Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite

Um filme da vida real que ninguém merece assistir. Ou merece?

Gostaria que o episódio “Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite” fosse ficção. Se fosse, seria muito engraçado. Uma coisa meio bufa. Tão absurda que corria o risco de parecer inverossímil, um defeito que a realidade é pródiga, mas a ficção não perdoa.

Vamos aos fatos, para quem perdeu o show. O cineasta José Padilha pediu autorização para gravar cenas do filme Tropa de Elite 2 na Câmara de Deputados. As cenas da ficção seriam ambientadas no conselho de ética e teriam um personagem de nome Fraga. No filme, Padilha faz relações entre segurança pública e financiamento de campanha.

Michel Temer (PMDB-SP), o presidente da Câmara de Deputados, negou autorização para as filmagens. Ele justificou: “De fato, não foi possível, sem nenhum antagonismo democrático, ceder o plenário, as dependências da Casa, para essa filmagem. Fizéssemos a autorização para essa matéria, haveríamos de fazer para toda e qualquer outra tentativa de filmar no plenário da Câmara. Este é o plenário do povo brasileiro. Não havia como autorizar essa filmagem”.

A negativa de Temer é questionável. Na condição de integrante do povo brasileiro, eu gostaria de compreender em que uma filmagem comprometeria “o plenário do povo brasileiro”. Justamente por ser “o plenário do povo brasileiro” seria legítimo poder usá-lo também como cenário de filme ou qualquer outra apropriação legal. Mas, vá lá. Padilha então filmou a cena em um conselho de ética improvisado na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro.

O que se seguiu a isso é que virou comédia. E, como não é um filme de ficção, para nós é uma tragédia. O deputado Alberto Fraga (DEM-DF) tomou a atenção do plenário na terça-feira, 11 de maio, para reclamar do roteiro do filme. Eu poderia enumerar dezenas de motivos vitais para o país que deveriam ser capazes de motivar a indignação do deputado Fraga. Mas não, sua preocupação era com o roteiro do filme. Ele queria que Temer enviasse o roteiro do filme para análise da procuradoria da Câmara. (!!!!!!!!!!)

Acompanhem o raciocínio do Fraga real: “Sou o artista desse filme, mas, o pior, o cidadão coloca que o deputado Fraga será o antagonista, ou seja, o bandido do filme, que vai lutar contra o Capitão Nascimento, contra as milícias assassinas”. E, mais adiante: “Ele poderia escolher qualquer nome: João, José, mas deputado Fraga nesta Casa só tem eu. E eu, numa campanha majoritária, no Distrito Federal, já imaginou o que vai acontecer comigo, o bandido na história do filme?”.

Recebeu de imediato o apoio do colega José Genoino (PT-SP). “Estão tentando colocar o parlamento como piada. A defesa do parlamento está em jogo, não podemos achar que isso é normal. Se a moda pega, a Câmara será colocada como uma instituição que não tem poder nenhum”, disse Genoino.

E, acreditem, Michel Temer afirmou que enviaria o caso para a procuradoria da Câmara.

Dá para acreditar?

A rigor, não dá para acreditar. Mas é preciso. Na “Casa” que vive uma crise moral de autoridade foi preciso apelar para o autoritarismo.

A Câmara que, junto com o Senado, vem protagonizando uma série interminável de escândalos de corrupção e impunidade acusa o cineasta José Padilha de tentar transformá-la em “piada”. Faça um rápido teste. Quantos escândalos você lembra nestes últimos quatro anos? E quantos projetos importantes para o destino do país debatidos e votados pela Câmara você recorda de imediato?

Eu sei. É triste.

A resposta do cineasta José Padilha, publicada na Folha de S. Paulo, lança alguns litros de lucidez no deserto de inteligência do episódio: “O filme Tropa de Elite 2 não tem nenhum deputado corrupto chamado Fraga. Existe, sim, um personagem com esse nome, mas ele não é um deputado corrupto. O deputado corrupto de ‘Tropa de Elite 2‘, totalmente fictício, diga-se de passagem, chama-se Guaracy. (Espero que não exista algum deputado corrupto com esse nome. Se existe, vou logo avisando que é coincidência!) Confesso que, até ler a matéria da Folha, eu nunca havia ouvido falar na existência de um deputado com o nome Fraga. Hoje, depois de uma rápida pesquisa na internet, aprendi que ele existe. É um deputado do DEM, considerado por parte da imprensa como membro da base parlamentar do ex-governador Arruda. Longe de mim querer denegrir a sua imagem. Deputado Fraga, pode ter certeza: você não tem nada a ver com o Fraga do meu filme! Também não posso deixar de comentar a declaração do deputado José Genoino, que, apesar de nunca ter visto o filme ‘Tropa de Elite 2‘, afirmou que o filme está ‘tentando colocar o Parlamento como piada (…)’. Ao nobre deputado quero dizer que, em uma democracia, tem que haver liberdade de expressão. Em uma democracia, se um artista quiser fazer piada com o Parlamento, ele deve ter liberdade para tal. De minha parte, não fiz piada alguma com a Câmara em ‘Tropa de Elite 2‘. Para mim, o Parlamento brasileiro e os inúmeros casos de corrupção que a imprensa associa a ele são um assunto sério demais para piadas. Finalmente, a ameaça que o presidente Michel Temer fez à liberdade de expressão, ao afirmar que ‘vai encaminhar para análise da procuradoria o fato de o filme ‘Tropa de Elite 2‘ ter cenas inspiradas na rotina da Casa e nos próprios deputados’, me fez pensar na época da ditadura. Será que a procuradoria da Câmara vai virar um órgão de censura cuja função é tentar proibir que artistas se inspirem na Câmara e em seus membros para fazer filmes? Espero que não!”.

Quando soube da polêmica, fiquei buscando mentalmente informações sobre o Fraga do espetáculo da vida real, não o do filme do Padilha: “Fraga, Fraga, Fraga….”. Me veio à cabeça uma vaga notícia de um deputado, coronel da Polícia Militar, membro da chamada “bancada da bala”, que atuou contra a aprovação do Estatuto do Desarmamento e, em 2006, teve parte da campanha financiada por fabricantes de armas. Também tinha lembrança de uma denúncia relacionada a uma empregada doméstica paga com dinheiro público. Fui checar. Sim, era este o Fraga. Que também foi secretário de Transportes do Distrito Federal na gestão do governador José Roberto Arruda, aquele que foi preso e cassado por acusações de corrupção. Durante o período em que foi secretário, o Correio Braziliense denunciou que Fraga empregou no governo a mulher, um filho, dois sobrinhos, um cunhado, uma cunhada e o namorado da filha.

Sim, sim, este é o mesmo Fraga da vida real que acredita que o filme pode manchar sua imagem e prejudicá-lo nas próximas eleições. O mesmo que disse em uma entrevista, para explicar sua preocupação com o xará de Tropa de Elite 2: “O que mais prezo em minha vida pública é meu nome”.

A vida real, no que já virou um clichê, é mesmo insuperável. Nem inventando muito um ficcionista consegue alcançar esse nível de licença poética.

Não, deputado José Genoino, cujas credenciais vêm rapidamente à memória, não é o cineasta que quer transformar a Câmara em piada.

Não vou nem falar da percepção do “povo brasileiro” sobre o Congresso. Mas dos próprios congressistas, deputados e senadores, numa pesquisa feita em 2009 pelo Instituto FSB, a pedido de ÉPOCA. Nela, quase 70% dos 247 entrevistados afirmam que a corrupção tem presença marcante no Congresso. Apenas 35% estão convencidos de que o Legislativo faz leis claras, concisas e inteligentes. E, claro, metade reclama que o salário é baixo.

O próprio Congresso, portanto, reprova a si mesmo. Este mesmo Congresso gasta, segundo pesquisa da organização Transparência Brasil realizada em 2007, R$ 11.545,04 por minuto. Comparado ao parlamento de 11 países (Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, México e Portugal), só perde para os Estados Unidos. O mandato de cada um dos 513 deputados federais custa R$ 6,6 milhões por ano. E o de cada um dos 81 senadores, R$ 33,1 milhões por ano. Nesse cálculo estão computados apenas os custos dentro da lei, não os gerados pela corrupção promovida por alguns membros do Congresso.

Os integrantes deste mesmo Congresso que reprova a si mesmo e é um dos mais caros entre as democracias do mundo apresentam um patrimônio com enorme disparidade na comparação com o do cidadão comum, segundo outra pesquisa da Transparência Brasil. Os números mostram a grande concentração de renda na classe política, mostrando o quão distante da realidade dos eleitores vivem seus representantes. No Ceará, uma pessoa comum precisaria trabalhar durante 1770 anos, sem gastar um centavo, para gerar o equivalente ao patrimônio de seus senadores. Em Alagoas, esse período seria um pouco menor: 1603 anos. No Maranhão, 751 anos. Cada paranaense teria de trabalhar durante 669 anos para gerar riqueza equivalente à média do patrimônio de seus deputados federais. Apenas em 11 Estados é preciso trabalhar menos de cem anos, sem nenhum gasto, para atingir patrimônio semelhante ao de seus representantes na Câmara dos Deputados. No Rio de Janeiro, Estado que apresenta a menor disparidade, são 31 anos.

Se o Congresso reprova a si mesmo, a nós cabe reprovar deputados e senadores que desrespeitaram nosso voto – ou aprová-los reelegendo-os no próximo pleito, daqui a alguns meses. E este é o ponto mais importante.

É muito fácil xingar deputados e senadores, falar mal de todos os políticos, afirmar que são todos da mesma laia. Primeiro, não são. Toda generalização é burra, como sabemos. E, sim, há políticos honestos e que pensam no bem público. Cabe a nós descobrir quem são e dar a eles o nosso voto. Cabe a nós dar mais valor ao nosso voto, não o dando a qualquer um. E valorizar um Congresso que não é deles – mas nosso.

Este Congresso que aí está não apareceu do nada. É o que é porque nós escolhemos esses indivíduos – e não outros. Fomos nós que colocamos essas pessoas em Brasília para nos representar. Pode xingar à vontade, mas esse Congresso é nosso espelho. Quando olhamos para ele, olhamos para nós. Gostando ou não, o Congresso é a nossa cara.

É duro se olhar no espelho sem autoindulgência. Você pode dizer: “ah, mas eu não votei nesses sujeitos. Os que eu votei…” Com toda honestidade, quantos de nós sabem o que o senador, o deputado federal e o deputado estadual que elegeu estão fazendo, se é que estão fazendo alguma coisa? Quantos de nós acompanham e fiscalizam aqueles que legitimaram com seu voto? Se não começarmos a fazer isso não amanhã, mas já, continuaremos cúmplices desses parlamentares que transformam a Câmara e o Senado em piada.

E a democracia não é piada. Um Congresso atuante é vital para o país. Quem torce para que vire piada, para alegar que a democracia não vale a pena, é irresponsável ou mal-intencionado. O que nós precisamos é aprender a votar, um direito fundamental que nos foi sequestrado durante anos pela ditadura militar. E que enxovalhamos sempre que votamos mal. Teremos uma chance daqui a pouco de eleger um Congresso do qual possamos nos orgulhar. E mandar todos aqueles que o transformam em piada e em caso de polícia para casa.

É fácil repetir que são os mais pobres e com menos acesso à educação dos rincões esquecidos que votam mal. Se perguntar a um cidadão urbano e com curso superior – ou a si próprio – o que seu deputado ou senador anda fazendo, que projetos propôs, como votou nas questões importantes, que empresas financiaram a sua campanha, será que a resposta é de um eleitor esclarecido? Você tem estas respostas?

Acho que somos muito complacentes com nós mesmos. Achamos que não precisamos acompanhar e participar da educação escolar dos filhos (até a educação dentro de casa muitos delegam com as mais variadas justificativas), que não temos de nos organizar para reclamar por melhorias no nosso bairro, que não cabe a nós reivindicar um transporte decente ou um sistema de saúde que não deixe pessoas com câncer esperando um exame por meses. Há quem discurse sobre o aquecimento global, mas acha que pode continuar com a torneira aberta, deixar a TV ligada enquanto vai fazer outra coisa e não reciclar lixo por preguiça. E, óbvio, se votou acredita que já fez toda a obrigação: não vai perder tempo fiscalizando seu candidato e cobrando o que ele deixou de fazer ou fez errado.

Boa parte das informações que precisamos para votar com consciência está nos sites oficiais, como os do TSE, Câmara e Senado. Outra fonte é o site da Transparência Brasil, que concentra vários indicadores em um banco de dados. Com alguns cliques, agora mesmo você descobre o que andaram fazendo aqueles que se elegeram com a ajuda do seu voto. Basta entrar em www.transparencia.org.br e clicar no ícone “Excelências: como se comportam os nossos parlamentares”. Você digita o nome do seu deputado ou senador e pronto, fica sabendo como ele vem se comportando, o que fez, como votou, se foi processado na Justiça, o que a imprensa publicou sobre ele, quem financiou sua campanha, qual é seu patrimônio declarado, se é assíduo ou um campeão de faltas. Alguns minutos do seu tempo e você pode avaliar se votou bem e se preparar para votar melhor nas próximas eleições.

A desfaçatez de parte dos parlamentares atingiu índices tão absurdos que já passou da hora de darmos uma resposta que seja mais do que falar mal dos políticos na mesa do boteco. Se parte dos parlamentares não se dá o respeito, nós que os elegemos precisamos ter vergonha na cara. Quero muito ver o filme do José Padilha. Mas não quero mais ter de assistir a cenas patéticas do Congresso real. Passou da hora de votar direito. E fiscalizarmos o que foi – e será – feito do nosso voto.

(Publicado na Revista Época em 17/05/2010)

Memento mori

O rei, os sapatos de salto e as meninas de Velázquez

Na Roma antiga, quando um comandante ganhava uma batalha importante, percorria a cidade num ritual que historiadores chamam de “triunfo romano”. Era um momento de glória suprema, talvez próximo à reconstituição dos filmes feitos por Hollywood. Atrás dele, para que não esquecesse que toda ascensão contém uma queda, um escravo sussurrava no ouvido do vitorioso: “Memento mori”. Em tradução do latim: “Lembra-te de que és mortal”.

O memento mori é citado por alguns historiadores, mas sempre com a ressalva de que não há comprovação documental de que isso realmente tenha ocorrido e que esta tenha sido a frase exata. De qualquer modo, me parece brilhante. E deveria ser reeditado com os poderosos de todas as épocas, seja da política ou do show business. Não mais por um escravo, claro, mas alguém bem pago para trazê-los à terra quando a tentação humana da divindade comichasse a ponto de se tornar irresistível.

Se na Roma clássica o fato realmente ocorria da maneira sugerida, penso que o comandante ficava com muita vontade de dar um peteleco no escravo que o lembrava de sua morte no ápice de sua vida. Ou quem sabe enfiar sua honrada espada bem no coração do sujeito, para que ele não ousasse mais lembrar a morte alheia. Sendo ou não factual, o conceito memento mori contém uma verdade profunda. E serve para todos nós.

Enxergar alguém como se o pedestal fizesse parte do corpo é a melhor maneira de não enxergar coisa alguma. Pior ainda quando escorregamos na tentação de enxergar a nós mesmos dessa maneira. Acho que a vida de todos, tenha maior ou menor quantidade de glória, se beneficia muito quando mantemos o memento mori vivo dentro de nós.

Pensei muito nisso nos últimos dias. Fui a Madri receber um prêmio de jornalismo chamado “Rey de España”. O prêmio é entregue pelo próprio rei Juan Carlos, durante uma cerimônia em que comparece gente de todas as áreas da sociedade madrileña, da política às artes. Toda viagem, seja curta ou longa, para perto ou para longe, é sempre para dentro da gente. Abre uma possibilidade única de nos enxergarmos – e aos outros – com olhos novos. Esta viagem, tão singular, me deu a chance de viver muitos memento mori. A maioria deles bem prosaicos.

Eu nunca tinha conhecido um rei. E estava muito excitada com a possibilidade. A ideia de um rei é um tanto estranha para a maioria de nós, brasileiros. Eu conhecia a história do rei Juan Carlos, que desempenhou um papel decisivo na democratização da Espanha, depois da sangrenta ditadura de Franco. Conhecia também aquela parte da vida contada pela “prensa del corazón” (como os espanhóis chamam o jornalismo de celebridades). Mas eu queria saber como é ser rei mesmo – ter nascido com um destino mais traçado que o da maioria de nós.

Quando participo desse tipo de cerimônia, que envolve uma programação de vários dias, em que você e outros estão no centro das atenções, fico exausta. Acho muito difícil representar a mim mesma. No final do dia, estou uma uva passa. Fico então bem quieta por algumas horas, sem falar nada, para me rearranjar. Era o que me chamava atenção na história do rei. Como deve ser difícil representar o tempo inteiro. Não só a si mesmo, mas todo o delicado equilíbrio de um país como a Espanha.

Se já é difícil representar a nós mesmos, em nossos diferentes papeis – e quantas vezes ficamos sem dormir porque achamos que na hora mais importante vamos falhar –, dá para imaginar o que é representar um rei. Sim, porque Juan Carlos, como todos nós, ao mesmo tempo é e representa ser.

Na véspera de receber o prêmio das mãos desse rei que me deixava tão curiosa, tive pesadelos a noite inteira. Acho que minha expectativa era tão grande que tinha medo que não acontecesse. Meus pesadelos têm mania de grandeza. Nunca é algo simples, do tipo estava andando na Calle Mayor e torci o pé. Nada. Minha noite foi uma série de catástrofes que envolviam a humanidade inteira.

Lembro de duas. Uma avalanche de neve parava a cidade de Madri em plena primavera. A outra era ainda mais acachapante. Uma hecatombe nuclear acabava com o mundo inteiro. Em vez de receber o prêmio no Palácio de Linares, lá estava eu, me decompondo numa versão chinfrim dos filmes-catástrofes de Hollywood.

Acho que meus sapatos tinham a ver com isso. Eu estava ali, prestes a receber um prêmio importante, mas só pensava nos meus sapatos. Cometi uma extravagância e comprei o sapato mais bonito da minha vida para a cerimônia. Só que eles tinham 15 centímetros de salto. E eu nunca fui capaz de andar de salto alto sem parecer uma garça. Com este, era pior. Ele era tão alto que eu só conseguia andar aos pulinhos. Não caminhava, saltitava. Por mais que me esforçasse, eu estava a anos-luz do andar estiloso da Gisele Bündchen.

E se eu caísse na frente do rei? E se eu, já mais pesada por causa dos tantos jamóns e Riojas, desabasse em cima de sua majestade e a matasse? Pensariam que sou do ETA e me colocariam numa prisão espanhola para sempre. Meu sapato lindo de morrer poderia transformar um minuto de glória numa desgraça que duraria a vida inteira. Foi, na minha opinião, um memento mori. Quando despertei da hecatombe nuclear que havia reduzido a humanidade a pó, eu sabia o que tinha de fazer: aceitar o meu real tamanho e enfiar minhas velhas sapatilhas.

Foi o que fiz. Quando o rei chegou, levei um susto. Ao vivo, ele era a cara do meu tio Tarquínio, já falecido. A semelhança me deixou mais sossegada, já que este tio era o mais querido dos irmãos do meu avô. Juan Carlos, agora quase da família, estava também com a barba por fazer, possivelmente deixando crescer como vi em algumas fotos. Portanto, era um rei quase demasiado humano.

Interrompi esse curso de pensamentos tranquilizadores ao lembrar que eu apertaria a mão do rei e da rainha. Isso poderia resultar em uma pequena catástrofe. Como gaúcha eu aprendi que o aperto de mão revela o caráter da pessoa. Se alguém oferece uma mão mole, não confie nele. Se der uma mão suada, é possivelmente egoísta, porque não pensou em você. Enfim, fui educada para dar um aperto de mão bem forte, seco e agradável.

Quando me mudei para São Paulo, percebi que a cultura dos paulistanos era um pouco diferente. Mais de uma vez captei, com o canto do olho, a pobre pessoa que havia acabado de apertar a minha mão massageando-a com uma expressão que misturava dor e revolta contida. Compreendi que, para os padrões paulistanos, eu esmagava os ossos do interlocutor. Comecei a mentalizar um aperto de mão nem mole nem triturador nos soberanos dedos. Mas tinha certeza de que na hora esqueceria por causa do nervosismo.

Estava nesse ponto quando outro pensamento terrorífico cruzou meu cérebro. Minhas mãos estavam geladas. Não por causa do frio, mas do nervoso. Eu não queria oferecer uma mão em temperatura de freezer às figuras mais próximas de um conto de fadas que eu tive a chance de conhecer. Mesmo no verão, minhas mãos podem ser usadas para gelar cerveja. Se mais gente tivesse mãos na temperatura das minhas, o aquecimento global poderia ser revertido.

Comecei a esfregar furiosamente as mãos na pashmina que eu tinha achado no fundo do armário lá de casa e só trazido para uma emergência, no caso de ter de tirar meu estupendo casaco. Era preta. E, descobri naquele momento, de qualidade duvidosa. As palmas das minhas mãos estavam agora mornas. Porém negras como as asas da graúna.

Então anunciaram meu nome. E lá fui eu, toda feliz. Esquecida dos mais recentes tormentos. É possível que, de volta ao palácio real, suas majestades tenham se perguntado sobre aquela mancha preta nas mãos. Posso até imaginar doña Sofia comentando com o marido: “Juanito, cariño, siento un dolor extraño en los dedos de la mano derecha…”. E Juan Carlos: “Curioso, guapa, siento lo mismo en estos dedos… Y mira esta mancha: que raro, verdad?”

Espero que não relacionem os sintomas à única brasileira entre os premiados. Agradeci em espanhol, e Juan Carlos me deu os parabéns em português. A vida seguiu. E com ela a cerimônia. Quando vi, já estávamos tirando fotos com o rei. Duas colegas argentinas imediatamente se postaram, uma de cada lado do corpo real. Por supuesto, minha porção zagueira de futebol de várzea achou difícil resistir em dar uma cotovelada nas chicas. Mas eu estava no meu dia de princesa.

De repente, o rei começou a hablar comigo. Não me ocorreu nada inteligente para dizer. Eu queria muito perguntar como era ser rei, como era ter vontade de fazer xixi e não poder sair correndo para o banheiro mais próximo, se ele tinha algum complexo por ter falhas na barba. Juro, só me ocorriam coisas assim. E se ele dissesse: “Por qué no te callas?”. O rei já estava hablando em outro lugar antes que eu conseguisse fazer uma pergunta que coubesse no protocolo.

Pronto. Tudo terminado. À noite, eu já estava num boteco espanhol, diante de um chorizo e uma taça de vinho, dizendo com os olhos marejados: “Este é o meu Prado!” . Comer, para mim – seja um prato de feijão com arroz, um chorizo ou um dos banquetes da programação – é sempre uma experiência artística. Como ao fruir uma grande pintura, depois de um chorizo perfeito sempre me torno uma pessoa melhor.

No dia seguinte, no próprio Museu do Prado, eu tive meu memento mori máximo. E foi uma experiência que me marcará para sempre. Me postei diante de “As meninas”, a obra-prima de Diego Velázquez (1599-1660). As meninas estão para o Prado como a Mona Lisa para o Louvre. Quando estive diante da Mona Lisa, me faltou conhecimento – ou coração – para compreender por que aquela era a mais famosa pintura do mundo. Preferi outras, mais obscuras.

Diante das meninas de Velázquez, porém, tive uma epifania. Para quem não conhece a obra, vale a pena buscá-la na internet. A cena mostra a infanta Margarita, da Áustria, com suas damas de companhia, um cachorro, uma criança e uma anã, figura corriqueira na corte da época. Ao lado da menina, o próprio Velázquez aparece pintando uma cena que está fora do quadro. Lá atrás, na parede da sala, há um espelho onde vemos refletido o casal real. Pelo reflexo, portanto, descobrimos que é o casal que está sendo retratado pelo pintor da tela. Atrás da parede do espelho, há um empregado abrindo uma porta. Ou seja: Velázquez conseguiu fazer uma pintura que, por ser aberta, é um mundo fechado. Há alguém, o empregado, que entra no quadro, para onde não mais enxergamos. E há o casal retratado, fora do quadro, que só vemos pelo reflexo no espelho.

Parte da genialidade da obra está no fato de que ela nos inclui. Quando nos postamos diante do quadro para admirá-lo, nos colocamos na exata posição do casal retratado. De dentro do quadro, Velázquez olha para nós. Ele nos pinta. Quando compreendemos nossa posição, o espelho não é mais um espelho, mas um retrato do casal real congelado no passado. Nós, os espectadores, temos nossa posição invertida: é o quadro que nos pinta. E nos observa.

Neste lugar, percebi que o quadro formado por mim e pela pintura nunca mais se repetiria. Aquela cena era efêmera e, de certo modo, já estava morta. Nos tantos séculos que se passaram, milhões de pessoas formaram um novo quadro com a obra pintada por Velázquez. Da forma que só a arte permite, ele criou uma obra que para sempre seguirá pintando.

A cada espectador que se coloca no lugar de retratado, Velázquez inverte sua posição. Naquele instante em que o quadro se completa, é ele que está vivo. Ao pintar-se, Velázquez imortalizou-se. E nós, os vivos pintados por ele, estamos a um minuto de sair do quadro, desse pequeno pedaço de eternidade. E seguir pelo corredor do museu, rumo ao resto de nossas vidas.

Tive de me sentar num banco próximo para chorar pela cena que havia acabado de morrer. Depois, lembrei da minha vida breve e – mais viva do que antes de conhecer Diego Velázquez – fui tomar una copa de vino con jamón.

(Publicado na Revista Época em 19/04/2010)

A lista de Aracy

Enquanto namorava Guimarães Rosa, ela enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para salvar dezenas de judeus na Segunda Guerra Mundial

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

O ANJO DE HAMBURGO Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

O ANJO DE HAMBURGO
Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

Adolf Hitler queria matar Günter Heilborn. Se tivesse conseguido, Luiza, de 4 anos, não contaria histórias mirabolantes para a família com ares de heroína trágica, Marina não teria criado uma taturana para descobrir como ela virava borboleta e Juliana, ao ouvir uma amiga da mãe dizer que era baiana, não teria declarado: “Eu sou mamífera”. Não teria existido futuro para Günter. E não haveria presente para suas bisnetas trigêmeas. O assassinato num campo de extermínio poderia ter interrompido não apenas a história de Günter, mas toda a teia de acontecimentos, piqueniques, lágrimas, dentes de leite, decepções, joelhos esfolados e perguntas sem resposta que sua vida gerou.

É com essa fita métrica que a História vai medir a estatura de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, a funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo que enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para ajudar dezenas de judeus a conseguir vistos para fugir da perseguição nazista na Segunda Guerra Mundial. Ela completará 100 anos no domingo 20 de abril. Separados em tudo, Aracy e Hitler compartilham a mesma data de aniversário. Quando ela nasceu, a mais de 10.000 quilômetros da Alemanha, em Rio Negro, no Paraná, ele completava 19 anos e sonhava em ser artista. Décadas mais tarde, ela viria a tornar-se o anjo de Hamburgo. Ele, o carrasco de 6 milhões de judeus. Em meio ao horror inventado por ele, Aracy descobriu quem era ela.

O que faz alguém decidir que o único modo de salvar também a si mesma é desobedecer a ordens que prometeu cumprir? Que para ser uma boa pessoa é preciso ser uma má funcionária? A mulher sentada numa poltrona do apartamento do filho, em São Paulo, não pode mais responder. Ela sofre de Alzheimer. Os fios de sua memória são como um novelo que escorregou do colo e se perdeu.

Quando a trajetória de Aracy cruzou a de Günter, ela era jovem. E era linda. E não era vista com bons olhos. Em 1934, Aracy era uma mulher desquitada. Naquela época, para a maioria das mulheres, o máximo de ousadia era comprar um fogão a gás. Filha de uma imigrante alemã, Aracy pegou o filho de 5 anos pela mão e embarcou num navio para a Alemanha. Tinha 26 anos, era fluente em várias línguas e decidira ser a dona de sua história.

A vitória da vida Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família...

A vitória da vida
Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família…

Depois de uma temporada na casa de uma tia, Aracy conseguiu emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. Os judeus haviam sido expulsos de universidades, repartições públicas e do Exército. Foram obrigados a entregar seus negócios a arianos. Do Itamaraty eram desferidas “circulares secretas” para embaixadas e consulados. Nelas, a ordem era dificultar a entrada de judeus no Brasil. O Estado Novo de Vargas flertava com o nazismo.

O dentista Günter Heilborn não conhecia nem Aracy nem o Brasil. No fim de 1938, ele foi preso num campo de concentração com milhares de homens judeus. Para não morrer de fome, contou à família que tinha de comer as próprias fezes. Enquanto Günter padecia em Buchenwald, Aracy fazia sua escolha. Com a ajuda de Hardner, antigo guarda civil e proprietário da auto-escola onde aprendera a dirigir seu Opel Olympia, ela forjava atestados de residência falsos para que judeus de qualquer parte da Alemanha pudessem pedir vistos em Hamburgo. Conseguia também passaportes sem o J vermelho que assinalava os documentos. Misturava os pedidos à papelada que levava ao cônsul. Ele assinava os vistos, possivelmente sem saber que despachava judeus para o Brasil.

Parece fácil fazer a coisa certa. Mas só é fácil para quem vê os fatos iluminados pelo julgamento da História. Aracy era uma mulher sozinha com um filho pequeno num país à beira da guerra. Suas ordens eram fechar a porta para os judeus. Anos atrás, quando lhe perguntaram por que fez o que fez, ela disse: “Porque era o justo”. Em 1982, Aracy foi reconhecida como “Justa entre as Nações”, título conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém, aos não-judeus que arriscaram sua vida na Segunda Guerra Mundial para salvar a de judeus. Seu nome figura ao lado de Oskar Schindler e do então embaixador do Brasil em Paris, Luiz Martins de Souza Dantas, outro brasileiro entre as 22 mil pessoas que já receberam a homenagem.

Inge, a noiva de Günter, ouviu rumores sobre o “anjo de Hamburgo”. Naquele momento, ainda era possível conseguir a libertação de judeus que tivessem vistos para deixar a Alemanha. Os nazistas se contentavam em vê-los longe. Em breve, só se satisfariam com eles mortos.

O difícil era conseguir um visto. Na sala do consulado, Inge juntou-se a dezenas de judeus que haviam batido em muitas portas diplomáticas sem conseguir abri-las. Aracy aconselhou Inge a trocar os passaportes de suas cidades – Breslau e Gleiwitz – pelos de Hamburgo para que pudesse ajudá-los. Inge pode ter cruzado ali com Grete e Max Callmann, acuados num canto da sala. “Eu me lembro como se fosse ontem”, diz Grete. “Meu marido viajou para todas as cidades da Alemanha onde existia consulado do Brasil e dos Estados Unidos. Um dia me ligou dizendo que havia chance em Hamburgo. No dia seguinte, estávamos num canto, esperando nossa vez na sala cheia. De repente, uma moça nos chamou. Era a dona Aracy. Ela nos arrumou visto para viajar para o Brasil. Nós quisemos pagar. Mas ela disse: ‘Vocês não me devem nada’.” Na noite de 9 de novembro de 1938, Grete era recém-casada com Max, 22 anos mais velho. Ele havia sido diretor de uma grande loja de departamentos. Como todos os judeus, perdera o posto por um decreto nazista. Sobreviviam agora com uma fábrica de aventais. Grete não conseguia dormir porque Max roncava. Pegou travesseiro e cobertor e transferiu-se para o sofá da sala. “Acordei às 5 horas da madrugada, com um barulho terrível na rua. Os nazistas quebraram tudo o que era de vidro, as janelas das lojas”, diz. Ela sacudiu o marido: “Algo muito ruim está acontecendo”. No dia seguinte, o mundo saberia que os nazistas haviam assassinado dezenas de judeus, incendiado, saqueado e destruído sinagogas, lojas e empresas hebraicas, confinado quase 30 mil homens em campos de concentração. A “Noite dos Cristais” inaugurou o que a História chamaria de Holocausto.

Karl Franken, funcionário de uma loja de roupas para senhoras em Hamburgo, embarcou às pressas num trem para Essen. Pretendia se esconder na casa da mãe. Quando se acomodou numa mesa do vagão-restaurante para jantar, havia ainda um lugar vago. Minutos depois, sentou-se diante dele um oficial da SS. Karl ouviu impassível o nazista discursar. “Foi a única vez na minha vida que tive de levantar e estender a mão. Tive de fazer Heil Hitler”, disse a ÉPOCA, pouco antes de morrer. Tinha 99 anos e ainda vivia a insanidade daquele momento.

aracy grete1

‘‘O que Aracy significou para nós? A vida’’ Grete Callmann, de 94 anos, fugiu da Alemanha com o marido, Max, graças a um visto de Aracy

O oficial desceu em Bremen sem desconfiar que o jovem alto, olhos azuis, era judeu. Essa história será contada em um livro do Núcleo de História Oral Gaby Becker, do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Karl escapou e, com a ajuda de Aracy, embarcou no vapor Cap Norte com 10 marcos no bolso. Seu pai, o alfaiate Alex Franken, morrera em Verdun, na França, combatendo pela Alemanha na mais longa batalha da Primeira Guerra Mundial. Em Moers, sua cidade natal, uma placa saudava-o como herói.

Com o visto dado por Aracy, Inge arrancou Günter do campo de concentração. Casaram-se antes de embarcar para o Brasil no navio Monte Sarmiento. A noiva estava de preto – um luto profético. Para muitos, partir significava viver, mas abandonar os pais para morrer. “No trem para Hamburgo, vi pela janela minha mãe quase desmaiar”, diz Grete. “Foi a última vez que eu a vi.” Aos 94 anos, Grete chora sem soluçar. Suas lágrimas deslizam com a mansidão de quem nunca parou de chorar.
Enquanto o povo alemão envergonhava a si mesmo, Aracy desobedecia ao cônsul-geral, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro. E apaixonava-se pelo adjunto, João Guimarães Rosa. O jovem diplomata ancorou na Alemanha em maio de 1938. Tinha 30 anos, trocara a medicina pela diplomacia, havia vencido um concurso literário e perdido outro. No Brasil, deixara sua primeira mulher, Lygia, e as duas filhas, Vilma e Agnes.

Aracy era uma morena com mais curvas que o Reno, capaz de fazer os alemães gingar ao virar a cabeça para vê-la passar a caminho do consulado. Para sorte dos judeus, também tinha uma personalidade capaz de azedar um Apfelstrudel. Um dia deu uma bronca tão grande num policial que queria revistá-la que ele se encolheu diante de sua baixa estatura. Aracy, então, atravessou calmamente a fronteira com um judeu no porta-malas do carro.

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO
Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

Entre 1938 e 1942, Rosa registrou as impressões de um diplomata brasileiro na Alemanha nazista. No diário, ele é contundente ao narrar a perseguição aos judeus – e parcimonioso nas referências ao romance com Aracy: apenas 16 menções. Mesmo assim, a publicação desse diário é barrada pelas filhas do escritor. Agnes e Vilma desejariam reduzir o tamanho de Aracy na biografia do pai. Procuradas, não quiseram dar entrevista.

O romance está bem documentado nas cartas que “Joãozinho” escreveu para “Ara”. “Deixa que eu diga que você estava linda, linda, na hora de partir. (…) Dormi abraçado com a camisolinha cor-de-rosa, toda impregnada do aroma do corpo maravilhoso da dona de meu amor. (…) Serei absolutamente fiel, não olhando para as alemãzinhas, as quais, por sinal, todas viraram sapos!”, escreveu em 24 de agosto de 1938.

A declaração integra um acervo de 107 cartas e 44 cartões, bilhetes e telegramas escritos por ele. Com base no material, as historiadoras Neuma Cavalcante e Elza Miné preparam uma biografia de Aracy. Rosa registrou sem pudor quanto era feliz aos pés de Aracy – pés que eram objeto de fetiche. “Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos da sua dona”, escreveu no dia seguinte.

Enquanto a Alemanha se incinerava em ódio, Ara e Joãozinho queimavam de amor. O que em nada atrapalhou as atividades subversivas de Aracy. O casal nunca viveu debaixo do mesmo teto em Hamburgo. Ela chegou a esconder judeus em casa. “Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia muito”, contou Aracy, anos atrás. “Nunca tive medo de nada nem de ninguém.”

Getúlio Vargas passou os primeiros anos da guerra fazendo um agrado ao Eixo pela manhã, piscando para os Aliados à tarde. O ataque japonês a Pearl Harbor derrubou-o do muro. Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações com o Eixo. Rosa e Aracy foram confinados no balneário de Baden-Baden por quatro meses. Na viagem de volta ao Brasil, casaram-se por procuração no México. Em quase 30 anos ao lado de Aracy, Rosa inventou um mundo e reinventou a língua portuguesa. Ao lançar sua obra-prima, Grande Sertão: veredas, escreveu: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.

Quando Rosa e Aracy desembarcaram no Brasil, a filha mais velha de Günter e Inge começava a falar. Deram a ela o nome da mulher que lhes deu uma segunda vida. A pequena Marion Aracy só falava em alemão – e o governo havia proibido o uso do idioma. “Eu quero descer do bonde”, gritava a menina na língua do Führer. E Günter precisava fugir correndo com a filha no colo. Se fosse preso, só poderia dizer em alemão que também não gostava de Hitler.

A solteirice de Karl Franken durou pouco no Brasil. Logo se encantou por uma fugitiva do nazismo, Gertraud. O primeiro dos três filhos nasceu no ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha. Karl trabalharia por toda a vida na mesma empresa, a Mueller, de brinquedos e botões. Ele e Gertraud se tornariam uma referência na história da Congregação Israelita Paulista.

A única jóia que Grete Callmann conseguiu trazer foi roubada pelos funcionários brasileiros quando o navio ancorou no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1939. Era seu anel de casamento. Grete era pianista. Tinha estudado desde os 6 anos para interpretar Beethoven, Mozart, até Wagner, conhecido por ter sido o compositor preferido dos nazistas. “Quando chegamos, eu sentia em mim todas as doenças que existem. Mas os médicos não encontravam nada”, diz. “Era medo.”

Quando as cartas da Alemanha chegavam, Grete tremia tanto que não conseguia ler. Seus pais estavam num campo de concentração. Ela sabia que um dia as cartas se calariam. Quando a guerra acabou, em 1945, a Alemanha estava coberta de cinzas humanas. Hitler teria dado um tiro na cabeça. Vargas foi deposto. Ao apoiar a democracia lá fora, não dava mais para manter a ditadura aqui. Karl Franken, Grete e Max Callmann, Günter e Inge Heilborn estavam vivos. Assim como as dezenas de judeus salvos por Aracy.

O RECOMEÇO Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

O RECOMEÇO
Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

...Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e....

…Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e….

aracy bisnetos

…lhes deram cinco bisnetos. A seqüência de fotos da família Franken foi feita uma semana após a morte de Karl. É uma homenagem a ele e a Aracy

Quando a guerra acabou, Grete soube que os pais estavam mortos. Karl descobriu que pouco tinha restado da família. Günter e Inge foram informados de que seus pais tinham sido incinerados. Os “judeus de Aracy” teriam de viver num país tropical, do outro lado do Atlântico com essa herança. Viver era sua vingança. E foi o que fizeram.

Günter e Inge tiveram três filhos – Marion Aracy, Miguel e Ruth – durante a guerra. Günter levou uma década para ter reconhecido seu diploma de dentista. Nos primeiros anos, sustentou a família com a ajuda de prostitutas. Tratava os dentes das mulheres num quartinho de prostíbulo. Quando um policial aparecia, elas diziam que o quarto era usado para fins comerciais. Inge costurou para fora, teve malharia, fez congelados, criou uma colônia de férias em Campos do Jordão. Parecia suportar melhor o peso da vida partida, sorria mais. Günter proibiu o filho de usar marrom, cor do terno que vestia quando foi preso pelos nazistas. Nunca teve bigode. Era chamado pelos netos de “biblioteca ambulante”, porque discorria sobre qualquer tema, de mitologia grega a botânica. Menos sobre o Holocausto.

Em 19 de novembro de 1967, Vera Tess, a neta preferida de Guimarães Rosa, buscava o avô em passos claudicantes pelo apartamento do Rio. Encontrou-o no escritório, tendo um infarto. Aracy perdeu seu grande amor, mas não perdeu a si mesma. No fim de 1968, Geraldo Vandré começou a ser perseguido pelo regime porque a canção “Caminhando” virou um hino de protesto contra a ditadura. Enquanto a repressão o caçava, Vandré compunha, todo refestelado num sofá do apartamento de Aracy.

O prédio era repleto de oficiais e tinha vista para o Forte de Copacabana. Os netos de Aracy, que passavam as férias no Rio, foram incumbidos pela avó de alertar sobre qualquer movimento verde-oliva. Vandré ficou por lá tocando violão, jogando conversa fora. Depois viajou para São Paulo numa Kombi, com o neto mais velho de Aracy, Eduardo Tess Filho. E de lá para o exílio.

Karl Franken morreu no último dia 1o de março. Faltavam menos de seis meses para completar 1 século. Anos atrás, ele voltou à Alemanha. Não encontrou a placa que homenageava seu pai como herói de guerra. Karl Franken afirmou a ÉPOCA, cinco dias antes de morrer: “Eu sou só brasileiro”.

Günter Heilborn criou uma espécie nova de orquídea. Deu a ela o nome de sua mãe, queimada num forno crematório. Selma tinha pétalas brancas e amarelas. Günter apoderou-se por completo da vida que Hitler queria tomar. Morreu quando quis, em 1992. Inge o seguiu em 2000. Todas as tardes, ele e Inge sentavam-se para ouvir música clássica. Jamais ouviram Wagner. E nunca viram filmes sobre o Holocausto.

Grete Callmann tentou ver um filme sobre o nazismo. Começou a gritar dentro do cinema. Não voltou. Quando seu marido morreu, Grete comprou um piano usado. Seus dedos já não reconheciam as teclas. Aos 94 anos, Grete liga seu radinho ao acordar e atravessa o dia embalada por pianistas cuja vida não foi interrompida.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. De lá para cá, a cidade que mais amava no mundo foi se tornando campo minado também para ela. E com relutância, bem devagar, Aracy foi aceitando São Paulo. Nos últimos anos, enquanto saboreava um cigarro, foi cortando um a um os fios que a ligavam ao mundo de fora. Um dia levantou âncora e partiu inteira para dentro de si mesma.

Aos 4 anos, as bisnetas trigêmeas de Günter Heilborn queriam saber por que posavam para fotos. A mãe explicou: “Homens muito maus prenderam seu bisavô, e uma moça muito boa, chamada Aracy, ajudou ele a fugir. Em homenagem a ela, a vovó se chama Aracy”. E por que prenderam?, foi a pergunta seguinte. “Porque não aceitavam que eles eram diferentes.” A família se uniu então no exercício de lembrar de todas as pessoas de diferentes “cores, crenças, tipos e tamanhos” que amavam.

Aracy Guimarães Rosa esqueceu-se de si mesma, mas jamais será esquecida.

O legado de Aracy

POR UM TRIZ Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

POR UM TRIZ
Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

Marion Aracy (sentada) é a filha mais velha de Günter e Inge Heilborn. Seu nome é uma homenagem à mulher que salvou a vida dos pais e tornou a sua possível. Ela teve dois filhos, Selma e Paulo. Selma (de azul), casada com Jorge (de listrado), teve as trigêmeas Marina, Juliana (de rosa) e Luiza (de braços cruzados) e Alexandre, de 2 anos. Paulo, casado com Ana Cintia, é pai de Carolina, de 3. “Sem Aracy, nem eu nem minha família existiríamos. Simplesmente não teríamos acontecido”, diz Paulo Heilborn.

aracy familia

Duas mulheres contra Hitler

Margarethe Bertel Levy e Aracy Moebius de Carvalho foram protagonistas de uma aventura cinematográfica na Alemanha nazista. Tornaram-se amigas para sempre

“Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”, ela diz a ÉPOCA. Tem 99 anos, quase não caminha, não enxerga e não ouve. Mas a mente está límpida – o que faz do corpo uma prisão. Em nenhum momento sua situação vira lamúria. Maria Margarethe Bertel Levy prefere a auto-ironia. É uma mulher impressionante. Como sua grande amiga, Aracy. A aventura dessas duas mulheres extraordinárias na Alemanha nazista é um roteiro de cinema pronto.

“Eu era sexy”, ela diz. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.” Elas eram tudo isso mesmo. As fotos ao lado (Margarethe de chapéu, Aracy de ombros nus) documentam a afirmação. Conheceram-se porque Aracy precisou salvar Margarethe. Encontraram-se no consulado de Hamburgo, em 1938. Até hoje estão juntas. Margarethe visita Aracy, que não mais a reconhece. O filho único de Aracy, Eduardo, cuida de Margarethe, que é viúva e não quis ter filhos “porque gostava muito de viajar”.

Os muitos significados dessa amizade improvável são tema de investigação da historiadora Mônica Raisa Schpun, do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. “Enquanto as pessoas eram separadas pelo nazismo, essas duas mulheres se encontraram”, diz Mônica. “Sua amizade vai muito além de gratidão.” Sobre elas, Mônica publicou um artigo chamado “História de um happy end transatlântico”.

Margarethe pertencia a uma família rica e liberal. Aprendeu sete línguas viajando. Conheceu o marido, o dentista Hugo Levy, no consultório dele. Ela era sua bela paciente, 16 anos mais jovem. Margarethe e Hugo eram cidadãos do mundo. Quando o cerco nazista apertou, Margarethe procurou Aracy, que escondeu Hugo em casa. Depois, emprestou o carro diplomático para que Margarethe o levasse ao interior. Aracy incluiu uma observação nos documentos do casal: “Transformar em visto permanente na chegada”. Cobriu essas letras miúdas ao levar o visto para o cônsul assinar.

É nesse ponto que a história fica ainda mais cinematográfica. Uma rede de alemães – arianos – ajudou os Levys. Um dia, um oficial da SS, Zumkley, bateu na porta do consultório para contar que a mãe de Hugo salvou sua vida ao amamentá-lo. “Agora chegou a minha vez de salvá-lo”, disse. Zumkley avisou o momento certo de partir. Um paciente, Plambeck, escondeu Hugo em sua casa por 12 dias. Outro paciente, funcionário público, conseguiu convencer um colega a encarregá-lo da letra “L” e, assim, fez o inventário – subavaliado – do patrimônio dos Levys. Eles partiram para o Brasil com todos os bens, do consultório aos dois cachorros. Um terceiro paciente garantiu a eles o conforto de quatro cabines no navio Cap Ancona.

Ao desembarcarem em São Paulo, com dinheiro e visto permanente, Margarethe e Hugo integraram-se logo ao Brasil. Margarethe, porém, não escapou da tragédia. “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”, diz. Margarethe crava uns olhos perfurantes, que ela jura que não enxergam direito, e diz: “Com o tempo, a gente não esquece”.

Aracy foi uma católica fervorosa. Margarethe, uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio. Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, diz. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar histórico no Museu do Holocausto, em Israel. Margarethe ainda visita Aracy, mas não consegue alcançá-la. Aracy esqueceu-se dela. À beira dos 100 anos, as duas mulheres e sua extraordinária amizade só resistem na memória de uma delas.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’ Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’
Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2008)

Página 41 de 41« Primeira...102030...3738394041