presente possível para experimentar por tentativa e erro.

As grandes questões da existência, afinal, são sempre as mesmas – e é para nos lembrar disso que servem os contos de fadas. “Meia-noite em Paris” é um dos bons.

(Publicado na Revista Época em 27/06/2011)

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