A vida se faz nas marcas

Vivemos por causa de nossas marcas – e não apesar delas

Para mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas na Casa de Cultura da Flip (Festa Literária Internacional), em Paraty. Promovida pelo Itaú Cultural, esta programação era gratuita. O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas marcas. E penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem ser assinaladas pela vida.

Vivemos numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas – algumas delas bem violentas. Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las.

É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade – as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora – o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica.

Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático. Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática para quase todos – e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão não é o trauma – e sim o que cada um faz com ele.

Há algumas semanas participei de um debate com psicanalistas no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, sobre o excelente documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro, Sobreviventes, sobre o qual já escrevi uma coluna quando foi lançado. Em minha fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A palavra sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver por causa do vivido.

Em mais de 20 anos contando histórias de pessoas – e também minha própria história –, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa vida só. Cada existência é uma sucessão de pequenas mortes e renascimentos desde este primeiro corte que nos separa de nossas mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só imaginando nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele, afinal, que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do corpo materno.

É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível – e o pior, que é desejável – ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.

É claro que alguns acontecimentos são devastadores – e lutamos para que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com esta marca. Transformando-a em algo que possa viver.

Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89 anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”), de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz. Quem não tiver assistido, pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a artista australiana Jane Korman, quando diz: “Esta dança é um tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”.

Poder dançar no palco em que quase foi assassinado – e onde milhões de pessoas foram exterminadas – é fazer algo vivo em vez de fazer algo mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você – na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma nova memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama das gerações. É mais do que uma magistral vingança – é uma dança.

Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho – e a maioria dos caminhos não aparece no You Tube. Mas acho uma prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui. Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.

Quando as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início – ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar fixado no trauma – enxergar a marca como uma morte que não renasce, como um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” – e o sentido que ela tem no senso comum – me incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não pudesse se quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobre-vida. Me parece, ao contrário, que a matéria da vida é justamente esta sucessão de quebras – e viver é dar sentido a elas.

Esta ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele que nos leva a anestesiar uma vida. Este equívoco tem transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha que repete sempre o momento mortífero e não consegue seguir adiante.

Ser – é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a ideia de que exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar algo vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na festa literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados, doces, móveis, dribles de futebol.

Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.

(Publicado na Revista Época em 09/08/2010)

A boneca inflável de cada um

Será que precisamos destruir tudo o que é diferente?

Lars mora na garagem da casa de seu irmão mais velho. Tem 27 anos, mas não gosta de sair, nem mesmo para tomar café coma família, apesar dos esforços quase acrobáticos de sua cunhada. Só sai para ir ao trabalho e à igreja. Mas um dia ele aparece na casa do irmão e avisa que vai trazer Bianca, sua namorada, para o jantar. Explica que, como ela é meio brasileira, meio dinamarquesa, não fala inglês. Bianca não caminha e precisa de uma cadeira de rodas, já que a sua foi roubada. Lars pergunta ainda se ela pode se hospedar na casa deles porque, como ambos são religiosos e solteiros, não acham certo ficar sob o mesmo teto. O irmão e a cunhada, que se preocupam com a solidão de Lars, ficam exultantes. Muito animados, arrumam o quarto de hóspedes e preparam o jantar. Em seguida, Lars aparece com a namorada. E eles descobrem que Bianca é uma boneca daquelas feitas sob encomenda para sexo.

Este é o enredo de um filme que pega a alma da gente pelo pescoço e bota ela no colo para um diálogo de delicadezas. Dirigido com sutileza pelo estreante Craig Gillespie e marcado por atuações excepcionais, foi quase ignorado pelo Oscar 2007 (apenas uma indicação para melhor roteiro original), passou meio batido pelos cinemas brasileiros aonde chegou com muito atraso no ano passado e agora pode ser encontrado em qualquer locadora. Acaba também de estrear na TV a cabo nos canais telecine. Como o título em português é muito, mas muito ruim (“A garota ideal”), a gente passa por ele nas locadoras ou na programação e pensa que é mais um daqueles filmes descartáveis meio abobados. Eu mesma passei por ele dezenas de vezes na prateleira da locadora sem uma segunda olhada. Só aluguei porque foi muito bem recomendado. Então assisti – e fiquei com vontade de ser rica para distribuí-lo pelas ruas como presente de utilidade pública. Como não sou, escrevo.

A grande história do filme é como a família, a médica e a comunidade da cidadezinha lidam com a suposta maluquice de Lars naquele inverno. Depois do jantar de apresentação, a cunhada sugere que Bianca possa estar estressada com tudo o que viveu nos últimos tempos. Deveriam levá-la a uma médica conhecida, que também é psicóloga, para um check-up. Depois de examinar Bianca com o estetoscópio e auscultar a situação com os olhos e os ouvidos, esta médica diz que não lhe parece que Lars tenha uma doença mental que o leve a uma internação. Do jeito dele, Lars leva a sua vida, trabalha e não machuca ninguém. Para ela, Bianca chegou por algum bom motivo. Lars criou Bianca para ajudá-lo a resolver um conflito. Quando o conflito for solucionado, Bianca poderá partir.

Neste caso, diz ela, o melhor a fazer é acolher Bianca. “Mas ela é uma fantasia”, diz o irmão. “Não”, diz a médica, “ela é real”. Está bem ali, na sala de espera do consultório. Para Lars ela é real – e este é o título traduzido do inglês (“Lars e a garota real”). “Mas vão rir dele”, retruca o irmão. A médica dá uma olhadinha e afirma: “E de vocês também”. Na manhã seguinte , o irmão não se contém e diz para Lars que Bianca “é só uma coisa de plástico”. Lars dá um sorrisinho, cochicha com Bianca e explica: “Bianca diz que Deus a criou assim para poder ajudar os outros”.

A partir deste momento, o filme conta como a cidade acolheu a Bianca de Lars. Ou melhor, como acolheu Lars. Embora a realidade dele parecesse bizarra para todos – e para cada um à sua maneira – não o julgaram. Apenas o acolheram. Esvaziaram-se de seus preconceitos para alcançá-lo, ainda que não pudessem entendê-lo. Não podiam entendê-lo nem ver o que ele via, mas podiam amá-lo. Em vez de destruí-lo porque não podiam entendê-lo, como acontece habitualmente, o amaram mais.

Se um Lars aparecesse perto de nós – e a verdade é que volta e meia aparece algum –, o mais provável seria enquadrá-lo no escaninho de alguma doença mental e dopá-lo. Antes da luta antimanicomial, os hospícios estavam cheios de gente parecida com Lars. Malucos, lunáticos, delirantes, loucos, fora da casinha. Gente que, mesmo não tendo nenhum traço de violência, nos perturba porque ouve vozes que não ouvimos, considera real o que para nós é fantasia, desafia nossa suposta normalidade. Gente que, com a sua diferença, nos perturba tanto que só conseguimos dar uma resposta violenta: a rejeição.

Dias atrás eu ouvia uma amiga contar sobre um primo que desde que perdera uma pessoa querida passara a se comunicar com ETs. Ele toca a sua vida, continua sendo um jovem doce, mas conversa com extraterrestres como se fossem velhos conhecidos. A família está perdida, sem saber o que fazer. Minha amiga está preocupada porque teme que ele perca os amigos, o emprego, a vida que construiu. Ao escutá-la, percebi que a angústia dela não se dava pelo fato de o primo conversar com ETs, ainda que não acredite que eles existam neste mundo. O problema é o que as pessoas ao redor farão com alguém que não faz mal para ninguém, mas jura conversar com alienígenas. O problema é a capacidade de destruição daqueles que acreditam em coisas aceitas como “normais” quando se descobrem diante de quem acredita em coisas consideradas “anormais”. Sejam elas uma boneca inflável ou um ET.

Talvez o primo da minha amiga converse com ETs pelo resto de sua vida, talvez um dia os ETs partam para outras galáxias onde existam outros garotos doces precisando ser escutados por criaturas verdes. Ou talvez o primo mande os ETs embora porque encontre alguém do próprio planeta para ocupar este lugar. O problema será, enquanto isso, sobreviver às pessoas que escondem seus ETs no armário.

É uma pena que precisemos tanto de julgamentos sobre o que é um comportamento normal ou não – sempre esquecendo que a “normalidade” muda conforme a cultura e o tempo histórico. Esquecendo também de olhar para a própria vida, com a honestidade necessária, para perceber que cada um de nós acredita em coisas muito estranhas e bizarras. Apenas que são coisas que mais gente também acredita. Este, aliás, é um exercício bem interessante, capaz de alargar os limites sempre estreitos de nossa tolerância.

É triste viver num mundo onde diante de qualquer diferença, mesmo que de opinião, seja preciso cair matando. Que gente tão insegura e pobre de espírito nos tornamos para temermos tanto aqueles diferentes de nós? Sempre que vejo alguém desqualificando um outro por suas ideias e suas crenças, fico pensando: será que esta pessoa tem uma vida tão sensacional que todas as outras precisam ser esculhambadas? Desconfio que seja exatamente o contrário. Não custa nada olhar para dentro e apalpar um pouco a matéria dos nossos dias antes de sair por aí cimentando regras para a vida de todos. Torço muito para que o primo da minha amiga não encontre gente que se sinta ameaçada pelos seus ETs. Mas sei que vai encontrar. E temo por ele.

Acho que, em alguma medida, temos todos nós ETs ou bonecas infláveis que nos ajudam na tarefa complicada que é viver. Especialmente quando esta tarefa fica muito difícil. Seria tão bom que conseguíssemos amar melhor e, mesmo ao ver os outros agarrados a ETs bem pequeninos, fôssemos capazes de deixar passar sem sacarmos nossas armas de extermínio. Quantas vezes não vemos gente bem próxima que está segura apenas por um fio à sua vida por causa de alguma tragédia ou mesmo de uma fragilidade maior diante das agruras do mundo. Em vez de escutar, aceitar e acolher, nosso comportamento habitual é sair logo cortando, com uma tesoura bem grande, o fio que aquela pessoa teceu com a maior dificuldade. E sem oferecer nada em troca para botar no lugar.

Estou bem cansada de gente que adora dizer, apoiada por sua metralhadora de certezas: “Fulano está perdido”. Ou “sicrano nunca conseguiu fazer nada decente na vida”. Ou, os que acham chique falar em inglês: “Beltrano é um loser”. Será que estes arautos do sucesso estão tão perdidos que pensam que se acharam na vida? Bem, talvez esta crença seja o único fio que os mantêm acima do abismo.

Lars e a garota real” (ou “A garota ideal”), o filme, é uma fábula. Não por causa de Lars, mas por nossa causa. Naquela cidade as pessoas são muito melhores do que nós. De repente percebi, assistindo ao filme, que o mais estranho ali não era Lars e sua boneca, mas todos os outros. Porque, NESTA vida real, não há nada mais distante do normal, não há nada mais bizarro ou fora da casinha, do que gente que, em vez de julgar, catalogar e descartar aquele que é diferente, escuta, aceita e acolhe. Este – e não o de Lars – é o comportamento mais lunático do filme. Uma pena não para os Lars da vida, mas para todos nós.

(Publicado na Revista Época em 02/08/2010)

Palmada na lei

Ao propor a proibição da palmada, o Estado infantiliza os pais

Tento me mover pela vida a partir das dúvidas. Mesmo quando acho que tenho uma razoável certeza sobre algum tema, me pergunto várias vezes: “será?”. E guardo uma parte de mim sempre aberta para mudar de ideia diante de algum fato novo ou argumento bem fundamentado. É o caso da lei da palmada, que me parece desde sempre um total disparate. Ao constatar que o projeto de lei enviado pelo presidente Lula ao Congresso em 14 de julho é apoiado e defendido em entrevistas e artigos por pessoas cuja inteligência e atuação pública tenho grande respeito, me forcei a um questionamento ainda maior. Será que palmada é crime e eu não estou percebendo algo importante?

O projeto, que ficou conhecido como “lei da palmada”, se propõe a alterar o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nele, fica proibido o uso de castigos corporais de qualquer tipo na educação dos filhos. O castigo corporal é definido como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente”. Li, pesquisei, estudei e continuo achando um total disparate. Não encontro um único argumento que me convença de uma lei proibindo palmadas.

Antes de seguir, quero deixar muito claro que, obviamente, espancamento é crime. Seja dos pais ou de quem for. Palmada não. E nada me convence de que precisamos de mais uma lei, já que a legislação existente pune o espancamento e demais agressões físicas. Nada tampouco me convence de que o Estado deve interferir neste nível na vida privada, na maneira como cada um educa seus filhos. Não por uma postura liberal, mas por algo bem mais sério que vou abordar mais adiante.

Um dos argumentos em defesa da nova lei é de que as pessoas não saberiam a diferença entre uma palmada e um espancamento. Acredito que a maioria das pessoas sabe muito bem a diferença entre dar um tapa na bunda de uma criança e espancar uma criança. Não vale como estatística, mas nunca conheci ninguém que não soubesse, exceto pessoas com distúrbios muito graves, que também não sabiam a diferença entre quase tudo. Quem espanca não acha que está dando uma palmada. Tem certeza de que espanca e quer espancar.

Outro argumento é de que a suposta violência começaria com uma palmada e evoluiria para um espancamento. Não me parece que temos provas de que isso seja um fato verídico. É verdade que temos, infelizmente, um número elevado de crianças espancadas no país – no caso de crianças espancadas, queimadas e agredidas de todas as formas qualquer número acima de zero é elevado e vergonhoso e seus autores devem ser punidos com as penas previstas nas leis que já existem. Mas não é a maioria nem é uma regra evolutiva. Não vejo pais dando palmadas nos primeiros dois anos de vida e no terceiro e no quarto espancando. E no quinto e sexto matando? O espancamento de uma criança quebra tanto o consenso social que provoca horror e espanto.

Me parece muito perigoso tachar de criminosos pais que dão palmadas. Por vários motivos. O primeiro deles é a injustiça da afirmação. Crime é algo muito sério e algo com que o Estado e todos nós precisamos nos preocupar porque rompe e ameaça o tecido social, portanto a sobrevivência de todos. Não pode e não deve ser banalizado. Chamar de criminoso um pai ou uma mãe que dá uma palmada na criança na tentativa de educar é, além de um equívoco, um flagrante abuso.

Me preocupa muito, por exemplo, o fato de demorarmos a agir no caso das denúncias de espancamentos e de agressão sexual. Assim como me preocupa a falta de instrumentos de proteção efetivos para amparar as crianças violadas de todas as formas. Quem trabalha com a prevenção da violência contra crianças sabe que há escassez de assistência. Isso resulta em traumas físicos e psicológicos para as vítimas e impunidade para os agressores. Quando o Estado coloca a palmada e o espancamento no mesmo nível, como se fosse a mesma coisa, todas as lacunas de prevenção, assistência e repressão podem se tornar ainda mais largas.

Se o Estado se propõe a entrar na casa das pessoas e fiscalizar se todos os pais do Brasil estão dando ou não palmadas em seus filhos, em vez de concentrar seus recursos e esforços naquilo que é importante – a prevenção do espancamento e a punição dos espancadores, assim como dos abusadores de todo tipo – temo que o tiro possa sair pela culatra, com o perdão do clichê. Acho que na vida, seja para um governante, um legislador ou um cidadão comum, é importante ter foco.

Este tipo de debate é rico porque todos têm suas próprias experiências. E eu acredito muito na experiência. Vivemos numa época em que a tradição foi desmoralizada e a maioria corre para especialistas de todo o tipo para saber como deve agir ou pensar. Não confia nem na soma de experiências próprias e dos que acertaram e erraram antes – nem em seus próprios instintos. Uma pena, porque perdemos muito. Todos nós perdemos muito. E, talvez, mais que todos, nossas crianças.

Espancamento, ouso dizer que a maioria de nós não experimentou. Mas palmadas quase todos conhecem na pele. Eu nunca fui espancada pelos meus pais, mas recebi várias palmadas. E todas elas, na minha percepção, foram atos de amor e de educação. Eu nunca espanquei minha filha, mas dei várias palmadas nela. E também foram atos de amor e de educação.

Quando eu era criança, só conheci um colega que era espancado pela mãe. Numa ocasião, esta mulher entrou na escola onde estudávamos com um pedaço de pau e deu uma surra pública no meu amigo. Para nós aquilo foi algo totalmente apavorante. Tínhamos oito anos e não sabíamos que os pais eram capazes de tal violência. Sabíamos perfeitamente a diferença entre aquela surra sangrenta que testemunhamos e o que acontecia dentro da nossa casa quando aprontávamos alguma arte. Lembro que nos reunimos para conversar. Estávamos assustados e precisávamos explicitar e assegurar a diferença para termos certeza de que nossos pais nunca fariam algo assim. A forma que encontramos foi cada um contar como os pais procediam quando faziam algo errado. Rememorar os limites era a única maneira de nos tranquilizar diante daquela cena de horror.

O curioso é que, nervosos, cada um queria se exibir mais do que o outro. Minha mãe corre atrás de mim e me dá palmadas, a maioria dos meus colegas dizia, orgulhoso. Tinha um que se gabava de que o pai lhe dava umas cintadas na bunda. Me senti um pouco inferiorizada porque apanhava pouco. Então exagerei dizendo: “Minha mãe me dá muitas chineladas e dói bastante”. Pronto. Todos nós reafirmamos que éramos amados. Não éramos e não seríamos espancados, mas éramos amados o suficiente para que nossos pais se preocupassem de nos punir por coisas erradas que fazíamos. Confiávamos que nossos pais nunca superariam este limite. E, depois desta sessão espontânea de terapia coletiva, fomos convidar nosso machucado colega para brincar.

Passei a infância com uma inveja manifesta dos meus irmãos que um dia apanharam de cinta do meu pai. Meu pai explicou calmamente porque eles apanhariam, perguntou se tinham entendido bem as razões e as circunstâncias e começou a bater pelo meu irmão mais velho, por causa de outra regra muito clara: como ele era o mais velho, deveria dar exemplo aos mais novos. Como eu nasci muitos anos mais tarde, meu pai já tinha delegado esta tarefa à minha mãe e perdi esta parte. Seguiu mantendo uma autoridade que nos impunha tal respeito que bastava cravar em nós “aquele olhar” para pararmos a traquinagem no meio do movimento. Mas eu me sentia roubada – e desconfiava secretamente que meu pai me amava menos. Meus irmãos até hoje rolam de rir desta surra ritual de cinta nos encontros familiares – e eu não tenho nada para contar. Lembro de um dia ter me enchido de coragem e perguntado ao meu pai: “Por que eu nunca apanhei de cinta?”. Não lembro a resposta.

Quando chegou a minha vez de ser mãe, busquei as referências na minha própria educação. Minha opinião era a de que eu tinha apanhado pouco e deveria ter sido mais reprimida sob certos aspectos. Não havia a menor chance de que eu, como mãe, fosse permitir algumas petulâncias que meus pais engoliram de mim como filha. Fui uma mãe bem mais dura do que meus pais foram comigo, o que implicou em um número maior de palmadas e de regras. E, claro, me esforcei para desenvolver aquele olhar que emana da autoridade – e não do autoritarismo – no qual meu pai era mestre. Não fiquei traumatizada pelas palmadas que recebi dos meus pais – nem minha filha ficou traumatizada com as dadas por mim. Ainda ontem telefonei para ela, hoje com 28 anos, para me certificar. Não, ela definitivamente não ficou traumatizada.

Li num artigo de jornal a seguinte afirmação de uma psiquiatra: “Crianças que sofrem palmadas são induzidas a pensar que podem dar palmadas nos outros, que a violência é a maneira de resolver as coisas, e se tornam agressivas na escola”. Me parece um pensamento bastante inconsistente. Nunca achei que pudesse dar palmadas em ninguém nem permiti que outros que não fossem meus pais me dessem palmadas. Era muito claro que esta prerrogativa, a de me dar palmadas para me educar, era só dos meus pais. E que eu só as teria quando fosse mãe. Assim como era muito claro para mim e para meus irmãos que a violência não era a forma de solucionar conflitos. Possivelmente porque nós – e a maioria das crianças ao nosso redor – não decodificavam a palmada como violência. Nunca conheci nenhuma criança que saísse dando tapas nos outros porque recebia palmadas em casa. Vi, sim, especialmente em trabalhos de reportagem, crianças espancadas que se tornaram muito agressivas ou totalmente alheias. Garanto: é de outra ordem.

Outro argumento que aparece neste debate é o da desproporção. Não há comparação entre a força de um adulto e a capacidade de se defender de uma criança, entre o tamanho da mão que aplica a palmada e a mão de quem a recebe. É verdade. E não vejo como poderia ser diferente. Não compreendo como poderia existir um processo educativo que não parta de uma desproporção. Se eu tenho condições de ser mãe é justamente porque assumo a desproporção. Para me tornar mãe ou pai, eu preciso antes acreditar que tenho o que transmitir ao meu filho e tenho meios para educar. É minha esta responsabilidade. E dá um trabalho enorme – muito maior do que deixar para lá e não colocar limites, como se vê cada vez mais por aí.

É a consciência da desproporção que faz com que eu controle minha força se for dar uma palmada. E controle minha “força” também para não impor as minhas respostas e, assim, impedir meu filho de fazer sua própria busca pelo conhecimento. Com a minha orientação, sim, mas não com os meus dogmas. Ser pai ou mãe é se responsabilizar pelo seu poder, em todos os sentidos. Quando a gente se responsabiliza fica muito mais difícil se exceder em qualquer aspecto – seja físico ou psicológico.

Mas o aspecto que mais me preocupa se este projeto de lei for aprovado é o de reforçar aquele que me parece ser – este sim – um dos grandes problemas atuais: a dificuldade dos pais de educar seus filhos. Não me parece que o problema da maioria das crianças hoje seja a palmada que eventualmente recebe dos pais. Mas o fato de não receber limites de seus pais, de não ser efetivamente educada.

Boa parte dos pais me parece completamente perdida. As crianças gritam, as crianças querem porque querem, as crianças interrompem às vezes aos berros quando o pai conversa com outra pessoa, as crianças não cumprimentam ninguém nem na chegada nem na saída, fazem exigências como se o mundo e todos os adultos dentro dele existissem para servi-las, testam e testam para ver se alguém vai fazê-las parar, botar algum limite, e nada. Basta sair na rua para testemunhar cenas lamentáveis em restaurantes, shoppings, cinemas e lugares públicos protagonizadas por pequenos déspotas diante de pais infantilizados. Pais esvaziados, inseguros sobre sua capacidade de educar o filho que botaram no mundo e que parecem duvidar que têm algo a ensinar àquelas crianças. Pais sem nenhuma autoridade.

O que uma parte destes pais faz quando se torna insuportável viver com estes filhos? Leva para um especialista que diagnostica a criança como a mais nova portadora da epidemia da moda: a tal da TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. E dá-lhe medicamento cada vez mais cedo. Como boa parte das crianças ao redor já foi diagnosticada com a “doença” esta, ninguém acha suspeito. Imagino que, quando parte desta geração crescer, o rito de passagem vai ser apenas mudar o medicamento: aos 18 anos ganha um carro e sua primeira caixa de antidepressivos.

Pobres pais? Não! Pobres crianças que visivelmente estão cada vez mais infelizes porque ninguém nasce sabendo sobre seus limites e todo o resto. Um filho precisa que os pais sejam pais. Diante deste quadro, o que o Estado faz? Infantiliza e esvazia de autoridade ainda mais estes pais ao se meter na vida privada e dizer como eles devem educar. Ou que eles não podem tocar nos seus filhos para educar sob pena de serem tratados como criminosos ou párias. Ou, talvez o pior: tratados como maus pais.

Na escola, os professores já choram diante de crianças e adolescentes que desafiam sua combalida autoridade dizendo: “Você não pode me mandar fazer nada porque quem paga o seu salário é o meu pai”. A tradução é: portanto, eu mando em você e, portanto, não há educação possível a partir desta premissa. Se a lei da palmada for aprovada, é possível imaginar as variações dentro de casa: “Se me bater eu te denuncio para o conselho tutelar”.

Não estou fazendo aqui nesta coluna uma apologia da palmada. Há pais que educam sem bater – e conheço alguns. Há outros que educam dando palmadas quando outras tentativas se esgotam. Os que não batem não são melhores pais porque não batem – e vice-versa. Cada relação é uma relação. Cada filho é diferente do outro. E com cada filho seremos pais diferentes, porque cada um deles nos trará demandas diferentes. Quem tem mais de um filho sabe bem disso.

Não tenho dúvida de que os autores e apoiadores da lei são bem intencionados. Mas acho que se equivocaram e erraram o alvo. Uma lei como esta desautoriza os pais – e o faz numa época em que eles mesmos, por diversas razões, já desautorizam a si mesmos. Ao exercer sua autoridade de forma abusiva, o Estado esvazia de autoridade e infantiliza seus cidadãos. Isto é grave. Embora eu tenha poucos motivos para confiar neste Congresso que aí está, espero que vozes com bom senso se ergam para impedir este projeto de virar lei. Se virar, como todas as leis sem lastro na realidade, não será cumprida. E isto desmoraliza a democracia.

(Publicado na Revista Época em 26/07/2010)

Desconhece-te a ti mesmo!

Desconhecer-se pode ser o início de uma busca estimulante

Uma amiga me contava na semana passada que iniciou uma nova aventura psicanalítica. Depois de anos, ela encerrou uma análise que lhe permitiu desatar muitos nós de sua vida e iniciou uma nova jornada no divã de outro psicanalista. Não foi uma troca de profissionais. Apenas o reconhecimento de que uma boa história havia se encerrado e o desejo de começar outra. O novo psicanalista perguntou a ela: “O que você espera desta análise? ”. Minha amiga respondeu: “Eu quero me desconhecer”.

Achei uma excelente resposta. Ou uma ótima pergunta sobre si mesma. Na mesma semana, conversando com outro amigo, de uma área bem diferente, ele me contava que não consegue mais se sentir estimulado pelo que durante as primeiras décadas da sua vida profissional lhe deu grande prazer e reconhecimento. Está mais interessado nos meandros de um novo esporte que começou a praticar do que nos temas que sempre o interessaram. Só que toda a sua vida adulta e sua estabilidade financeira foram construídas sobre aquilo que hoje não lhe dá mais tesão. Ou, seria mais exato dizer, não lhe dá mais tesão fazer do jeito que fazia antes e que deu certo no passado, mas que hoje não faz mais sentido para ele.

A mesma questão tem aparecido em conversas com outros amigos. Por alguma razão – e não exatamente a faixa etária, porque a primeira amiga tem 30 e poucos e o segundo mais de 50 –, estou cercada de pessoas que vivem um momento de vazio. Eu incluída. Quem me acompanha sabe que em março deixei meu emprego na revista Época, mantendo apenas esta coluna, e comecei uma vida sem carteira assinada nem estabilidade e com dinheiro apenas para o básico. Naquele momento, quando escrevi sobre a minha escolha num texto chamado “Escrivaninha Xerife”, eu dizia que meu desejo era me reinventar. Hoje, passados quase cinco meses dessa mudança, descubro que, para me reinventar é preciso antes me desconhecer.

Foi uma surpresa para mim – como, por outros caminhos, está sendo para meus amigos tão diferentes do início deste texto. Hoje, não basta saber quem eu sou. É preciso também saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. Vou tentar explicar melhor. Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que têm, mas com algum grau de livre arbítrio. Embora variem as nuances do que as pessoas pensam sobre cada um de nós, há algo que é geral, que emana desse personagem que criamos. E, aqui, quando me refiro à personagem, não há nenhuma relação com falsidade ou simulação. É tão verdadeiro quanto qualquer coisa pode ser verdadeira.

Na medida em que esse personagem se torna convincente, no sentido de ser bem-sucedido na sua relação com as várias esferas sociais, ele nos dá possibilidades e também nos tira possibilidades. Ele nos dá estabilidade, segurança, certezas, reconhecimento. Mas ele contém em si uma armadilha. Do tipo: “Bom, então é isso o que eu sou e esta é a minha vida, daqui em diante é só navegar”. Este tipo de conclusão pode se tornar uma prisão se você achar que esse personagem é tudo o que você é. Ou que tudo que havia para ser decidido na sua vida já está dado. Neste caso, a natureza fluida que nos habita vira cimento. E a busca, que é a matéria que move nossa existência, termina.

O que descubro – e que tem se mostrado um caminho bem mais difícil do que eu imaginava que seria – é a necessidade de se manter, pelo menos em parte, estrangeiro à própria vida. Manter algo de si no vazio, uma parte de nós capaz de olhar para o todo como terra desconhecida, aberta para o espanto de nós em nós. Ou seja: é preciso ser capaz de olhar para nós mesmos com estranhamento para que possamos enxergar possibilidades que um olhar viciado tornaria invisíveis. Este é o processo de se desconhecer como uma forma mais profunda de se conhecer. Para novamente se desconhecer e assim por diante. Exige muita coragem. Porque dá um medo danado.

Ao mudar minha vida para me reapropriar do meu tempo, um dos meus planos era me dar ao luxo de ficar olhando para o teto, por exemplo, sem fazer nada que pudesse ser considerado útil ou produtivo. Queria ser um pouco perdulária com o meu tempo num sentido novo. Em vez disso, tratei de ocupar todas as minhas horas com tarefas minhas, mas tarefas. Em vez de acordar às 6h30, como fazia quando tinha emprego e salário, passei a acordar às 4h30. Eu tinha tanto medo do vazio que resolvi preenchê-lo todo, a ponto de quase não dormir. Descobri que precisava abrir mão da covardia de não querer ter tempo para tudo o que não sei o que é. Demorei meses, me angustiei bastante, mas consegui me lambuzar de uma liberdade nova.

Descobri também que deveria fechar algumas portas – e não mais abri-las. Passei boa parte dos últimos anos abrindo portas e experimentando o que havia do outro lado. Isso me levou a experiências ricas e me ajudou a construir o momento em que pude começar a fechar portas. Descobri então que tão importante quanto abrir é ter a coragem de fechar. E fechar é muito mais difícil. Quando quase tudo está em aberto, é preciso ser muito seletivo com relação às portas. O que eu quero, o que eu não quero. O que é importante, o que não é importante. O que é bom para mim, o que não é. As pessoas com quem vale a pena compartilhar projetos, as que não quero manter perto de mim. O que me leva a algum lugar novo ou a alguma forma nova de ver o mesmo lugar, o que me traz de volta ao mesmo ponto.

Recebi convites de todos os tipos, alguns bem inusitados. Para ganhar muito mais dinheiro do que jamais ganhei, para não ganhar nada, para fazer o que nunca fiz, para fazer o que sempre fiz. Tive de parar e pensar que naquele momento eu tinha de recusar tudo porque ainda que algumas propostas fossem quase irrecusáveis, eu precisava ficar no vazio e me desconhecer para ser capaz de fazer escolhas mais verdadeiras. Eu precisava me desintoxicar de mim para poder ser mais eu mesma.

Descobri ainda que é preciso resistir também às certezas que as pessoas têm sobre nós. Há gente de todo o tipo. E alguns ficam muito desorientados se a gente muda, se qualquer coisa ao redor deles muda. Querem desesperadamente que voltemos a ser um clichê seguro. Quando você abre mão do seu clichê, o clichê que mora em alguns começa a coçar. Desinteressei-me de alguns amigos que queriam porque queriam que eu dissesse que sentia falta da vida que tinha, muito parecida com a deles. Percebi que torciam menos secretamente do que gostariam para que meu projeto desse errado, para então continuar vivendo em paz com certezas sobre as quais, ao que parece, têm muitas dúvidas. Do mesmo modo que guardei apenas um olhar de Mona Lisa para aqueles que adoram teorias conspiratórias e queriam saber “de verdade” o que tinha acontecido, porque lidam melhor com fofocas velhas do que com fatos novos. Fechar portas é também virar as costas para quem exige que sejamos sempre os mesmos para sua própria comodidade.

Mas, mais difícil do que resistir à necessidade de certezas de quem está ao nosso redor, é resistir à nossa própria necessidade de certezas – abrir mão de nossos clichês pessoais. Me descobri agarrada a todos os meus como um daqueles náufragos de histórias em quadrinhos boiando sobre destroços em mar aberto. Nos primeiros tempos, ficava muito desorientada com uma pergunta recorrente que me faziam: “Mas você deixou de ser repórter?”. Não! Eu não deixei de ser repórter, gosto cada vez mais de ser repórter. Mas ser repórter não é tudo o que eu sou. Boa parte das pessoas entende muito bem quando você não dá certo no que faz e tenta ser ou fazer outras coisas. Mas acha inadmissível que você dê certo e também tente ser ou fazer outras coisas. Não negando a sua história, pelo contrário. Mas a usando para criar outros eus possíveis.

Descobrir as outras possibilidades do que sou é, neste momento, minha maior tarefa. Para chegar a isso preciso me perder de mim, me desconhecer. Neste sentido, hoje minha reportagem mais difícil é a busca destes outros personagens que moram no universo sem limites definidos do que sou. E que são tão verdadeiros quanto a repórter que sou. E que me tornarão melhor repórter do que pude ser antes de construir a chance de viver a verdade dessa busca.

Um momento de vida que é apenas um momento que também deve ser superado para que outros possam vir, já que não me interessa sair de um escaninho para cair em outro. Nada impede que amanhã eu descubra que ter um emprego e um formato de vida mais estável é o melhor para mim – ou que não, eu continue achando mais divertido viver com mais autonomia e menos dinheiro. Ou que invente um jeito novo que serve para mim, mas pode não servir para mais ninguém. O contrato que assinei comigo mesma é o de seguir coerente com a necessidade de me buscar.

Quando minha amiga repetiu para mim o que disse ao analista – “Estou aqui porque quero me desconhecer” –, ela me ajudou a compreender melhor o meu momento. E eu pude dizer a meu outro amigo que ele precisa ter a coragem de se manter sem saber quem é por um tempo, para poder então descobrir o que quer fazer com seu desejo. Conto esta experiência aqui porque acredito que outras pessoas possam estar vivendo algo parecido, por caminhos e circunstâncias próprias – e acho importante refletirmos juntos. Manter parte de nós no vazio gera muito angústia, mas, se tivermos a coragem de aguentar um pouco, nos leva a lugares desconhecidos e excitantes de nós mesmos. Não é nem que as perguntas mudem, mas é o jeito de fazê-las que precisa ser novo para que possamos alcançar respostas mais estimulantes. Tenho para mim que as grandes perguntas de todos nós são sempre as mesmas, o que muda é como buscamos as respostas.

Acho que se desconhecer é sacudir o cimento que há em nós, colocado por nossas mãos e também pelas mãos ávidas dos outros. E isso vale para tudo, até para coisas muito triviais. Como aquelas frases: “Fulano não come peixe” ou “Sicrano detesta sair de casa”. Se o fulano acredita que porque não comia peixe aos dez anos não vai comer aos 30, nunca vai saber o gosto de um tambaqui. Assim como nenhuma pequena ou grande aventura acontecerá ao sicrano que não se arrisca além da porta da rua porque está esmagado no sofá da sala pelo dogma que criou para si e que os outros ajudaram a cimentar. Porque é só o começo. Destes pequenos dogmas se passa para outras verdades absolutas que dizem respeito a todas as áreas da vida. “Fulano é assim”, portanto fulano é imutável e, portanto, fulano está morto, mas não sabe.

Meu conselho é fugir de frases do gênero: “Eu sou um tipo de pessoa que…” ou “Deixa eu te contar que tipo de pessoa eu sou…”. Suspeito que quem diz essas coisas não sabe nem o caminho de casa. Acho que as buscas mais interessantes começam com frases como: “Não sei mais quem eu sou” ou “Não tenho ideia de quem eu sou”. Ótimo, podemos dizer que começamos a nos conhecer. Claro que só para nos perdermos logo adiante. Afinal, para que mais serve a vida?

(Publicado na Revista Época em 19/07/2010)

Testamento vital

CFM prepara documento para garantir dignidade na morte

Nos dias 26 e 27 de agosto, o Conselho Federal de Medicina (CFM) realiza em São Paulo um evento que poderá ser um marco na humanização não só da saúde, mas da vida: médicos e juristas vão discutir a criação do testamento vital. Previsto em vários países do mundo, o documento expressa o desejo do paciente diante de uma doença sem possibilidade de cura. Enquanto está consciente, a pessoa determina, por escrito e com testemunhas, quais são os limites do seu tratamento. Tem, assim, a possibilidade de encerrar sua vida com autonomia, respeito e dignidade. Como um ser humano ativo. E não como um objeto passivo amarrado a tubos numa unidade de terapia intensiva – sozinho, sem voz e sem afeto.

Explico melhor dando meu próprio exemplo. Tenho um pacto com meu irmão do meio. Quem sobreviver terá a responsabilidade de garantir o cumprimento da vontade do outro no encerramento de sua vida. Para nós, é muito importante morrer com dignidade, porque entendemos que morrer é o último ato da vida. É, portanto, viver. E queremos viver até o fim com respeito e coerência, na integridade do que somos. Se for eu que tiver uma doença sem chances de cura, caberá ao meu irmão garantir que eu não sofra intervenções cirúrgicas ou invasivas. Em resumo: não quero ser submetida a exames nem procedimentos desnecessários. Aquilo que hoje é chamado de “tratamento desproporcional” ou “obstinação terapêutica”.

Da equipe de saúde, espero que cuide para que eu me mantenha consciente, não sinta dor física e tenha o maior conforto possível até que minha hora chegue – nem prolongada nem abreviada. Pretendo aproveitar o tempo que me resta para revisitar minhas lembranças, conversar com aqueles que amo, acertar o que tiver de acertar. Quero morrer de preferência na minha casa, perto das pessoas importantes. Se possível, contando histórias da minha vida. Se por algum motivo estiver inconsciente, que alguém conte histórias para mim, coloque as músicas que eu gosto, leia os trechos de meus livros preferidos, ria e chore lembrando da melhor vida que pude ter. Se tiver que ser num hospital, só aceito encerrar minha vida numa enfermaria de cuidados paliativos.

Esta é a minha vontade. E tenho convicção de que só eu posso decidir sobre como quero me despedir da vida no caso de uma doença sem cura. Apesar da clareza da minha decisão, mesmo que eu escreva um documento, assine, arrole testemunhas e registre em cartório, não há hoje nenhuma garantia de que eu seja respeitada no meu desejo de morrer com dignidade – coerente com o que é dignidade para mim.

Diferentemente de outros países, como Estados Unidos, Uruguai e várias nações europeias, no Brasil o testamento vital ainda não existe na legislação. Assim, caso eu hoje tenha uma doença que se revele incurável, corro o risco de morrer sozinha, amarrada aos tubos de uma UTI, naquilo que para mim é uma cena de filme de terror e contraria minhas crenças mais profundas. Basta que o médico decida que é dono da minha vida ou, pior, que sabe o que é melhor para mim. E, pronto, estou condenada à morte que nunca quis.

O respeito à dignidade da vida humana é a preocupação que motiva o Conselho Federal de Medicina a promover este debate e propor a criação do testamento vital. O documento poderá nos dar a garantia de sermos respeitados também no último ato de nossas vidas. O psiquiatra espanhol Diego Gracia, um dos maiores nomes da bioética mundial, está entre os conferencistas convidados a debater a questão em agosto.

Para nos ajudar a compreender a importância do debate que se inicia publicamente no Brasil, entrevistei para esta coluna o cardiologista José Eduardo de Siqueira, 68 anos, doutor em medicina, professor de clínica médica e bioética da Universidade Estadual de Londrina e membro da comissão de cuidados paliativos do Conselho Federal de Medicina. Eles nos fala sobre o que está em jogo na discussão do testamento vital. E também sobre a paisagem na qual este debate se desenrola.

É uma conversa sobre os limites e equívocos da medicina, a deficiência do currículo das faculdades e a premência de se formar um novo médico – um que trate não as doenças das pessoas, mas as pessoas com doenças. José Eduardo de Siqueira, um médico com larga formação humanista, nos mostra que o testamento vital não é apenas um documento, mas uma discussão profunda sobre o que é ser médico e o que é ser paciente, sobre a morte e, principalmente, sobre a vida.

ÉPOCA – Vivemos um momento histórico onde a prática médica é determinada por um aparato altamente tecnológico, os médicos são especializados em pedaços cada vez menores do corpo e a prática corriqueira é estender a vida o máximo possível, com todo o tipo de tratamento, ainda que seja invasivo e doloroso para o paciente e mesmo que ele esteja além da possibilidade de cura. Por que, justamente neste momento, o Conselho Federal de Medicina decide propor um documento que coloca limites no tratamento e que respeita a autonomia e o desejo do paciente?

José Eduardo de Siqueira – Tudo o que você falou sobre o exercício da medicina hoje é verdadeiro. Estamos vivendo um momento em que há um fascínio pela tecnologia. Este fascínio levou a uma situação de medicalizar a vida e medicalizar a morte. A tecnologia chegou a tal ponto que podemos dizer que o indivíduo que está na unidade de terapia intensiva (UTI) de um hospital de ponta, se os médicos quiserem, pode ter sua vida prolongada por muito tempo. Até a primeira metade do século XX o domínio que tínhamos sobre a morte era muito pequeno. A partir dos anos 60, a tecnologia passou a se desenvolver muito. E nós perdemos a noção. Não só os médicos, mas a sociedade toda perdeu a noção da finitude da vida. Há um texto muito bonito no qual Rubem Alves (psicanalista e escritor) diz que antes nós sabíamos ouvir a voz da morte. E, portanto, éramos sábios na arte de viver. Agora que nosso poder cresceu de uma maneira enorme com a tecnologia nós imaginamos que estamos imunes ao toque da morte. E perdemos a possibilidade de aprender com ela. Isso é muito verdadeiro. Há um livro chamado “A arte perdida de curar”, do Bernard Lown, que talvez seja o maior cardiologista do século XX. Ele diz que nós estamos, nas escolas de medicina, formando “gerentes de biotecnologias complexas”. Veja que coisa forte isso. Profissionais que perderam a noção do que é a arte da medicina. Bernard Lown diz textualmente: “A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do ato de morrer”. A preocupação que nos move agora é a seguinte: é preciso ter bom senso. E é complicado este debate porque, se você olhar a grade dos cursos de medicina, vai constatar que estamos formando pessoas especializadas em doenças: sabem tratar doenças de pessoas, mas não sabem tratar pessoas.

ÉPOCA – Me parece que a maioria dos médicos hoje só vê corpos ou, pior, pedaços de corpos…

Siqueira – Exatamente. É uma visão biologicista. Perdemos a noção do ser humano completo. Aí você coloca o doente na UTI, oculta tudo dele. Existe uma coisa que se chama “conspiração do silêncio”. Fica o médico conversando com os familiares. E o paciente sozinho na UTI. A morte hoje é realmente uma coisa fria, sofrida e que não corresponde à dignidade humana. Nossa preocupação neste momento é resgatar a nossa dignidade. E isso de alguma maneira é uma mudança de paradigma. Porque o paradigma imperante é o da tecnociência. E a tecnociência não só por parte dos médicos, mas da população de um modo geral. Eu estou cansado de testemunhar isso no meu consultório. Depois de uma longa entrevista com o paciente, eu não peço exames ou peço poucos exames. Aí o paciente diz: “Mas, doutor, você não vai pedir um ecocardiograma?”. Ou seja. O fascínio pela tecnologia é muito grande. E está disseminada entre a população, também, a ideia de que se você está colocando o doente numa UTI e fazendo tudo até o último suspiro, você está fazendo um benefício. E, na realidade, você está fazendo um malefício. Está realmente tratando aquele ser como objeto – e não como sujeito.

“Precisamos admitir que estamos equivocados e
que temos usado a tecnologia de forma insensata.”

ÉPOCA – De que incômodo surge esta necessidade de discutir um documento que possa dar mais dignidade à morte? Para você, por exemplo, de que incômodo surge a sua necessidade de colaborar para este debate?

Siqueira – Eu comecei a dar aulas nos anos 70. E eu tive esta trajetória fortemente cartesiana. A minha experiência docente nasce nos anos 70 já herdeira das primeiras unidades de terapia intensiva. A visão que nós tínhamos era a de olhar o monitor. Não víamos a cara do doente. Olhávamos a sonda urinária para ver quanto tinha de xixi, olhávamos as variáveis bioquímicas. Com o tempo a coisa se transformou em algo macabro. Se você entrar hoje em qualquer unidade de terapia intensiva desse país, vai ver que um grande percentual dos leitos está ocupado com doentes que não têm possibilidade de cura. É dramático, porque você vê o indivíduo numa decadência progressiva e tudo o que você faz por ele é simplesmente intervir com tecnologia. E o médico sabe que não tem condições de mudar aquilo. Os cuidados paliativos vieram para demonstrar que não, que podemos fazer muita coisa por este paciente. Mas podemos fazer numa unidade de cuidados paliativos, onde ele é respeitado naquilo que é. Nossa preocupação, se eu tiver de resumir numa palavra, é, em primeiro lugar, admitir que estamos equivocados. Que o uso da tecnologia está sendo feito de maneira inadequada, insensata. Segundo, que nós temos de dar o protagonismo de nossas ações ao nosso paciente. Terceiro, que temos de ter respeito pelo ser humano. Em quarto, eu acho que privar o ser humano deste momento decisivo da vida dele é uma coisa cruel. Porque neste momento a pessoa tem muita coisa para contar, para perdoar, para acertar. Há um texto do (Rabindranath) Tagore, um poeta indiano, lindíssimo. Ele diz que morrer pertence à vida, assim como nascer. Para andar você tem de dar um passo. Levanta o pé e o abaixa até o chão. A vida é um movimento. Nascer e morrer. E nós, médicos, temos cortado esse movimento de maneira abrupta, inadequada e desumana, privando as pessoas de viver isso. E o que damos em troca? Damos em troca simplesmente uma coisa que é esta obstinação pelas variáveis biológicas.

ÉPOCA – O que é uma morte digna?

Siqueira – A Elisabeth Kübler-Ross (psiquiatra suíço-americana que se tornou uma referência na abordagem da morte na segunda metade do século XX) fala disso. Morrer com dignidade é morrer com os meus valores, cercado das pessoas que eu amo. Na unidade de terapia intensiva você morre absolutamente anônimo, morre sozinho. Eu cansei de entrar numa UTI e um doente me agarrar a mão e não largar. Aí eu chego perto dele. Ele diz: “Por favor, fica para conversar comigo alguma coisa”. Chegamos a um ponto que percebemos que estamos fazendo a coisa errada. Não estamos tratando o indivíduo como ele deve ser tratado. Como diz a Elisabeth, eu quero morrer com os meus valores, com a minha dignidade, cercada pelos que eu amo. Tem um livro que é muito interessante, escrito por duas enfermeiras americanas que fazem cuidados paliativos em atendimento domiciliar nos Estados Unidos. Em português, o título é “Gestos finais”. Em inglês, é “Final Gifts”, ou seja, “Presentes finais”. Elas contam casos onde fica muito clara a incrível capacidade deste momento, de perdoar, acolher, rever a vida. E as pessoas estão sendo privadas disso.

ÉPOCA – Sendo roubadas do último ato de suas vidas. Porque é um roubo, não?

Siqueira – É um sequestro e muito cruel. Vou contar um caso que eu vivi. Tive um doente que tinha uma traqueostomia e não conseguia falar. Todo dia que eu ia à UTI, eu dava uma tabuinha para ele escrever. E um dia ele escreveu: “Doutor, vamos parar com isso? E vamos fazer o meu descanso?”. É isso. Agora, a maioria dos doentes não tem a possibilidade de ter com quem conversar. Sobretudo os da UTI. Primeiro, o médico não tem formação. A educação dele é para curar. Durante todo o curso ele imagina que isso é possível. E isso só é possível eventualmente. Nós curamos, mas há um aforismo antigo que diz assim: “O dever do médico é curar às vezes, aliviar e confortar sempre”. E nós estamos fazendo só a primeira parte. Ensinamos os meninos a fazer o diagnóstico. E imaginamos que ensinando esta tecnologia de ponta estamos fazendo grande coisa. E não estamos fazendo grande coisa. Por outro lado, há trabalhos que demonstram claramente a pobreza da grade curricular do curso de medicina, no que se refere a conversar sobre a morte: não a biológica, mas a de um ser humano. Há, portanto, muito que fazer para mudar essa situação.

ÉPOCA – Me chama a atenção quando você fala em “nós”. A “nossa preocupação”. Mas quem são este “nós”, já que não me parece que essa seja uma preocupação central para a maioria dos médicos?

Siqueira – Você tem razão. O “nós” ao qual me refiro é uma geração como a minha, que viu essa coisa avançar, que viu o nascimento das primeiras unidades coronárias. E a gente lutava… Você percebe como a palavra “luta” é uma coisa curiosa nesse contexto? Porque o médico, quando perde um doente, acha que perdeu uma batalha. Aliás, há outras palavras curiosas referentes a isso. Eu tenho um “arsenal” na UTI… Arsenal é aquela coisa tremenda, de guerra…

ÉPOCA – É verdade. E o elogio que dão ao paciente é de que é um lutador. Fulano lutou até o fim, foi um guerreiro… Mas, às vezes, é mais sábio aceitar os limites, parar de “lutar” e viver o melhor possível o tempo que ainda tem.

Siqueira – Minha geração viu o nascimento e o apogeu da utilização inadequada da tecnologia e teve a possibilidade de fazer um exercício crítico. Sobretudo porque nós formamos os atuais médicos que estão na unidade de terapia intensiva. Nós somos culpados pelo que está aí. O aparelho formador, às vezes, é deformador. Há vários estudos mostrando que, quando o indivíduo entra no curso de medicina, ele entra imbuído de um altruísmo, da ideia de ajudar o próximo. E na medida em que o curso vai passando, nós vamos colocando cada vez mais informações técnicas dentro dele. E, no final, aquele indivíduo que entrou altruísta sai um técnico frio, que só sabe olhar como um gerente de tecnologias complexas. Depois da nossa, há uma geração primorosa, na faixa dos 50 anos, de paliativistas como Maria Goretti Maciel e Cláudia Burlá, que tiveram a possibilidade de conhecer essa realidade fora do país. A Cicely Saunders (enfermeira inglesa) começou o movimento de cuidados paliativos nos anos 60. A Elizabeth Kübler-Ross publicou seu primeiro livro em 1969. Eu acho que esta geração que eu citei começou a tomar conhecimento de que existe uma outra medicina, uma outra maneira de abordagem, que existe a possibilidade de tratar o indivíduo com dignidade, respeitando o momento da morte. E isso não tem nada a ver com aquela história com que alguns fazem confusão, de que se não há nada para fazer vamos entregar ao paliativista. Não, os cuidados paliativos são uma prática ativa. Os paliativistas dão qualidade de vida aos pacientes.

“O testamento vital é um documento que expressa a vontade da pessoa no momento
em que ela está lúcida. Não pode ser descumprido nem pelo médico nem pela família.”

ÉPOCA – Como você definiria o testamento vital?

Siqueira – Testamento vital é o nome mais popularizado. Surgiu na Califórnia, nos Estados Unidos, em 1976: “living will”. Estamos pensando em chamar de “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”, mas ainda estamos discutindo. Terminal é um termo, por exemplo, que não me agrada muito. É uma herança do raciocínio cartesiano de que é o fim. Sim, é o fim, mas é um fim que pode durar meses, anos. E há muito o que fazer com esse paciente, que merece todo o nosso cuidado.

ÉPOCA – Mas como é, na prática, o testamento vital ou a “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”?

Siqueira – É um documento escrito, tem de ser obrigatoriamente escrito, por um paciente maior de idade e capaz. E com testemunhas. Esse documento deve conter orientações a respeito dos cuidados médicos em situação de terminalidade da vida. Especificando, também, se no caso de tornar-se incapaz de expressar esta vontade, o doente terá um procurador. É um documento para especificar que aquele paciente está descartando o tratamento desproporcional.

ÉPOCA – E como determinar o que é “tratamento desproporcional”?

Siqueira – Tratamento desproporcional é a intervenção médica efetuada em pacientes terminais, que consiste na utilização de métodos diagnósticos ou terapêuticos cujos resultados não trazem benefício ao paciente. Ao contrário, podem trazer mais sofrimento. São inúteis, pois não promovem alívio e conforto nem modificam o prognóstico da doença. Ou seja, o benefício almejado é muito menor que os inconvenientes provocados. Os profissionais de fala hispânica a denominam de “encarniçamento terapêutico”. E os anglo-saxões, mais comedidos, de “futilidade terapêutica”.

ÉPOCA – Vocês pretendem especificar o que são tratamentos desproporcionais no testamento vital?

Siqueira – Alguns juristas acham que deveríamos especificar o que é desproporcional, mas é complicado. O que é desproporcional para um paciente, pode não ser para outro. Depende do caso. Acredito que vamos fazer um texto mais genérico. E a definição será feita com o paciente, com os profissionais que fazem cuidados paliativos ou com o médico do paciente, e com a família. Deverá ser uma decisão deste núcleo. Outra questão, a do prazo. Os americanos, por exemplo, determinam que o documento seja válido por cinco anos e então precisa ser refeito. Nós achamos que não é necessário ter um prazo de validade. No texto podemos deixar claro que ele pode ser revogável a qualquer momento, caso o paciente mude de ideia.

ÉPOCA – O testamento vital é mais importante para os casos em que a pessoa perde a consciência?

Siqueira – Não só. De um modo geral os pacientes passam por um longo período em que estão conscientes. É neste momento que o testamento vital dever ser feito. Ele deve ser uma expressão da vontade da pessoa, feita no momento em que ela está lúcida, especificando o que ela quer. No documento dos americanos está dito, inclusive, que ninguém pode tomar decisão contrária: nem o médico, nem a família. Eu insisto que é importante especificar que nem o médico pode decidir o contrário porque não há uma visão homogênea. Existem médicos – e acho que é o caso da maioria – que consideram a ortotanásia adequada. Mas existem médicos que consideram a ortotanásia um tipo de eutanásia. Acho importante determinar no testamento vital que ninguém poderá botar uma cláusula diversa daquela que o indivíduo estabeleceu no momento da declaração.

ÉPOCA – Acho que seria importante definir aqui o que é ortotanásia, para nenhum leitor ficar com dúvidas…

Siqueira – Ortotanásia refere-se aos cuidados ativos aos pacientes portadores de enfermidades que não respondem a qualquer tratamento curativo.Tem como objetivo controlar a dor e outros sintomas,assim como oferecer atenção médica ao ser humano enfermo e sua família,expressando-se por cuidados de ordem física,psicológica,social e espiritual.Consiste em um sistema de apoio prestado por equipe multidisciplinar de saúde empenhada em ajudar o paciente a viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua morte,prestando adicionalmente apoio à família do paciente na elaboração do luto. A ortotanásia se contrapõe ao que a gente chama de distanásia (o prolongamento da vida do paciente sem chances de cura por meios artificiais).

“Estamos diante de uma faculdade de medicina paquidérmica, imobilizada.”

ÉPOCA – Imagino que a resistência, entre os médicos e também fora, é muito grande. E será grande nesse debate sobre o testamento vital. Qual é a sua avaliação?

Siqueira – Há muita resistência, com certeza. A estrutura curricular no curso de medicina é extremamente rígida. Aqui em Londrina conseguimos implantar, desde 1998, um ensino baseado em problemas. Nesta metodologia, o aluno passa a ser o protagonista, e o professor o auxilia a buscar o conhecimento. Mas a maioria das escolas ainda segue aquele modelo tradicional de que vai um professor lá e fala “a verdade”. Ainda estamos diante de uma universidade que é paquidérmica, imobilizada. Para você introduzir alguma coisa nova, demanda tempo. Cuidados paliativos, por exemplo, ainda não tem espaço na grade curricular. Nós conseguimos um espaço para bioética. Mas ainda insatisfatório.

ÉPOCA – E a resistência, no geral? Imagino que, mesmo dentro do Conselho Federal de Medicina, não deve ter sido uma discussão fácil, até chegar a um evento sobre testamento vital. E, é claro, sempre aparecem aqueles que usam de má fé e tentam distorcer dizendo que, no fundo, o que vocês propõem é uma autorização para eutanásia. O que você diria a quem tentar relacionar o debate com eutanásia?

Siqueira – Eutanásia ativa é pegar e injetar cloreto de potássio ou outra coisa no paciente. Eutanásia passiva é você deixar de tratar a pessoa. Ora, nos cuidados paliativos você trata a pessoa, é ativo. A ortotanásia não está nem na categoria da eutanásia ativa nem da passiva. Simplesmente não é eutanásia.

ÉPOCA – De onde você espera maior resistência, dos médicos ou da sociedade, em geral?

Siqueira – Talvez tenhamos de enfrentar uma resistência generalizada, a começar pelo poder judiciário. Explico. O que está acontecendo hoje é uma coisa dramática. Se nós medicalizamos a vida, também estamos jurisdicionalizando a morte. Não todos os operadores de direito, claro, mas parte deles. O que eu quero dizer com isso é o seguinte. A gente teme que os operadores de direito comecem a colocar tantas regras que vai ficar impossível fazer um testamento vital. Vou te dar um exemplo: no sistema brasileiro, teria de ser feito com um cartório, um notário. Isso obrigaria o indivíduo a ir a um cartório, com duas testemunhas. Temo que, se burocratizar o testamento vital, ele vai se tornar um documento complicado. Espero estar equivocado. No conselho estamos cercados de juristas extraordinários, que dizem que operadores de direito vão compreender, mas não sei.

ÉPOCA – Como você imagina que deva ser colocado em prática?

Siqueira – Acredito que a forma como eu vejo não vai vingar. Mas, para mim, o ideal seria que no prontuário do doente no hospital tivesse um documento chamado testamento vital ou outro termo que vamos definir. Faria parte do prontuário, em casos de doenças que ameaçam a vida. E teria de ser apresentado ao paciente. Isso envolveria um avanço cultural muito grande, porque é o médico, e não o assistente social, que vai ter de fazer. O médico conversando com o doente. Ele se sentaria com o doente e, com todo o tempo necessário, explicaria aquele documento. E o doente o preencheria, com duas testemunhas, como parte do prontuário.

ÉPOCA – Isso seria uma mudança de paradigma muito grande, já que, para fazer isso, o médico teria de realmente olhar para o paciente e escutá-lo.

Siqueira – É um salto muito grande. O médico teria de sentar com ele, conversar o tempo que for necessário, segundo o ritmo do doente e não o do médico. Não é: “Vamos preencher agora, eu tenho dez minutos”. Não. O médico vai ao paciente para conversar não uma, mas muitas vezes, sem o papel na mão. No momento em que perceber que o indivíduo está em condições de mexer com esta questão, então preenche. Se isso se passar no consultório do médico do paciente, estaria lá, no prontuário dele. Ficaria uma cópia com o médico, outra com o paciente. Depois precisa reunir a família e dizer: “Olha, isto aqui é a vontade dele, vocês podem conversar, mas é a vontade dele”. Porque esta coisa de deixar a família resolver é, no meu ponto de vista, muito complicado. Nós vivemos situações em que os filhos de pessoas idosas querem mandar na decisão, decidir pelo paciente.

ÉPOCA – E como evitar a burocratização, especialmente com os pacientes do SUS? Ou seja, o médico passa correndo pelo leito do paciente, usa uma linguagem técnica e diz que precisa preencher em cinco minutos e assinar para que ele possa permanecer no hospital e seguir sendo tratado… Mais difícil ainda quando sabemos que muitos brasileiros têm dificuldade de ler e escrever e alguns documentos médicos são indecifráveis até para quem tem pós-doutorado…

Siqueira – É uma preocupação absolutamente pertinente. Por outro lado, temo burocratizar demais a realização do testamento vital, se formos pelo caminho cartorial. Temos de encontrar um meio termo. Por isso este evento em agosto, onde discutiremos com excelentes juristas. Espero que encontremos um meio termo que garanta um documento que revele a verdade, que proteja a autonomia daquele ser humano, mas sem burocratização demasiada, para não se tornar inviável. Sabemos que, no Brasil, ainda estamos no Casa Grande e Senzala. O Brasil tem ilhas em que o ser humano é respeitado na sua autonomia e dignidade, mas muito mais gente não tem a possibilidade de exercer sua cidadania. É difícil. Mas acho que temos de fazer isso. Colocar essa questão na pauta.

“Um estudo mostrou que 33% dos pacientes do SUS não são
chamados pelo nome e 30% nem sequer são examinados”

ÉPOCA – Como fazer a discussão do direito de ter uma morte digna numa sociedade que não consegue falar sobre a morte, que acredita que deve ser jovem para sempre e não morrer nunca? Esta é uma barreira difícil de transpor, não?

Siqueira A sociedade capitalista induziu as pessoas a pensar na juventude eterna. A morte é um tabu e ninguém quer pensar nela. A sociedade de mercado incluiu dentro dos valores esta coisa de que “consigo adiar minha morte” ou “eu não quero discutira a morte, eu quero discutir a vida”. Porque permanece este hedonismo, esta coisa de “não vou envelhecer porque velho é feio”. Ou seja. Nós temos várias barreiras, culturais, de formação profissional etc. Vivemos numa sociedade absolutamente individualista, na qual não existe ouvir o outro, a alteridade, aquilo que diz (Emmanuel) Lévinas (filósofo francês): “Quero olhar o rosto do outro e me curvar diante dele”. Isso não existe. E me deixa muito triste. Fizemos um estudo em Londrina com 324 pacientes, comparando o atendimento de um convênio e do SUS. Foi apresentado no VI Congresso Mundial de Bioética, em Brasília, no ano de 2002. Mostramos que, no SUS, a pessoa fica esperando um absurdo de tempo por uma guia. Em algumas especialidades, seis meses. Então recebe um papel e vai a uma sala onde há um banco de cimento, com um monte de gente. Descobrimos que 53% esperam lá por mais de uma hora. E constatamos que 33% dos pacientes não são chamados pelo nome. Não são chamados pelo nome! Cerca de 70% deles permanecem dentro do consultório menos de 10 minutos e 30% nem sequer são examinados.

ÉPOCA – O que você está dizendo – e que pode ser paradoxal para alguns profissionais – é que cuidar é respeitar o desejo do paciente e que ajudar a morrer também é um ato médico. É isso?

Siqueira – Sem dúvida. Cuidar é ter a percepção do ser bio-psíquico-social-espiritual. Ter na sua frente todas estas dimensões. O problema é que hoje prevalece a fatia biológica. Eu aprendo a tratar um fígado doente, um coração doente, mas não aprendo a tratar o ser humano em toda a sua dimensão. E um ser humano é essa realidade complexa. Cuidar significa atender esta pessoa com os valores dela, com a história, a biografia, as crenças dela. Cuidar é isso. É dizer: “Você é o protagonista e eu vou te auxiliar neste momento difícil da tua vida. Mas é você quem vai determinar quais são os passos que vamos dar. E não eu”. O médico paternalista hipocrático já era. Precisamos formar um médico habilitado para ver essas dimensões todas. E não simplesmente a dimensão biológica.

ÉPOCA – Como você explicaria para um estudante de medicina que ajudar a morrer também é um ato médico?

Siqueira – Hoje, com a formação que nós temos, é muito difícil. Você não vai encontrar um médico capaz de acolher esta argumentação porque ele acha que esta não é a missão dele. A missão dele é salvar. O que temos de fazer? Temos de criar condições para que este indivíduo tenha educação continuada e tenha possibilidade de refletir sobre outros valores. Na situação atual, talvez o conselho tenha de fazer isso. Tenha de se desdobrar para ir a todos os lugares do Brasil para conversar sobre o que queremos fazer, para conversar com os médicos. Porque a realidade do Brasil é muito diferente da que está na nossa cabeça. É um trabalho muito grande, mas é um trabalho que vai significar algo importante na medicina. A medicina precisa aprender a tratar o ser humano como ele é, no seu sofrimento, no que Cicely Saunders chamava de “dor total”. Os médicos precisam ser preparados para a iminência da morte. Se você conversar com a (Maria) Goretti (Maciel) sobre os que fazem estágio na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo, ela vai te contar que eles não sabem o que fazer, porque não tiveram no curso ninguém que conversasse com eles sobre isso. Com frequência entram em parafuso porque percebem que não estão preparados e não conseguem fazer aquilo. Temos esperança de que, com o tempo, os paliativistas consigam fazer com que essas pessoas se motivem. Porque é muito gratificante. Quando você visita uma unidade de cuidados paliativos como esta, você sai de lá com a certeza de que a medicina é o que eles fazem lá – e não lidar com aparelhos. Ali está o exercício mais digno da medicina. Isso implica ter a consciência de que tratar de um ser humano é também reconhecer que o que você pode fazer é limitado. Nesta limitação você vai acolher, olhar e cuidar. Mudar esta mentalidade para que os médicos possam entender isso demanda tempo, é um horizonte para nós. Ao longo dos anos é enfiado goela abaixo do médico uma coisa de formação técnica. Mas dentro dele ainda vive o menino altruísta que entrou no curso porque queria ajudar o ser humano. Sócrates (filósofo grego) dizia algo mais ou menos assim: “Eu não ensino nada a eles, o que eu faço é simplesmente provocar, para que tirem de dentro deles a coisa mais bonita, o parto das almas”. Acho que a gente vai conseguir. Tenho convicção de que é um caminho longo, mas vamos conseguir.

ÉPOCA – Vou dar um exemplo pessoal. Eu e meu irmão temos um pacto para cuidar um do outro quando chegar a nossa hora de morrer. Nosso compromisso mútuo é garantir que a vontade do outro seja cumprida, no sentido de que não queremos estar numa UTI nem amarrado a aparelhos nem ter nossa vida prolongada artificialmente. Estamos preparando este documento e vamos registrá-lo, com testemunhas. Hoje, este documento seria aceito? Ou, perguntando de outra maneira, conseguiríamos que nosso desejo de uma morte digna, a partir do que é digno para nós, fosse respeitado?

Siqueira – Hoje, seu irmão teria de ter um poder de persuasão muito grande para que os médicos aceitem isso. Não há nenhuma garantia porque não está expresso em lei. Não existe ainda este documento no Brasil, esta figura do testamento vital. Eu mesmo tenho um trato com um amigo meu, médico também, neste sentido. Mas não existe nada que hoje nos garanta que nosso desejo será respeitado. Se você e o seu irmão registrarem em cartório e um dos dois levar esse documento ao médico, tenho a impressão de que o médico vai ter sensibilidade para acolher. Mas ele não é obrigado a isso. Ele pode dizer: “Você vai me desculpar, mas isso não está previsto, e eu não posso ser acusado de omissão de socorro. Eu acho que seu irmão precisa de uma intervenção assim e assado, e vou fazer o que eu acho. Se você quiser entrar na justiça, entre”.

ÉPOCA – Mas, se eu tenho o direito constitucional de viver com dignidade, eu também tenho o direito de morrer com dignidade, na medida em que o morrer faz parte da totalidade da vida, é o ato final da vida, está abarcado dentro da vida. E só eu posso dizer o que é dignidade para mim. Não seria inconstitucional me privar disso?

Siqueira – Enquanto nós não tivermos um reconhecimento através de legislação de que o indivíduo tem efetivamente este direito, que está prevista a figura do testamento vital, o médico pode dizer não ao seu desejo. Não digo que vá dizer não, mas digo que pode dizer não. Este é o objetivo do debate que estamos iniciando. Precisamos de um documento que ampare a autonomia do paciente também nesse momento final.

ÉPOCA – Em que países existe o testamento vital e como funciona?

Siqueira – Na Califórnia, o “living will” existe desde 1976. Em 1991, foi estendido a todos os estados americanos e chamado de “Patient Self Determination Act” – ou, traduzindo, “Ato de Autodeterminação do Paciente”. Vários países da Europa possuem algo semelhante. Aqui na América do Sul, o Uruguai é um dos poucos países que tem a figura do testamento vital.

“Quando chegar a minha hora, eu não quero um técnico
dizendo que vai prolongar minha vida com aparelhos.”

ÉPOCA – Como é o testamento vital acertado com seu colega?

Siqueira – Este colega é cardiologista também. E conversamos muito. Estamos vivendo isso há muito tempo e testemunhamos as barbaridades que são feitas com doentes terminais. Nós combinamos que, na situação em que um de nós tenha uma doença que ameace a vida, o outro vai procurá-lo e vamos fazer o documento naquele momento. Eu não quero ser internado numa UTI, a não ser que tiver uma doença aguda. Mas, se eu tiver uma doença que vai acabar com a minha vida, eu não quero ser internado numa unidade de terapia intensiva. Eu não quero receber suporte com aparelhos, eu não quero receber nada além do cuidado de tirar a dor, de aliviar a minha respiração, algo que me ajude a ter consciência, lucidez, pra fazer o que tenho de fazer. E que isso seja feito no ambiente que eu escolher. Ou numa unidade de cuidados paliativos ou na minha casa, com cuidado ambulatorial. Vou querer receber cuidados paliativos. E não quero um técnico me dizendo que vai fazer isso ou aquilo, que pode prolongar minha vida com aparelhos.

ÉPOCA – Este é o mesmo testamento do seu amigo?

Siqueira – É a mesma visão do meu amigo. Na realidade, ele é um hemodinamicista. Lida com situações agudas de infarto do miocárdio. Tem essa mesma percepção: vamos nos livrar desta coisa que estamos vendo e que está sendo cruel, de desrespeito grave à dignidade, à vontade, à personalidade daquela pessoa.

ÉPOCA – Você já viveu isso com algum paciente?

Siqueira – Eu tive um doente que tinha uma coronariopatia muito grave. Isso aconteceu uns oito anos atrás. A possibilidade cirúrgica dele era pequena. Este paciente era um dentista, um professor, muito meu amigo. Estava separado da mulher, com uma parte da família em Londrina, outra em Brasília. Veio conversar comigo, queria saber de sua doença. Eu falei: “Acho que, do ponto de vista cirúrgico, as chances são pequenas”. Ele perguntou sobre os números. Eu disse: “Olha, não tem números, só posso dizer que é uma chance pequena”. Ele perguntou: “Quanto tempo de vida eu tenho?”. Eu disse: “Não sei, não sou Deus. Mas posso te dizer, pela literatura médica, que a gente consegue que você tenha pelo menos seis meses de vida”. Ele decidiu não fazer nenhuma intervenção cirúrgica. Queria resolver seus problemas existenciais, com a família que teve, com a família que tinha. Um de seus filhos, dentista também, soube que nós tínhamos conversado. Ligou para mim: “Você está louco? Meu pai tem de ser operado, ele tem chance”. Tentei explicar para ele, mas ele ficou muito bravo. Achava que não podia ser decisão só do paciente. Filhos e netos começaram a pressionar meu amigo para que se submetesse à cirurgia, mas ele se manteve firme na sua decisão. Acabou morrendo em Brasília, numa morte súbita na casa de uma filha, nessa peregrinação de acertar suas coisas. Hoje, passados oito anos, seu filho, aquele que havia ficado muito bravo, me agradece. Ele disse: “Olha, naquela época eu tinha uma visão muito equivocada. Eu tinha uma visão egoísta. Eu queria que o meu pai estivesse vivo de qualquer jeito porque eu não concebia a morte dele. Eu não conseguia imaginar a morte dele. Agora que passou esse tempo todo acho que tudo aconteceu da melhor maneira. Se ele tivesse passado por uma intervenção cirúrgica teria sofrido muito mais”.

ÉPOCA – Sempre achei que deixar algo por escrito ajudaria minha família a ter tranquilidade no momento tão difícil da minha morte, porque teria a serenidade proporcionada pela certeza de estar cumprindo a minha vontade. Mas a família pode ser um grande problema, não é?

Siqueira – Pode ser muito complicado, porque entramos num universo meio freudiano. O ser humano também não é uma ilha, tem estes vínculos todos. Minha experiência é a seguinte: o problema mais difícil é abordar isso com a família. Vivemos essa cultura de que as pessoas acham que podem determinar o que o outro tem de fazer. E, às vezes, o que parece ser um benefício é, na verdade, um malefício. Testemunhei um caso na UTI de um rapaz de 28 anos de idade, que tinha o vírus HIV. Ele já tinha tido todas as evoluções possíveis e estava com uma broncopneumonia. Chamou a médica que o atendia e disse: “É o seguinte, doutora, eu sei que meu negócio é grave. Eu quero deixar claro: eu não quero ser entubado e eu não quero traqueostomia. Se eu começar uma crise quero que a senhora apenas me alivie, tire a dor, use máscara de oxigênio se for o caso”. A médica disse que sim. Aí chegou a hora da visita da família e ela disse: “Olha, eu preciso conversar com vocês. Ele está em tal situação e acabou de me dizer que não quer isso e aquilo”. Os pais disseram: “Negativo, doutora, a senhora vai fazer. Se tiver que entubar, vai entubar. E se não fizer, vamos dizer que a senhora omitiu socorro”. Esta médica me procurou para perguntar o que ela deveria fazer. Eu disse: “Acho que você tem de se curvar diante da vontade do paciente. Se você entubar, depois vai ter de fazer traqueostomia e este cara vai sofrer”. Ela me disse: “Muito bem, mas você vai lá tomar essa decisão, porque eu não vou tomar”. Lamentavelmente esse rapaz foi entubado, traqueostomizado e ficou mais ou menos uns 20 dias assim até morrer. Teve a morte que ele não queria, a morte que, quando lúcido, disse claramente que não queria ter.

ÉPOCA – O testamento vital o salvaria desta morte?

Siqueira – Exatamente. Se tivesse o documento a médica poderia dizer: “Vocês vão me desculpar, mas está escrito aqui e eu vou cumprir a vontade do paciente”. No texto da Califórnia está dito que esta instrução não será desobedecida nem pelo médico nem pela família. Será respeitada por ser expressão da vontade do paciente. Nós podemos incluir um item como este, que tem de ser cumprido. Acho que temos de fazer isso porque, em um número muito grande de casos, a família poderá intervir no sentido de que não seja cumprida a vontade do paciente. Por dificuldades emocionais do tipo: “Puxa, nós não fizemos tudo”. Por isso essa discussão é tão importante, para que todos possam começar a compreender a importância da dignidade na morte. Para que essas famílias possam entender o que é uma morte digna, que aquilo que parece um benefício pode não ser e que o paciente tem de ser respeitado no seu desejo.

O maior problema das UTIs hoje é que uma parte significativa de
seus leitos está ocupada por pacientes que não deveriam estar lá.”

ÉPOCA – Falando em família, seu filho é um intensivista, trabalha na unidade de terapia intensiva de um grande hospital. Como é a sua relação com ele?

Siqueira – Este filho está em São Paulo, é um intensivista muito bom. Quando comecei a fazer bioética encontrava com ele, e ele falava assim: “Pai, você largou de ser médico, não gosta mais da medicina?”. Naquela época, ele achava que esta era uma reflexão de abstração, que não tinha nada a ver com a realidade, que realidade é a doença que tem de tratar. Agora, ele me diz o seguinte: “Olha, pai, acho que estamos fazendo muita coisa equivocada na UTI”. E ele tenta conversar com os colegas. Mas o ambiente de UTI ainda é de muita tecnologia. Se chegar a um hospital acadêmico e começar a argumentar, chamam um psiquiatra. Neste ano meu filho está se formando também em direito e o tema da monografia dele é: “Os direitos dos pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva”. Mas ainda é difícil para a maioria dos intensivistas. Eles estão vivendo uma coisa dramática. Tem médico que cuida do doente e, quando começa a complicar, manda para a UTI. Aí alguém liga do pronto-socorro dizendo: “Olha, chegou aqui um cara com infarto do miocárdio, que está com pressão 3 por zero, e eu preciso que você me arrume um leito com monitor, com tudo”. E o intensivista tem de dizer: “Isso eu não tenho”. Dizer isso dói, mas dói muito, porque o cara sabe que ele poderia ter aquele leito e não tem. Ou seja. Os leitos de UTI estão sendo usados de maneira inadequada.

ÉPOCA – Há estudos mostrando que um percentual significativo dos leitos das UTIs está ocupado com pessoas sem possibilidade de cura, que deveriam estar em unidades de cuidados paliativos. Como é isso?

Siqueira – Este é um problema muito sério hoje. Pacientes que sofreram um acidente vascular hemorrágico, por exemplo. Vão entrar num estado vegetativo e vão viver muito. Estão na UTI, mas a UTI não é o lugar deles. O neurologista, claro, quer que ele fique lá, porque é muito mais confortável para ele. E a família também quer, porque a UTI, de alguma maneira, dá uma segurança equivocada de que o doente está sendo cuidado. E não está. É duro isso. A rigor existe um número muito expressivo de leitos ocupados indevidamente. Este talvez seja o maior problema das UTIs hoje, o número de doentes que não deveria estar lá. Por prolongamento da vida a qualquer preço e por uso indevido da tecnologia.

ÉPOCA – Nesta visão que vocês estão propondo, com o testamento vital, os médicos perdem o poder de decidir sobre a vida e a morte do paciente, o que é, desde sempre, uma ilusão, mas muito difundida na categoria. Como é esta relação horizontal que você defende?

Siqueira – É difícil para os médicos, mas acho que toda decisão deve ser dialogada com o paciente. Não só perto da morte, mas toda. E se o paciente entender que deve ser feita uma coisa que não é a decisão que eu, como médico, tomaria, eu tenho de me curvar diante disso. Claro que para o médico isso é difícil. Porque o médico tem a arrogância do saber: “Eu sei que o melhor para você é isso”. Ele não sabe nada, quem sabe é aquela pessoa.

ÉPOCA – Proporcionar dignidade na morte é uma espécie de causa da sua vida?

Siqueira – Olha, a bioética mudou minha vida. Eu comecei a trabalhar com ela em 1996. Estou com 68 anos. Tive um momento da minha vida muito cartesiano, muito arrogante, achava que sabia e resolvia tudo. Na medida em que o tempo vai passando, o cabelo vai ficando branco, começamos a ter a percepção de que o que Sócrates falava é de uma solidez tremenda: “Só sei que nada sei”. E aí o que eu fiz foi começar a estudar filosofia, essa coisa toda. Entrei num mundo muito curioso, porque comecei a observar que os textos dos grandes pensadores me falavam muito mais como médico do que os textos médicos, propriamente ditos. Eu preferia ler Foucault, ler Heidegger, ler Habermas do que ficar lendo textos que, meu deus do céu, só falavam de coisas técnicas. E acho que agora é isso mesmo que vou fazer. Eu não acredito nessa coisa de missão na vida, acredito que a gente tem tarefas. Acho que posso colaborar no sentido de fazer com que exista uma reflexão sobre as coisas erradas que vi na medicina. Posso colaborar para que possamos fazer uma medicina que respeite o ser humano, que tenha como núcleo central olhar aquela pessoa na totalidade do sofrimento dela, com um médico que saiba que ela é vulnerável e que proponha um relacionamento o mais horizontal possível. Embora tenha crescido muito o fascínio pela tecnologia, cresceu também a percepção de que o médico precisa ler filosofia, ler outras coisas, precisa ter sensibilidade e não simplesmente achar que tratar uma pessoa é tratar uma doença. Eu acho que esta é a nossa tarefa e acho que estamos conseguindo. Eu sou otimista.

(Publicado na Revista Época em 12/07/2010)

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