Hustene chorou baixinho

A saga de um brasileiro que luta pela vida

Ao se deitar na noite de 28 de junho, Hustene Alves Pereira, mais conhecido pela família e amigos como Pankinha, chorou baixinho. Estava a dois dias de completar 51 anos e se sentia humilhado.

Para compreender o sentimento de Hustene, é preciso saber que espécie de homem ele é. Eu o encontrei pela primeira vez numa reportagem no início de 2002. O país era castigado pelo desemprego, e eu buscava um brasileiro que contasse este momento histórico pela vida, não pelas estatísticas. Um que estivesse no parapeito do abismo. Não quando acabamos de perder o emprego e a possibilidade de conseguir outro logo é uma promessa que quase tocamos com a mão. Nem aquele outro período, anos depois, em que a esperança já se foi e manter a cabeça erguida em cima do pescoço é um esforço grande demais. Eu buscava o momento que me parece o mais trágico, quando percebemos que o abismo se descortina como vertigem e nos agarramos aos capins da borda conscientes de que não impedirão nossa queda. O instante em que os filhos começam a sustentar a casa sacrificando o próprio futuro, os produtos anunciados na televisão são para outros e nos escondemos durante o dia para ocultar dos vizinhos que não temos para onde ir. Quando descobrimos que não há lugar para nós no projeto do presente, que nossa vida é para a geração seguinte, reduzidos a gráficos que os especialistas explicam sem precisar manchar as mãos com nosso sangue.

Hustene vivia este exato instante. Continha nele todas as estatísticas, mas nele elas eram carne. Morava, como ainda mora, na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, quatro filhos e uma mulher que ama. Numa casa de sala, cozinha e quarto, além do terraço e do banheiro, num terreno que divide com parentes. Quando o conheci, era um homem com brilho nos olhos, discurso articulado, esperneando contra todo um país que falhava com ele. Tentava compensar os estudos que não pôde terminar lendo tudo o que lhe caía nas mãos e buscando na TV programas que pudessem lhe ensinar alguma coisa. Com um senso tão grande e tão particular de honestidade que preferia andar a pé dezenas de quilômetros por dia em busca de emprego a aceitar passagens de ônibus da prefeitura. Hustene achava que tudo que não ganhava com trabalho era esmola.

Acompanhei-o por um tempo em sua peregrinação, dividi com sua família o feijão que sua mulher, Estela, tornava saboroso com pouco além de um tempero que só podia ser amor. E depois que a reportagem foi publicada continuamos nos acompanhando mutuamente, às vezes perto, às vezes mais longe. Nos últimos oito anos testemunhei Hustene lutar pela sua vida de todos os modos, com uma força que quem o visse pela primeira vez não adivinharia naquele homem tão franzino. Lutando pela literalidade de sua vida que a precariedade do sistema público de saúde solapava, pela dignidade de sua vida sem a qual ele não admitia seguir existindo.

Se me perguntassem um dia o que para mim é mais triste testemunhar como repórter, como gente, eu diria que é o desperdício da vida humana. Não apenas pela morte em si, mas pela vida que não pôde se tornar tudo o que poderia ter sido. O desperdício do potencial de homens e mulheres. As tantas pessoas com uma capacidade extraordinária, mas que não tiveram as condições mínimas para desenvolvê-las. E, o pior, com a consciência do que poderiam ser se tivessem nascido em um país com uma desigualdade menos abissal que o Brasil. Vidas roubadas porque o Brasil está aquém de seus sonhos.

Hustene é um destes homens que sonhou mais com o país que o país com ele. E o Brasil foi triturando-o como o moinho da música famosa de Cartola. Nos mais de três anos em que ficou desempregado, apalpou o desespero sem cair no comportamento clássico de tantos. Não se embebedou em bares que não podia pagar, nem levantou a voz para a mulher ou bateu num filho. Em vez disso, desenhava e escrevia furiosamente em folhas de papel. Fazia bicos pagos aos trocados, carregando caixas enquanto uma bursite lhe arrancava lágrimas. Mas seguia acreditando na trindade em que havia assentado suas melhores esperanças: Che Guevara, Corinthians e Nossa Senhora de Fátima. E agarrado à sua carteira de trabalho. Ensinado que fora pelo pai, retirante nordestino, metalúrgico, que este é o documento mais importante na vida de um homem.

Quando já havia consumido todas as unhas para se manter agarrado às paredes do precipício, em 2005 Hustene conseguiu um emprego com carteira assinada e tornou-se o “porteiro Pereira”. Não era um trabalho à altura de sua capacidade, mas nunca, nunca mesmo, vi alguém tão feliz trabalhando por pouco mais que um salário mínimo. Às 4h20 da madrugada ele já estava dentro do primeiro ônibus, com um orgulho que só ele entendia, e cumpria turnos estafantes de 12 horas sem uma queixa. Hustene achava que tinha escalado o despenhadeiro. Mas em outubro do ano seguinte ele sentiu-se mal e Estela o levou ao posto de saúde. O médico garantiu que era “só” uma crise de diabetes e o despachou para casa, onde ao chegar ele teve um AVC (acidente vascular cerebral) que paralisou o lado esquerdo de seu corpo.

Hustene reaprendeu a falar e a andar. Em 14 de abril de 2008 estava tão ou mais feliz que nas vitórias históricas do Timão: tinha arriscado seus primeiros passos sem bengala. Mas em janeiro de 2009 teve o segundo AVC. Agora ele se desequilibra mais, a força lhe escapa, sente náuseas. Esquece dos acontecimentos recentes. Nem sempre se lembra de tomar água. É Estela quem precisa avisá-lo para tomar os 16 comprimidos do dia além das três doses de insulina com que tenta manter o diabetes mais ou menos domado. Com o segundo derrame também se apagou dentro dele o dom do desenho.

Mas Hustene não perdeu sua lucidez. Ele ainda segue escrevendo no computador que ganhou, em diários com papel e caneta, sem perder um documentário na TV. Tão honesto como sempre, em sua casa nunca admitiu nem mesmo os “gatos”, as ligações clandestinas de eletricidade, TV por assinatura, etc. Nem mesmo nos piores momentos, ele fraquejou em fazer a coisa certa. A honestidade, tão fácil para quem pertence às classes mais favorecidas, ainda que não muito praticada, para os da estirpe de Hustene é uma conquista arrancada de cada um dos dias. Com tudo o que é, apesar de tudo que lhe tomaram, Hustene continua acreditando. De sua trindade, mantém a crença em Nossa Senhora de Fátima e no Corinthians, esmoreceu um tanto de Che Guevara. Em nenhum momento perdeu a fé no Brasil.

Há um ano começou a perceber que sua visão piorava. Descobriu-se que ele tinha uma doença grave e degenerativa. Mas os exames demoravam, assim como o tratamento. Uma amiga pagou-lhe um médico particular para obter um diagnóstico preciso. O profissional alertou que era muito sério e não dava para esperar. Se não se tratasse logo, ficaria cego. Mas não havia dinheiro para tratamento privado. Hustene voltou ao sistema público de saúde.

Mais de seis meses se passaram enquanto ele ainda espera por tratamento. Agora testemunha a acelerada ruína de sua visão. Tento imaginar o tamanho da impotência e do pavor que é acompanhar dia após dia a corrosão dos olhos sem conseguir a assistência médica necessária, a mercê de um sistema em que cada exame crucial demora meses para ser feito e, quando a data da consulta médica finalmente chega, já é necessário fazer outro que levará mais alguns meses. Não alcanço.

Mas ainda não foi por isso que na noite de 28 de junho Hustene chorou baixinho ao se deitar, a dois dias de completar 51 anos. Naquela segunda-feira ele levou uma hora e 50 minutos até alcançar o posto do INSS. Era dia do jogo do Brasil X Chile. Trêmulo, instável, com náuseas e enxergando mal, ele apresentava-se na hora marcada desde maio para que um perito comprovasse a necessidade de renovação do seu benefício. Nas mãos, Estela tinha os laudos médicos exigidos. Para cada um deles, uma correria, muitos ônibus e muita fila. Como se dissesse algo como “hoje não temos brioches, volte daqui a dois meses”, uma funcionária informou-lhe que os peritos estavam em greve. E remarcou a perícia para 19 de agosto.

Junto com outros desesperados, Hustene voltou para casa. Os laudos médicos perdem a validade em 30 dias, só servirão para virar lixo reciclável. Mais ônibus, novas filas, para que outros sejam feitos, dificultando ainda mais uma existência sofrida e sobrecarregando também um sistema já deficiente. Enquanto não passar pela perícia, Hustene nada ganha para sustentar sua família. Meses sem dinheiro para o supermercado e as contas. Era por isso que ele chorava. Pelo pouco caso com a sua vida, uma vida que lhe custa tanto manter dentro dele.

Não me cabe julgar se a greve dos peritos do INSS é justa ou não. O que posso afirmar é que a situação de Hustene e de todos como ele é injusta. O que escrevo não é um relato sobre um acontecimento pontual, mas sobre uma vida roubada aos poucos, de várias maneiras diferentes. Igual a de milhões nos percalços, diversa de todas.

Nos chocamos com a destruição causada pelas guerras declaradas, quando a vida de um povo está seguindo seu curso e de repente tudo acaba, tudo se perde, sonhos destroçados junto com braços, cabeças e pernas. Aqui escrevo sobre as guerras invisíveis, em que tantos ainda morrem sem alarde e bem mais perto, pela omissão do Estado e de todos nós, mesmo quando o país começa a melhorar alguns de seus índices e diminuir sua fome. O massacre silencioso e persistente que se desenrola à margem dos que podem pagar por saúde e educação de qualidade, dos que têm rede de proteção quando ficam desempregados e dos que ao serem desrespeitados em seus direitos sacam o iPhone e acionam seus advogados.

Há um país que morre aos poucos e a cada dia ao nosso redor. Ao contrário de Hustene, que perdeu a saúde e agora perde também a visão por descaso, que é condenado a meses sem dinheiro para sustentar a família pela força de uma única frase pronunciada por uma funcionária pública, nós enxergamos bem, mas escolhemos ser cegos. Para ele, porém, não existe esta opção. É sua a vida que escapa como água entre seus dedos. São seus os sonhos triturados. É sua tragédia tudo o que poderia ser – e não será apenas porque nasceu no lado errado do mundo.

Acho curioso quando especialistas de todo tipo transformam a miséria do outro em parâmetros lógicos. Nos gráficos e análises destes técnicos e acadêmicos tudo faz sentido e nada purga. Eu gostaria de saber como eles encarariam se fossem eles a não ter a chance de ser – e seus os filhos sem chances. Histórias como a de Hustene são tão corriqueiras que nem sequer viram notícia. Agonias como a dele acontecem sempre, é por isso mesmo que deveríamos nos indignar. Em vez disso, nos anestesiamos. Temos voz, mas preferimos calar.

Tenho 44 anos, muito e pouco, dependendo do ângulo de quem olha. O suficiente para testemunhar a perda de indignação que vem nos corrompendo. A impossibilidade cada vez maior de vestir a pele do outro. Tão confinados e com tanto medo dentro de nossa própria pele que a dor do outro é encarada como uma ameaça ao frágil equilíbrio de nosso mundo cada vez menor. Então nos escondemos no cinismo, que é a pele sintética dos covardes.

Se um dia Hustene ficar cego, sei que seus olhos ainda vão brilhar com a mesma febre. Eu não sei como ele faz, porque há nele uma sabedoria que não existe em mim. Mas ele resiste. Ainda que claudicante, sem forças, espoliado o tempo todo, ele me assegura que é feliz. Pergunto a ele como, por que, de que matéria é feita essa força que o faz levantar a cada rasteira, ainda que restando no chão em alguns pedaços. “Eu vejo meus filhos em casa nos fins de semana, o riso da minha neta, ao meu lado a mulher que amo e que escolheria em quantas vidas tivesse. E há ainda uma viralatinha linda que eu cuido chamada Pantera. Nunca precisei visitar um filho na prisão porque eles são honestos como eu. Sei que para eles sou espelho. Vou seguir lutando. Acredito no meu país, ele já foi pior para os pobres, está melhorando.”

Naquela noite, quando chorou baixinho, Hustene se sentia humilhado. Mas não só. Tinha dentro dele também revolta. Me escreveu para que sua voz me alcançasse e, através de mim, ele pudesse dizer que essa indiferença com a sua vida dói. Que essa indiferença pode matá-lo. E a morte para brasileiros como Hustene nunca vem como metáfora.

Depois, escreveu para dizer que segue acreditando. E lutando. E esperneando. Escreveu para dizer que não vai desistir de brigar pela vida.

(Publicado na Revista Época em 05/07/2010)

Cartas de amor

Por que sempre adiamos o momento de dizer o que sentimos?

Meu pai fez 80 anos. Queríamos dar a ele um presente que fosse mais do que algo que ele pudesse usar. Um que não servisse para nada, a não ser para a vida. Decidimos fazer um livro com cartas de amor. Não as cartas do passado, trocadas entre ele e minha mãe, mas as cartas do presente, que todos escreveriam. Cartas de amor dos filhos, dos netos, da companheira de toda uma vida. Dos sobrinhos mais próximos, dos amigos mais queridos, dos alunos e companheiros de trabalho com quem compartilhou seus ideais mais caros. Cartas de amor, enfim, escritas por quem havia testemunhado sua vida – e se transformado pela sua vida. Só havia uma regra para as cartas de amor: elas tinham de ser ridículas.

Para que ninguém se sentisse desconfortável com o desafio de escrever cartas de amor ridículas, ficamos na companhia ilustre de Fernando Pessoa, com a poesia famosa de Álvaro de Campos: “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor./ Como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas./ Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas (…)”.

Encomendar cartas de amor ridículas era um jeito de escapar das cartas laudatórias e de estimular os mais ariscos na demonstração de sentimentos a escrever com o coração ou mesmo com o fígado. Não era um campeonato de quem escrevia mais bonito, mas uma oportunidade imperdível de dizer para o meu pai o quanto cada um o amava, do jeito único que cada um podia dizer, numa história com o meu pai que era só sua.

As reações foram as mais diversas – e bem divertidas. Enquanto uns se desincumbiram bem rápido da missão, outros tinham certeza de que não conseguiriam até o último instante. Meu sobrinho, o mais jovem da família, achava que carta não era coisa da geração dele, para a qual até email já era ultrapassado. Acabou descobrindo que é do tempo das cartas e escrevendo uma bem bonita. Meu irmão do meio, que é físico, sofreu e sofreu e sofreu – e quase na prorrogação enviou uma criativa carta com duas vozes. Fez até desenhos! Finalmente a gente descobria que aqueles mais xucros, os que cumprimentam meu pai com um aperto de mão e uns tapas nas costas, porque homem que é homem só abraça mulher, deixariam Fernando Pessoa orgulhoso.

Conto essa história para que, quem sabe, mais gente se decida a escrever cartas de amor ridículas. Acho que a maioria de nós tem muito a dizer para as pessoas da sua vida, mas adia para algum momento que talvez nunca chegue. Cumprimos horários para tudo, inclusive para o que é bem supérfluo, mas parece que sempre podemos deixar para amanhã dizer às pessoas importantes que, sim, elas são importantes para nós, que trazemos um pouco delas em nossos gestos, nas nossas escolhas, na porção imaterial de nossas células. Só que é arriscado adiar, porque o amanhã é incerteza, só o que temos é o hoje.

Dá para deixar para amanhã a academia, a manicure, a balada com os amigos, a compra de um jeans, um sapato, um computador ou um carro novo. Dá para deixar quase tudo para amanhã, menos dizer a quem amamos – que amamos. Não apenas no caso do amor romântico, mas em todo tipo de amor. Se pararmos para pensar, muito do que achamos inadiável é passível de prorrogação ou até mesmo desnecessário. Já o essencial, tanto protelamos, perdidos nos muitos supérfluos, que um dia pode ser tarde.

Tenho feito o exercício de reconhecer no traçado da minha vida as pessoas que me tornaram o que sou. Não apenas meus pais, mas gente que nem imaginava que tinha sido tão substantiva para mim, como a moça da livraria de Ijuí, para quem escrevi uma de minhas primeiras colunas – A história de Lili Lohmann.

Não somos em si. Somos para o outro. Só sabemos quem somos porque alguém nos reconhece. Quando olham para nós, mas não nos enxergam, é destruidor. Este olhar é violento porque nos atravessa. Já o olhar que nos reconhece faz com que nos tornemos melhores do que somos, para estar à altura de quem já nos vê melhores. Quando dizemos a alguém que é importante, que nossa vida é mais viva porque esta pessoa existe, ela também se redescobre pelo nosso olhar amoroso. E estas redescobertas de si mesmo são transformadoras – para quem vê e para quem é visto. Acho que vale a pena identificar quem são as verdadeiras celebridades da nossa vida – aquelas que podem ser anônimas para o mundo inteiro, mas não para nós.

Esta é uma época em que se fala muito. Quase todos falam o tempo todo. É difícil encontrar alguém para entabular uma conversa de silêncios. Muitas vezes as pessoas falam e falam, mas não é um diálogo. Não há uma troca, um dizer para o outro, para depois escutar o que o outro tem a dizer. Ao contrário, parece uma fala sem endereço. Mais um ato desesperado de manter-se falando para ter certeza de que existe. Acho que falamos tanto, nisto que a psicanálise chama de “fala vazia”, por falta de olhar que nos reconheça na singularidade do que somos. Algo como: já que ninguém diz que sou importante, então fico repetindo ao infinito que sou importante, para todos e para ninguém. Quando mais duvido, mais preciso falar.

Mesmo hoje, quando tantos escrevem na internet, em blogs e outras ferramentas, ainda que se fale por meio de símbolos gráficos, é uma fala – não uma escrita. Em muitos casos, a mesma verborragia para ninguém. Por isso acho importante que reabilitemos as cartas. Escrever é um exercício profundo de elaboração dos sentimentos e das ideias. Quando começamos, nunca sabemos para onde a escrita vai nos levar. Vamos nos descobrindo em letras, nos constituindo em palavras. E sempre, sempre mesmo, nos surpreendemos com o que escrevemos.

As cartas são sempre para alguém. Para existir uma carta é preciso que haja um endereçamento, é necessário nomear aquele para quem escrevemos. Ainda que em certo sentido sempre escrevamos para nós mesmos, a carta é obrigatoriamente para um outro. Pressupõe um diálogo. E é um diálogo de reconhecimentos mútuos.

Outra qualidade das cartas é que são para todos. Podemos não saber escrever um livro, um artigo, uma tese de doutorado, uma reportagem, poesia. Mas quem se alfabetizou sabe escrever uma carta. Porque na carta, mais importante que a habilidade com as palavras, é a capacidade de ser verdadeiro. A carta que nos emociona não é aquela que tem o melhor estilo, mas aquela que expressou com mais sinceridade os sentimentos de quem escreveu. É aquela que nos faz identificar o cheiro, os gestos, a voz e também as palavras de seu autor. A melhor carta é a encarnada. Para isso, não é preciso tornar-se um mestre das palavras, mas talvez algo tão ou mais difícil, mas que depende apenas de uma decisão interna: é preciso ter a coragem de ser.

É curioso como há livros de cartas para todos os gostos. Trocas de cartas entre intelectuais, antologias de cartas de amor de todos os tempos, cartas de fulano para beltrano, até no primeiro filme baseado no seriado americano Sex in the city, as cartas de amor faziam parte do enredo. Se há tantos livros é porque as pessoas gostam de cartas. Então por que não as escrevemos? Será que preferimos continuar falando sozinhos?

O computador e a internet estão aí para tornar ainda mais fácil a operação mecânica do processo. Não a efêmera e loquaz troca de emails, mas aquilo que faz de uma carta uma carta: a disposição de se abrir para o outro. Não qualquer outro, mas aquele que escolhemos como alguém importante o suficiente para dizermos algo a ele. Não o supérfluo, mas o essencial. É possível escrever uma carta por email, como é possível escrever uma carta por qualquer meio. Mas, em geral, usamos o email para falar tudo e qualquer coisa. Nas cartas, só escrevemos aquilo que precisa ser dito. Enviamos emails para qualquer um – cartas só escrevemos para os inscritos na nossa vida.

Eu mesma, que ganho a vida escrevendo, me surpreendi com minha carta de amor para meu pai. Penso sobre a relação com ele desde que me entendo por gente. E estou sempre me questionando sobre tudo. Descobri, porém, que “desconhecia” vários de meus sentimentos – e havia me “esquecido” de histórias capitais. Elas estavam em algum lugar de mim, mas até então eu não havia tido oportunidade de trazê-las à superfície e torná-las verbo.

Escrever ao meu pai foi um reconhecimento de sua importância na minha vida. Não no sentido laudatório, mas em tudo o que há dele em mim. Inclusive naquilo que preferia não carregar, até mesmo naquilo em que quero ser diferente dele. Afinal, todos sabemos – ou deveríamos saber – que só nos tornamos adultos quando superamos nossos pais para nos tornarmos nós mesmos.

Nascemos pelo desejo de nossos pais – e crescemos para buscar nosso próprio desejo. Ou, dito de outra forma, existimos por causa do desejo dos pais, mas só alcançamos uma existência autônoma quando assumimos o risco de nossa própria busca. Estes são os bons filhos. E os bons pais são os que esperam ser superados – e não apenas imitados. Superados não no sentido de que os filhos tenham de ser mais bem sucedidos nisso ou naquilo, mas no sentido de que os filhos descubram e construam seu próprio caminho no mundo.

Em minha carta ao meu pai, reconheço tudo o que há dele em mim, a extraordinária importância dele em mim. Mas, ao mesmo tempo em que foi um exercício de reconhecimento, também foi um exercício de diferenciação. Este é você e amo o que você é, até mesmo seus defeitos. Esta sou eu, grata por tudo o que há de você no meu percurso, mas autônoma na medida em que criei outras possibilidades a partir do que aprendi com você. Só podemos ser diferentes – algo muito valorizado em nosso tempo – quando assumimos que viemos de um determinado lugar. Para sermos diferentes temos de admitir a referência, já que só é possível ser diferente em comparação a um outro. Quando identificamos a originalidade do que somos podemos identificar com mais serenidade e justiça a herança de nossos pais. E brigamos muito menos com eles.

Cartas de amor existem para isso. Para reconhecer o outro, elaborar nossos sentimentos pelo outro, dizer aquilo que é importante o suficiente para ser dito. Mas, como todo diálogo verdadeiro, é uma troca. Quando conseguimos dizer ao outro de sua importância numa carta, damos muito – mas também ganhamos muito. Ser capaz de amar melhor tem um efeito fabuloso sobre a vida.

Quando começamos a pensar numa festa para comemorar seus 80 anos, meu pai não estava certo de querer celebrar. Disse isso em uma frase profunda: “Quando eu olho para trás, fico feliz com o que vejo. Mas, para frente, é incerteza”. Ele tem razão. Amanhã é incerteza. Para todos, mais ainda para quem completa 80. Na verdade, acho que, no caso de todos, e também no de meu pai, o que dá medo não é a incerteza – mas a certeza. É por causa da certeza da morte que tecemos a teia de sentidos da nossa vida. É por causa da delicadeza com que teceu sua vida que meu pai vai para o amanhã com a certeza de que amou bem – e é amado com o melhor do que somos.

Encerrei minha carta de amor ridícula ao meu pai na esperança de que ele compreenda que todo ponto final é chegada, mas também é partida: “Use este livro como ponto de chegada, um itinerário amoroso de sua vida pelos olhos nossos. Mas, depois, esqueça-o numa gaveta. E, como Fernando Pessoa, nasça mais uma vez para a eterna novidade do mundo”.

(Publicado na Revista Época em 28/06/2010)

Dois andares abaixo do meu

Ela vivia lá e eu desconhecia, ela morria lá e eu não sabia

Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivo neste edifício de 70 apartamentos há alguns anos. A maioria dos moradores só encontro na reunião de condomínio. Há o velho que toma sol pela manhã e que me cumprimenta sorridente porque lá em casa a gente se dá tchau na janela quando alguém sai. Ele acha curiosíssimo e acompanha o ritual enternecido. Há as mulheres que passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender produtos de beleza. E o Pedrão, um aumentativo irônico para um cachorro tão pequeno, tão desmilinguido e cego pela idade, que sobe e desce o elevador comigo, protegendo com olhos erráticos um dono que é quase um gigante. Há o vizinho de passo marcial que não cumprimenta ninguém. E ela, que morava lá havia uma eternidade, mas a quem eu nunca vira.

Numa tarde vêm o chaveiro, os bombeiros e a polícia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lançados para dentro de uma paisagem muito semelhante à nossa, mas que era dela. As histórias de sua vida me alcançam aos farrapos. Aos 82 anos ela vivia só. Tinha sido médica, com consultório no centro de São Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para vencer na cidade grande quando as mulheres de sua geração apenas recolhiam os passos até a casa do marido. Viajou o mundo, falava várias línguas, expressas nos livros espalhados pela casa. Não sei de seus amores, ninguém ali sabe. De repente, ela descobriu-se só. Não queria morrer, só não sabia como seguir vivendo. Resistiu viva – morrendo.

Há dois anos ela estacionou sua Brasília vermelha meticulosamente limpa e bem conservada numa vaga tamanho G. E nunca mais a tirou de lá. Poderia ter sido um sinal, mas um sinal só se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas uma multa do condomínio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez P. Há pouco mais de um ano ela deixou de pagar a conta do condomínio. O acúmulo da dívida virou um processo judicial e uma primeira audiência a qual ela não compareceu. Outra pista não decifrada.

A vizinha do lado percebeu que ela não mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande determina não perturbar a privacidade de ninguém. Cada um é uma ilha – ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu número de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio devem avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência que precisa ser assinada porque, do contrário, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a doutora”, o título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.

Naquela tarde a conhecida de uma associação onde ela trabalhava como voluntária veio procurá-la, preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e sussurrar que não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois. A energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Há semanas ela não comia. Já não podia andar. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milhões. Em sua própria sujeira.

Num prédio de classe média de São Paulo, ela estava mais isolada que qualquer ribeirinho dos confins da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve forças. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma existência, se arrastar até a porta e admitir que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga para viver.

Ela morava dois andares abaixo do meu. Quando eu soube, fiquei rememorando os últimos meses. Enquanto eu trabalhava, cozinhava, bebia vinho, tomava chimarrão, gargalhava, assistia a filmes, me emocionava com livros, me indignava com acontecimentos, conversava, namorava, sonhava, fazia planos, escrevia esta coluna e às vezes chorava, dois andares abaixo do meu, num espaço igual ao meu, uma mulher de 82 anos morria de fome nas trevas, em abissal solidão.

Enquanto eu ria, ela morria. Enquanto eu comia, ela morria. Enquanto eu sonhava, ela morria. No escuro, ela morria no escuro enquanto eu abanava da janela, o velho sorria ao sol, uma vizinha tentava me vender um novo creme antirrugas e Pedrão rosnava cegamente no elevador sob o olhar terno de seu gigante.

Não consegui dormir por algumas noites porque me via arremessada ao outro lado da rua, tentando imaginar os enredos que se passavam atrás das cortinas daqueles outros 69 apartamentos. Que vidas são aquelas, que dores se escondem, quais são os dramas que sou impotente para estancar? Anos atrás, antes de eu morar no prédio, um homem se lançou pela janela e morreu estatelado na laje. Como tantos o tempo todo. Um soluço apavorante na rotina e depois o esquecimento. Como agora, nesse morrer sem sangue e sem alarde.

Numa fissura do tempo algo que não pode mais ser oculto se revela – revelando também o nosso medo. Portas são derrubadas, cortinas rasgadas por um corpo que se lança para o nada, para nós. E, talvez pior, por um corpo que se esconde até ser exposto pelo cheiro da decomposição ainda antes da morte, corroendo os muros de nossa privacidade protegida com tanto empenho. Como a dela.

Depois precisamos esquecer para seguir vivendo. Mas não consigo esquecer. O que aconteceu com ela está acordado dentro de mim como um bicho. Dentro de nós também há um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem e o suicida que nos habita se lança no vazio enquanto outros em nós se decompõem em vida pela morte dos dias que não acontecem. Mergulho então, além dos dois que nos separavam, vários andares em mim. E lembro-me de Mário Sá-Carneiro, escritor português: “Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”.

Acredito que todos no prédio ficaram chocados, cada um à sua maneira. Porque ninguém percebeu a tempestade logo ali. Porque tudo se passou enquanto no avesso de cada janela tentávamos viver. Mas também – e talvez principalmente por isso – porque a tragédia se desenrolou no mesmo cenário onde tecemos o enredo de nossos dias.

O apartamento dela é igual ao nosso. Esta semelhança de condições e de arquitetura, de portas e de janelas, nos provoca um incômodo difícil de dissipar. Poderia ser nós a morrer de fome no escuro. Mesmo com uma história diversa, lá no fundo cada um de nós sabe que a solidão nos espreita. Que não estamos tão protegidos como gostaríamos. Seria mais fácil afastar nosso horror se fosse um assassino, uma morte por ciúme, uma violência cometida por um psicopata. Isto está sempre mais longe. Mas não. A doutora morria logo ali por solidão. E isto está bem perto.

Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a maioria de seus amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes que tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela tinha bens que poderia ter vendido quando ficou restrita a uma renda que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha mais saúde para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem caminhar até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou pagar a conta de luz ou qualquer outra. Lentamente os fios de sua vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando percebeu que precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era capaz de andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua miséria. A doutora não queria morrer, só não tinha forças para viver neste mundo.

Por um tempo fiquei acordada pelas madrugadas, dormindo nas auroras, aterrorizada com as vidas desconhecidas abaixo e acima de mim, com os socorros que eu não sabia que precisava prestar, com o monstro de olhos abertos em mim. Devagar, comecei a pensar nas minhas escolhas. E agora tento aprender a amar melhor, para além das paredes de meus metros quadrados de mundo, mais iguais às dela do que eu e todos gostaríamos.

(Publicado na Revista Época em 21/06/2010)

Droga não é demônio

Então por que é tratada pela sociedade como se fosse?

É possível que nunca tenha se falado tanto em drogas como hoje, pelo menos como caso de polícia ou de saúde pública. Nos anos 60, quando as drogas faziam parte do movimento de contracultura, o olhar sobre elas e a função que desempenhavam era outro. E os “malucos beleza” eram vistos de forma muito diversa dos consumidores de crack de agora. A própria diferença de linguagem é reveladora, já que antes se “experimentava” drogas, com a ideia de ampliação de consciência – e hoje se “consome”, como tudo. Um verbo expressa uma vivência – outro o uso. O que mudou, para que o crack tenha se tornado tema de campanha eleitoral, assunto para candidatos à presidência do país?

Ao acompanhar o debate travado em várias instâncias, me parece empobrecedor que um tema tão amplo e cheio de nuances seja reduzido a apenas dois discursos, duas maneiras de olhar: ou é caso de polícia/segurança ou é caso de saúde pública – ou de ambos. Será que estas duas abordagens – repressão e cura – dão conta da complexidade da questão? Desconfio que não.

Por outro lado, me parece bastante curioso que o debate sobre as drogas ilegais atinja esse nível de decibéis justamente numa época em que há um consumo massivo de drogas lícitas, na forma de antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos, receitadas por médicos das mais variadas especialidades. Drogas para ser feliz, para ficar calmo, para dormir. Sem contar as drogas para perder o apetite e aumentar o desejo sexual.

Por que algumas se tornam um problema e outras são vendidas como solução? Quem determina o que o indivíduo pode consumir? E com quais argumentos? E por que aquela que possivelmente seja a droga que causa mais estrago na nossa sociedade – o álcool – é abordada com muito menos estridência?

Ao acompanhar o debate, me chama a atenção o fato de a droga ser encarada como uma espécie de alienígena, desenraizada da sociedade em que é usada e produz sentidos. É como se ela fosse um demônio ou um vírus que entra no corpo à revelia de todo o contexto – desligada de tudo e de todos. E que bastaria ou exorcizá-la, do ponto de vista religioso, ou extirpá-la, no campo da medicina, para que o problema acabasse. Ou ainda reprimir, na visão policial.

Parece que não é tão simples assim – ou o problema já seria menor. Se os mais diversos tipos de drogas sempre foram usados por todas as sociedades, em diferentes momentos históricos, por que a nossa não consegue lidar com elas? Será que não valeria a pena, além de reprimir e tentar “curar”, pensar um pouco mais nos porquês?

É exatamente por ser uma questão que produz muito sofrimento é que acho importante refletirmos sobre ela com mais amplidão – e alargar nosso campo de visão. Em busca de respostas – não definitivas, mas possibilidades de respostas –, procurei o psicanalista Eduardo Mendes Ribeiro. Ele é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), mestre em Filosofia pela PUC/RS, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e consultor do Ministério da Saúde na Política de Humanização do SUS. Estuda o tema das drogas desde os anos 90 e tem vários artigos publicados sobre o assunto.

Nesta conversa, ele nos ajuda a pensar sobre uma questão tão crucial – para além dos estereótipos.

ÉPOCA – Hoje, as drogas ou são caso de polícia ou de cura. É como se toda a complexidade da questão coubesse nesses dois modos de ver e não existisse outra possibilidade de abordagem. Por quê?
Eduardo Mendes Ribeiro – Por ao menos duas razões: a primeira é a tendência à simplificação do problema, o que, em tese, ajudaria a entendê-lo e enfrentá-lo. Por essa via, elege-se a droga como a causa do mal e os traficantes como os agentes promotores deste mal. Ora, sendo assim, é fácil concluir que o que devemos fazer é, por um lado, tentar evitar que o mal nos atinja: repressão. E, por outro, se fracassarmos no primeiro intento, temos de extrair o mal de nossos corpos: desintoxicação e abstinência. Essa visão também nos poupa dos complexos e incômodos questionamentos acerca das razões pelas quais tantas pessoas decidem se drogar.

ÉPOCA – E quais seriam esses questionamentos tão incômodos? Afinal, por que tantos se drogam, legal e ilegalmente?
Ribeiro – São questionamentos relacionados aos conflitos psíquicos que cada um de nós vivencia: inibições, frustrações, angústias, etc. É muito mais incômodo enfrentar estes fantasmas do que usar uma droga que pode fazer nosso humor melhorar quase imediatamente. O problema é que os fantasmas continuam lá – e nem sempre em silêncio.

ÉPOCA – Em sua opinião, quem é mais drogado? O consumidor de crack do centro de São Paulo ou uma faixa significativa da população mais idosa – assim como muitos jovens – que consome tranquilizantes todo dia?
Ribeiro – Atualmente, há uma tendência de se avaliar o grau de gravidade de uma dependência não mais através de escalas quantitativas de intensidade e frequência, mas a partir dos efeitos que essa prática produz na vida de cada sujeito. Nesse sentido, é provável que aquelas pessoas que passam o dia fumando pedra vivenciem um empobrecimento maior de suas interações sociais, além de se manterem em situações de maior vulnerabilidade. Mas, por outro lado, não há razão para acreditarmos que aqueles que vivem uma vida entorpecida estejam em uma situação muito melhor.

ÉPOCA – Mas por que o crack incomoda e a população que vive uma vida entorpecida não?
Ribeiro – O usuário de crack, ao menos o usuário estereotipado, com maior visibilidade, é alguém que expõe tudo o que nossa sociedade quer evitar: descontrole, desamparo, vulnerabilidade, improdutividade, laços sociais frágeis, ausência de projeto de futuro, etc. O sujeito entorpecido é muito mais identificado com as crenças e valores que nos orientam: ele é visto como um doente em tratamento, ou seja, ele tem um problema que nossa sociedade, através de seus saberes e especialistas, está tratando. Está tudo em seu lugar…

ÉPOCA – Por que o crack virou, hoje, um tema da política, como podemos ver nesse início de campanha eleitoral entre os candidatos a presidente?
Ribeiro – Talvez porque o crescimento rápido do número de dependentes e sua visibilidade pública façam com que se concentrem nesse fenômeno os temores relativos à fragilização de nosso laço social. Os crackeiros espelham, paradoxal e simultaneamente, nossos maiores sonhos e pesadelos: ansiamos por prazer e descompromisso, mas sabemos que precisamos de um conjunto de relações sociais que nos sustentem enquanto sujeitos. Infelizmente, a maior parte dos discursos político-eleitorais é dirigida à promessa de medidas voltadas ao fortalecimento do aparato repressivo e à criação de mais vagas para internação/desintoxicação de dependentes, que é o que responde aos anseios imediatos dos eleitores.

ÉPOCA – E como ampliar a abordagem dessa questão, para além da repressão e da cura?
Ribeiro – Nenhum país do mundo resolveu o problema da dependência de drogas por uma razão muito simples: não se trata de um problema de drogas, mas, sim, dos efeitos do tipo de laço social que construímos. Acho que o que podemos fazer é aumentar o repertório de alternativas através das quais as pessoas possam produzir para si um lugar social. Isto pode se dar de várias formas: através da educação, do esporte, da arte ou mesmo da religião. Mas, é claro que precisamos também de políticas de saúde para acolher e tratar aqueles que não conseguem mais controlar seu uso de drogas. Nessa direção, é preciso avançar na implementação do que já está previsto na Reforma Psiquiátrica e na atual Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Quando recebo um usuário de drogas em busca de tratamento, costumo propor que falemos de qualquer coisa, menos de drogas. Acho que é disso que eles precisam: encontrar outras coisas capazes de lhes interessar. De drogas eles já falam bastante.

ÉPOCA – Praticamente todas as sociedades usaram drogas, mas parece que só na nossa elas se tornaram um problema. Pelo menos um problema nessas proporções. Por que nossa sociedade, diferentemente de outras, não sabe como lidar com as drogas?
Ribeiro – Na maior parte das sociedades conhecidas, as drogas eram consumidas com alguma forma de controle social. Isto não significa que havia mecanismos repressivos para coibir abusos. Ao contrário, significa que havia um conjunto de entendimentos compartilhados que orientava o uso, em determinadas situações e com determinadas finalidades. Isso poderia se dar em rituais de cura, de mediação com o sagrado ou mesmo com finalidades orgiásticas, para aliviar tensões e produzir prazer. O conhecimento que temos acerca do uso de drogas em outras sociedades nos mostra que, se ele ocorresse com alguma forma de controle social, não trazia problemas pessoais ou para a comunidade. Provocar alterações dos estados de consciência representava algo de extraordinário que acontecia em situações muito específicas. Em nossa sociedade, este tipo de uso ocorre, por exemplo, no Carnaval, quando muitas pessoas se autorizam a fazer coisas que não fazem em seu cotidiano, o que inclui um consumo maior de drogas. E depois voltam à rotina.

ÉPOCA – E o que aconteceu na sociedade ocidental moderna para que a droga passasse a se integrar ao cotidiano e ser usada para o gozo individual?
Ribeiro – O desenvolvimento do liberalismo político e econômico trouxe consigo a constituição de um ethos fortemente individualista. A modernidade rompeu com o passado, afirmando o poder de autodeterminação dos indivíduos. No início, ainda se manteve orientada por um ideal coletivo, representado pelo progresso da ciência. Acreditava-se então que a ciência seria capaz de nos revelar, cada vez mais, o que era real e verdadeiro. Entretanto, no decorrer dos últimos séculos, esse ideal não cumpriu com suas promessas, como tampouco o fizeram outros ideais sociais, como o socialista e aqueles propostos pelos movimentos contraculturais. É nesse contexto que os laços sociais construídos a partir da tradição – passado – ou de projetos coletivos – futuro – se encontram desgastados, produzindo um achatamento do tempo e a percepção de que o que há para ser vivido tem que ocorrer agora. Os interesses pessoais e a pressa são elementos presentes em nosso cotidiano. E é nessa realidade que proliferam diferentes modalidades de uso de drogas: ora para aliviar tensões, ora para potencializar desempenhos.

ÉPOCA – Hoje há uma satanização das drogas, como se elas possuíssem a pessoa à revelia. Como se o processo de se drogar fosse externo ao indivíduo – e não algo movido por questões e necessidades internas, que começou pela escolha daquela pessoa de usar determinada droga, ainda que depois possa ter perdido o controle. Por quê?
Ribeiro – Diante de certos efeitos indesejáveis da ordem social moderna, tendemos a produzir práticas e representações originadas nos tempos pré-modernos. Explicando melhor: mesmo considerando que nossa sociedade se constituiu em torno de uma ética da responsabilidade – temos autonomia para pensar e agir, mas precisamos responder por nossos atos –, a consagração da visão simplista que sataniza as drogas representa um retorno às velhas crenças animistas que atribuem poderes e intenções a substâncias inanimadas. Algumas interpretações antropológicas evolucionistas defendiam que, no campo religioso, haveria um processo de “evolução” das sociedades. Ou seja: em seu início atribuíam poderes sobrenaturais a seres ou forças da natureza, depois teriam vindo as sociedades politeístas e, finalmente, as monoteístas. Estas teses evolucionistas encontram-se desacreditadas no campo antropológico, mas é fato que muitas sociedades “simples” acreditavam no poder sobrenatural de certas substâncias naturais. É um pouco como alguns setores da sociedade enxergam as drogas hoje.

ÉPOCA – Em um de seus artigos, você diz que, no início, as igrejas viam as drogas, todas elas, como coisa do demônio. Já a ciência se contrapunha a esta visão, apostando na autonomia das consciências. Hoje, ambas parecem demonizar as drogas. O que isso significa?
Ribeiro – Na Idade Média, a Igreja condenava o uso de drogas por razões teológicas: “só Deus tem o poder de curar”. Mas também por disputas de mercado envolvendo fé e poder, pois não lhe interessava permitir o crescimento da influência de feiticeiras e curandeiros. Hoje, esse discurso mudou e a condenação que grande parte das igrejas faz ao uso de drogas é fundamentada em sua suposta associação a práticas libertinas, hedonistas e promíscuas. Assim como também é uma eficaz estratégia de marketing para algumas denominações. Basta observar que muitos dos pastores se apresentam como ex-usuários de drogas que, com a ajuda de Deus – e da igreja, através dos dízimos –, conseguiram se libertar. Esse trânsito, das drogas para a religião, é muito frequente.

ÉPOCA – E a ciência?
Ribeiro – O deslocamento operado no campo científico é mais sutil. Partiu da afirmação do direito de qualquer um poder usar a droga que quiser e de uma posição liberal, em que o direito de experimentação fazia parte do processo em que se dava o progresso da ciência. Vale a pena lembrar que até o início do século passado todas as drogas conhecidas eram vendidas livremente em farmácias. Partiu-se disso para uma pretensão de controle e prescrição de uso. Ou seja, as drogas são instrumentos importantes no combate a doenças e na produção de bem-estar, mas seu uso deve ser orientado pelo saber científico, o quer exclui, evidentemente, as modalidades de uso espontâneas.

ÉPOCA – A abordagem atual das drogas parece intimamente ligada à questão do poder e do controle. Como você vê essa relação?
Ribeiro – Atualmente, a forma hegemônica de abordar a questão é resultante de um conjunto de fatores que pouco ou nada tem a ver com os que determinam o consumo. As estratégias de controle e repressão social defendidas por grupos orientados por ideais religiosos e/ou totalitários é um deles. Mesmo considerando que vivemos em uma sociedade fundada a partir de uma ética da responsabilidade – somos responsáveis pelos nossos atos e respondemos por eles – ou justamente por isso, convivemos com grupos que temem os efeitos dessa liberdade. Em vez de uma multiplicidade de formas de pensar e agir, eles prefeririam que todos agissem conforme seus princípios e crenças. Essa posição não se manifesta apenas no campo estritamente religioso, podendo estar presente em diferentes segmentos sociais. Nesse sentido, combate-se o uso de drogas porque ele seria potencialmente subversivo, pouco controlável. Outro fator são os interesses políticos e econômicos de laboratórios e setores da corporação médica, que reivindicam a exclusividade do direito de manipular corpos e mentes. Com o passar do tempo, no contexto da modernidade, o uso de drogas passou a ser cada vez menos controlado socialmente, seja por rituais tradicionais e/ou religiosos, seja por saberes autorizados, como médicos, curandeiros, etc. Este uso “individual” e espontâneo foge ao controle, não podendo ser utilizado como instrumento de poder político ou econômico. Daí a insistência em manter a produção e autorização de consumo de drogas sob o controle de laboratórios e médicos, respectivamente.

ÉPOCA – Você não acredita que a repressão possa causar a redução do consumo?
Ribeiro –
Os conflitos oriundos da marginalização do comércio e consumo de algumas drogas acabam por produzir um senso comum que evita a complexidade da questão e produz a estigmatização dos usuários e a defesa de medidas paliativas – ainda que necessárias –, como a repressão do tráfico e o tratamento de dependentes. Basta lembrar o episódio da Lei Seca, nos Estados Unidos, para concluir que as estratégias repressivas pouco ou nada contribuíram para a diminuição do consumo. Pelo contrário, seu efeito foi de outra ordem: expansão da corrupção policial, aumento do número de problemas de saúde em função do consumo de drogas de má qualidade, criação de um mercado marginal e violento, etc. Essa avaliação foi feita pelo próprio governo dos Estados Unidos, por ocasião da promulgação do ato que aboliu a Lei Seca. Hoje, há um entendimento largamente difundido de que as drogas são a encarnação do mal em nossa sociedade. Trata-se de uma poderosa aliança entre os discursos religioso, científico e o da segurança pública. O mais produtivo seria abordar frontalmente o problema e reconhecer que o uso de drogas em nossa sociedade faz parte de nossa cultura, como fez de tantas outras. E que, em vez de lançar cruzadas antidrogas, hipócritas e inúteis, deveríamos discutir as diferentes modalidades de usos, lícitas e ilícitas, e encontrar formas de minimizar seus efeitos danosos, individuais e sociais. Acredito que essa realidade se constitui no campo das disputas simbólicas, onde se definem valores e sentidos.

ÉPOCA – Como assim?
Ribeiro – O que faz com que o uso de drogas assuma determinado valor e determinada função para algumas pessoas? Como intervir nessa realidade? É evidente que não bastam campanhas publicitárias afirmando que “fumar é brega” ou que o “crack mata”. Não são mais os saberes tradicionais, passados de pai para filho, que orientam nossa compreensão do mundo. Vivemos em uma sociedade fragmentada e individualista, mas que se articula através de uma complexa rede de relacionamentos, presenciais e virtuais. É nesse universo que os sentidos vão se definindo e se modificando. Sendo assim, é possível afirmar que, quanto maior for a troca de idéias e experiências, menor será a possibilidade de um ou mais discursos assumirem uma posição de domínio. Acredito que ganharíamos muito se “gastássemos” essa discussão sobre as drogas, diminuindo sua importância, fazendo com que elas deixem de ser vistas como solução de todos os problemas ou como causadora de todos os males.

ÉPOCA – Vivemos numa sociedade onde se consome muitas drogas legais, parte delas receitada por médicos das mais variadas especialidades. A mesma sociedade que parece ficar um pouco histérica com o crack, por exemplo, não parece ver nenhum problema na massificação do uso de antidepressivos e ansiolíticos. Por que algumas drogas podem ser usadas e outras não? Umas são desejáveis e “terapêuticas” e outras são demonizadas? Qual é a diferença, afinal? Se tomamos drogas para dormir, para ficar feliz, para ficar calmo, para não sentir fome, para ter tesão, por que é ruim cheirar coca, fumar maconha e usar crack? Não estou dizendo que é bom, apenas questionando a lógica de que uma pode e a outra não, uma está incluída e a outra é marginal…
Ribeiro – Do ponto de vista do funcionamento subjetivo, não há nenhuma diferença entre cheirar cocaína, fumar maconha, usar crack ou beber cachaça, consumir antidepressivos, anfetaminas, ansiolíticos. É a mesma lógica: se faz uso de uma substância para produzir uma desejada alteração do estado de consciência e humor. É importante que se diga que as razões pelas quais algumas drogas são proibidas e outras não são proibidas não tem qualquer fundamento epidemiológico, médico, psicológico ou antropológico. Certas drogas são proibidas não por serem mais “fortes” ou “pesadas”, nem por terem maior potencial de criar dependência, ou por causarem mais problemas orgânicos. As origens da proibição podem ser buscadas em um conjunto de preconceitos morais e sectários do início do século XX. Nos Estados Unidos, por exemplo, a proibição de algumas drogas esteve ligada à desconfiança que os puritanos manifestavam com relação à massa de imigrantes que chegava às grandes cidades americanas no início do século. Assim, diferentes drogas foram associadas a diferentes etnias: a condenação do uso de ópio resultou das acusações de corrupção infantil feitas aos chineses; a cocaína era associada à permissividade sexual atribuída aos negros; a maconha à “invasão” dos mexicanos; e o álcool às “imoralidades” de judeus e irlandeses. É evidente que, posteriormente, os interesses econômicos – indústria de bebidas alcoólicas, de cigarros e laboratórios – passaram a atuar fortemente com vistas à manutenção de sua reserva de mercado. É sabido que hoje o maior número de dependentes de drogas é alcoolista. E o álcool é uma droga legal.

ÉPOCA – Por que está tudo certo se as drogas são receitadas por médicos, mas tudo errado se não? O problema estaria no controle, as que são consideradas ilegais seriam aquelas que não podem ser controladas por ninguém?
Ribeiro – Os remédios vendidos apenas sob prescrição médica não são as únicas drogas legais, nem as mais usadas. As bebidas alcoólicas não estão sob controle e podem produzir efeitos da mesma intensidade que os provocados por outras drogas lícitas e ilícitas. Portanto, o “controle” se refere muito mais a questões relativas à produção, circulação e, evidentemente, acumulação de lucros. Neste sentido, as drogas ilegais estão “fora do controle”.

ÉPOCA – Qual é a aposta que se faz na droga? Como a droga se aproxima da sociedade de consumo na medida em que promete – e por um tempo realiza – a possibilidade de ser feliz ou do gozo pleno, tão caro à nossa época?
Ribeiro – Se considerarmos que o capitalismo produziu algo que seria da ordem de uma perversão no campo das relações sociais, na medida em que promoveu o que Marx chamou de “fetichismo das mercadorias”, poderíamos pensar que o aumento significativo de casos de dependência de drogas seria efeito de uma nova perversão, que se constitui como desdobramento da primeira. Ou seja: a lógica da sociedade de consumo se encontra orientada para um progressivo aumento na produção e consumo de bens, que, neste contexto, operam como mediadores das relações sociais, índices de prestígio e elementos produtores de identidades sociais. Entretanto, quando certas modalidades de uso de drogas fazem com que elas se tornem o objeto único de desejo, subverte-se a lógica capitalista. Paradoxalmente, a crença no poder dos objetos pode se constituir numa ameaça a um sistema alicerçado em torno do consumo. Na lógica capitalista, o prazer ou a felicidade que supostamente poderia ser alcançado através da posse de um objeto deve ser sempre parcial e efêmero, fazendo com que o desejo deslize para outros objetos, retroalimentando o sistema, que se constitui numa forma de laço social. O prazer derivado do uso de drogas, mesmo podendo ser intenso, também é parcial e efêmero. Mas, exatamente por sua intensidade e exclusividade, tende a deslocar o sujeito do contexto socialmente regulado de produção e consumo. Quando o sujeito passa a desejar um único objeto, ele deixa de consumir todos os demais. Além disso, dependentes de drogas também não costumam se manter atuantes em atividades laborais, o que faz com que ganhem pouco e consumam menos.

ÉPOCA – Nesse sentido, a droga é antissocial, como nós mesmos o somos, preocupados apenas com a satisfação dos nossos desejos, independentemente do desejo do outro – e não de um projeto coletivo, mais amplo, que inclui o outro? A droga, portanto, se encaixa perfeitamente no modelo individualista, que não está nem aí para o que não é a sua vida ou a vida de uns poucos ao seu redor?
Ribeiro – Exatamente. Mas é importante que fique claro que não se trata de um entendimento fundado em algum tipo de imperativo moral de fraternidade. O risco do uso de drogas em uma sociedade individualista se dá em função de um equívoco, socialmente produzido, de pensar que somos – ou deveríamos ser – radicalmente livres. Segundo esse ideal, não deveríamos depender de ninguém. Por exemplo: deveríamos desfazer qualquer casamento, aliança ou sociedade no momento em que não mais nos conviesse. O problema é que só nos constituímos e nos sustentamos enquanto sujeitos a partir das relações que mantemos com outros sujeitos. Quanto mais frágeis forem estas relações, mais instáveis nos tornamos. E seremos mais dependentes de outras estratégias para nos prover de alguma consistência identitária. Nesse sentido, é possível afirmar que o uso de drogas pode passar a ser um problema para aqueles sujeitos que não assumem ou constroem relações sociais de dependência.

ÉPOCA – Para estes, a droga toma o lugar do que?
Ribeiro – Eles dependem da droga para não depender das relações com outras pessoas. É uma tentativa extrema e paradoxal de manter sua independência.

ÉPOCA – As drogas legais, que mantêm o indivíduo produzindo e consumindo, não parecem ser vistas como um problema. Já as ilegais tornam-se um problema de polícia e/ou de saúde pública. Como você vê essa dicotomia de abordagem?
Ribeiro – Creio ser disseminado um equívoco intencional na abordagem dessa comparação entre os efeitos produzidos pelas drogas lícitas e ilícitas. Não há na literatura especializada nem nos estudos epidemiológicos qualquer evidência que fundamente o entendimento de que as drogas legais mantenham os sujeitos engajados socialmente, enquanto as ilegais produzam improdutividade. As estatísticas demonstram que a droga que mais incapacita seus usuários é o álcool, cujo consumo é legal. Além disso, faltam estudos que investiguem o quanto a prescrição excessiva de psicofármacos, por parte de médicos de diferentes especialidades, condena um grande número de sujeitos a uma vida anestesiada, desvitalizada. Se o médico está apenas preocupado em eliminar o sintoma de seu paciente, este é um processo que pode ir muito longe, porque dificilmente o sujeito apresenta uma única queixa. E, muitas vezes, novas queixas surgem como efeito das primeiras medicações. Assim, passado algum tempo, não há mais como saber o que está se passando com essa pessoa: o que é produto de sua história, de seus conflitos, e o que é efeito desta profusão de remédios. Na maior parte das vezes, o objetivo dessa orientação terapêutica é que o sujeito não sinta nada considerado indesejável. E esse objetivo é alcançado: o paciente não sente mais nada. Por outro lado, basta analisar as pesquisas epidemiológicas e as estatísticas policiais para comprovar que apenas uma ínfima parcela dos consumidores de drogas ilícitas se torna um dependente, incapaz de manter seus laços sociais, incluindo aí os laborais.

ÉPOCA – Não é curioso que o mesmo médico que receita drogas legais para anestesiar o sofrimento, já que sofrer parece ter virado uma anomalia, pretende “curar” os viciados em drogas ilegais?
Ribeiro – Temos aqui duas perspectivas diferentes: a do sujeito que busca uma ajuda para enfrentar seus sofrimentos, que podem ter múltiplos determinantes; e a destes médicos, que tendem a ver apenas o sintoma. Se o sujeito está deprimido, prescrevem-lhe um antidepressivo, se está ansioso, um ansiolítico. E assim por diante. Isso ocorre nos mais diversos contextos clínicos, não apenas no tratamento de dependentes de drogas. Por outro lado, a estratégia de prescrição de drogas de substituição, para combater a dependência a uma determinada droga, é muito antiga e largamente utilizada, principalmente nos Estados Unidos. Ela costuma funcionar quando a dependência é produzida por circunstâncias específicas e episódicas, como a utilização de morfina em feridos de guerra. Nos demais casos sua eficácia é muito duvidosa, pois parte da suposição de que foi a droga que viciou o sujeito.

ÉPOCA – E não foi a droga que o viciou?
Ribeiro – Esta é a principal questão: nenhuma droga vicia. São as pessoas que, eventualmente, se viciam com alguma droga. Isso lembra aquelas advertências de nossas avós, para que não aceitássemos balas de estranhos na saída do colégio, porque elas poderiam conter maconha e nós ficaríamos viciados. Ao contrário do que é veiculado pela maioria das campanhas, qualquer um de nós poderia experimentar até mesmo o crack algumas vezes, sem se viciar. É sempre um sujeito que decide usar uma droga e pode, ou não, optar por levar essa relação mais longe. É claro que existem sujeitos cujas circunstâncias fazem com que eles corram um maior risco na relação com a droga, mas as drogas não fazem nada, são substâncias inertes.

ÉPOCA – As substâncias podem não ter poderes sobrenaturais, como acreditavam e acreditam algumas culturas, mas está provado que algumas substâncias causam dependência, em menor ou maior grau. O que você quer dizer, exatamente, quando afirma que a drogas não viciam?
Ribeiro – Ninguém questiona a existência da dependência de drogas, mas faz muita diferença quem é o sujeito da frase. Dizer que as drogas viciam é diferente de dizer que pessoas se viciam com drogas. O que afirmo é que, para se estabelecer uma dependência, alguém decidiu usar drogas. E é esta motivação, e a história da relação do sujeito com a droga, no contexto mais amplo de suas circunstâncias, que vai definir se ele se tornará um dependente – ou não. Também é importante observar que, no contexto do tratamento de uma dependência de drogas, a primeira etapa, a desintoxicação, é a mais rápida e fácil. Em duas ou três semanas já não há mais nenhuma substância com princípio psicoativo atuando no corpo do sujeito. E todos sabem que ele não está curado de sua dependência. Permanece uma espécie de “memória”, que não é exclusivamente orgânica, nem exclusivamente psíquica, e que se encontra associada a certas situações e sensações que fazem parte da vida do sujeito. Assim, diante de determinado conflito familiar, ou determinada frustração, ele pode voltar a sentir uma “necessidade” de usar a droga a que costumava recorrer.

ÉPOCA – Hoje há uma droga legal, adquirida com receita médica, para cada sentimento humano de desconforto ou conflito. Em que medida o fato de nossa sociedade considerar qualquer sofrimento um sintoma que precisa ser abafado e anestesiado com drogas influencia no uso das drogas ilegais?
Ribeiro – É verdade que os sintomas podem produzir sofrimento, mas, ao contrário do que acontece com as dores orgânicas, em que na maioria das vezes não há razão para não tentarmos eliminá-las, as dores psíquicas cumprem uma função importante de sinalizar a existência de um conflito que está exigindo uma resposta. Eliminar esse sinal apenas nos condena à impotência frente à causa de nosso sofrimento. E ao inevitável deslizamento, com a formação de outro sintoma, com o agravante de termos ainda que suportar os efeitos colaterais da medicação. Um conflito psíquico pode produzir sintomas, inibições, angústias e outros desconfortos. Geralmente isso perturba nossa vida, fazendo com que soframos com coisas que, para os outros, parecem banais. Esses conflitos podem ser tratados, mesmo que nunca completamente eliminados. Isso faz parte da vida de todos nós, mesmo fora do contexto de um tratamento psicológico: a gente tenta superar certas dificuldades, consegue alguns sucessos, volta a deparar com limites e carências, e a vida vai andando. Dá certo trabalho e não nos poupa de vários momentos de mal-estar, mas é a forma como assumimos a direção de nossas vidas – e pode também produzir muita satisfação. Algo diferente ocorre quando se busca evitar esse trabalho psíquico e o mal-estar que o acompanha: sofremos menos em um primeiro momento, mas perdemos a possibilidade de superar aquilo que está nos aprisionando: contornamos nossos conflitos sem nunca conseguir fazê-los mudar de lugar.

ÉPOCA – Mas o quanto a visão contemporânea de que o sofrimento é sinônimo de fracasso e deve ser suprimido da vida tem a ver com o uso de drogas ilegais?
Ribeiro – Acredito que isso tem a ver com o uso de drogas em geral, e não apenas das drogas ilícitas. As estatísticas médicas e farmacêuticas indicam que vivemos em tempos de depressão. Nada de novo nessa constatação. Entretanto, chama a atenção o fato de outras avaliações de nossa sociedade apontarem para a direção oposta: cada vez mais percebemos a existência de uma cultura dinâmica, voltada para a busca de prazeres imediatos, que reconhece e valoriza quase todas as formas de gozo. Tornamo-nos maníacos e depressivos, mas não necessariamente ciclotímicos. Talvez seja mais preciso afirmar que uma sociedade maníaca tende a produzir subjetividades depressivas, pois se o ideal social que nos serve de referência preconiza que todo sofrimento deve ser superado, encontra-se desvalorizado todo aquele que não consegue se ajustar aos modelos de felicidade propostos. Não é difícil entender o quanto o uso de drogas se “encaixa” bem nesse contexto: ele pode tanto nos aliviar de nossas frustrações quanto nos ajudar a melhorar nossos desempenhos. Basta escolher a droga certa para o momento certo.

ÉPOCA – Você faz, em seus artigos, uma afirmação muito interessante – e bastante polêmica – sobre como o saber médico e o toxicômano veem a droga da mesma maneira. Você afirma que a teoria médica coincide com a do toxicômano, na medida em que procura isolar o aparelho psíquico para gozar dele como um órgão. Ou seja, com o auxílio de determinadas drogas pretende-se tanto curar um corpo doente como uma vida doente, sem problematizar as modalidades de relação com o outro. Como é isso?
Ribeiro – Tomemos o exemplo fictício, mas não incomum, de um adolescente que cotidianamente observa seu pai chegar em casa meio estressado e tomar umas doses de cachaça ou uísque; sua mãe consumir religiosamente seu ansiolítico; o médico da família, frente ao primeiro sinal de tristeza e abatimento, receitar um antidepressivo. Esse adolescente, diante das angústias próprias de sua idade, teria alguma razão para se recusar a fazer uso de um cigarro de maconha de vez em quando? Qual seria a diferença? Nesse exemplo, estamos longe de uma toxicomania, mas percebemos uma mesma lógica, que pode vir a ser acionada em situações extraordinárias, como a de uma dependência de drogas. Isso nos lembra do Millôr, que afirmava ter nascido com duas doses de uísque a menos, pois, quando as tomava, se sentia muito melhor. É a mesma coisa: se a psique é vista como um órgão, e se o remédio faz com que este órgão funcione melhor, deduz-se que era ele o que estava faltando. Ou seja, depois de procurar curar o corpo, o órgão doente, hoje se pretende curar a vida doente.

ÉPOCA – O crack é a droga do momento, a grande epidemia. Você acha que o crack é diferente das outras drogas e deve ter uma abordagem diferente?
Ribeiro – Mesmo que se faça uma crítica a muitas abordagens acerca do uso de drogas e às propostas hegemônicas para enfrentar o problema – e é importante que a crítica seja feita –, não há como deixar de reconhecer que se trata de um problema social que exige respostas urgentes. Entretanto, independentemente do tipo de droga utilizada, e mesmo que se reconheça a enorme diferença que existe entre os efeitos do consumo de maconha e de crack, por exemplo, não acredito que devamos nos dedicar à proposição de “estratégias para combate do uso de drogas” ou de uma “clínica da dependência de drogas”. Da mesma forma que não acredito em uma “clínica da depressão” ou uma clínica da “síndrome do pânico”. Em vez de reduzirmos o sujeito ao seu sintoma, ganharíamos mais diversificando nossas estratégias para operar uma “clínica do sujeito”, levando em consideração os contextos sociais em que essas subjetividades são produzidas.

ÉPOCA – E como seria uma “clínica do sujeito”?
Ribeiro – Parto do entendimento de que cada sujeito é absolutamente singular, o que faz com que o trabalho terapêutico também tenha que ser construído caso a caso. É nesse sentido que recuso a idéia de uma “clínica da toxicomania”, como se esses sujeitos compusessem um conjunto, com problemas e saídas semelhantes. Mas é possível propor algumas estratégias e linhas de ação. Nos casos menos graves, atendidos em consultórios e ambulatórios, entendo que o uso de drogas deva ser abordado no contexto da história e do conjunto de relações mantidas por cada pessoa. Não é o uso de drogas que define sua posição subjetiva e o seu sofrimento, mas o contrário: a relação que ele estabelece com as drogas é resultante da forma como ele vivencia seus conflitos e relações. Já nos casos mais graves, em que há uma perda de autonomia do sujeito, se torna necessária uma vinculação institucional, de preferência sem internação, através da qual ele possa contar com o apoio de uma equipe multiprofissional que lhe auxilie em seu processo de reinserção social.

ÉPOCA – Como você vê os tratamentos oferecidos para “curar” a drogadição, que em geral partem de uma oferta da medicina ou da religião ou de uma aliança entre ambas?
Ribeiro – A maioria dos dependentes de drogas que procuram – ou são levados a – tratamento se encontra em uma situação de fragilidade de suas inserções sociais. Normalmente não estão trabalhando ou estudando e vivenciam conflitos no âmbito familiar. Experimentam um sentimento de anomia, em uma errância que tem como únicos pontos de referência os caminhos que levam à droga. Ora, essa situação produz muita angústia, e não raro desespero. Diante dessa realidade, não é de surpreender que as ofertas de certas comunidades religiosas exerçam forte sedução, afinal elas prometem uma pertença comunitária, uma visão de mundo estruturada e uma função revestida de importância e dignidade – “a construção da Obra do Senhor”. Mas essa “solução” cobra seu preço, e não é barato: espera-se do sujeito que ele seja capaz de abrir mão de seus conflitos, ou seja, de sua história, e se engaje incondicionalmente em um projeto coletivo, que ele já recebe pronto. As correntes mais biológicas da psiquiatria, muitas vezes aliadas a determinadas versões da psicologia cognitivo-comportamental, apresentam outro entendimento do problema, de onde deriva outra proposta terapêutica. Esta é direcionada a uma reprogramação da mente e do comportamento, visando sua “normalização”. O que há de comum entre essas ofertas são as certezas de que partem. Não há lugar para dúvidas acerca do que é certo e do que é errado. Para quem está totalmente perdido, isso não é pouca coisa.

ÉPOCA – Mas, a longo prazo, funciona? A pessoa consegue manter esse engajamento no projeto, que, por sua vez, a mantém longe das drogas?
Ribeiro – Dificilmente. Essa reprogramação exige que o sujeito assuma uma nova vida, e sabemos que nossa liberdade de escolha é limitada: não podemos escolher quem queremos ser. Somos o produto de uma história, que não se deixa ignorar. Mas, embora hegemônicos, esses campos, felizmente, não detêm a exclusividade no tratamento da dependência química. “Felizmente” não porque eles sejam sempre ineficazes ou mal-intencionados, longe disso, mas porque muitos dependentes não se adaptam a suas propostas. Há muitas clínicas, ambulatórios e CAPS-ad (Centros de Atenção Psicossocial a usuários de substâncias psicoativas) que assumem um maior respeito à liberdade de escolha dos sujeitos, tomam como referência a estratégia de redução de danos e trabalham a partir de uma escuta das singularidades de cada caso.

ÉPOCA – Como você vê o jogo de culpa que se faz na abordagem das drogas: é culpa da família, é culpa do traficante, é culpa do Estado, é culpa dos amigos viciados, é culpa de um mundo sem valores ou há tantos culpados que ninguém mais tem culpa? A culpa cumpre algum papel nesse jogo?
Ribeiro – A culpa é um dos sentimentos – ou acusações – mais inúteis e produtores de sofrimento com que temos de conviver. Ela nada produz além de recriminações e ressentimentos. Além disso, a atribuição de culpa costuma ser utilizada por discursos autorizados – o científico, o policial ou o religioso – como estratégia de imposição autoritária de seus pontos de vista. Mais interessantes são as tentativas de produção de consensos mínimos sobre os problemas que envolvem o consumo de drogas e a pactuação de responsabilidades no que se refere à forma como o problema deverá ser enfrentado. Isso vale tanto para um contexto familiar, quanto para a elaboração e implementação de políticas públicas.

ÉPOCA – Qual é a sua opinião sobre a descriminalização das drogas, no geral, e a descriminalização só da maconha, como propõem alguns, inclusive o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
Ribeiro – Não vejo razões pelas quais consumir drogas deva ser considerado um crime, o que não é o mesmo que defender sua liberação irrestrita. É interessante notar que as origens da proibição ao uso de determinadas drogas não estão relacionadas a qualquer avaliação de ordem médica, psicológica, epidemiológica ou antropológica. Estão associadas de forma muito mais direta às pressões exercidas por certos segmentos sociais, a partir de preconceitos morais e estigmatizações sectárias. Deveríamos ser capazes de aprender com nossos erros e, no momento em que se evidenciam as contradições de nossa política proibicionista, investir em estudos multidisciplinares e promover um amplo debate, depurado de moralismos e respostas fáceis.

ÉPOCA – E quais seriam as questões centrais deste debate?
Ribeiro – Questões que discutam poder e responsabilidade. O que legitima que alguém legisle ou defina o que posso ou não consumir? Se é uma questão que extrapola o âmbito das liberdades individuais, envolvendo problemas de saúde pública, quais são os critérios para definir quem pode e quem não pode consumir tais e tais drogas? Repressão e marginalização são boas estratégias para a produção de saúde?

ÉPOCA – Qual é a sua opinião sobre a campanha nacional contra o crack lançada pelo Ministério da Saúde (e recentemente ampliada pelo presidente Lula)?
Ribeiro – A campanha promovida pelo Ministério da Saúde promove grandes avanços, entre eles o de respeitar os direitos dos usuários, o de operar a partir da lógica de redução de danos, o de priorizar a abordagem do problema no território em que vive o usuário e o de evitar internações prolongadas. Entretanto, é sabido que esse tipo de abordagem enfrenta fortes resistências de parte daqueles que se opõem a Reforma Psiquiátrica e se mostram saudosos dos antigos manicômios. Para estes, o melhor seria ampliar o número de leitos de internação, segregar e “tratar” o maior número possível de usuários, para depois “devolvê-los” – se possível – para o convívio social. Infelizmente, através dessa estratégia, muitos psiquiatras evitam a abordagem da intensidade dos dramas humanos – preferindo a calmaria dos sedativos.

(Publicado na Revista Época em 14/06/2010)

Vida de photoshop

O que a Lisbeth Salander de Hollywood não dirá sobre nós

Assisti na semana passada ao filme baseado no primeiro livro da trilogia Millennium, do sueco Stieg Larsson: “Os homens que não amavam as mulheres”. Como milhões de pessoas no mundo inteiro, fui capturada por Lisbeth Salander, a perturbadora (e perturbada) hacker que desvenda nossa sombria humanidade (e alguns crimes) em parceria com o jornalista idealista Mikael Blomkvist. Sou fascinada por literatura policial e li os três volumes quase de uma vez só. O autor, um jornalista que morreu de enfarte antes de ficar milionário, conseguiu criar algo que poderia ser considerado um dos primeiros romances policiais pós-modernos. Ao começar a assistir ao filme, porém, tive um estranhamento. E foi um ótimo estranhamento.

O filme, falado em sueco, é uma produção conjunta da Suécia, Dinamarca e Alemanha. Logo de cara, eu me surpreendi com o ator que interpreta Blomkvist. O ator Michael Nyqvist é charmoso, mas tem cicatrizes de acne no rosto e barriguinha de sedentário. Em seguida, estranhei as rugas de Erika Berger, a sócia (e amante) de Blomkvist na pequena e combativa revista Millennium. Na sequência, me espantei com a acanhada redação da revista. Eu imaginava um conjunto pequeno, mas estiloso e muito moderno. E assim segui, de estranhamento em estranhamento. À primeira vista, só aprovei Noomi Rapace, a atriz que interpreta Lisbeth Salander, muito jovem no livro e no filme. E bem mais bonita no filme do que sua descrição no livro.

Até que compreendi (por sorte no início do filme). Era isso! Enquanto lia os livros, eu havia imaginado os personagens. Normal, nunca será como a gente imagina. A questão é que minha imaginação está condicionada pelos blockbusters de Hollywood. No livro, fica claro que Blomkvist está fora de forma. Que a revista luta com dificuldades financeiras. Que Erika é uma mulher que passou dos 40. E assim por diante. Mas eu imaginava um filme de Hollywood, onde os heróis têm barriga tanquinho, as mulheres chegam aos 60 com carinha de 30 e a pobreza tem estilo. Até as marcas, quando existem, são estetizadas.

Vejo muitos filmes que não atendem à estética dos blockbusters de Hollywood, óbvio. E até alguns de Hollywood que não se curvam ao modelo vigente. Mas são filmes que versam sobre outros temas. Quando vou assistir a um filme francês, alemão, japonês, coreano, iraniano, israelense, brasileiro etc, sei que vou ver gente normal, gente com marcas. Mas uma história policial com vocação de blockbuster, hoje, é quase sempre produzida por Hollywood. Neste escaninho do filme policial, de suspense, de ação, as imagens já vêm à minha cabeça no formato Hollywood.

Foi assustador perceber o quanto esta estética condiciona a minha imaginação, está entranhada no meu cérebro, apesar do meu constante questionamento. Eu já tinha um filme de Hollywood na minha cabeça quando fui assistir a um filme sueco, baseado num livro que se passa na Suécia, escritor por um autor sueco, com personagens que são cidadãos suecos.

Desconfio que o filme não fez tanto sucesso por aqui por causa desse estranhamento. Achei o filme bastante bom. Acompanho agora, nos sites e blogs especializados, a expectativa pela produção hollywoodiana da trilogia, com comentários como: “agora sim, a obra terá a adaptação que merece” ou “a trilogia está salva”. Para o papel de Blomkvist, especula-se com os nomes de Brad Pitt e George Clooney, entre outros. Agora sim, teremos um jornalista mais sedentário do que gostaria, fumante, passado dos 40, sem marcas e sem barriga, com muitos músculos e todos no lugar. Para encarnar Lisbeth Salander, uma garota de 20 e poucos anos com corpo de 12, esquisita, desajustada, muito longe de qualquer padrão de beleza, já foram cogitados os nomes de Kristen Stewart, Natalie Portman, Anne Hattaway, Carey Mulligan e até Scarlett Johannsson, entre outras. Com certeza, quando for lançada, a versão hollywoodiana fará muito mais sucesso que a sueca. A maioria de nós terá a sensação de que finalmente está tudo no seu lugar.

Mas a verdade é que está tudo fora do seu lugar – e não da forma que nos leva a algum lugar, mas da forma que nos deixa na mesma.

A estética que impera em Hollywood tem o mesmo sentido da que domina as novelas brasileiras e as revistas de celebridades. Vivemos em um país de gente cheia de cáries e falhas nos dentes ainda hoje. Mesmo quem cuida bem da sua boca – e tem dinheiro para bons dentistas – não envelhece sem ver seus dentes se gastarem e amarelarem. Mas atores e atrizes, jornalistas e apresentadores, todos que aparecem na TV, exibem uma dentadura de comercial de creme dental. Minha dentista me conta que as pessoas aparecem no consultório com capas de revista na mão, dizendo: “Eu quero dentes iguais a estes”.

Fico imaginando um historiador, no futuro, revirando os arquivos da imprensa do início do século XXI. Ele vai ler uma tonelada de páginas, impressas e virtuais, sobre celulite, por exemplo. Mas vai ter muita dificuldade para descobrir por que a celulite era uma questão para as mulheres desta época, já que não vai encontrar uma única criatura do sexo feminino com celulite. Quem aparece é linda, magra e mantém o corpinho liso, “sem o famoso efeito casca de laranja”, à custa de um pouco de malhação e alimentação saudável. Algumas nem gostam de fazer ginástica, é puro dom da natureza. O historiador do futuro vai estar diante de um enigma digno da esfinge do mito de Édipo: a celulite é uma grande questão para a mulher do início do século, mas nenhuma mulher tem celulite.

As celulites só aparecem quando se trata de “denunciar” uma celebridade que foi flagrada por um paparazzi em estado natural. Neste caso, para ser ridicularizada. Ahá, te peguei, você é igual a mim. Vingança. De novo, um pesquisador que analisar nossa época vai ter problemas, porque não vai saber qual é a imagem verdadeira: a que passou pelo photoshop e está em todas as capas – ou esta, que se apresenta como um flagrante.

Os documentos que deveriam ser testemunhos do nosso tempo estão quase todos “photoshopados” desde que as fotografias se tornaram digitais e passaram a ser manipuladas, retocadas para eliminar marcas e imperfeições ou alteradas para imprimir determinado efeito. “Tratadas”, no eufemismo do jargão. Até as fotos de políticos, empresários e jogadores de futebol em geral passam pelo photoshop, para melhorias aqui e ali. Embora existam uns poucos órgãos da mídia que resistem, a maioria se rendeu aos retoques da realidade.

Basta conversar com colegas em diferentes redações – e não apenas nas de revistas de celebridades – para descobrir que o tamanho da foto e o espaço do personagem na matéria são definidos cada vez mais em função de sua beleza e juventude. Para um feio ou velho virar capa, em boa parte das publicações ele tem de ter feito um sucesso estrondoso. Ou ser tão famoso ou tão rico que se tornou bonito ou sem idade. E os bonitos e jovens ficam mais bonitos e jovens ainda por obra do photoshop.

Alguns jornalistas contam que chegam das entrevistas e o editor lhes pergunta: “Mas fulana é bonita, rende abertura de matéria ou capa?”. Ou, depois de conferir a foto: “É muito feia, não dá para botar na matéria. Não resolve nem com photoshop!”. E, se não for bonita, “não vende”. Em algumas redações, criou-se inclusive a exigência de que o repórter faça uma foto do entrevistado com seu celular, para que o editor possa avaliar se está dentro dos padrões de beleza e juventude exigidos. Alguns desses colegas entram em crise quando percebem que já introjetaram o modelo e começam filtrar os entrevistados também pela aparência – e não apenas pela relevância do que têm a dizer.

Estou falando agora não mais de Hollywood ou de telenovelas, mas de jornalismo, cuja busca da verdade é um dos pilares mais fundamentais. E poucas coisas podem ser mais verdadeiras – ou falsas – que a imagem e a escolha da imagem. Tive a sorte de nunca ter sido pressionada a fazer esse tipo de escolha – e a serenidade de saber que, se fosse, não aceitaria.

Tudo isso revela alguns caminhos por onde um tipo de olhar vai impregnando nosso modo de ver o mundo, aos outros e a nós mesmos. A cada dia nós vamos às ruas e enxergamos a realidade e as pessoas como elas são. A cada manhã nos olhamos no espelho e encaramos nossas marcas. Mas cada vez mais acreditamos e esperamos que exista uma outra imagem do mundo – e uma outra imagem de nós mesmos. Uma que não tem marcas, não engorda e não envelhece. E começamos a acreditar que esta é a imagem mais verdadeira.

Sofremos não pelo que somos, mas pelo que deveríamos ser e nunca seremos, por mais caros que sejam os cremes, mais sofisticadas e invasivas as cirurgias plásticas. Mesmo assim, passamos a medir nossa vida – ou nosso sucesso na vida – por essas duas imagens que jamais se tornarão uma. Passamos a acreditar que o que deveríamos ser – e não o que somos – é nossa versão mais verdadeira. Emprestamos verdade à imagem “photoshopada” dos homens e mulheres das capas das revistas. E falsidade ao nosso rosto no espelho. Como não inventaram um photoshop da vida, sofremos. E nos vemos sempre aquém do melhor de nós mesmos.

O que nem todos percebem é que, por mais que a indústria do entretenimento, a publicidade e, em alguns casos, também o mau jornalismo, tentem nos convencer do contrário, só há um jeito de não ter marcas: não viver. O vivido se inscreve em nós pelas marcas, as físicas e as psíquicas. Elas são o inventário de nossa vida. A prova de que vivemos.

Por isso temo pela versão de Hollywood da trilogia Millennium. Não tenho a menor dúvida de que será bem produzida. Mas, talvez, bem demais. A curta obra de Stieg Larsson conquistou o sucesso que tem porque o escritor criou personagens com muitas marcas da vida. Que ecoam em nós porque nos perturbam, porque nos reconhecemos neles. A mais jovem desses personagens, Lisbeth Salander, tem tantas marcas psíquicas na alma, que precisou tatuar no corpo marcas com as quais pudesse se identificar e, então, pertencer mais a si mesma. Ela, que foi violada e arrancada de si mesma de tantas maneiras, a ponto de não ter nem a tutela da própria vida.

Assim, é sempre possível apaziguar a alma à espera da próxima redenção de Hollywood. É como tantos de nós têm vencido os dias. Mas, se quisermos ter uma vida de photoshop, só há um jeito (e não é o bisturi): morrer ao nascer.

(Publicado na Revista Época em 31/05/2010)

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