Uma história de luz

Dez anos da vida de um jornal que reconhece a vida

Quando morreu, ele tinha umas poucas roupas usadas demais, uma flauta doce e uma pasta onde guardava sua certidão de nascimento, a carteira de identidade e recortes de jornais. Na parte de dentro da capa desta pasta, ele escrevera: “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Tudo estava ali. Com esta frase ele se inscreveu no mundo e morreu como um homem. Só pôde morrer como um homem porque viveu como um.

A frase que ele escolhera para se identificar, para atravessar o espaço e quebrar com palavras a ausência de si, é a chave para acessar a vida que se foi mas fica no registro. Quem apenas decodificasse a frase sem conseguir lê-la, poderia se enganar com o legado do homem-garoto. Num olhar superficial, ele era um menino que morria cedo, aos 20 e bem poucos anos. Tinha marcas demais no corpo, toda uma existência contada ali em cicatrizes de facadas, de surras, de picadas, um mostruário completo de todas as formas de violência inventadas, um mostruário da humanidade contada pelas suas tripas. Tanto em tão pouco, uma confusão que a vida faz com o tempo e o espaço.

Mas tudo que estava ali contado nas cicatrizes daquele corpo no necrotério só existia porque ele tinha se tornado “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Era no conteúdo da pasta que ele nomeava, nos recortes de jornal que ele escrevia com outros garotos com destinos parecidos, mas jamais iguais, que ele havia se tornado o homem que morreu.

Dito de outra maneira. Ele havia nascido Luciano Felipe da Luz. Mas só se tornou Luciano Felipe da Luz ao começar a escrever-se no jornal. Ao escrever-se, ele tornou-se homem. E só se completou homem porque passou a ser lido como homem. Esta é a sutileza de sua identidade – “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Ao colocar no mesmo patamar o jornalista e o jornaleiro, ele intuiu que escrever e ser lido eram partes do mesmo mistério. Como jornalista ele se escrevia, como jornaleiro ele se fazia ler. Luciano Felipe da Luz eliminara ali, na frase do seu legado, a mercadoria. Ele, que até então havia sido a sobra do capitalismo.

O que faz de um homem um homem? O que nos faz o que somos? A narrativa, a capacidade de nos contarmos. Mas não só. O tornar-se homem só se completa na possibilidade de ser lido, no reconhecimento da história de cada um pelo outro. É naquele reconhecimento que vemos nos olhos de quem amamos ao acordar que nos humanizamos, que nossa humanidade se reedita a cada manhã. Por isso nenhum homem pode ser uma ilha – na frase perfeita que já se tornou um clichê. Porque só somos no outro. E o outro só é em nós.

Quem era Luciano Felipe da Luz antes de tomar posse do seu corpo pela escrita? Era Mercedez. Ganhou este nome por causa do caminhão Mercedes Benz que o atropelou um dia. Não tinha sido o único atropelamento. Ele fora atropelado 12 vezes. Numa delas, ganhou este batismo tão literalmente das ruas. Sem reconhecimento, seu corpo levou ainda um tiro na cabeça, algumas facadas e mais tarde foi assinalado também pelas marcas da Aids.

Arrastando seu corpo sem palavras pelas ruas de Porto Alegre, Mercedez não era visto. Há várias formas de não ver um outro. Infelizmente exercitamos todas elas e sempre inventamos uma nova. Deixamos de reconhecer um homem – no homem – quando pensamos que sua dor não nos diz respeito. É só ao desconhecer o outro como um igual que a desigualdade de condições de vida se torna aceitável. Comum, banal e principalmente alheia a nós.

Com Mercedez era assim, um menino que cresceu nas ruas sem ser visto. Quando era visto, era sempre pelo olhar da violência. Do nosso, que não o enxergava, de outros que como ele disputavam os restos da rua, da polícia que o espancava. Tudo o que conhecia era ser marcado por esta violência, por um olhar que não o via. Porque entre as piores formas de não ver alguém está aquela que só enxerga seu estereótipo. No caso dele, um garoto de rua, um maloqueiro, um vagabundo, um sujo, um feio, um malvado. Um problema para as autoridades, uma mazela social para os especialistas, um estorvo que atrapalha o tráfego e suja as calçadas para a maioria. Não causa espanto que, sendo assim, Mercedez tenha sido atropelado tantas vezes, inclusive uma delas por um caminhão Mercedes Benz.

O que causa espanto é que Luciano Felipe da Luz tenha sobrevivido a todos os atropelamentos, inclusive o do seu batismo. Mais tarde, quando ele começou a se contar pela palavra (e não apenas pelas cicatrizes no corpo), dizia que era “filho da luz”. Se uma interpretação parcial dos fatos mostrava que ele era filho do abandono – de vários abandonos –, ele se agarrava ao fio do sobrenome e com ele construiu uma outra verdade narrativa que repetia nas ruas: “Eu sou filho da luz”. Este parto de palavras pode ter dado a ele uma maternidade que lhe permitiu viver dentro dos seus possíveis. A narrativa que fez de sua origem deu a ele uma mãe que era luz. E com o que pareceria pouco para muitos, Luciano Felipe da Luz desfez parte de suas trevas.

Quando duas jornalistas, Clarinha Glock e Rosina Duarte, começaram a inventar um jornal escrito e vendido por garotos de rua em Porto Alegre, encontraram-no estirado na calçada junto às paredes de um colégio de elite onde guardava carros. Sujo, chapado e esquecido de si. Devagar, bem aos poucos, ele foi se agarrando a este fio que permitia a vida – esta maternidade narrativa que dava a luz e não a morte. Sem negar o Mercedez que era parte dele, resgatou-se como Luciano. Parecia pouco, era tudo. O suficiente para cuidar do seu corpo, agora que ele era constituído também por palavras, estas cicatrizes da alma.

Agora que não o viam mais como resto, mas como “jornalista e jornaleiro”. Agora que ele se apresentava diante do cidadão com seu crachá de jornalista e jornaleiro e oferecia o jornal que ele também escrevia. Senhor, senhora, meu nome é Luciano Felipe da Luz e eu tenho uma história. Pela primeira vez, então, dois mundos dialogavam sem medos mútuos. E descobriam que só as palavras atravessam pontes. São gestos no ar.

Infelizmente não para ninguém, mas para a humanidade inteira, a Aids já o devastava há tempo demais e o cuidado com um corpo que agora podia ser marcado também pelo amor só o roubou pouco tempo mais da morte – o que não é pouco, mas também é. Morreu na luz. No Campo Santo, a parte do cemitério reservada aos pobres, foi sepultado pelos amigos e colegas do jornal. Que perguntaram ao coveiro porque ele, como todos ali, era apenas uma cruz com número – sem foto nem nome. A resposta era que ali os corpos eram enterrados com menos de sete palmos e desenterrados depois de algum tempo para dar lugar a outro corpo de pobre.

Decidiram então registrar sua vida por escrito no jornal – e assim Luciano Felipe da Luz morreu como um homem que viveu, morreu inscrito na história. Antes, eles apenas desapareciam, invisíveis na morte como na vida. Agora, homens como ele, jornalistas e jornaleiros, morrem. E isso é um jeito de permanecer como vida.

Luciano Felipe da Luz, jornalista e jornaleiro do Boca de Rua, ficaria feliz ao saber que um dia, depois da sua morte, seus colegas de jornalismo e jornaleirismo fizeram também um filme. Nele, apresentavam Porto Alegre aos moradores de rua de São Paulo. Numa das exibições, no Centro Cultural Santander, na capital gaúcha, um espaço cultural muito valorizado e simbolicamente dentro do cofre de um antigo banco, foram barrados ao chegar. Ensinado a interceptar roupas velhas e pobres, o segurança intimou: “Quem são vocês?”. Um deles se adiantou: “Nós somos os autores”. E entraram.

Sim, eles são autores. Como autores podem viver. Como dizia Luciano Felipe da Luz: “A minha vida é sempre a sua. Se liga gente boa”.

– – – – – – – – – – – – – – –

boca de ruaO Boca de Rua, um projeto da ONG Alice, completou 10 anos. O jornal, publicado a cada três meses, conta histórias de um mundo até então invisível, agora escrito, fotografado e grafitado por 15 moradores das ruas de Porto Alegre que se encontram uma vez por semana para decidir a pauta e reeditar a vida. Os analfabetos ditam suas palavras, todos se escrevem de alguma maneira com a ajuda de todos. Depois, é vendido nas ruas da capital por seus autores. Cada um tem a sua cota de exemplares e a renda pertence a eles.

A comemoração de aniversário, marcada para este domingo, foi suspensa porque choveu em Porto Alegre e na rua não tem telhado. Mas haverá festa quando o sol chegar. E o sol agora aparece. Aos jornalistas e jornaleiros que tornaram o Boca de Rua possível, a minha homenagem. Afinal, um jornal é exatamente isso – ou pelo menos deveria ser: o reconhecimento da vida.

Em palavras.

(Publicado na Revista Época em 13/09/2010)

Palavras em busca de adoção

A amplidão do vocabulário é a mesma da vida

Adote uma palavra antes que ela desapareça. Esta é a proposta de um site encantador, criado pelo Oxford English Dictionary. Você abre o site e há uma tela cheia de palavras carentes. Elas saltitam, se exibem, dão piruetas, na tentativa de chamar sua atenção. Basta passar o mouse em qualquer uma e ela começa a gritar: “Me escolha!” ou “Sim! Sim! Eu!” ou “Olá!” ou “Aqui!”. Se você clicar, aparece o significado e a ficha de adoção. E sugestões de como usá-la em diferentes contextos. Você elege sua pequena órfã e se compromete a levá-la para passear na vizinhança, enturmá-la no cotidiano. Nas conversas de bar, nos bilhetes e nos emails, nos pedidos de informação e até nas brigas e nas declarações de amor. A utopia contida na criação do site é que, se cada uma destas palavras zumbis voltarem literalmente à boca do povo, elas serão de novo letra viva.

Pena que é em inglês. Espero que o Houaiss ou o Aurélio ou qualquer outro dicionário ou universidade ou pessoa faça um site igualzinho com a zumbilândia do nosso português. Enquanto isso não acontece, podemos fazer a nossa parte para que o dicionário da língua portuguesa no Brasil não se torne um livro de óbitos.

Por que uma palavra morre? Como as pessoas, por várias razões. Larápio, por exemplo. Para quem já esqueceu, é um sinônimo de ladrão. Foi usado bastante no passado, inclusive pela imprensa. Hoje, está relegado ao arcaísmo. Acabaram-se os larápios? Como sabemos, muito antes pelo contrário. Mas talvez tenha acabado um certo jeito de olhar para aquele que furta ou é desonesto de outras maneiras – e a palavra larápio não deu mais conta de todas as variações de meliantes (outra!) que surgiram. Ou ainda, foi considerada emproada demais para os novos tempos. Agonizou por esvaziamento de sentido. E outras palavras precisaram nascer para atender às novas necessidades.

Quando uma palavra morre é um mundo inteiro que morre com ela. Quando uma palavra da língua portuguesa falada no Brasil desaparece, é um jeito de ser brasileiro que desaparece com ela. Um jeito de ser e de estar, de sentir a realidade, de olhar para os sentimentos e para o outro. E outras formas de ser e de estar surgem ou se impõem com palavras recém-nascidas. Como tudo que é vivo, a língua muda. E quanto mais se transforma, agrega sinônimos e gírias, mais rica é a língua e também a cultura que ela expressa.

Como amo as palavras, adoro vê-las nascer e sofro quando morrem. Tenho esta nostalgia de mundos. Mas sofro menos pelas que foram aposentadas porque perderam sentido – e mais pelas invisíveis. Arrisco dizer que há um número maior de palavras invisíveis do que de palavras arcaicas. No esforço de simplificar a linguagem para que o leitor possa compreender o texto, por exemplo, abandonamos uma população de palavras mais intrincadas. Como todas as escolhas, esta também não ficou impune. Simplificar, neste caso, pode ter significado reduzir. E, junto com o número de palavras, também nós nos apequenamos.

O vocabulário também nos confina. Quando é limitado, é nosso mundo que se torna emparedado. Tente se imaginar sem palavras. Ou melhor: tente ser sem palavras. É impossível. Pensamos, sentimos, amamos, desejamos, brigamos, sonhamos, existimos – com palavras. Sempre com palavras. Onde estamos? Não em São Paulo, Porto Alegre, Rio, Brasília, Macapá, Recife, Paris, Miami, Pindamonhangaba ou Anta Gorda. Estamos nas palavras. Habitamos as palavras. Somos palavras. Quando estamos e somos nas mesmas poucas palavras, somos e estamos menos. É como ter a chance de viajar pelas galáxias e preferir se fechar numa quitinete.

Em minhas andanças de repórter pelos muitos Brasis, entrei em contato com algumas construções de linguagem e invenções de palavras que ampliaram minha capacidade de perceber a realidade. Vinham de analfabetos que faziam literatura pela boca. Como os Raimundos da Terra do Meio, no Pará, ou os habitantes dos muitos sertões do Nordeste. Ou as “pegadoras de meninos” da floresta amazônica, no Amapá, que enquanto aparavam bebês pariam palavras. Como Nazira Narciso, ao me explicar que fez o parto da neta porque a parteira mais experiente havia se recusado por ser “barriga particular”. Ahn? “Não tem marido”, cochichou ela. Ou a caripuna Dorica, de 96 anos, me explicando o ofício: “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo”.

Todos “cegos das letras”, como diziam, mas donos de um vocabulário tão rico como a vida. Recriavam-se nas palavras como os grandes inventores da língua escrita, autores do cânone como Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Porque o vocabulário é pobre quando a vida é pobre. Não materialmente, mas de experiências.

Não dá para saber o que veio antes, se a vida ou a palavra. Vivemos com um vocabulário medíocre porque a vida é medíocre? Ou a vida é medíocre porque o vocabulário é medíocre? O que se perde quando usamos as mesmas palavras para um mundo tão diverso é que deixamos de enxergar o mundo em toda a sua largueza. Ele está lá, mas não conseguimos nomeá-lo. Então, ele está – mas não para nós. É uma maneira de ser cego, surdo e mudo com todos os sentidos funcionando.

A rigor, não existem sinônimos perfeitos, uma palavra que tenha exatamente o mesmo significado que outra. Há palavras que expressam quase o mesmo que uma outra. Mas o quase, na língua como na vida, faz toda a diferença. “Cão” e “cachorro”, por exemplo. Parece o mesmo. Mas não é. O cão contém um distanciamento, uma frieza, que o cachorro não tem. Ou o cachorro expressa uma proximidade, contida na própria sonoridade da palavra, mais comprida, musical e leve, que o cão jamais alcançará na sua dureza de uma sílaba só. Quando tomamos tudo pelo mesmo, perdemos as nuances. Abrimos mão da graça.

Acredito que a resistência da palavra se dá na arte. Especialmente na música e na literatura – seja ela oral ou escrita. E o empobrecimento da língua às vezes acontece nos meios de comunicação de massa. Em programas de TV, por exemplo, que uniformizam a linguagem por acreditar que, se não o fizessem, não seriam entendidos por todos. Só que não existe uma linguagem padrão. O que existe é um vocabulário que se impõe pela hegemonia política e econômica. No caso de muitos programas de TV que se pretendem nacionais – e aqui não falo de nenhuma rede específica, até porque quase todas seguem a mesma cartilha –, fala-se uma espécie de paulistanês e carioquês culto, como se esta fosse a suposta língua portuguesa do Brasil.

Mas como, se o Brasil é exatamente a convivência e o diálogo de suas diferenças, se a riqueza do país e da língua se dá na diversidade? Seria muito estúpido esperar que uma ribeirinha da Amazônia usasse as mesmas palavras que um rapper da periferia de São Paulo. Que rearranjassem as palavras da mesma maneira se vêm de uma história, de uma geografia e de um estar no mundo tão diverso. Isso não os torna menos brasileiros ou faz com que pertençam menos à mesma nação – pelo contrário. Esta diversidade expressa também na linguagem é talvez a mais forte identidade do Brasil. Mas há que resistir ao seu apagamento.

Mesmo na internet, que muitos encaram como a eclosão das singularidades, duvido um pouco que de fato seja isso que esteja acontecendo. Sem negar sua fabulosa importância, o que vejo, por enquanto, é a reprodução de tribos que já existiam. Um diálogo entre iguais que se fortalecem, o que não é pouco. Mas não um diálogo de diferentes, que é o que poderia ser mais interessante. Ampliaram-se as vozes, mas parece que, para além de seus pertencimentos, seguem surdas umas às outras.

Ao deixar o Rio Grande do Sul e ir para São Paulo, eu mudei de várias maneiras. A única que lamento é a mudança que se deu pelas palavras. Para escrever no que se costuma chamar de imprensa nacional – mas que é a imprensa paulista e (cada vez menos) carioca –, abri mão de porções da minha identidade. Em vez de guri e guria, passei a falar e a escrever menino e menina. Em lugar de tu, você. E assim por diante.

Mais do que trocar palavras, o que perdi foi uma paleta de tons e de cores. Eu era capaz de expressar uma mesma realidade ou sentimento de várias maneiras, de nomear um animal ou um objeto com diferentes palavras. Era herdeira de uma língua portuguesa do interior do extremo sul do Brasil, cujo vocabulário se enriqueceu tanto pela apropriação promovida pelos imigrantes europeus quanto pelo legado mais antigo deixado junto com seu sangue por índios, espanhóis e portugueses na demarcação do território.

Eu falava um português vivo o suficiente para dar conta de uma experiência singular. É natural, por exemplo, que no Sul tenhamos uma variedade maior de expressões para o frio do que no Norte e Nordeste. Que, por sua vez, terá uma riqueza maior de termos forjados numa vivência mais solar. Em São Paulo, me pasteurizei. Mantive a experimentação da língua feita pelos personagens reais cujas histórias contava, mas minha própria voz ficou mais padronizada.

Agora empreendo um caminho de volta, que não é volta porque sou outra. Voltar é sempre uma impossibilidade. Ainda bem. Resgato o que há de mim nas palavras esquecidas, mas a partir desta experiência de uma década em São Paulo. Escolho ser uma soma dissonante – alargada por tudo o que vivi. Dentro de mim ecoam as vozes de todos que me marcaram.

Há duas semanas, escrevi um “cusco” numa crônica que faço em outro site e fiquei muito faceira. Ah, sim, quando eu cheguei a São Paulo eu era “faceira”, às vezes até “louca de faceira” e em alguns dias “mais faceira que terneiro novo” – e não feliz. A vantagem, no meu caso, é que basta botar o pé na casa da minha infância que tudo volta. Minha mãe mesmo, professora de português e literatura e a melhor doceira do país (na minha isenta opinião), tem um vocabulário próprio. Há coisas que só ela diz. Ninguém sabe de onde tira. Nem ela. Esta invenção é parte essencial do que ela é. E nos proporciona grandes momentos.

Sempre desejei que um dia alguém me perguntasse qual é a minha palavra preferida. Eu tenho uma. É uma palavra que me tomou desde a primeira vez que a li. Eu intuo o seu significado, mas resisto a buscá-la no dicionário. Às vezes tenho isso, gosto de conhecer por mim mesma antes que alguém me explique. Posso passar anos apalpando uma palavra ou um conceito dentro de mim até me decidir a partir em seu encalço no mundo de fora.

No caso dessa palavra, era importante que ela guardasse um pouco do seu mistério, indevassável até para mim que a amava. Queria que ela ficasse um pouco hermética, já que o amor é sempre misterioso. Quando a pronuncio dentro de mim, sou possuída por ela. Eu sinto a palavra, vivo ela – nela. E nunca a escrevi em texto. Não sei se por ciúmes ou por não achar nenhum contexto à altura. Não é um arcaísmo nem um regionalismo. É uma palavra da língua culta. Título de um livro de um de meus autores preferidos, um japonês chamado Junichiro Tanizaki.

Decidi dar a minha palavra para vocês. VORAGEM. Eu sou esta palavra. E agora, por amor, vou interromper esta coluna para finalmente procurar o que ela significa no Dicionário Houaiss. (Dois minutos depois…) Aí está: “1. Tudo aquilo que é capaz de tragar, sorver, destruir com violência; 2. Redemoinho de água que se forma no mar ou no rio, cujo giro arrasta as coisas para o fundo; sorvedouro, turbilhão; 3. Grande profundeza, abismo; 4. Aquilo que provoca grandes arroubos, que arrebata, mortifica ou consome”. É tudo isso e ainda o que ela é para mim. Em mim. E o que pode ser ressignificado a partir de cada um.

Inspirada pelo site savethewords.org, escrevi esta coluna para lançar a ideia de usar uma palavra nova a cada dia. Não uma nova para todo mundo, mas uma nova para cada um. A cada manhã uma palavra inédita, pescada do oceano fundo e escuro onde elas habitam como peixes escorregadios. Uma decisão existencial mais profunda do que pode parecer à primeira palavra.

————————–

P.S. – Se você puder, conte aqui qual é a sua palavra preferida. Como a conheceu e o que significa para você. Conte a sua história de amor com uma palavra. Ou o que uma delas fez pela sua vida. A gente conversa sobre tanta coisa – livros, filmes, sapatos, política, futebol, tecnologia, a vida alheia… –, por que não sobre palavras? Afinal, para dizer que estamos sem palavras precisamos de pelo menos duas delas.

(Publicado na Revista Época em 06/09/2010)

Ninguém quer o futuro

Vivemos um presente esticado porque o amanhã nos apavora

No passado, havia um futuro. Cresci acreditando que o futuro seria um tempo melhor. Meus pais cresceram acreditando que no futuro haveria um mundo melhor. Minha filha começou a duvidar do futuro. Meus netos possivelmente temerão o futuro. Não é uma mudança pequena. Não consigo avaliar com precisão o quanto isso nos modifica, mas escuto e olho e percebo que nos transforma. E imagino que seja uma transformação profunda. Esta vida em que preferimos não ter nenhuma representação de futuro. Já que qualquer representação baseada na realidade prevê a possibilidade do nosso fim. Não mais um fim do indivíduo, com a morte que nos aguarda a todos, mas o fim da espécie.

Tento lembrar no que eu acreditava nestes dias em que São Paulo está em estado de alerta, descendo aos 12% de umidade relativa do ar, e as capas de jornais mostram a nuvem de chumbo da poluição sobre os prédios e casas onde tentamos viver nossas vidas. Acabei de acordar e espirro sem parar. Nós, que sofremos de rinite alérgica, padecemos mais nestes dias. E eu já tomo antibiótico por causa de uma doença respiratória causada pela combinação de secura e contaminação do ar. Você quer sabe como será o mundo logo ali? Olhe para São Paulo. O pôr-do-sol tem exibido uma beleza assustadora. Poderia ser usado num filme de fim de mundo.

O que acreditávamos no futuro do passado? Ou pelo menos o que parte da minha geração, nascida sob o signo da chegada do homem à Lua, talvez tenha sido a última a acreditar? Que a ciência cumpriria suas promessas e nos libertaria do jugo do trabalho alienante. Além de nos garantir vida longa, juventude e bem-estar. Que teríamos todas as benesses da tecnologia sem pagar nenhum tributo ao planeta por isso. Que, seja qual fosse a nossa ideologia, por diferentes caminhos chegaríamos a um mundo em que ninguém mais fosse explorado ou passasse fome. Ninguém duvidava também que estaríamos viajando no espaço e desbravando outros planetas.

É verdade que a ficção científica desenhava um mundo muito mais sombrio e parecido com este aonde realmente chegamos – ou ainda chegaremos. De Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) a Philip K. Dick (Andróides sonham com carneiros elétricos?, no qual se baseou o filme cult de Ridley Scott, Blade Runner), Ray Bradbury (Fahrenheit 451) e outros. Mas era ficção. E tínhamos tanta certeza nas possibilidades do futuro que poderíamos ler o livro e assistir ao filme sem acreditar na imagem no espelho. O futuro, afinal, nos pertencia. Bastava depor ditadores e combater as corporações.

O que sabemos hoje é o suficiente para mudar radicalmente nosso desejo: nós gostaríamos que o futuro nunca chegasse. Diante de nós, há dificuldades de sobrevivência não apenas como indivíduo ou povo de uma nação determinada, mas como espécie. Começando, como sempre, pelos mais pobres e os mais frágeis entre nós, na geopolítica mundial e na geopolítica dentro do nosso quintal. Diante de nós se desenha uma guerra por água, alimentos contaminados e o aquecimento global. Os ditadores continuam por aí e as corporações extrapolaram as dimensões que conseguimos abarcar.

A tecnologia nos permitiu comunicação instantânea e a internet mudou para sempre nosso jeito de nos relacionar com o espaço, com o tempo e com os outros. Mas esta tecnologia espetacular faz com que o conceito de horário de trabalho tenha se tornado obsoleto e os chefes e as tarefas nos alcancem por email, torpedo e outras ferramentas que nos submetem onde estivermos, estendendo a jornada para todas as horas e confundindo espaços e limites. Mesmo os consideráveis avanços da ciência em várias áreas nos provocam desconfiança. É difícil achar que a clonagem e os transgênicos sejam apenas uma ótima notícia. E, depois da grandiosa pisada de Neil Armstrong na Lua, só conseguimos despachar umas sondinhas espaciais um pouco mais longe. Ou seja: estamos presos no planeta que exploramos além da conta. E começamos a nos sentir claustrofóbicos nele.

Assim como nos sentimos claustrofóbicos dentro de nossa própria vida. Não é a toa que tanto se fala de felicidade hoje. Este discurso da felicidade soa como um discurso do desespero. É uma noção de felicidade desconectada do real e dos sentidos dados para a vida, uma felicidade por si mesma. Afinal, torna-se difícil viver quando a melhor ideia de futuro que conseguimos ter é a quitação da casa própria depois de centenas de prestações ou a compra de uma TV com tela plana ainda maior para a Copa do Mundo no Brasil ou um carro que pode andar no deserto do Atacama, mas que vai ficar parado no trânsito da cidade.

Nossa concepção de futuro se apequenou. Restringiu-se a materialidades logo ali. Ao reduzir nossos sonhos à compra de objetos de consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida. A rejeição do futuro nos ajuda a entender a mediocridade do nosso presente. E de nossas aspirações. Explica por que, ao perguntar a alguém qual é o seu desejo, esta pessoa possa responder que é um Ipad. E ninguém estranhe.

Não é curioso um monte de gente acreditar que o mundo vai acabar em 21 de dezembro de 2012 por causa da suposta profecia de um povo para o qual o fim do mundo chegou muito antes, pelas mãos dos espanhóis? Parece ser mais fácil gastar energia e teses com um fim de mundo mirabolante do que encarar que, sim, o nosso mundo pode acabar. Não por profecias, mas como consequência de nossas ações e de nossas escolhas. Não em 2012. Mas progressivamente, como já vem acontecendo.

Dá para entender por que o fim do mundo dos maias é mais palatável. Ele não depende de nós. Não precisamos nos responsabilizar por ele. Qualquer saída é mágica. Podemos continuar sendo os mesmos cretinos com relação ao meio ambiente e aos outros, porque o apocalipse cai do céu. Com a realidade do esgotamento do planeta é mais complicado. Ela exige de nós profundas mudanças de hábitos de consumo e de comportamento. Muito além de fazer uma reciclagem de lixo mais ou menos e achar que por isso estamos fazendo a nossa parte. Exige de nós um novo tipo de ser – humano – e de estar no mundo.

É verdade que o planeta está sofrendo. E uma variedade de espécies de flora e de fauna desaparece pela nossa sanha. Mas não é o planeta que vai acabar se continuarmos nesta toada. Somos nós. Tempos atrás, assisti ao documentário De volta a Bikini (National Geographic), do mergulhador Lawrence Wahba. O documentário conta o que aconteceu ao atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, onde os Estados Unidos testaram armas nucleares nos anos 40 e 50. Numa exibição de seu poderio bélico, expulsaram a população e destruíram a natureza de uma forma atroz ao detonar duas bombas atômicas como as de Hiroshima e Nagasaki. Assim como a Bravo, a primeira bomba de Hidrogênio, o mais potente artefato lançado pelos EUA em sua história.

Passados 60 anos, o atol se recuperava, os peixes voltavam e a vida se refazia. Ao assistir ao documentário, me choquei menos com a capacidade de destruição humana, já que esta é bem conhecida. O que me chamou a atenção foi o fato de que a vida se impunha sem nós. É o que possivelmente aconteça com a Terra depois que nos matarmos. Sem nós ela se renovará e seguirá seu curso. A passagem humana será apenas um lapso de tempo – nossos milhares de anos um nada perto dos milhões em que os dinossauros dominaram o planeta como espécie. Uma história curta que ninguém vai contar.

Em uma palestra no ótimo Café Filosófico, programa da TV Cultura, a filósofa Viviane Mosé se arriscou a ser mal interpretada. Não lembro as palavras exatas, mas ela sugeria que há algo de bom no aquecimento global. Pela primeira vez algo nos une para além das convenções arbitrárias, das ideias de nação, de religião, de etnias, de ideologias e de crenças – para além de tudo o que nos divide e nos afasta. Ainda que os mais frágeis e os mais pobres sejam os primeiros a sofrer, estamos todos no mesmo planeta que se esgota pelas nossas ações. Desta vez, não vai dar para os mais ricos saírem voando numa nave espacial de luxo para um planeta novinho em folha. E, ainda que estejamos todos mortos, já que assistimos apenas ao início de um possível fim de mundo, é dos nossos descendentes que se trata. Por paradoxal que pareça, o aquecimento global nos permite olhar para o planeta e para nós como os astronautas em órbita: sem divisões.

É uma chance. Uma oportunidade de sermos melhores. Porque talvez só sendo melhores possamos voltar a ter um futuro onde ancorar. Um que valha a pena imaginar e que impulsione as ações do nosso presente. Para isso, é preciso abrir mão das várias formas de anestesia diante desta realidade. Inclusive abdicar da exigência de uma felicidade que não se conecta à vida, que só é possível alcançar por alguma droga – legal ou ilegal.

Vale a pena analisar a literatura produzida nestes tempos sem futuro – ou melhor, com um futuro que ninguém quer. A literatura de qualidade, claro – e não as catastrofistas de ocasião. Talvez o exemplo mais interessante seja A Estrada (Alfaguara), do excelente Cormac McCarthy, levada aos cinemas por John Hillcoat e já em DVD. Nele, um pai e seu filho empreendem uma jornada num mundo pós-apocalíptico. É uma fábula sobre esse tenebroso futuro sobre o qual especulamos, mas é também uma narrativa sobre a única coisa que nos salva – o amor.

Quanto mais vivo e olho o mundo, aumenta em mim a convicção de que só o amor faz sentido e dá sentido. Não este amor umbigólatra por si mesmo. Ou no máximo pelos seus. Mas o amor que só se justifica no outro, que abarca a humanidade inteira. Enquanto tentarmos salvar “o nosso”, que é o de cada um, não temos a menor chance. Desta vez, os espertos de sempre não vão se safar. Ou pelo menos não por muito mais tempo que todos os outros.

Quando é a sobrevivência da espécie que está ameaçada, não há salvação individual. Ou nos tornamos melhores todos, nos reinventamos como homens e mulheres novos a partir das necessidades de um presente que está aí ou continuaremos assistindo ao nosso fim anunciado, aceitando as progressivas limitações que já contaminam nossa vida. Estes novos homens e mulheres precisam estar conscientes da precariedade da condição humana e de sua insignificância na história do planeta. É pelo reconhecimento da fragilidade que nos une que podemos nos tornar grandes de uma maneira inédita, uma que nos permita viver e deixar viver.

Há tantos clichês, alguns até bem bonitos, sobre viver o presente. Somos povoados por orientalismos neste sentido. Mas não é simbólico. Não desta vez. Tudo o que temos agora é esse presente esticado. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Mas a questão é exatamente estar presente – no presente.

E não anestesiados de várias maneiras, como tem acontecido. Não se trata do imperativo do gozo pelo gozo, do prazer instantâneo. Não é por acaso que às vezes saímos da mesa do bar onde bebemos e alguns de nós se drogam na companhia de estranhos próximos, mas que continuam estranhos apesar do riso, com a sensação de vazio, de que nada de importante aconteceu de fato. De que por maior que tenha sido a nossa euforia e a nossa performance, não estávamos ali. Ninguém estava.

Não é isso que é estar presente no presente. Viver no presente é ser capaz de criar sentido. Escutar o outro e a si mesmo. Se arriscar a ser transformado por esse contato. Só é possível estar no presente amarrando, ao mesmo tempo, o passado e o futuro. Só é possível mudar se arriscando a estar. No presente. Ainda que às vezes doa. Há um filme muito bonito sobre a coragem de abdicar de uma vida anestesiada e se arriscar a estar no presente. Pode ser encontrado em qualquer locadora. E fala dessa geração que começou a temer o futuro. Em português, se chama “Hora de voltar” (Garden State, de Zach Braff).

Temos alguma chance se passarmos a determinar nosso estar no mundo por uma atitude amorosa com as pessoas e com o planeta. Começando pelas pequenas ações de todo dia, da relação com o motorista de ônibus e com a moça da padaria ao que realmente precisamos comprar e consumir, já que qualquer objeto tem um custo em recursos naturais e vai demorar a se decompor. Nenhum de nossos atos é impune. E agora, mais do que nunca, não é mesmo. Pagaremos o preço ainda nesta vida.

É uma transformação profunda. E que dá trabalho. Mudar é dificílimo. Acho que a maioria das pessoas vai continuar consumindo e se anestesiando loucamente. Sem nem mesmo perceber que é estranho ter de comprar água não contaminada ou ter dor no peito depois de uma caminhada, como acontece agora em São Paulo. Não tenho muita esperança. Mas me agarro à pouca que tenho. A de que mais gente desperte e esteja presente no presente. Para, quem sabe, reconquistarmos um futuro que valha a pena imaginar.

(Publicado na Revista Época em 30/08/2010)

Rir de si mesmo é ato civilizatório

Por que o humor é essencial para as eleições e para a vida

“Nunca vi um fanático com senso de humor”. A frase foi dita pelo escritor israelense Amos Oz, numa série de conferências sobre o mundo pós 11 de setembro de 2001, na universidade de Tübingen, na Alemanha. Ele prossegue: “Nem nunca vi uma pessoa com senso do humor se transformar num fanático, a não ser que ele ou ela tenham perdido o senso de humor”.

Lembrei deste ensaio quando vi os humoristas brasileiros promoverem, como disse Marcelo Tas, esta coisa seriíssima de ir às ruas para protestar contra a proibição de fazer humor com os candidatos em programas de rádio e de TV, como aconteceu neste domingo no Rio de Janeiro. “Humoristas são criaturas que não nasceram para organizar passeatas. Mas, diante de tamanha palhaçada no processo eleitoral brasileiro, alguém tinha que fazer alguma coisa. Mesmo que seja uma passeata de palhaços.” Numa entrevista à BBC de Londres sobre o tema, Tas, que comanda o programa CQC nas noites de segunda-feira na TV Bandeirantes, afirmou que não é simples lutar contra ignorância. Não é mesmo.

Mas, pensando em Amos Oz, me parece que pode ser ainda mais complicado: esta é uma luta contra a intolerância. Ainda que a intolerância e a ignorância possam ser feitas da mesma matéria. E que ambas venham disfarçadas, como muitas outras coisas que estão tentando nos impingir, pela embalagem cor-de-rosa do politicamente correto.

A resolução aprovada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) estabeleceu que, desde 1º de julho, as emissoras estão proibidas de “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido político ou coligação, bem como produzir ou veicular programa com esse efeito”. A decisão se baseia no artigo 45 da lei 9.504, de 1997. Quem a infringir, pode ser multado em até R$ 106.410 – valor que dobra em caso de reincidência. A norma serviria supostamente para, entre outras coisas, evitar que características e fragilidades de toda ordem dos candidatos fossem usadas com finalidades de humor em qualquer programa. E, assim, evitar que fossem “difamados” e, como consequência, “prejudicados” pelo riso dos eleitores.

Consigo entender facilmente por que uma ditadura teme o humor, a ponto de encarcerar, torturar e até matar quem o pratica. Mas por que razão uma democracia decide proibir o humor com candidatos a um cargo eleitoral? Afinal, de que estes legisladores têm medo? Por que seriam os candidatos a um cargo eletivo os únicos intocáveis? Qual é a ameaça que justifica a proibição de rir?

Engana-se quem pensa que o humor é algo trivial. Se fosse, aliás, não haveria tal proibição. Engana-se também quem pensa que possamos prescindir dele. O humor não é supérfluo, é essencial. Quando se consegue transformar uma tragédia em humor estamos consumando um ato de profunda subversão. Nos apropriamos de uma verdade para, pelo riso, torná-la ainda mais nua. Feito por homens e mulheres mascarados, por uma maquiagem de palhaço ou pelos trejeitos de um personagem, o humor é aquele que arranca as máscaras. Seja das grandes vilanias, seja das pequenas mazelas da vida cotidiana.

Rir de si mesmo é um ato civilizatório. Em qualquer eleição, talvez uma das informações mais importantes sobre um candidato é justamente se ele é capaz de rir de si mesmo. Se não for, pense bem.

Não ser capaz de rir de si mesmo é ser capaz de muitas coisas. A maioria delas bem ruins. Quem se considera imune ao ridículo, se coloca acima de todos os outros. Acredita que tudo o que faz é tão sério, é tão certo, é tão importante que, ao estar tão abarrotado de razão, não sobra espaço nem para dúvidas nem para piadas. Todos nós somos patéticos em alguma medida – e esta consciência é parte do que nos torna humanos. Quem não consegue rir de si mesmo, quando tropeça no tapete – sim, porque todos nós enrolamos os pés uma ou muitas vezes em diferentes tapetes ao longo da vida – manda demitir algum suposto responsável pela queda que acredita não lhe pertencer. Ou matar, conforme o nível de tirania do lugar onde vive.

Quem não consegue rir de si mesmo acredita que suas crenças – sejam elas ideológicas, morais ou religiosas – são mais certas que as de todos os outros. E se são mais certas devem ser impostas sobre as de todos os outros. O raciocínio seguinte é que, se as suas crenças têm mais valor, logo ele, a pessoa ou grupo que detém estas crenças, é melhor que todos os outros. E se é melhor que todos os outros a sua vida vale mais do que a de todos os outros. Logo todas as outras vidas valem menos e são sacrificáveis.

Ser capaz de rir de si mesmo é um upgrade civilizatório. Você consegue imaginar Bin Laden achando graça de alguma bobagem que fez, de algum escorregão na caverna? Você é capaz de conceber Adolf Hitler se olhando no espelho e achando seu bigodinho um pouco ridículo ou pensando que afinal suas pinturas não eram mesmo tão boas assim? Você consegue imaginar algum destes facínoras que infelizmente progridem no mundo em todas as épocas se perdoando pelo seu ridículo? Não, claro que não. Mas é fácil imaginar o que fariam com quem risse deles.

E nós? Somos capazes de rir de nós mesmos, seja na vida privada ou na pública? Não custa lembrar que o Brasil tem grandes dificuldades quando é alvo do humor alheio. Quando a família Simpson desembarcou no Rio de Janeiro no episódio “O Feitiço de Lisa”, houve uma avalanche de protestos. Na animação, o personagem Bart era atacado por pivetes e Homer sequestrado por um taxista. Em seguida, levado até a Amazônia, que ficava bem ao lado. Ao tirar o saco da cabeça de Homer, um dos bandidos diz: “Aproveita pra olhar porque estamos queimando ela toda”. Há cobras e macacos no Rio, sem contar que apresentadoras de TV balançam os peitos num programa infantil chamado “Telemelões”. Na época, a Riotur ameaçou processar a Fox, produtora do seriado de animação, e por causa disso virou piada na imprensa mundial.

Mais recentemente, o ator e comediante americano Robin Williams causou polêmica ao fazer uma piada no programa de David Letterman com a escolha do Rio de Janeiro para sediar os jogos olímpicos de 2016. Depois de dizer que Chicago, sua cidade natal, entrou em “desigualdade de condições” na disputa, brincou: “Espero que ela (Oprah Winfrey) não esteja chateada de perder as Olimpíadas. Chicago enviou Oprah e Michelle (Obama). O Brasil mandou 50 strippers e meio quilo de pó. Não foi justo”. Há quem nunca mais tenha visto os filmes de Robin Williams depois de tal ofensa à imagem nacional.

Alguns de nós – ou a maioria, como parece ter sido o caso nos dois exemplos citados – podem achar as piadas de mau gosto, preconceituosas ou mesmo injustas. Ninguém é obrigado a achar engraçado. E daí? Será que os estereótipos vieram de Marte e não contêm nada próximo de alguma verdade? Será que os humoristas do mundo inteiro teriam de passar por uma censura prévia para analisar se seus esquetes e sátiras são agradáveis para os brasileiros? O humor é necessariamente do contra. Querer que o humor seja politicamente correto é matar qualquer possibilidade de humor. Não deixa de ser curioso que num país tão gaiato em muitos sentidos seja bem difícil aceitar piadas com nosso umbigo. Já quando o assunto é o outro, aí adoramos. E achamos que está tudo bem.

A questão é que talvez não seja tão por acaso que uma lei estapafúrdia destas, proibindo de satirizar os candidatos de uma eleição, esteja aí há mais de dez anos. Sempre vale a pena olhar um pouco para dentro para perceber o quanto estamos aptos – seja como povo, seja como indivíduo – a rir de nós mesmos. Ainda que seja como princípio de uma reação a verdades que tantos nos incomodam. Talvez esta lei tenha mesmo algo a ver com a gente – e não apenas saído de cabeças mirabolantes. Neste quesito, temos muito a aprender com os Estados Unidos, onde qualquer um – e especialmente o inquilino da Casa Branca – é alvo de todo o tipo de humor como parte da convivência democrática.

Como afirmou Gustavo Binenbojm, professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ao jornal O Globo: “A atual lei eleitoral é própria de sociedades que passaram por períodos de ditadura militar e ainda não atingiram a maturidade da liberdade de expressão. O que é essa maturidade? Defender a liberdade de expressão ainda que, circunstancialmente, ela possa se voltar contra você”.

Fazer humor com os políticos, com os governantes e com os poderosos é obrigatório. É imprescindível. Isso faz com que sejam lembrados que, como todos os mortais, eles também são ridículos. Iguala-os. Pinça-os das estratosferas da vaidade e da bajulação onde vivem e devolve-os ao rés do chão. Os humoristas, garantidos pela liberdade de expressão existente em qualquer democracia que mereça o nome, ajudam os políticos, governantes e poderosos a se manterem no seu real tamanho – nunca muito diferente daquele do mendigo da esquina. Ou do seu eleitor. E nos ajudam a lembrar que eles pertencem ao mesmo mundo que nós. Ao mesmo ridículo.

Não é pouca coisa o que nos tiraram nestas eleições ao blindar os candidatos contra o humor. Ainda assim, não fosse o barulho dos humoristas, estaria passando batido. Isto também é bem assustador: parece que estamos ficando cada vez mais passivos diante de tantas proibições. Ninguém está apedrejando ou executando um humorista que ousa fazer humor com um candidato, como poderia acontecer nos regimes totalitários, mas criaram uma lei para nos impedir de humanizá-los com nosso riso. De lembrá-los, a eles e a nós, que somos todos patéticos em alguma medida. Esta, aliás, é uma grande qualidade do humor: ao diferenciar sua vítima, a iguala.

Neste mesmo ensaio sobre a natureza do fanatismo, Amos Oz afirma que a melhor maneira de imunizar os povos contra o germe da intolerância seria distribuir “pílulas humorísticas” às populações do mundo, caso isso fosse possível. Como não é, acho que no nosso caso poderia valer a pena lembrar que vivemos numa democracia duramente conquistada e nos somar aos humoristas para reivindicar a devolução do nosso direito de rir dos candidatos. E do direito de lembrá-los de que devem rir de si mesmos todos os dias. Assim, quem sabe, eles não transformem o país numa piada sem graça depois de eleitos.

Não deixa de ser curioso que, ao se lançar seriamente como candidato nestas eleições, o palhaço Tiririca faça sua campanha com os seguintes bordões: “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”. Ou: “Vote no Tiririca, que pior que tá não fica”.

(Publicado na Revista Época em 23/08/2010)

Alison e a ,

Delícias e tormentos de uma tradutora do Brasil

Alison Entrekin é uma mulher singular de várias maneiras. Por exemplo. Um dia ela acionou a secretária eletrônica do seu telefone e ouviu a voz que todas as mulheres do Brasil sonham ouvir no seu aparelho. Sim. Ele. Chico Buarque de Holanda. Ligou para dar seu telefone a Alison. E pediu que ela ligasse de volta. Tinha assuntos urgentes a discutir com ela. Alison pensou no que eu e você e até mesmo um leitor seguro de sua masculinidade pensaria? Não. Alison vislumbrou aqueles olhos de ardósia? Não. Cantarolou “O meu amor tem um jeito manso que é só seu/E que me deixa louca quando me beija a boca/A minha pele toda fica arrepiada/E me beija com calma e fundo/Até minh’alma se sentir beijada…”? Também não. Alison quase morreu? Sim. Mas não como eu e você e mesmo o leitor seguro de sua masculinidade. Alison quase morreu de medo. Alison é uma mulher que quando ouve a voz de Chico Buarque na secretária eletrônica só pensa em vírgulas. E ponto final.

A australiana Alison Entrekin era dançarina profissional. Machucou a coluna quando dançava nos Estados Unidos e foi obrigada a encerrar a carreira. Pensou então no que mais gostava depois de dançar. E lembrou os cem anos de solidão do colombiano Gabriel García Márquez. Voltou para a Austrália para fazer curso universitário de criação literária e depois virou professora. Queria ser escritora quando atravessou o mundo e encontrou o Brasil no seu caminho 14 anos atrás. Sentiu-se dentro de um romance de realismo fantástico nos primeiros anos em que viveu no país. Casou-se com um brasileiro e mora em Santos. Tornou-se uma tradutora obstinada pela busca da palavra exata ao verter a literatura brasileira para o inglês. Budapeste. Cidade de Deus. O Filho Eterno. Eles eram muitos cavalos. Alison traduziu algumas das obras de sintaxe mais complexa da literatura contemporânea brasileira.

Vista de perto ela é uma mistura de Nicole Kidman com Olivia Newton-John. Do tamanho da última. Mas depois de conhecê-la a gente tem vontade de se referir a ela sempre com aumentativos. Trabalha de segunda a segunda em uma quitinete defronte à sua casa. É lá que moram seus 45 dicionários e um cachorro chamado Patão. Uma mistura de pincher e fox paulistinha que resultou proporcionalmente quase tão mignon quanto ela. E também com uma personalidade superlativa.

Na mesa de trabalho de Alison há uma estátua do deus indiano Ganesha. Ela passa a mão em sua cabeça de elefante quando está com algum problema intrincado como um recado de Chico Buarque. Perto dela há um antúrio que chegou ali com três folhas e agora está com oito. É com ele que Alison treina seus discursos antes de discutir pontuação com os escritores que traduz. Na estante é possível encontrar tudo sobre palavras em português. Até mesmo um dicionário de candomblé e um de portoalegrês. Mas o que Alison queria mesmo era um dicionário de maconha. Logo mais ficará claro o porquê.

Conheci Alison em um encontro literário na Casa de Cultura de Paraty promovido pelo Itaú Cultural neste início do mês. Ela desvelou a língua portuguesa de uma forma que mudou o meu jeito de olhar para sempre. Eu jamais havia imaginado que traduzir pudesse ser algo ao mesmo tempo tão fascinante e tão enlouquecedor. Alison percebeu detalhes em livros que li que a mim tinham passado despercebidos. Pelos olhos dela adivinhei belezas que haviam me escapado. Percebi que ao despir a língua os tradutores descobrem uma nudez do país invisível para nós que aqui nascemos. Ampliam nosso olhar sobre nós mesmos. E nos provocam.

De imediato quis compartilhar esta experiência com vocês aqui nesta coluna. E pedi uma entrevista. Conversamos mais de uma hora na mesa do café da manhã. E quando eu tinha capturado todas as palavras meu gravador digital (ah que saudades das fitas!) saltou da minha mão e eu perdi Alison inteira na queda. Gentilmente ela aceitou ressuscitar todas as suas frases e ainda aumentá-las em uma hora a mais de conversa. Só fomos interrompidas pelos latidos de ciúme do Patão. E por uma tentativa dele de suicidar-se comendo uma abelha.

Esta é uma entrevista para ser lida sem pressa. Foi feita como um presente para quem ama as palavras e a língua portuguesa. Em homenagem a Alison Entrekin fiz este texto de apresentação sem usar uma única vez a diminuta figura que lhe provoca pesadelos com suas enormidades.

Quando você ouviu a língua portuguesa pela primeira vez?
Alison Entrekin – Havia uma festa da comunidade brasileira na minha cidade (Perth, Austrália). Uma amiga tinha vindo ao Brasil e aprendido a dançar lambada. Na festa não teve lambada, mas teve muita música. Achava que o português era algo mais próximo ao espanhol e descobri que não era nada disso. Me lembrava o francês, pelo som. Quando você escuta uma língua e não tem ligação com o sentido, só escuta a musicalidade. Achei uma língua lindíssima, com uma sonoridade diferente. As mulheres falavam num tom mais alto. E depois de muitos anos notei que falo inglês num tom mais baixo e português num tom mais alto. As palavras parecem não terminar, na sonoridade do português. Quando você escuta línguas asiáticas, elas parecem sílabas picadas. Quando você escuta o português parece uma palavra interminável, porque as ligações entre palavras são suaves. Isso me encantou.

ÉPOCA – Se a língua fosse um personagem, como você o descreveria?
Alison – Vejo o Brasil e a língua portuguesa como uma coisa tão múltipla que não consigo enxergar como uma coisa só. Eu traduzo gente do país inteiro e parece que toda vez estou aprendendo uma nova língua. Um novo dialeto, novas gírias, um novo jeito de falar a língua. Estou sempre lidando com estas pluralidades, não consigo dar uma identidade só. São vários personagens ao mesmo tempo, mulheres e homens.

Você diz que o inglês é mais homogêneo, pelo menos na Austrália. É um inglês só. E no Brasil são vários brasis e várias línguas. O que isso revela do Brasil?
Alison – A Austrália particularmente é um lugar que não se nota tanta diferença de sotaque. E é um país quase tão grande quanto o Brasil. De um lado a outro, quase 5 mil quilômetros, não dá para saber se a pessoa é de Sidney ou de Perth. Você pode perceber que é do interior, mas é uma diferença muito ligeira. E a condição social é mais ou menos igual, então a língua não precisa se desdobrar para representar estas realidades todas. O Brasil é geograficamente vasto, teve muitas colonizações, em ondas de imigrantes, e tem muita diferença social. A palavra otário, por exemplo, que aparece em Cidade de Deus, livro do Paulo Lins. Era a gíria que usavam para os caras com emprego fixo, que tinham de bater cartão todo dia e cumprir horários. Acho fantástica, porque sublinha a rebeldia e o ponto de vista dos malandros, que achavam um absurdo serem subordinados a alguém, trabalhar duro para não sair do lugar, para continuar na miséria. Então, para eles, os otários eram os trabalhadores, aqueles que não viviam do crime. Mas não era uma gíria usada pela classe média, que encara o trabalho de forma diferente, por causa de todo um contexto de vida diferente.

Você diz que o tradutor tem de desconfiar do sentido das palavras o tempo todo. Como é isso? Me conta a história de uma palavra intrigante.
Alison – O tradutor trabalha com o desconfiômetro ligado o tempo todo. É necessário fazer as perguntas mais bestas, mas é necessário. Se faço dez perguntas bestas e, se uma delas evita um erro de tradução, valeu a pena. A palavra trampar, por exemplo. Apareceu em Cidade de Deus. Eu conhecia trampar como gíria para trabalhar. Neste contexto me parecia que não cabia. O livro falava de um malandro que mora no morro, se sustenta roubando, e o irmão travesti aparece por lá. E ele não gosta que apareça, tem vergonha porque o irmão é travesti e quer que ele vá embora. Pega então coisas que ele roubou e dá para o irmão. Dá o relógio. E fala: “É pra tu ir trampar lá no Estácio”. Pensei: “Mas o que o travesti vai fazer trabalhando no Estácio?”. Comecei a perguntar para algumas pessoas ao meu redor se trampar podia ter outro significado. E todo mundo falava: “Não, é trabalhar”. E aquilo estava me incomodando. Finalmente fui perguntar para o autor, o Paulo Lins. Ele explicou que não, naquele contexto, naquele momento histórico, significava vender. Faz todo sentido. Dá um relógio pro irmão travesti vender e ganhar uma grana. Mas este tipo de coisa leva horas, dias, às vezes semanas e até meses.

Como fica este incômodo na tua vida cotidiana? A palavra fica ali, te incomodando o tempo todo?
Alison – Geralmente aparece quando estou lavando louça ou lavando o cabelo. Sempre estou com as mãos ocupadas e envolvida com algum tipo de produto de limpeza. São as horas em que estou mais relaxada. Só com meus pensamentos e fazendo alguma coisa realmente banal. É aí que me vêm as melhores respostas, as melhores soluções.

Me conte alguma resposta que surgiu assim.
Alison – Em geral é quando o autor fez uma brincadeira linguística e eu estou atrás de algo para fazer o encaixe. Tem uma no Leite Derramado, do Chico (Buarque). É bonitinha esta palavra. Bulício. Ele usa uma palavra no começo e depois volta a ela muitos capítulos depois. Cria um eco. E conforme o livro vai indo há cada vez mais ecos, as repetições vão ficando maiores. Todas as vezes em que os personagens vão se amar, ele usa a palavra bulício. A empregada sabia que era hora de sair para o armazém ao pressentir nosso bulício. Ou em outro momento, leva a criança para a praia porque também pressentiu o bulício deles. Não é uma palavra ordinária, é uma palavra especial, colorida, que dá uma ideia muito legal. Aí fiquei pensando que palavra vou usar em inglês. Usei bedlam. É caos, comoção, e o legal é que embutido nesta palavra tem bed, que é cama. Encontrei esta palavra tomando banho.

Quando você olha para a palavra, já sabe que ela vai te dar trabalho?
Alison – Às vezes não. Elas me pegam de surpresa. Quando leio o livro em português, sou incapaz de entender o tamanho da encrenca. Sempre leio primeiro como leitora, acho que tenho de entender o que me provocou como leitora e não como tradutora, porque são coisas muito diferentes. Tradutor é chato, tradutor vai pegar em cada vírgula, cada nuance da palavra. Quando li O filho eterno, do Cristovão Tezza, achei um livro lindíssimo e foi uma leitura rápida, uma leitura que flui. Tive uma sensação de vertigem… Aonde ele vai agora, com estas frases imensas? Eu lia e ia seguindo. Quando comecei a fazer a tradução, nem tinha pensado na questão do presente histórico que ele usa o tempo inteiro. Em português funciona, em inglês não. Então metade do livro já foi traduzida para outro tempo verbal, o que já é uma baita de uma diferença. E também todas as outras questões linguísticas muito particulares da sintaxe dele ficaram desencaixadas, por causa desta grande mudança. E eu não tinha nem atinado pra isso lendo o livro.

Foi o seu livro mais difícil?
Alison – Foi. Quando encontrava uma solução para uma coisa, esta solução atrapalhava outra que tinha encontrado antes.

O desafio maior do tradutor é encontrar as palavras que levem à mesma sensação que o autor quis dar em sua própria língua? Como esta vertigem, por exemplo, que você sentiu lendo O filho eterno?
Alison – A questão é a sintaxe, é a pontuação. Acho que as emoções humanas e as sensações são muito iguais de um lugar para o outro. E acho que todas as línguas têm palavras adequadas. A questão é de sintaxe, de estrutura da língua, das orações, das ligações que se faz entre uma oração e outra. E eu vou me deparando com isso em cada autor que traduzo. Os autores contemporâneos brasileiros brincam com a pontuação, não obedecem à norma culta. Nos lugares onde pela norma culta deveria ter um ponto final, eles põem uma vírgula e continuam. Pela minha experiência, 90% dos autores de ficção que traduzo fazem isso, continuar onde deveria ter um ponto final. Acho que o português se presta mais a isso. Se todo mundo brinca de uma forma ou de outra com a pontuação, isso cria uma geração de leitores que relaxam quando encontram esta pontuação. Não se espantam com isso, nem estranham. Mas se eu, na tradução, obedecer a esta pontuação, crio um estranhamento tão maior em inglês do que em português que, nas poucas vezes em que tentei fazer isso, os comentários do editor são de que é muito estranho. Teoricamente, se um autor quebra uma regra numa língua e existe a mesma regra na outra língua, por que eu não posso obedecer isso? Faz sentido. Só que fui descobrindo que quebrando a mesma regra não criava o mesmo efeito. Isso me fez pensar. Meu dever como tradutora é reproduzir a experiência de leitura acima de tudo. E fazendo uma coisa aparentemente igual, na verdade criava-se outra experiência para o leitor. E se cria outra experiência, então não fiz meu trabalho direito.

A língua portuguesa é mais flexível que a inglesa?
Alison – Poder colocar o sujeito antes ou depois do verbo dá uma grande flexibilidade à língua. As palavras podem mudar de lugar de uma forma bem elástica na construção de uma oração. Em inglês o sujeito tem de estar antes do verbo. Eu fiz a tradução de uma oração do português para o inglês em que o sujeito que estava no final da frase vai para o início. Só que este sujeito que estava no final também servia como o sujeito da próxima oração. Em inglês não pode. O natural seria colocar um ponto final ou fazer um desdobramento maluco para que tudo possa caber de outra forma. Aí vai tomando outro formato e nisso podemos perder a fluidez do original.

Quando você começou a traduzir e percebeu o tamanho da encrenca, como você diz, como se virou?
Alison – Lembro que fui atrás das traduções dos livros do (José) Saramago, porque ele tem uma pontuação muito particular, muito dele. Mas ele é tão consistentemente assim em tudo que o tradutor não teve escolha, teve de obedecer. E funciona porque depois de uma página o leitor já está acostumado, ele passa a sentir assim. Meu problema é que eu trabalho com autores que não são sempre assim, são às vezes ou pela metade do tempo. O exemplo que mais me lembro é o Budapeste, (de Chico Buarque), onde há muitas orações ligadas por vírgulas. Esta foi a primeira vez que eu realmente parei para pensar: “Meu Deus, o que eu vou fazer com esta pontuação?”.

Como foi este primeiro contato com o Chico Buarque?
Alison – Isso foi antes de eu conhecê-lo. Ele deixou um recado curto na secretária eletrônica. Passou o telefone dele. Disse que tinha alguns capítulos traduzidos e queria falar sobre a pontuação: “Você usa ponto final onde eu não usei”. Eu morri de medo: “Meu Deus do céu, ele quer falar de pontuação comigo!”. Agora eu sei que o Chico é uma pessoa muito legal, que dá para conversar. Mas na época eu só pensei: “Jesus, vou morrer agora”. Aí eu expliquei para ele este estranhamento que causava. E ele me disse que não pretendia nenhum estranhamento no original. A solução que eu achei na época foi usar de duas maneiras. Havia momentos no livro em que José Costa (o personagem narrador) ficava obcecado por alguma coisa e os pensamentos vinham se atropelando. Nestes momentos, achei que usar uma vírgula onde no inglês usamos ponto final transmitia esta angústia dele. E não criava estranhamento pelo contexto, porque todo o contexto era uma coisa alucinada, confusa. Nestes trechos eu mantive uma pontuação muito mais fiel ao original. Em outras partes, onde ele estava contando a história com mais calma, às vezes usava ponto e vírgula, às vezes deixei passar algumas vírgulas que estruturalmente não causavam tanto estranhamento, e nos momentos em que faria o leitor parar por um estranhamento vindo da pontuação, aí sim, ponto final. Porque o ponto final, para nós de língua inglesa, é invisível. Quando autores de língua inglesa brincam com a pontuação, brincam mais com o ponto final, com frases curtas. Visualmente, se você tem uma página que é uma única frase cheia de vírgulas numa língua e, na outra, são 20 frases curtas, com um monte de pontos finais, a coisa fica muito diferente. Não é pra tanto. É preciso encontrar uma maneira de andar sobre esta corda bamba.

Você ainda fala de vírgulas com Chico Buarque?
Alison – Depois que tive contato com ele, deixei o medo de lado. É um autor generoso, bem humorado. Acompanha a tradução com olhos de águia, mas não atrapalha em nada. Ele entende as dificuldades de tradução e está sempre disposto a ajudar. E, de vez em quando, ainda pergunta sobre vírgulas. É impossível não perceber o quanto ele se importa com os mínimos detalhes e, como eu também me importo com os mínimos detalhes, acho ótimo. Adoro os livros dele e me divirto com a pessoa também.

A grande questão da tradução é a vírgula, então?
Alison – Eu tenho pesadelos com vírgulas. Fico muito feliz quando consigo dar o tom certo e achar as palavras certas. Porque é possível manter a graça do original na maioria das vezes. Mas nesta coisa da pontuação eu estou há anos batalhando com isso e não acho uma solução. Por isso toda vez que vou traduzir um autor que trabalha com a pontuação desta maneira eu tenho de passar por tudo isso de novo. Uma vez que você sai da norma culta, em qualquer língua, você está num campo subjetivo, que não pertence a ninguém. Que pertence ao mesmo tempo a todos e pertence ao indivíduo. Então não há mais regras para a tradução, é muito da cabeça de cada um. Pego um novo texto que tem isso, vírgulas, e fico analisando o texto. Que efeito estas vírgulas criam, por que o autor fez assim e não do jeito tradicional. Depois de compreender a intenção do autor, preciso encontrar um jeito de manter este efeito para que o leitor de língua inglesa possa ter esta mesma experiência, sem maior ou menor estranhamento que o leitor do original.

Você ama ou odeia as vírgulas?
Alison – Atualmente odeio. (ri muito)

O que esta liberdade dos escritores com a pontuação, com as vírgulas, revela sobre o Brasil?
Alison – O brasileiro tem uma relação mais relaxada com regras e com leis. Ele obedece ao que ele acha bom obedecer e não obedece a aquilo que ele acha que pode não obedecer, que não vai ser pego. Eu vejo isso pela sonegação, pelos motoristas passando pelo semáforo vermelho no meio da noite.

Você acha que este comportamento é similar no uso da língua?
Alison – Acho que é uma hipótese, não tenho certeza.

Mas há um lado bom nesta flexibilidade? O que você citou não é muito bom…
Alison – O próprio jeito do brasileiro viver é assim. O brasileiro não entra em pânico. Acho que porque historicamente passou por tudo. Economicamente, com ditaduras, com o (Fernando) Collor. De forma geral, é um povo que vive muito o hoje, é um povo menos tenso, menos preocupado. Eu cheguei aqui no Brasil e logo fui para a praia. Queria conhecer esta praia linda. Aí coloquei um chapéu grande, coloquei um maiô, peça única, coloquei uma saia, porque na Austrália a gente não mostra a bunda, coloquei óculos e coloquei uma sandália. As mulheres estavam só de biquíni e um biquíni bem pequeno. Tanta gente olhou pra mim como uma criatura no zoológico que eu comprei um biquíni no dia seguinte.

Um bem pequeno…
Alison – Fui para a praia e me senti pelada naquele biquíni, mas ninguém me olhava, sinal de que eu estava dentro da norma. Aquela coisa de regra, de se preocupar em fazer tudo certinho, a gente tem muito isso. Se eu desobedecer a uma regra de trânsito, se eu sem querer passar por um sinal vermelho, na Austrália já estaria cortando os pulsos. E brasileiro deixa pra lá.

O que este contato profundo com a nossa língua te mudou?
Alison – A língua é um meio de a cultura chegar à pessoa. Conforme fui vivendo, estou há 14 anos no Brasil, fui relaxando com relação a certas coisas, nesta preocupação com regras. Outro dia tive de ir à Polícia Federal avisar da minha mudança de endereço. Eu não sabia, mas estrangeiro tem 30 dias para avisar que mudou de endereço. Aí fui lá já meio brasileira, quis dar uma de que não entendia esta regra de 30 dias e ver se conseguia não pagar a multa. Passei o comprovante do endereço novo. A funcionária perguntou: “Há quanto tempo você se mudou?”. Eu não aguentei e tive de falar: “Há três anos”. Depois contei para o meu marido e virei a piada do final de semana entre todos os amigos: só gringa para pagar multa.

Como você conta o Brasil para seus amigos?
Alison – No começo foi um momento de deslumbramento com a beleza física do país. Todo gringo fica um pouco louco quando vem pra cá. Essa liberdade das pessoas, esse jeito relaxado de levar a vida, de tomar uma saideira e não se preocupar com o dia seguinte. Isso é encantador porque é uma liberdade que a gente não se dá, pelo menos no meu país e em outros países de língua inglesa. Me encantei muito com a beleza. Santos é uma ilha, fica no meio de uma enseada cercada de ilhotas e é cheia de mato. Eu sou de um país muito seco, um deserto. E lá todas as plantas são mais para o marrom que para o verde. E aqui tem este verde descendo a serra. Quando cheguei esta coisa de emails ainda estava no comecinho. Então comprei um fax para escrever cartas a mão e passar por fax para as pessoas. Em meus primeiros anos vivendo no Brasil tive uma sensação de estar vivendo uma aventura de um livro. E não de uma coisa real.

Que tipo de livro?
Alison – Alguma coisa do Gabriel García Márquez. Na época estava fascinada pelo realismo mágico. Eram tantos absurdos e coisas tão impensáveis para a gente. Acho que esta expressão veio para nós como a descrição de todo um gênero de literatura. Mas, conforme eu fui vivendo aqui no Brasil e vivenciando o país e as suas peculiaridades culturais, passei a perceber que metade das coisas que estes escritores escreviam poderia acontecer aqui. Sabe, o Collor, o que ele fez, é uma coisa tão surreal para a gente, mas podia acontecer aqui, como aconteceu. E outras coisas deste tipo. Passei a perceber que estes escritores estavam descrevendo a sua realidade. Não era mágico. Não que isso diminua a qualidade do que escrevem ou o seu talento. Escrevem livros maravilhosos. Mas passei a perceber que tudo aquilo que eu achava que era imaginado não era. Vinha da realidade deles.

O que é um tradutor, afinal? Ele também é um autor?
Alison – Eu não sou daqueles tradutores mais militantes, que insistem que o tradutor é coautor. Acho que o tradutor merece o reconhecimento pelo que faz, não pelo que não faz. O autor criou um enredo, criou personagens, criou seu jeito de falar, criou várias coisas ali que eu não posso mexer. Eu não posso fazer nada a não ser traduzir estas coisas. A criatividade do tradutor se dá no momento em que cria soluções, procura maneiras de expressar aquelas coisas em outra língua. Mas você está criando a partir de um precedente, criando para refletir algo que já existe. Não é criação no sentido de criar do zero um texto. Eu não curto muito a palavra coautor por causa disso. Não que eu ache que o que eu faço não mereça reconhecimento. O tradutor é o tradutor – e não aquele ser invisível que ninguém se lembra de citar o nome. Acho que podia existir um esforço maior por parte das editoras para lembrar o tradutor, colocar o nome na capa ou pelo menos na primeira página.

Mas, para você, a competência do seu trabalho como tradutora parece estar ligada a um respeito radical à voz do autor e não a uma recriação pela sua própria voz. É isso?
Alison – Por isso eu gosto de citar pequenos trechos. Acontece muito com o Chico (Buarque), porque ele é um autor que além de contar a história, ele ama a língua, é evidente no que ele faz. Ele brinca com as palavras. E eu tenho muita preocupação em reproduzir as brincadeiras linguísticas que ele faz. Se eu apenas traduzir as palavras, perde a graça. Por exemplo. O José Costa (personagem narrador de Budapeste) diz a mesma coisa em três frases diferentes no seguinte trecho: “A lourinha era abusada, me apontava às gargalhadas e gritava para o fotógrafo: é bom saber que eu vou para a cama com esse cara, ou: comigo na cama esse cara vai saber o que é bom, ou: saiba que eu vou é com esse cara bom de cama, ou coisa que o valha; eu já me considerava prestes a dominar a língua húngara, quando falada em alto e bom som.” A graça está nestas três frases que dizem a mesma coisa, com as mesmas palavras, mas mudando a sua posição em cada frase. Se fosse apenas traduzir, faria três frases completamente diferentes, com nenhuma semelhança entre si. Tive de pensar o que era mais importante ali: traduzir apenas o sentido ou traduzir toda esta brincadeira linguística que faz a gente dar risada quando lê. Para mim não havia possibilidade de apenas traduzir estas três frases. Aí é preciso vestir a camisa do poeta e recriar outra frase que contenha esta possibilidade de se desdobrar de três maneiras diferentes, mas obedecendo todas às mesmas regras. Ficou assim: “The blonde was insolent and pointed at me in fits of laughter, shouting at the photographer: I’ll get this good-time guy in bed with me, or: with me this guy’ll get it good at bedtime, or: it’s time I got this guy’s goods into bed, or something of the sort.”

Há outro exemplo em Budapeste que consumiu dias até você encontrar uma solução?
Alison – Sim. O personagem é um ghostwriter (escritor fantasma, que escreve livros e textos que serão assinados por outros). Ele escreveu um livro chamado “O ginógrafo”, publicado em nome de um alemão. Aí ele vai embora do Brasil, mora uma década ou mais fora e, quando volta, vê um livro na vitrine da livraria e acha que é o dele. Ao chegar mais perto descobre que o livro se chama “O naufrágio”. A beleza disso em português é que as duas palavras possuem quase as mesmas letras, mas organizadas de forma diferente. Embaralharam a vista dele. Em inglês, ginógrafo virou “gynographer“, mas naufrágio seria, numa tradução literal, “shipwreck“. Nada a ver entre si. Tive de vasculhar o Oxford English Dictionary página por página, palavra por palavra, até achar uma que tivesse os mesmo atributos: “hypnologist“. Ela não tem tantas letras em comum, mas as mais marcantes estão todas ali. É nestas horas que sinto que estou brincando de palavras cruzadas.

Traduzir, para você, é similar a fazer palavras cruzadas?
Alison – Acho que é a coisa de achar o encaixe perfeito. Principalmente nos autores que têm uma preocupação lírica com a linguagem, que criam um eco repetindo a mesma frase. Tem de funcionar num contexto e em outro. Não é qualquer palavra que se presta a esta duplicidade. Quando faz palavras cruzadas, você tem aquela palavra, o significado e sempre há vários sinônimos. Mas só uma vai se encaixar ali cortando todas as outras. O tradutor tem de ter sensibilidade para todas estas coisas e tentar trazer todas elas para a sua língua. E esta é a criatividade do tradutor. Eu queria que as pessoas reconhecessem isso, meus fracassos e meus sucessos. E não me chamassem de coautora. São duas artes diferentes.

Qual é a sua palavra favorita na língua portuguesa?
Alison – Orelhudinho.

Sério? Por quê?
Alison – É como o meu Patãozinho (nome do seu cachorro) aqui. É muita informação embutida numa palavra só. Acho isso maravilhoso. Esta elasticidade da língua portuguesa. Dos diminutivos e dos aumentativos.

Quando você ouviu “orelhudinho” pela primeira vez?
Alison – Eu estava dando aula de inglês e uma professora falava de um aluno que tínhamos em comum, mas eu não lembrava o nome. Aí ela disse: “Sabe aquele orelhudinho…” Eu morri de rir e identifiquei na hora. É incrível que uma pessoa possa ser grande e pequena ao mesmo tempo. Esta contradição embutida na palavra é maravilhosa.

Por que você acha que existem tão poucas traduções da literatura brasileira para o inglês?
Alison – Aqui no Brasil cerca de 50% dos livros publicados são traduzidos de diversas línguas. Em muitos países europeus, como a França, também. Mas, nos países de língua inglesa, a estatística corrente é de apenas 3% de livros traduzidos de todas as línguas para o inglês. Acho que as culturas têm suas próprias estéticas. Isso se aplica a tantas coisas. O que o brasileiro acha bonito em uma mulher é diferente do que é bonito no meu país. Aqui gostam de mulheres com bunda, coxa, carnes, e no meu país gostam de magricelas, mulheres que são feias para os padrões brasileiros. Acho que acontece o mesmo em outros aspectos da vida, inclusive na literatura. Acho que as preocupações literárias são diferentes. Lá as editoras gostam muito de publicar livros que contam uma história, que tenham começo, meio e fim, que não tenham tantas divagações filosóficas. Se você pegar um livro francês, muita coisa da literatura é mais devagar, contempla mais as coisas. E há editores de língua inglesa que não gostam de publicar as coisas da França por causa disso. Acho que o Brasil tem um pouco em comum com a França neste sentido. É uma estética diferente. Esta questão da pontuação, por exemplo, não é sempre aceita de braços abertos pelos editores de língua inglesa porque não é a estética deles.

Você teve uma discussão com o editor de O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, sobre isso, não?
Alison – Ele queria reescrever um monte de coisas na edição em inglês. Eu achei que era facilitar um pouco demais, deixar as coisas mais claras quando o autor não quis ser tão claro. O autor quer que você trabalhe um pouco para chegar num sentido, então não dá para deixar tudo tão mastigadinho. É claro que há concessões necessárias numa tradução, porque a pessoa pode não entender o raciocínio de um brasileiro. Há momentos em que é preciso dar condições para que o leitor em inglês possa entender, mas isso não significa simplificar demais. Eu defendo o livro, sempre. Uma vez um editor me pediu para explicar uma metáfora. Não, pelo amor de Deus, a metáfora se explica sozinha. O autor não quis explicar aquilo. Então, de jeito nenhum vou explicar uma metáfora. Mas tenho de ficar brigando. Por outro lado, um autor pode ter um domínio bom da língua, mas às vezes tem uma visão parcial. Afinal, a gente nunca tem uma visão total nem da nossa própria língua. Às vezes o autor pode não perceber a estranheza que ele não sente, mas que um nativo vai sentir. Então às vezes eu também tenho de brigar com o autor. Sempre brigo pelo livro.

Cidade de Deus, de Paulo Lins, consumiu dois anos para ser traduzido. Você poderia contar um pouco de suas dificuldades com esta tradução?
Alison – Eu imaginava que seria difícil, mas não tinha noção de que o buraco estava muito mais embaixo. O livro se passa nos anos 60, 70 e 80, e o Paulo Lins vai refletindo estas mudanças no livro pelo tipo de droga, pelo tipo de arma, pelo tipo de gírias que usavam em cada época. Então eu tinha de encontrar soluções em inglês que não fossem anacronismos. Eu não podia usar o termo de uma droga que apareceu nos anos 90 e que ninguém tinha conhecimento nos anos 70. Muitas destas coisas não estão nos dicionários. Eu não sei se existe um dicionário de maconha. Se existir eu preciso ter na prateleira (risos). Então eu consultava pessoas que fumavam maconha naquela época, sobre como falavam a palavra baseado. E quando vendiam cocaína, qual era a palavra para a unidade vendida. É difícil achar quem compartilhe estas informações. E também é difícil para as pessoas se lembrar de quando começaram a usar a expressão que falam hoje. Então me falavam coisas muito modernas e insistiam que tinham falado isso sempre. E eu sabia que não tinham. Eu tinha também outro problema, que o era o fato de o livro estar sendo traduzido simultaneamente para o inglês britânico e o americano. Quando você fala em registro linguístico, quanto mais acadêmica a linguagem mais parecida fica. Linguagem acadêmica dá para publicar nos dois lados do Atlântico sem grandes problemas. Quanto mais coloquial, porém, mais específica. As gírias pertencem a um pequeno número de pessoas. E como Cidade de Deus é coloquial e tem gírias do começo ao fim, não tinha como fazer uma tradução que satisfizesse os britânicos e os americanos. Se eu fizesse apenas para o inglês britânico e a mesma coisa saísse nos Estados Unidos, os ingleses achariam muito natural e se entregariam à leitura. Mas os americanos não iriam se entregar porque toda hora se deparariam com palavras que soariam britânicas. Isso poderia levar o leitor americano a imaginar uma história se passando na Inglaterra e não no Brasil. Da mesma forma que não posso usar as gírias de um bairro pobre de Nova York para falar da realidade de uma favela no Brasil, porque os leitores vão entender aquela realidade como sendo a de Nova York e não a do Brasil. É bem complexo.

Era uma missão impossível, então?
Alison – Impossível. Sem saída. Fiz para o inglês britânico, mas pedi que houvesse uma revisão para o inglês americano, feita por um editor americano, para ajustar estas gírias, para fossem naturais para este leitor, já que uma única versão não satisfaz todo mundo.

Mas como foi a sua pesquisa para o Cidade de Deus?
Alison – Há, por exemplo, todo um trecho que se passa na prisão. Um dos personagens da favela vai preso e tem toda uma questão de mulher de prisão. Na verdade, a “mulher do xerife”, sendo que o xerife é o presidiário que manda lá dentro. E havia outros presidiários que eram as mulheres dos amigos do xerife. Estes presidiários que eram as mulheres tinham de usar calcinha, fazer sexo, lavar as cuecas. Era isso ou a morte. A crueldade humana é ubíqua, está em todo lugar, e eu achei que tinha de ter uma realidade correspondente. Aí fui atrás para tentar achar as expressões e gírias. Para encontrar, entrei num site de apoio a ex-presidiários na Inglaterra. Comecei a trocar emails com um deles. Senti que era extremamente humilhante para ele falar disso, mas ele me deu as palavras. Só que depois desta pesquisa toda, acabei traduzindo mais ao pé da letra. Embora na Inglaterra possam não chamar de xerife, achei que refletia algo daqui, pelo fato de terem escolhido chamar de xerife. Às vezes a gente faz toda esta pesquisa para jogar fora depois. Toda a pesquisa para Cidade de Deus levou muito tempo. Drogas, prostituição, armas. Nunca segurei uma arma na minha vida nem quero segurar, mas aprendi o que era cada parte da arma, tive de saber as mínimas coisas.

O alemão Berthold Zilly, tradutor de Euclides da Cunha e Machado de Assis, diz que há diferença entre o número de opções, de sinônimos, para algumas palavras entre uma língua e outra. Por exemplo, há muitos sinônimos em português para “carícia” e poucos em alemão. E isso diz da cultura de cada país. Você deparou com algo assim?
Alison – Em Leite Derramado (de Chico Buarque) há um trecho de mais ou menos uma página em que o Chico usa muitos verbos diferentes para “chicotear” e muitos sinônimos para a palavra “chicote”. Ele fez questão de não repetir a mesma palavra. Descobri então que português tinha uma ligeira vantagem sobre o inglês na questão do chicote. Acabo de verificar a palavra “chicote” em dois dicionários analógicos em português. Um traz 44 sinônimos e o outro, 30. No entanto, meu dicionário de sinônimos em inglês só tem 12 sinônimos para “chicote” e 17 jeitos de “chicotear”. Não sei de onde vem essa riqueza em matéria de flagelação em português. Só sei que a língua e as palavras nascem de realidades. Mas pode ser que estejam na língua há muito tempo, antes de o Brasil ser o Brasil, talvez tenham vindo de outras línguas. Não sei te dizer os porquês, infelizmente. Mas adoraria saber.

Quais são as impossibilidades de tradução? Você sofre muito com o que chama de seus “fracassos”?
Alison – O sotaque é uma destas impossibilidades. Jamais vou conseguir manter um sotaque mineiro, de Cataguases, por exemplo, como o dos livros de Luiz Ruffato. Assim como não dá para recriar na língua inglesa a diferença entre um sotaque carioca e o do sul. Dói, mas sei que tradução é uma coisa incompleta. Eu sei que é impossível, então tenho de aceitar. É possível explicar em nota de rodapé, mas aí esbarra na fluidez, em não querer quebrar a suspensão da descrença do leitor. Há autores em que sinto que a perda é maior. Luiz Ruffato é um deles. Ele trabalha com toda uma classe social e representa as pessoas de uma forma que, lendo, você acha que conheceu um cara exatamente assim. Mas ele fala de coisas tão brasileiras, de uma condição social. Isso está ali na tradução, como no original, mas, sem conhecimento do Brasil o leitor não vai enxergar. Vou dar um exemplo concreto, de um trecho: “Às onze, encostou junto ao meio-fio do bar do Auzílio, a charanga surdo-repinique-tamborim-zabumba-pandeiro-apito choramingando por favor, vai embora,/minha alma que chora,/está vendo meu fim./ Fez do meu coração a sua moradia,/ já é demais o meu penar…” A gente já escuta o barulho só lendo a frase. Mas a sonoridade vai embora na tradução porque os instrumentos não têm tradução, e mesmo que tivessem, a maioria das pessoas de língua inglesa não faz idéia do som que cada um faz. Sem falar na letra dessa música tão conhecida, que todo mundo que lê já põe para tocar na cabeça. Até tentei recriar a corrente de palavras com sons, em vez de instrumentos, mas achei que perdeu a graça totalmente, e acabei tendo de aceitar a perda. Foi uma derrota. E fiquei triste.

(Publicado na Revista Época em 16/08/2010)

Página 20 de 34« Primeira...10...1819202122...30...Última »