Duas mulheres indomáveis

Aos 102 anos, Aracy e Margarethe encerraram uma vida de cinema

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Quando Margarethe morria no hospital, em casa a respiração de Aracy começou a falhar. Como o da amiga, também o seu pulmão ameaçava afogar-se. Maria Margarethe Bertel Levy morreu no dia 21 de fevereiro – e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa na madrugada de 3 de março. Ambas tinham 102 anos. E uma história espetacular. Aracy, funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, havia salvado Margarethe de morrer num campo de concentração nazista. Uma brasileira e a outra judia alemã, as duas belíssimas, iniciaram sua amizade ao tornarem-se duas mulheres contra Hitler. E fizeram dela um laço inquebrantável ao viverem no Brasil que para Aracy era a terra natal, para Margarethe a rota de fuga. Quando a morte tentou separá-las, fracassou como todos que antes tentaram obstruir o caminho destas duas. Morreram quase juntas, com diferença de dias. Deixaram como legado uma vida de cinema.

Conheci essas duas mulheres três anos atrás. Quando tinham apenas 99 anos. Aracy Guimarães Rosa, como o sobrenome revela, foi o grande amor do escritor João Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas, talvez a maior obra-prima da literatura brasileira, foi dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Em cartas para Aracy, Rosa revela um furor sensual que ninguém diria ao olhar apenas para seu aprumo de diplomata. Como ao escrever: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”. Para Aracy, o escritor que criou um mundo e reinventou a língua portuguesa era o seu “João Babão”.

Mas Aracy não era apenas – e não que isso fosse pouco – a mulher por quem Rosa se apaixonou e com quem viveu até a sua morte. Aracy foi autora e protagonista de seu próprio romance na vida real. Tornou-se o “Anjo de Hamburgo” – a funcionária do consulado brasileiro que salvou dezenas de judeus do nazismo ao contrariar a política de Getúlio Vargas, enganar o cônsul e dar vistos para o Brasil antes que fossem presos em campos de concentração de onde jamais sairiam vivos. Seu nome está em Jerusalém, no Museu do Holocausto, como “justa entre as nações”, a mesma honraria com que foi reconhecido Oskar Schindler, cuja história foi contada em “A Lista de Schindler”, blockbuster de Steven Spielberg.

Eu a conheci para escrever uma reportagem que se chamou A lista de Aracy. Na matéria conto o que aconteceu com homens e mulheres que puderam tecer uma vida – e gerar uma descendência que, sem Aracy, não existiria. Um deles, Günter Heilborn, deu o nome de Aracy à primeira filha mulher e o nome de sua mãe, Selma, queimada num forno nazista, a uma orquídea de pétalas brancas e amarelas que criou como botânico amador. Há um mundo inteiro que só existiu porque Aracy existiu. E teve a coragem de fazer o certo – contra quase todos.

Ao buscar Aracy, alcancei Margarethe. Estas duas mulheres se encontraram no consulado brasileiro de Hamburgo em 1938. Aracy para salvá-la, Margarethe para ser salva. Em comum tinham a beleza e o fato de não seguirem a cartilha feminina da época. Eram ambas indomáveis. Ninguém podia com elas. Aracy, por exemplo. Era desquitada, no Brasil dos anos 30 (!!!). Fluente em várias línguas, tivera o desplante de, aos 26 anos, pegar o filho de cinco anos pela mão e rumar para a Alemanha para construir uma nova vida.

Sozinha com um menino pequeno, estrangeira num país à beira da insanidade e da guerra, ela teve a ousadia de desafiar a política do seu próprio país e enganar o próprio chefe. Armou uma pequena rede clandestina com arianos contrários à perseguição aos judeus que envolvia até o dono da autoescola onde tinha aprendido a dirigir seu Opel Olympia. Chegou a passar a fronteira com um judeu no porta-malas do carro com placa diplomática. E no meio dessa confusão teve tempo para viver um tórrido romance com Guimarães Rosa, o cônsul-adjunto que havia deixado no Brasil a primeira mulher, duas filhas e uma ainda incipiente estreia literária.

Margarethe tampouco era uma judia comum. Filha de pais ricos e liberais, passou boa parte da infância e da juventude viajando. Falava sete línguas. Seduzira Hugo, seu marido, (ou foi seduzida) na cadeira de dentista. Apaixonaram-se enquanto ele, 16 anos mais velho, cuidava da bela paciente. Com a ajuda de Aracy e de vários clientes arianos, Margarethe e Hugo conseguiram embarcar no navio Cap Ancona e chegar ao Brasil com a fortuna intacta. Não faltaram nem mesmo as jóias de Margarethe. Viveram em São Paulo sem maiores relações com a comunidade judaica. Hugo teve uma sólida clientela formada entre famílias alemãs. E Margarethe seguiu com sua vida cosmopolita.

Depois que Guimarães Rosa morreu, Aracy continuou vivendo no apartamento do casal no Rio. Em 1968, ela escondeu nele o compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura militar por causa da canção “Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”. No prédio, próximo ao Forte de Copacabana, moravam vários oficiais. Enquanto a repressão caçava Vandré, ele compunha no sofá de Aracy. Depois, seu neto, Eduardo Tess Filho, levou Vandré para São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. Daquele dia em diante, porém, a cidade foi assolada por uma guerra que ela não tinha mais idade para combater. E ela acabou resignando-se a morar em São Paulo com o único filho, o advogado Eduardo Tess. Aos poucos, bem devagar, foi perdendo os fios de sua memória.

Depois da morte de Hugo, há cerca de 20 anos, Margarethe ficou só. Enquanto pôde, manteve a independência e dirigiu seu Corcel até os anos 90 pelas ruas de São Paulo. Sem filhos seus para apoiá-la na velhice, foi o de Aracy que a adotou, em mais uma delicadeza dessa história cinematográfica. Margarethe seguiu vivendo em seu próprio apartamento, mas amparada pelo carinho da família Tess, que a chama de “Margarida”.

Quando conheci estas duas mulheres, Aracy parecia não estar mais aqui. Margarethe pouco caminhava, tinha dificuldade para enxergar e quase não ouvia, mas mantinha a mente límpida. E afiada. Foi ela quem me disse: “Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”. Perguntei a ela como era na juventude. “Eu era sexy”, disse. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.”

Do tanto que tinham em comum, elas só não compartilhavam a fé. Aracy era uma católica fervorosa. Margarethe uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio (da fé). Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, afirmou. Quase virando um século de vida e ela era o que era, sem concessões.

Aos 99 anos, Margarethe me olhou com olhos que supostamente não me viam e disse: “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”. E acrescentou: “Com o tempo, a gente não esquece”. É uma grande frase, à altura desta mulher única.

Margarethe já não podia mais alcançar Aracy nas visitas que fazia a ela nos derradeiros anos de vida. A amiga parecia não reconhecê-la. Mas o laço invisível que as unia de algum modo seguia lá, intacto. Há tantos anos alheia de tudo e também de si mesma, de algum modo Aracy pressentiu que Margarethe estava partindo.

Pode ser apenas coincidência, afinal elas tinham 102 anos e Aracy completaria 103 no próximo 20 de abril. Mas prefiro acreditar que não. Na madrugada de domingo para segunda (21/2), Margarethe morria e Aracy, que até então estava muito bem, sentiu a respiração falhar. “Tiveram a mesma morte”, me disse Beatriz Tess, a nora de Aracy, que cuidou das duas como se fossem suas próprias mães. “A gente pensava que não, mas de algum modo Aracy sabia”.

Ao contemplar Aracy imóvel em sua morte, um século de história inscrito no corpo envelhecido, me emocionei ao pensar que poucas mulheres podem afirmar terem vivido com tanta intensidade. Com tanta aventura, tanta paixão, tanto risco. Tanta verdade. Por causa de Aracy, Margarethe teve pelo menos mais 70 anos de uma vida que ela soube honrar vivendo com voracidade. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar no Museu do Holocausto. E quando a amiga desligou-se do passado e também do presente, era na memória de Margarethe que ambas viviam.

Conhecendo um pouco a biografia destas duas mulheres extraordinárias, que não se renderam nem aos costumes nem aos preconceitos e nem mesmo a Adolf Hitler, gosto de pensar que elas não se deixaram vencer nem pela morte que as separaria. Posso imaginar Aracy pensando: “O quê? Se Margarethe se vai, eu vou com ela”. E tratou de morrer. Do mesmo jeito. Na hora que quis. Juntas, menos pelos dias que separaram a partida de uma e de outra, mais pela inteireza de uma amizade que redime o mundo.

(Publicado na Revista Época em 07/03/2011)

A Igreja do Livro Transformador

O escritor Luiz Ruffato conta como foi salvo pela literatura

Luiz Ruffato costuma contar que é filho não do primeiro, mas do segundo pipoqueiro mais importante da cidade mineira de Cataguases. O primeiro fazia ponto na Praça Ruy Barbosa, perto dos cinemas e bares. Já seu pai assentava o carrinho na Praça Santa Rita, a da igreja. A pipoca ornava mais com o footing do que com a reza, portanto o concorrente faturava mais. A história serve como uma fita métrica capaz de mensurar a lonjura do salto que fez do filho do segundo pipoqueiro mais importante de Cataguases um dos escritores mais interessantes do Brasil de hoje, com vários prêmios e livros traduzidos em países como França, Itália e Portugal. Quase um milagre, num país tão desigual. Mas, como lembra Ruffato, um milagre da Igreja do Livro Transformador.

Desde que ouvi Luiz Ruffato contar sua história, em Paraty no ano passado, que ficava ensaiando o convite para que ele a compartilhasse com vocês aqui nesta coluna. Há escritores cujos livros a gente ama, mas quando os conhece encarnados, são tão arrogantes e mesquinhos que dá nhaca da obra. Por isso, em geral até prefiro não conhecer os autores dos livros que amo para não misturar as almas – e perder os livros que já possuem um pedaço da minha. No caso de Ruffato, o risco não existe. Ele é uma das pessoas mais encantadoras e generosas que já conheci. Encontrá-lo é como chegar em casa.

Nesta entrevista ele nos conta a história de como foi salvo pela literatura. Se fosse uma igreja mesmo, a do livro transformador, seria o que os religiosos chamam de “testemunho”. Mas a literatura nos salva pelo avesso: porque nos enche de perguntas em vez de respostas, nos inquieta, nos dá comichão e insônia, perturba mais que pernilongo e nos transtorna para todo o sempre ao mostrar que o mundo é grande e sempre além. A literatura acaba nos salvando exatamente porque nos põe a perder dos destinos determinados.

No caso de Ruffato, o destino idealizado pelos pais era de que subisse na vida virando operário especializado, o que ele até foi por uns tempos. O que ele vai nos contar aqui é como de entregador, balconista e torneiro mecânico terminou virando jornalista e depois escritor. Por quais caminhos acabou migrando para Juiz de Fora, entre outras paradas, e depois desembarcando em São Paulo, onde chegou a morar na rodoviária do Tietê por um mês. E também vai nos contar por quê. Sim, porque Ruffato só admitia escrever se encontrasse uma boa razão. Uma forte o suficiente para alimentar o homem e a busca.

Ao perseguir seus porquês, ele tornou-se um dos poucos escritores brasileiros a escrever sobre o universo da classe média baixa. Carrega para as páginas da ficção a subjetividade do trabalhador urbano, até então praticamente um exilado da literatura brasileira. E, para contar essa saga, buscou uma forma que pudesse dar conta desses personagens desenraizados, fragmentados no movimento imposto pela sobrevivência.

Eles eram muitos cavalos (Record) é o livro que deu reconhecimento a Ruffato, pelo qual recebeu os prêmios Machado de Assis e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Agora, ele escreve o quinto e último volume da saga que chamou de Inferno Provisório (Record), dos quais quatro já foram publicados: Mamma, son tanto Felice, O mundo inimigo, ambos premiados pela APCA, Vista parcial da noite, pelo qual ganhou um Jabuti, e O livro das impossibilidades.

Dividi sua história em tópicos, para facilitar a leitura. Como nos romances de Ruffato, é possível começar pelo fim ou mesmo pelo meio. E depois ir ao começo. Ou seguir a trajetória mais ou menos linear. Cada leitor descobre seu rumo. Abusei um pouco do fato de a coluna ser minha e marquei as partes que achei mais lindas.

Boa leitura. Espero que você também faça parte desta Igreja!

A bibliotecária que estava lá

“Na minha casa não tinha livros. Meu pai, Sebastião, um pipoqueiro semianalfabeto, e minha mãe, Geni, uma lavadeira de roupas analfabeta, sabiam da importância da educação para o futuro dos três filhos, mas lutavam com muitas dificuldades pela sobrevivência cotidiana.

Antes dos 12 anos, eu lia algumas coisas que por acaso caíam em minhas mãos, revistas em quadrinhos, bulas de remédio, jornais que embrulhavam verduras, até mesmo algum livro (lembro-me, por exemplo, de um título, Os últimos dias de Pompeia, de Lord Bulwer-Lytton, avidamente consumido numa tarde de calor, às escondidas, no quarto de uma vizinha costureira, sombrio e abafado…).

Mas, um dia, meu pai e eu estávamos trabalhando numa das praças de Cataguases, minha cidade natal, num domingo após a missa das sete horas, quando um senhor se aproximou e, após comprar um pacotinho de pipoca, perguntou se eu estava estudando e onde. Meu pai respondeu que sim e declinou o nome de uma péssima escola, em fama e ensino. Ele perguntou por que eu não estava no Colégio Cataguases, uma ótima escola pública, onde estudava a elite econômica. Meu pai explicou que todos os anos tentava uma vaga, mas nunca conseguia. O homem, talvez condoído, naquele momento, pela postura humildemente decepcionada do meu pai, falou que era diretor lá e que no ano seguinte ele garantiria minha matrícula.

E assim foi. Em fevereiro, aos 12 anos, eu, de uniforme novo, estreava a minha timidez nos corredores do Colégio Cataguases. Mas tudo era tão diferente! Até então, eu estudava à noite no Ginásio Comercial Antônio Amaro, uma escola mantida pela comunidade, que nem sede tinha, todo ano alugava o imóvel de uma escola pública para o curso noturno, e trabalhava de dia. Além de ajudante do meu pai, entregava as trouxas de roupa que minha mãe lavava e passava, e já havia sido caixeiro em um botequim.

No Colégio Cataguases as aulas eram de manhã e os colegas estranhos. Fui designado para uma classe de repetentes (a maioria por indisciplina) e não consegui me adaptar ao novo ambiente. Comecei então a, nos intervalos, me afastar para os cantos. Até que um dia descobri, maravilhado, que existia um lugar tranquilo, silencioso, pouco frequentado… E passei a fazer daquele espaço, a biblioteca, o meu refúgio.

Só que, após me ver várias vezes por ali, sentado sem fazer nada, a bibliotecária provavelmente pensou que eu quisesse o empréstimo de um livro, mas que, por algum motivo, vergonha talvez, eu não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, ela me chamou um dia, preencheu uma ficha, colocou um livro em minha mão e disse: Leva esse, leia e me devolva daqui a tantos dias… Eu, muito tímido, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, enfiei na pasta e carreguei para casa.

Quando cheguei, a primeira coisa que meu pai perguntou, como ele fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, foi: O que é isso, menino? Eu respondi, sem graça: Um livro. E ele: Onde você pegou isso, menino? Eu: Peguei não, pai, foi a moça lá que me deu… Ele: Deu? Eu: É, ela falou pra eu ler e devolver pra ela. Ele: Se ela falou pra você ler, vai ler então!

Dias depois, levei-o de volta, e a bibliotecária perguntou, desconfiada: Leu o livro? Respondi: Sim, senhora. E ela, exultante, falou: Que bom! Então, tome este. Eu, obediente, levei-o para casa, li, devolvi, e ela, achando que havia conquistado um novo leitor, passou o ano inteiro me emprestando livros. Lembro, por exemplo, que li todos os volumes do Tesouro da Juventude…

Ao fim daquele ano, inadaptado ainda, saí do Colégio Cataguases e voltei para o Antônio Amaro, onde, estudando à noite, retomei o trabalho durante o dia (balconista de armarinho, operário têxtil). Mas, de alguma maneira, havia sido contaminado pelo vírus da leitura.”

O livro que foi um abalo sísmico

“Aquele primeiro livro, que não sei por que estava naquela biblioteca e muito menos porque a bibliotecária achou que eu iria gostar, me mudou completamente. O livro se intitulava Bábi Iar, do escritor ucraniano, à época soviético, Anatoly Kuznetsov, e era um documentário ficcionalizado de um massacre de judeus pelo exército alemão em Kiev.

Foi quando, pela primeira vez, tomei consciência de várias coisas ao mesmo tempo: de que o mundo era mais amplo que eu imaginava (até então eu conhecia, fora de Cataguases, apenas Ubá e Rodeiro, onde moravam meus parentes, e Santos Dumont, onde meu pai permaneceu durante um ano internado num sanatório para tuberculosos); e que neste mundo amplo havia outras línguas, outros povos, outras religiões, outros climas, outras geografias; e que neste mundo amplo havia também a perversidade, a violência, a estupidez extremadas – ao fim e ao cabo, descobri que o mundo era barbárie e era civilização…

E em pleno outono cataguasense (modo de dizer, porque lá é sempre verão…) eu senti o frio glacial da Ucrânia, e senti medo e compaixão, e percebi que mais dia menos dia teria de deixar o conforto, ainda que precário, mas conforto, da casa dos meus pais, da minha cidade, para, atravessando os morros que circundam Cataguases, ver o que haveria alhures…”

Comendo sonho e vivendo feijão

“Passei a dizer para todo mundo, sem saber exatamente o que significava isso, que queria ser escritor, para desespero da minha mãe… Por essa época, havia uma novela na televisão, O Feijão e o Sonho, baseada num romance de Orígenes Lessa, que mostrava exatamente a luta de um professor cheio de sonhos e veleidades literárias, envolvido em terríveis dificuldades financeiras e enovelado na mediocridade de uma pequena cidade do interior…

Minha mãe, muito prática, me fez ver que se quisesse alimentar a idéia de um futuro melhor teria de arrumar uma profissão séria – e que não seria evidentemente a de escritor… Assim, entrei para o Senai, onde me formei em tornearia-mecânica, ao mesmo tempo em que fazia um curso noturno de contabilidade. Se no Senai pensava no feijão, à noite um professor, Alcino Antonucci, me desviava para o sonho, orientando as minhas leituras e incentivando meus primeiros passos na escrita.

Finalmente, um pouco antes de completar 17 anos, percebi que teria de cortar os laços com minha cidade, em definitivo. Por essa época, as grandes greves do ABC haviam interrompido o fluxo natural de mão de obra especializada de Cataguases, e os meus colegas de Senai estavam indo trabalhar na Fiat, na região de Belo Horizonte, ou nas grandes siderúrgicas do Vale do Aço mineiro.

Acabei no meio do caminho: parei em Juiz de Fora, onde trabalhava durante o dia como torneiro-mecânico e fazia cursinho à noite visando o vestibular da Universidade Federal. Entrei no curso de Comunicação Social num momento interessante, pois, vivenciando os estertores da ditadura, podíamos conciliar a luta política com as descobertas pessoais. No meu caso, uma formação literária alicerçada pela generosa orientação do poeta e professor Gilvan P. Ribeiro (antes, no cursinho, duas professoras também me incentivaram, Imaculada Reis e Hilda Curcio).

Neste período, além das minhas atividades políticas, participava de grupos de estudos e de um grupo de poetas que editava um folheto quinzenal, Abre-Alas, com apresentações aos sábados de poesia falada e militante na principal rua de Juiz de Fora, o Calçadão da Halfeld.

E lia, lia muito. Lia livros emprestados de amigos, livros de bibliotecas públicas, livros comprados em sebos, lia tudo que me caía nas mãos, mas principalmente a literatura contemporânea, pois estávamos em pleno boom da literatura brasileira e latino-americana.”

Ler para ser arrancado do lugar

“Eu comecei a me interessar por livros, ou melhor, pela leitura, muito cedo. Lembro-me que meu irmão gostava de ler o Jornal do Brasil aos domingos. Era um calhamaço que eu, de bicicleta, ia comprar numa banca do centro da cidade. Eu separava o caderno de Internacional e, deitado na varanda de casa, no calor sáunico de Cataguases, passava a manhã me informando dos rumos da Humanidade…

Junto com o Jornal do Brasil, eu trazia o jornal O Cataguases, que praticamente não tinha notícias, apenas divulgava os atos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário… No entanto, um grupo de escritores da cidade encartava nele um suplemento cultural, o Totem, de literatura… de vanguarda!!! Sim, de vanguarda… Capitaneados por Joaquim Branco e Ronaldo Werneck, difundiam poetas brasileiros e estrangeiros que experimentavam o poema-processo, a arte-postal, o concretismo, o neoconcretismo, o poema-visual… E, mesmo não entendendo absolutamente nada, eu gostava daquilo…

Ou seja: um dos meus primeiros contatos com a literatura foi com a literatura experimental… Acho que isso me causou danos irreversíveis, porque até hoje os meus autores preferidos são os que fazem experiências com as linguagens… Então, desde essa época, venho lendo de maneira quase obsessiva.

Claro, no começo, como disse, de maneira absolutamente caótica – até hoje, às vezes pego um livro e reconheço que já o havia lido um dia, sem saber… Depois, de maneira mais organizada. Mas tento ler todos os dias. Nem sempre só coisas que me agradam, claro, pois, como escritor profissional, muitas vezes sou obrigado a fazer leituras profissionais, mas busco sempre ter algum prazer na leitura – prazer estético, entenda-se, como me extasiar com a forma como um escritor conduziu sua história, ou como um poeta constituiu imagens singulares… Gosto de ler algo que desafie a minha inteligência, que me faça sair do meu lugar de conforto, que me transforme.”

De bar em bar, vendendo palavras

“É estranho, porque a experiência da leitura, no meu caso, se desdobrou quase concomitantemente com a necessidade de me expressar. Logo após o impacto das primeiras coisas lidas, escrevi meu primeiro livro, aos 15 anos, um pequeno romance, Domingo o almoço é lá em casa, que contava a história de uma família que largava a roça pela cidade e as agruras deste deslocamento, batido à máquina numa Hermes Baby. Ou seja, minha primeira experiência foi na prosa, não, como seria natural, na poesia…

Minha mãe guardava a pasta de cartolina que enfeixava as páginas datilografadas como um tesouro – isso, muito antes de eu publicar meu primeiro livro, profissionalmente… Em Juiz de Fora, durante o cursinho, ganhei uma bolsa (que me isentava do pagamento das três últimas mensalidades do ano) ao vencer um concurso de contos (o primeiro e o segundo lugares!). Depois, quando entrei para a universidade, animado com o clima de urgência do grupo do qual fazia parte, publiquei meu primeiro livro…

Incentivado por um amigo, prematuramente falecido, José Henrique da Cruz, lancei O homem que tece, poemas, em formato de bolso, rodado em off-set, edição de mil exemplares, esgotado em menos de seis meses… Vendíamos de mão em mão, nos bares da cidade, e com o dinheiro arrecadado pagamos a gráfica e financiamos outros livros da mesma natureza.

Curioso, porque tanto o meu ‘primeiro romance’ quanto o ‘primeiro livro de poemas’ tratam de temas que seriam retomados, décadas mais tarde, no projeto que estou desenvolvendo agora, o Inferno provisório... Depois disso, ainda publiquei outro livro de poemas, Cotidiano do medo, já quando morava em Alfenas, sul de Minas… Esta seria a minha infância literária.”

Rodoviária do Tietê: a primeira casa em São Paulo

“Eu cheguei em São Paulo e, não querendo amolar algumas (poucas) pessoas que conhecia, e não tendo dinheiro para ir para um hotel ou pensão, dormia nos bancos da Rodoviária do Tietê. Isso durou um mês – dormia lá nas noites de segunda a quinta-feira, já que na sexta-feira eu dormia na poltrona de um ônibus em direção a Minas Gerais, onde passava o fim de semana (para renovar as roupas…), e a noite de domingo eu passava dormindo na poltrona de um ônibus, voltando para São Paulo…

Fiz algumas amizades por lá, inclusive com um policial, que, na primeira noite, não queria me deixar dormir dentro do prédio… Eu então expliquei para ele a minha situação e ele, condoído, tomava conta de mim… Eu chegava na rodoviária depois do trabalho, tomava um banho, comia qualquer coisa, e dormia sentado (os bancos da rodoviária, estranhamente, são feitos para provocar desconforto nos passageiros)…”

Em busca de voz própria

“Me calei, não escrevendo uma linha sequer, durante toda a ‘década perdida’ brasileira – que compreende mais de 10 anos, pois vai dos inícios da década de 1980 até meados da década de 1990. Este período foi um momento de maturação. Eu sabia que iria retomar a escritura, mas não me sentia pronto ainda. E assim, sem angústia ou ansiedade, fui tentando compreender por que deveria escrever, sobre o que, e, principalmente, como…

Até que em 1998 lancei Histórias de remorsos e rancores, seguido dois anos depois de (os sobreviventes), ambos coletâneas de contos, que, já ressoando minha voz literária, ainda não me satisfaziam do ponto de visto formal… Estes livros, embora tenham vendido bem, e o segundo tenha até mesmo recebido uma menção especial no Prêmio Casa de las Américas, não serão mais reeditados. Na verdade, foram incorporados, reescritos, ao projeto Inferno Provisório. A minha estréia, propriamente dita, considero Eles eram muitos cavalos, um exercício literário que me fez compreender sobre o que e principalmente como escrever…

Escrever, como ler, tem que ter, para mim, um componente de prazer estético, tem que ser um desafio intelectual. Porque, antes de tudo, escrevo para mim, escrevo histórias que gostaria de ler. Penso que uma história, para convencer o leitor, tem antes, necessariamente, que convencer o autor. Se me convenço de sua necessidade, se o que tento passar me comove esteticamente, talvez eu possa então comover o leitor, porque pode ser que haja ali uma verdade.”

O mundo da classe média baixa

“Passei um longuíssimo período afastado da escrita literária porque estava mergulhado na comezinha sobrevivência cotidiana, e também porque estava refletindo sobre algumas questões essenciais: para que escrever, sobre o que escrever, como escrever?

Aliás, eu tinha sim uma idéia de sobre o que escrever. Me parecia lógico que minha literatura deveria retratar o mundo que eu conhecia bem, o do trabalhador urbano, os sonhos e pesadelos da classe média baixa, com todos os seus preconceitos e toda a sua tragédia.

No entanto, quanto mais pesquisava, mais me dava conta de que pouquíssimos autores brasileiros haviam se debruçado sobre esse universo, talvez porque o trabalhador urbano não suscite o glamour, por exemplo, que suscita o malandro ou o bandido – personagens sempre presentes na ficção nacional, representados do ponto de vista da classe média como desestabilizadores da ordem social.

Por outro lado, me dei conta de que os indivíduos oriundos da classe média baixa, que conhecem e poderiam escrever sobre esse universo, sempre tiveram que negar suas origens para serem aceitos na nossa sociedade, que é extremamente hierarquizada e preconceituosa. Retrospectivamente, se pensarmos no personagem ‘trabalhador urbano’ (não o militante político, bem entendido) temos poucos representantes na literatura brasileira. Talvez o único autor que tenha feito deste tema o motivo de sua ficção seja Roniwalter Jatobá, ele mesmo ex-operário.”

Qual é a forma que dá conta deste mundo?

“Se eu sabia que queria retratar esse universo em meus livros, faltava responder à questão seguinte: como escrever sobre esse tema?

O romance tradicional nasce no Século XVIII como instrumento de descrição da realidade do ponto de vista da burguesia. Ou seja, o romance ideologicamente serve a uma visão de mundo específica. Então, qual seria a forma adequada de representar o ponto de vista da classe média baixa ou do trabalhador urbano?

Eu tentei então me filiar a uma família literária que surge paralelamente ao aparecimento do romance tradicional, que poderíamos chamar de anti-romance, que espasmodicamente construiu uma tradição: Sterne, Xavier de Maistre, Richardson, Dujardin, Machado de Assis, Joyce, Proust, Breton, Faulkner, Robbe-Grillet, Calvino, Pérec… E poderíamos incluir ainda nessa tradição, que chamaríamos de ‘literatura experimental’, contistas como Tchekov, Pirandello, Katherine Mansfield, e poetas como Mallarmé e os vanguardistas do começo do século XX.

Então, em 2001, lancei Eles eram muitos cavalos, nascido da necessidade de tentar entender o que estava acontecendo à minha volta – e para isso tomei a cidade de São Paulo como síntese da sociedade brasileira. Publicado, me encontrei num impasse: havia proposto uma reflexão sobre o ‘agora’, mas talvez necessitasse compreender antes ‘como chegamos onde estamos’.

Comecei a elaborar o Inferno Provisório, uma ‘saga’ projetada para cinco volumes, dos quais quatro já publicados, que tenta subsidiar essa inquietação, discutindo a formação e evolução da sociedade brasileira a partir da década de 1950, quando tem início a profunda mudança do nosso perfil socioeconômico, de um modelo agrário, conservador e semifeudal para uma urbanização desenfreada, desarticuladora e pós-industrial, e suas consequências na desagregação do indivíduo. Ou seja, pulamos da roça para a periferia decadente urbana sem escalas…

Evidentemente, essa descrição abarca apenas a superfície da narrativa. É o entrecruzamento das experiências ‘de fora’ e ‘de dentro’ dos personagens o que me interessa. Importa-me estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário, etc) na subjetividade dos personagens. Enfim, refletir sobre a interpenetração da Historia com as histórias.

Só que não compreendo uma discussão sobre essa cisão sem que sejam colocados em xeque os próprios fundamentos do gênero romance. Do meu ponto de vista, para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes (música, artes plásticas, teatro, cinema, etc) e tecnologias (internet, por exemplo), problematizando o espaço da construção do romance, que absorve onivoramente a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade…

Cada volume do Inferno Provisório é composto de várias unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente interligadas, já que se desdobram e se explicam e se espraiam umas nas outras, numa ainda precária transposição da hipertextualidade. Então, pode-se ler de trás para frente, pedaços autônomos ou na ordem que se quiser estabelecer, assumindo um sentido de circularidade, onde as histórias se contaminam umas às outras.”

Por que escrevo?

“Definido o tema, definida a forma, restava-me ainda uma questão: para que escrever?

Para mim, escrever é compromisso. Compromisso com minha época, com minha língua, com meu país. Não tenho como renunciar à fatalidade de viver nos começos do século XXI, de escrever em português e de viver num país chamado Brasil. Estes fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão de mundo à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar.

Fala-se em globalização, mas as fronteiras entre os países caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à mediocrização, à tentativa de aplainar autoritariamente as diferenças culturais. A realidade se impõe a mim e o que move o meu olhar é a indignação.

Não quero ser cúmplice da miséria nem da violência, produto da absurda concentração de renda do país. Por isso, proponho, no Inferno provisório, uma reflexão sobre os últimos 50 anos do Brasil, quando acompanhamos a instalação de um projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, iniciado logo após a segunda Guerra Mundial com o processo de industrialização brutal do país, com o deslocamento impositivo de milhões de pessoas para os bairros periféricos e favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.

O imigrante, a qualquer tempo, carrega consigo a sensação de não pertencimento, fazendo com que a sua história pessoal tenha de ser continuamente refundada. Partir não é só desprender-se de uma paisagem, de uma cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na solidão silenciosa dos cemitérios. E os ossos são aquilo que nos enraízam numa história comum, feita de dor e luta, de alegrias e memórias.

Rompido esse lastro, perambulamos sem saber quem somos. E se não temos autoconsciência, se permanecemos imersos na inautenticidade, não reconhecemos o estatuto do outro, do diferente de nós. E perdido esse reconhecimento, instaura-se a barbárie.

A Arte serve para iluminar caminhos: e se ela modifica o indivíduo, ele é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo.”

Sem a literatura, só teria restado o destino

“Em algum momento percebi, sem o saber, que meu destino já estava mais ou menos traçado. Meus pais, muito pobres, migraram para Cataguases em busca de uma vida melhor não para eles, mas para os filhos. Minha mãe é filha de imigrantes italianos que foram parar numa colônia no interior de Minas Gerais, na região de Rodeiro, e meu pai, filho de imigrantes portugueses – órfão de pai e de mãe aos dois anos, foi criado por uma família italiana de uma colônia na região de Dona Eusébia.

Eles chegaram sozinhos a Cataguases, sem nada. Mas a cidade, por ser um polo industrial consolidado desde os começos do Século XX, oferecia oportunidades de trabalho e possuía uma razoável infraestrutura educacional para, principalmente, a formação de mão de obra para o parque têxtil. E foi nisso que meus pais apostaram. Logo, minha mãe sustentava a casa com suas lavagens de roupa, enquanto meu pai, de saúde precária, não conseguindo emprego estável nas fábricas, passou a vendedor de pipocas.

O sonho de meus pais, portanto, era que nos formássemos, nos tornando empregados da indústria, ganhando um salário, constituindo família, comprando casa própria e bons eletrodomésticos. Meu irmão se formou no Senai e aos 26 anos era mestre-geral numa das tecelagens da cidade – mas uma morte estúpida encerrou sua carreira quando ela mal começava… Minha irmã, que foi tecelã durante algum tempo, largou a fábrica para se casar – uma atitude muito comum entre as meninas à época – e mais tarde tornou-se funcionária pública municipal, como merendeira escolar. E eu, embora tenha me formado também no Senai, acabei contrariando todo mundo, saindo de Cataguases e me jogando no mundo…

Provavelmente, ou melhor, certamente meu destino, se tivesse permanecido lá, seria hoje estar aposentado como operário especializado, com família, filhos, casa própria e bons eletrodomésticos…”

Primeira leitora: a mãe analfabeta

“A minha relação com Cataguases é estranha. Lá eu nasci e vivi até meus 16 anos. Depois disso, voltei apenas como visitante esporádico. Quando meus pais eram vivos, gostava de me entocar na casa deles, num bairro operário da periferia da cidade, e passava as horas conversando com minha mãe, uma mulher de uma visão de mundo inacreditavelmente complexa, compreensiva e reflexiva. Infelizmente, ela morreu em 2001, pouco depois do lançamento de Eles eram muitos cavalos, livro que, de certa forma, projetou meu nome.

Não tive, portanto, a felicidade de demonstrar que todo o sacrifício que ela fez pelos filhos, e por mim, especificamente, tinha redundado em alguma coisa… Eu me lembro que quando escrevi aquele que considero meu primeiro livro, Histórias de remorsos e rancores, eu o li inteiro para ela, ainda antes da edição, para ver se ela o aprovava… E sua reação foi fantástica: ela se emocionou com as histórias, reconheceu o que havia ali de fabulação biográfica e me disse: Tenho um grande orgulho de você, meu filho. Aquilo serviu para que eu tomasse pé e acreditasse que estava no bom caminho…

Depois, li também os originais do meu segundo livro, (os sobreviventes), e de novo ela se emocionou profundamente. O Eles eram muitos cavalos, embora tenha sido iniciado (digamos assim, ‘mentalmente construído’) durante as férias de 2000 na casa dos meus pais, eu não o pude ler para ela. No carnaval de 2001 descobrimos que ela estava com um câncer fulminante – daquele mês até novembro, quando ela morreu, eu fui a Cataguases todos os fins de semana que não trabalhava no jornal, viajava 1,2 mil quilômetros, ida e volta. Saía de São Paulo na sexta-feira à noite e chegava de volta na segunda-feira pela manhã. Acompanhei de perto seus últimos meses…

Meu pai morreu pouco depois, em 2003. Restou em Cataguases apenas a família da minha irmã.”

Voltar é possível? A terra depois da partida

“A minha solidão, nesse sentido, existe desde sempre. Em Cataguases éramos estrangeiros – inclusive porque lá nunca houve uma colônia de italianos, como em outros lugares da região. Não pertencíamos à cidade e as minhas férias, por exemplo, as grandes (de dezembro a fevereiro) e as pequenas (de julho), eu passava na roça, na fazendola do meu avô, em Rodeiro, à época já dividida entre vários irmãos. Depois, fui para Juiz de Fora, Alfenas e, finalmente, São Paulo (passando, rapidamente, por Vitória e Rio de Janeiro).

Eu brinco que sou o exemplo típico daquele ditado: não tem onde cair morto… Porque não pertenço a lugar algum. Não sou de São Paulo (onde sempre serei considerado alguém ‘de fora’), não sou de Alfenas, nem de Juiz de Fora, nem de Cataguases, mas também não sou de Rodeiro nem de Ubá… Quando morrer, não sei onde serei enterrado… Talvez venha daí a temática mais presente em minha literatura: o desenraizamento, o despertencimento, a solidão e a perplexidade de não ter um lugar…

Sem bloqueio artístico

“Eu encaro o fato de ser escritor como uma profissão. Então, todos os dias, acordo às seis da manhã, tomo café, leio o jornal, e mais ou menos às sete, sete e meia, sento-me ao computador e começo a trabalhar. Vou nessa toada até meio-dia, mais ou menos. Quando estou em viagem, geralmente por conta de palestras, participação em feiras e festivais literários, não escrevo. A essa rotina me dedico apenas quando estou em São Paulo. Porque, para mim, são dois momentos diferentes, embora complementares, da minha atividade literária. Essa, a da solidão da escrita; e aquela, da divulgação dos meus livros.

Havia, e ainda há, certa prevenção das pessoas contra o fato de eu assumir que trabalho com rotinas, metas e prazos, porque, afinal, argumentam, não se trata de um trabalho mecânico, e sim artístico… Ora, acredito que essa visão seja equivocada, porque não há contradição entre disciplina e arte. Grandes artistas plásticos (Da Vinci, por exemplo) e compositores eruditos (Bach, por exemplo) trabalhavam sob encomenda, com prazos pré-fixados e salários no fim do mês… E nem por isso podemos acusá-los de serem menos importantes…

Portanto, nunca tive problemas como ‘falta de inspiração’ ou ‘bloqueio artístico’, porque planejo com bastante antecedência o meu trabalho. Quanto a aproveitar ou não tudo que escrevo… Sentar todos os dias, rotineiramente, para escrever não significa chegar ao fim de quatro, cinco horas de trabalho com algo que preste. Significa apenas isso: sentar quatro, cinco horas em frente ao computador e trabalhar, trabalhar e trabalhar… O resultado muitas vezes é nada… Talvez seja apenas isso que diferencie o trabalho intelectual: ele não pode ser mensurado pragmaticamente, tantas horas trabalhadas, tantas páginas produzidas… A aferição de competência se dá em um outro paradigma.”

O bafo constante da morte

“É estranho, porque, embora tenha consciência de que o homem constrói sua vida sabendo que tem um prazo de validade, penso que, ao mesmo tempo, e talvez exatamente por isso, a existência só faz sentido se for uma busca pela felicidade – não hedonista, mas ética. Gosto de pensar que, ao fim e ao cabo, poderei olhar para trás e me orgulhar do que fiz por mim, pela minha família, pelos meus filhos, pelos meus amigos e até mesmo pelas pessoas desconhecidas.

Essa perspectiva talvez relativize um pouco a dor da perda. Mas essa questão para mim surge sempre de uma forma muito dúbia, porque também percebo claramente que existe uma espécie de visão trágica permeando minha formação. Venho de uma comunidade italiana que, embora professasse (professe) um catolicismo militante, quase carola, sempre estranhamente vivenciou a morte não como uma passagem para a vida eterna, mas como um rompimento injusto com a vida…

E não porque percebesse a vida como um reduto de alegrias – porque na verdade a entende mais como um fardo ao qual nos resignamos. Esse paradoxo teológico-filosófico irresolvível está presente na minha vida, nas minhas histórias.”

A Igreja do Livro Transformador

“A literatura me arrancou da alienação, da ignorância, da falta de perspectivas. Me mostrou que somos seres para a morte e que nós temos que buscar, neste curto intervalo que é a vida, a felicidade. E para isso temos que nos projetar no mundo, nos lançar, nos afastarmos da poltrona do comodismo, da conformidade, para nos proporcionar um sentido.

Esta é a proposta da Igreja do Livro Transformador, que tem como mentores eu e o Rogério Pereira, editor do Rascunho, que experimentou mais ou menos a mesma história de salvação pela literatura. Se depender de mim, a Igreja já será uma realidade ainda este ano… (risos)”

P.S. – Se você quiser, conte aqui a sua história de transformação pela literatura, seja ela um tsunami de alma ou uma ferroada de mosquito. Uma pequena descoberta, uma sensação nova ao ler um determinado livro ou mesmo um sonho.

(Publicado na Revista Época em 31/01/2011)

Onde está Wally Sarney?

É prudente seguir este velho personagem, mas atualíssimo, na intrincada paisagem de Brasília

A imagem simbólica da transmissão da faixa presidencial de Lula para Dilma Rousseff não foi nem um nem outro – mas sim José Sarney com os dois. Quem acompanhou, viu. Estava tudo ali, como em geral está nestes grandes momentos em que os personagens se movem pelo palco e é preciso prestar uma atenção tão grande em quem se esgueira pelos cantos como em quem está no centro. O primeiro presidente operário transmitindo o cargo à primeira mulher presidenta. O discurso correto, mas pouco empolgante de Dilma. A cor da sua roupa, pérola em vez de vermelho. A filha como acompanhante da presidenta divorciada. O espalhafato com a mulher 42 anos mais jovem de Michel Temer. Hugo Chávez logo atrás de Hillary Clinton nos cumprimentos à nova governante. José Dirceu dizendo que não falaria porque a mulher não deixava. Erenice Guerra na posse (como assim?) levando seu abraço amigo à ex-chefe. A presidenta torturada pela ditadura militar passando as tropas em revista. Tudo bem significativo – por razões diversas. Mas o mais revelador era José Sarney. Para compreender a política brasileira e o Brasil é preciso saber onde está Wally. E o nosso Wally, com bigode e intenções muito diferentes, se chama José Sarney.

E onde estava Wally Sarney? Depois de passar o ano de 2009 levando chumbo como alvo de denúncias cabeludas, tanto que alguns chegaram a apostar que ele e sua dinastia tinham chegado ao fim, José Sarney estava ali, em 1º de janeiro de 2011, na presidência do Senado, dando posse a Dilma Rousseff como determina a Constituição. De quem era a voz de taquara rachada que se ouvia pelas TVs do país cantando o hino nacional? Adivinha. Quem tivemos de ouvir depois de Dilma? Sim. Tudo estritamente segundo a Constituição. Já que José Sarney teve o apoio decisivo de Lula para se manter no cargo quando as denúncias de corrupção tornavam indecente para o país que ficasse.

Onde estava Sarney depois? Pegando carona no Aerolula, o avião oficial. Carona para São Paulo e para outras geografias menos palpáveis e mais nebulosas. Para estupor das centenas de pessoas que se aglomeraram diante do apartamento dos Lula da Silva em São Bernardo do Campo para homenagear o presidente mais popular desde Getúlio Vargas, lá estava Sarney entre Lula e o prefeito Luiz Marinho. Em casa, como se viu. Chegou ali, segundo ele mesmo, “pelos caminhos da amizade e pelo reconhecimento”. E discursou: “Nele (Lula) descobri o homem de grande densidade humana, generoso, de patamar internacional. Nunca se viu antes no Brasil um presidente que falasse bem do outro. Mas eu vim aqui falar bem e dizer que ele sai consagrado por tudo o que fez”.

Não é pouca coisa que, no fim de tudo, depois de oito anos, tenha sido José Sarney a levar Luiz Inácio Lula da Silva de volta para casa ao som do Tema da Vitória – a música imortalizada nas homenagens a Ayrton Senna. “Quero agradecer ao companheiro Sarney que, quatro anos atrás, me disse que quando terminasse meu mandato ia vir até a porta do meu apartamento me entregar e veio”, disse Lula.

Na madrugada deste mesmo dia, a filha de José Sarney, Roseana (PMDB), tomou posse, pela quarta vez, como governadora do Maranhão. Com o apoio de Lula, que para isso atropelou as pretensões do PT local. E assim, como acontece há tempo demais na história deste país, o Maranhão segue sob o domínio do clã Sarney, que há décadas consegue o feito de manter o estado miserável – sempre disputando com êxito a liderança dos piores índices socioeconômicos do Brasil. No Amapá, estado pelo qual Sarney é senador, seus desmandos de coronel tem alimentado a crônica amazônica contada pelos corajosos blogueiros da região.

Até aí estava bem fácil localizar Wally Sarney, bem disposto sob os holofotes, saracoteando no centro do palco. Já na primeira semana do governo de Dilma Rousseff era importante descobrir onde ele não estava. Como, por exemplo, na posse do ministro das Relações Institucionais, Luiz Sérgio, responsável por negociar a divisão de espaços na máquina pública e a liberação de emendas parlamentares. A posse do ministro foi boicotada pelo PMDB como forma de mostrar seu descontentamento com a partilha dos cargos. E o que fez o ministro no dia seguinte ao boicote de sua posse? Defendeu a reeleição de Sarney à presidência do Senado: “Ele é um dos quadros mais experientes da política brasileira, foi parceiro do presidente Lula e certamente terá uma contribuição muito importante para o governo Dilma”.

E onde estava então o homem que não estava lá? Articulando, claro. De quem foi a ideia de defender um valor maior para o salário mínimo como forma de pressionar Dilma Rousseff na barganha por cargos? Segundo a jornalista Renata Lo Prete, da Folha de S.Paulo, foi José Sarney quem sugeriu ao PMDB abraçar a bandeira do aumento do mínimo como forma de retirar do foco a disputa por cargos no governo de Dilma Rousseff, real interesse do partido. “É só falar do salário que vai virar manchete”, teria instruído o presidente do Senado em reunião com correligionários no apartamento do vice-presidente Michel Temer. O PMDB salta na garganta de Dilma e ainda faz bonito diante da população ao defender causa tão nobre.

Onde estava Wally Sarney nas últimas décadas? É uma longa ficha corrida de serviços prestados à nação. Quase sempre afinadíssimo com o poder. José Sarney apoiou a ditadura militar e foi beneficiado por ela. Abandonou o PDS (ex-Arena) que presidia por discordar da escolha de Paulo Maluf para disputar a presidência nas eleições indiretas de 1985. Ao perceber a fragmentação do PDS, dividido por disputas internas, fez uma manobra habilíssima e acabou como vice de Tancredo Neves na vitoriosa chapa de oposição. Como Tancredo adoeceu antes da posse e mais tarde morreria, Sarney virou o primeiro presidente da redemocratização. Durante os últimos 50 anos da vida do país, de um jeito ou de outro, Sarney sempre esteve no poder ou muito perto dele. E agora, aos 80 anos de idade, lá está ele, a sombra entre o operário que deixa o governo e a mulher que o assume.

A era Lula, autoproclamada como fundadora de um novo tempo, na qual “o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história”, como afirmou Dilma Rousseff em seu discurso de posse, termina assombrada pelo que há de mais arcaico na política brasileira, encarnado na figura do oligarca José Sarney. E é o PMDB de José Sarney que consome boa parte da primeira semana do governo de Dilma Rousseff em sua disputa com o PT por cargos e pelos orçamentos mais polpudos. Se o lulismo é algo novo na história do país, há algo de muito velho – e algo estrutural – que continua bem aqui, que nunca deixou de estar bem aqui. Apenas que forte e desenvolto como há tempos não se via. E que tem na figura de José Sarney sua imagem mais eloquente.

Entre os ensaios publicados sobre a história recente do país, destacam-se os do cientista político André Singer sobre o lulismo e o do filósofo Marcos Nobre na revista Piauí de dezembro. Neste último, Nobre fala sobre o fenômeno do pemedebismo – um jeito de ser e estar na política que transcende o próprio partido. “O fim da polarização. Nem petistas, nem tucanos: o pemedebismo no poder”.

Vale muito a pena ler o ensaio para compreender as últimas décadas da vida política brasileira e também as cenas a que estamos assistindo no atual momento. Ao traçar a genealogia e a linha do tempo do pemedebismo, o filósofo afirma: “De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o ‘lulismo’ foram tentativas de controlar o pemedebismo de fundo da política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente”.

E, em outro momento: “O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José Sarney na presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na presidência do Senado selou a aliança com o PMDB para a eleição presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia da gramática política brasileira. Ao contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da sociedade”.

Nos acontecimentos a que se refere Marcos Nobre, Lula produziu uma de suas frases mais simbólicas das muitas de seu período no poder. Simbólica pelo que há de chocante no que disse e por ser ele a dizê-lo. E simbólica pelo que revela do momento nacional. Recordem-se. O presidente de origem sertaneja e nordestina, o ex-torneiro mecânico, o governante do povo, afirmou o seguinte: “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”.

Aí está.

Enquanto sonhamos com uma reforma política, para compreender o país precisamos continuar procurando nas intrincadas cenas de Brasília, na complexa paisagem do Brasil, onde está Wally Sarney. E também – convém jamais esquecer – onde ele não está.

(Publicado na Revista Época em 10/01/2011)

Tropa de Elite em 3D

Há influência do Capitão Nascimento no apoio da opinião pública às operações no Rio?

As operações policiais na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão têm sido chamadas de “Tropa de Elite em 3D” no twitter. Como se Tropa de Elite, o filme, tivesse passado das telas para a vida real, na menção de mais de um repórter ao relatar o que via. O público previsto para assistir à Tropa de Elite 2, que deverá se tornar o filme mais visto da história do cinema nacional, foi menor do que o esperado no último final de semana de novembro. Segundo alguns sites especializados, teria sofrido a concorrência de seu homônimo em 3D, na transmissão ao vivo das operações no Rio pelas equipes de TV. É apenas uma alegoria ou há algo mais profundo nesta relação entre realidade e ficção?

Acho que vale a pena pensar sobre o efeito de Tropa de Elite 1 e 2 na apreensão dos acontecimentos do Rio pela opinião pública. Não apenas pelos cariocas, mas pela população brasileira, boa parte dela sem nenhuma familiaridade com a realidade do tráfico nas favelas do Rio nem com os policiais do Bope. É possível supor que um dos maiores fenômenos de público da história do cinema nacional possa ter tido um efeito significativo na aprovação massiva (e quase sem ressalvas) à ação policial – no Rio, 88% da população, segundo o Ibope. Minha pergunta aqui, que talvez só possa ser respondida daqui a alguns anos, é em que medida o Capitão Nascimento está presente na decodificação dos fatos da vida real.

Amigos de diferentes Estados e regiões do Brasil, que costumavam assistir ao noticiário do Rio, incluindo operações anteriores, com uma curiosidade distraída, agora acompanham e discorrem sobre o Complexo do Alemão e o Bope como se tudo estivesse acontecendo no bairro vizinho ao seu. O que os “engatou” na realidade e os aproximou de algo que antes soava distante parece ter sido o tanto que gostaram do filme e o tanto que admiram o Capitão Nascimento, a quem enxergavam no rosto anônimo de cada policial nas imagens de TV. Ao buscar dentro de si instrumentos, memória, para compreender a realidade exibida no noticiário, é Tropa de Elite que aparece primeiro.

Nunca ouvi tão poucas críticas aos já comprovados abusos policiais na ocupação dos morros ou tão poucos questionamentos sobre a eficácia e o resultado efetivo deste tipo de operação. Existem, claro. Mas num volume bem menor. Conhecidos que eram os primeiros a levantar a voz para falar da violação dos direitos humanos confessam que estão acuados. Toda vez que abrem a boca para fazer uma ressalva no seu local de trabalho ou na mesa do bar são tratados como “defensores de bandidos”. Outros, que sempre olharam qualquer operação policial – ainda por cima com Exército a tiracolo – com desconfiança máxima, ensaiam discursos maniqueístas. Há não muito tempo me enviavam emails coletivos de campanhas contra o Caveirão. Agora, chegam a repetir o discurso fácil da luta do bem contra o mal. O que mudou?

Desde sempre há gente, muita gente, favorável ao pega e arrebenta. Assim como defensores do uso do Exército no combate ao tráfico, como havia sido tentado no passado. A diferença que percebo é a perda do pudor. Era complicado defender a polícia sabidamente corrupta em sua maioria e intimamente ligada à criminalidade que fingia combater. Era espinhoso falar do Exército na favela com poder de polícia depois dos 21 anos de ditadura militar. Quem compartilhava estas ideias, fora os motoristas de táxi, não saía por aí as bradando em qualquer meio. Agora, parece que inverteu. Criticar, duvidar, questionar, verbos que fazem parte do exercício da cidadania, têm sido rechaçados com alguma – ou até muita – violência. “Ah, lá vem você defender os pobres e oprimidos…”. Ou pior: “Lá vem você e a sua culpa…”. Como se querer que a lei seja cumprida dentro da lei fosse um defeito de caráter. E o autor do comentário já estivesse, a priori, desqualificado.

Vale a pena perguntar se há, nesta espécie de autorização para disparar ideias até então tachadas como “reacionárias”, um dedo engatilhado do Capitão Nascimento. Não o Capitão Nascimento contraditório, atuando em zonas cinzentas na maioria do tempo, aquele dos realizadores do filme. Mas o de cada um, aquele que virou uma espécie de herói no imaginário nacional.

Estamos vivendo dias em que mesmo um reacionário folclórico como o deputado federal Jair Bolsonaro vai ter tantos competidores que precisará mudar de tática se quiser garantir ao menos uma nota de rodapé nos jornais para suas frases bombásticas. Vejam só o que disse o ex-capitão do Bope e atual comentarista de TV, Rodrigo Pimentel, em debate sobre as operações no Rio promovido na quinta-feira (2/12) pela Folha de S.Paulo. “Muita gente se perguntou por que a polícia não deu tiro em todo mundo e matou aqueles 200. Confesso que era o meu desejo. Não tenho a menor vergonha de dizer que gostaria que eles morressem. Era uma situação de beligerância, de guerra”.

Pois é, ele não tem “a menor vergonha de dizer”. Ninguém mais parece ter. Posso ser meio antiquada, mas acho importante ter vergonha. Assim como pudor. Especialmente quando se tem uma expressão pública, o que sempre aumenta a responsabilidade. Capitão Pimentel, como é conhecido o autor do comentário, é tido como a versão encarnada do personagem da ficção Capitão Nascimento. É também um dos autores dos dois volumes do “Elite da Tropa”, livros nos quais se basearam os filmes. Ele costuma explicar que Nascimento é um personagem totalmente fictício, construído a partir de histórias vividas por ele e por outros colegas do Bope.

Aqui há outro capítulo dos mais interessantes sobre a intersecção entre ficção e vida real. Neste mesmo debate, participaram também o cineasta José Padilha, diretor de Tropa de Elite 1 e 2, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança do Estado do Rio e coautor dos livros “Elite da Tropa”, e Marcelo Freixo, segundo deputado mais votado do Rio no qual foi inspirado o personagem do parlamentar Diogo Fraga, central no segundo filme. Os três estão entre as principais vozes críticas às operações no Rio e ao que Soares chegou a chamar em seu blog de “pastiche da mídia”.

Não perdem a oportunidade de lembrar que aquilo a que assistimos pela tela das TVs não é uma mera luta de mocinhos contra bandidos nem vai resolver o problema da criminalidade no Rio. E que, sim, a maioria dos policiais continua sendo corrupta e a situação só chegou a esse ponto por causa disso. E que não, não é o tráfico o maior problema hoje, mas as milícias compostas por policiais, bombeiros e militares, pelo Estado portanto, que criaram hoje um modelo de negócio mais eficiente, variado e adaptado ao momento histórico. E que não, as Forças Armadas não devem continuar nas favelas. E sim fazer o seu trabalho determinado pela Constituição, como impedir que as armas sejam contrabandeadas para dentro das fronteiras do Brasil e alcancem os morros.

Entre os méritos de Tropa de Elite 1 e 2 está o de mostrar o que muita gente parecia ter esquecido: a existência de policiais bons e honestos que arriscam a sua vida por um péssimo salário. Mostrou também que estes policiais bons e honestos constituem uma minoria no conjunto da força policial do Rio. A maioria está implicada, por parceria ou por omissão, como não se cansa de dizer Soares, em todas as modalidades de crime. Tropa 1 e 2 mostrou, portanto, que o mal está nos dois lados, na polícia e no tráfico. E apontou a necessidade urgente de distinguir a polícia do crime – hoje indistinguíveis.

Mas, quando Tropa de Elite vira Tropa de Elite em 3 D, a história é outra: a polícia é o bem, os bandidos são o mal e, como bem e mal, mocinhos e bandidos, estão em lados opostos e bem delimitados. Ao anular as diferenças entre o bom policial, uma minoria que precisa ser identificada e reconhecida, e o mau policial, a maioria que também precisa ser identificada e reconhecida, a opinião pública passa a tratar todos como mocinhos. Depois há de sair explicando como boa parte dos traficantes conseguiu fugir ou por que é necessário proibir os heróis de subir os morros com mochilas para evitar que saqueiem as casas e os bolsos dos moradores. Efeitos colaterais da simplificação grosseira da realidade.

A vida real não cabe no preto e no branco. Algo de cinza sempre vaza pelas margens. Neste sentido é que acho importante, além de todas as outras perguntas, tentar entender como Tropa de Elite – o duplo fenômeno cinematográfico – acabou emprestando um suporte simbólico às operações do Rio. Não exatamente por aquilo que disse, mas pela forma como foi decodificado e reelaborado pela população. Ou, dito de outra forma, sempre vale a pena pensar sobre a verdade da ficção e a falsificação do real.

É bem significativo que os criadores do espetáculo mais importante da década – e talvez da história do cinema brasileiro – sejam aqueles que tentam lembrar a toda hora em debates, entrevistas e artigos que o que assistimos na vida real não é espetáculo. Mas os criadores não têm mais domínio da criatura, que na boca do povo, dos políticos e de parte da imprensa vira o que cada um quer ou precisa. Uma pena que as zonas cinzentas de Tropa de Elite 1 e 2 – muitas e ricas – tenham sido deixadas de lado em favor do preto e do branco, sempre mais fácil. E também mais longe das verdades todas.

Por coincidência, enquanto escrevo esta coluna há um aniversário de criança no salão de festas do prédio que dá fundos para o meu. Da janela do meu quarto vejo meninos e meninas, acompanhadas por suas mães e babás, pulando loucamente ao som de: “Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você/ Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você”.
Pegou?

(Publicado na Revista Época em 06/12/2010)

Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento

Uma conversa com o psicanalista Mário Corso sobre o politicamente correto

Era uma vez um mundo de gente muito chata. E um tanto perigosa. O Saci estava ali, na dele, pulando numa perna só e aprontando umas e outras, quando… zás! Sequestraram seu cachimbo. O Saci olhou para um lado, olhou para o outro, e viu umas criaturas de olhos estalados e cara de melhores intenções. O Saci não tem medo de quase nada, mas descobriu que morre de medo de seres com cara de melhores intenções. É para o seu bem, disseram os entes desconhecidos. Fumar faz mal. E dá mau exemplo. Se você for bem bonzinho, a gente lhe dá uma prótese aerodinâmica para você saltitar com duas pernas. O Saci disse que estava muito bem obrigado com uma perna só há alguns séculos e ficaria bem satisfeito se pudesse pitar seu cachimbo sem nenhum enxerido apitando no seu ouvido. Não adiantou. Aqueles seres só tinham certezas – e uma delas era saber o que era melhor para ele.

Desde então, vem aparecendo uns sacis sem cachimbo – e sem magia – por aí. Não bastassem lobos que em vez de avós comem cenouras, crianças que não atiram pau no gato e madrastas da Cinderela com doutorado em pedagogia, resolveram mexer com o Saci.

O ataque mais recente foi denunciado no Rio Grande do Sul, semanas atrás. O Internacional, time gaúcho de futebol, está sutilmente escanteando o Saci, símbolo do clube. E substituindo-o por um macaco chamado Escurinho. Na condição de gremista, eu achei até bom. Porque o Saci, bem invocado, poderia piorar bastante a situação do clube que não só lhe arranca o cachimbo nas poucas imagens em que ele ainda aparece, como o renega pelas beiradas. Mas o Saci está acima das rivalidades futebolísticas. E tudo tem limite nessa vida.

Diante do questionamento de torcedores, o diretor de marketing do clube, Jorge Avancini, respondeu ao colunista Wianey Carley, de Zero Hora, que o Saci continua sendo a mascote do clube, “o Escurinho é a mascote dos projetos sociais”. Ah, bom. Um ponto da resposta é particularmente interessante. Na tentativa de ser politicamente correto, Avancini escorregou. Não um escorregãozinho qualquer, mas um que foi de Porto Alegre a Uruguaiana.

Para mim, coisa do Saci. Ninguém diria isso de livre e espontânea vontade. Confira: “O Saci hoje tem rejeição por parte das crianças, pelo fato de não ter uma perna, isso é visto como perdedor, e por fumar cachimbo, além de ser politicamente incorreto, as crianças estão associando este ato ao ato de fumar Crack. Se observares onde temos usado o Saci, ele já aparece sem o cachimbo”.

Dá para imaginar uma criança olhando para o Saci e pensando: “Bah, vou fumar crack!”? Ou um dirigente de clube dizendo a um jornalista que as crianças rejeitam o Saci porque não ter uma perna é coisa de perdedor? Pois é.

O fato é que o Saci é apenas mais uma vítima. (E eu, aqui no meu canto, quero continuar sua amiga.)

É natural que os personagens dos contos, do folclore e também das fadas, sofram mudanças ao longo do tempo. Eles podem mudar, como tudo, mas não sofrer um processo de limpeza que arranque deles a sua essência, o que de melhor têm a nos dizer. E, no caso da patrulha politicamente correta, arranque deles os conflitos, as diferenças, o estranho e o incômodo. Tudo aquilo que há séculos cumpre a função de nos ajudar a elaborar nossos mais fundos temores. Não é a toa que as crianças pequenas pedem para repetir sempre a mesma história – e sempre do mesmo jeito. Ali, elas podem controlar o final, administrar o medo, começar a aprender a lidar com a violência, os conflitos e o estranhamento inerente a toda vida.

Para além do bizarro destas intervenções, há algo sério em curso. Algo sobre o qual precisamos pensar. E que não é coisa só do Brasil, mas vem se esparramando pelas democracias ocidentais, já que nos regimes totalitários a censura é de outra ordem e sem nenhuma sutileza. Em 2008, por exemplo, uma agência educacional do governo britânico proibiu uma versão da história dos Três Porquinhos nas escolas, porque ela poderia ofender os muçulmanos. Outro fator que pesou foi o fato de que o conto seria uma ofensa aos pedreiros e construtores, ao tratá-los como “porcos ignorantes, que constroem casas que podem ser derrubadas pelo vento”. Só para ficar claro que a ausência de pensamento não tem limites geográficos.

É importante que o cravo continue a brigar com a rosa (e não tenham uma vida de flores de plástico), a madrasta seja uma bruxa má (e não vá para a balada de mão com a Cinderela) e o lobo devore a avó (e não seja vegetariano ou, infâmia das infâmias, prefira tomar refrigerante, como numa história que li dias atrás). A fantasia – e a arte – é o território onde lidamos com nossas verdades mais profundas. E não podem ser enquadradas pela cartilha de uma pseudo-pedagogia que tem pavor de conflitos e do lobo mau.

Para nos ajudar a pensar sobre o furor politicamente correto e os efeitos sobre nossa vida e a de nossas crianças, procurei o psicanalista Mário Corso. Ele é autor de dois livros imperdíveis: Monstruário – inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros (Tomo Editorial, 2002) e Fadas no DivãPsicanálise nas histórias infantis (Artmed, 2006), este último escrito em parceria com a também psicanalista Diana Lichtenstein Corso. É uma conversa longa, como todas as boas conversas.

EU – Assistimos há alguns anos a uma espécie de “purificação” dos personagens infantis, tirando deles tudo o que é diferente, incômodo ou revelador de conflitos. Mais recentemente, começaram a implicar com o cachimbo do Saci. Ele seria um mau exemplo para as crianças e também para os adultos. Faz algum sentido um Saci sem cachimbo?
Mário Corso – O Saci é um dos raros trickster do nosso folclore. O trickster é um ser enigmático, nunca sabemos o que esperar dele. Afinal, ele pode ser bondoso ou maldoso, nos ajudar ou nos atrapalhar, nos dar um presente ou nos roubar, enfim, a sua essência é ser imprevisível. Além disso, o Saci é um ser do ar, provoca e vive nos redemoinhos. É natural que seu alimento, por excelência, seja a fumaça. Vão é matá-lo de fome se tirarem o cachimbo!

EU – Um Saci sem cachimbo é ainda um Saci? Ou é outra coisa? Daqui a pouco vão colocar uma prótese nele… O que acontece quando a gente esvazia estes personagens daquilo que os constitui?
Corso – Acontece como aconteceu a outras figuras: a gente se esquece delas. Como elas vão cada dia nos dizendo menos, elas caducam e desaparecem. A gente ainda conhece a Mula-sem-cabeça, mas a sua prima Cumacanga não. A gente vê filme com Zumbi, mas não conhece o Corpo Seco, figuraça de horror que assombrava nossos avós. Mas com o Saci acho difícil. Creio que o Saci ficou tão popular porque representa as três raças. Ele é negro, mas usa um barrete vermelho, bem ao velho estilo português, que é, aliás, a fonte de seu poder. E usa o fumo, que é um dos “presentes” que a América deu à humanidade. Ou seja, o gosto pelo fumo é o seu elemento índio. Sem cachimbo, ele perde um pouco da sua força, mais ainda é um saci. Quem sabe dias melhores virão, quando o tabagismo e o crack não sejam os demônios a serem domados e lhe restituam seu cachimbo.

EU – O Saci não é a primeira vítima desta ânsia purificadora. Os contos de fadas foram sendo alterados ao longo dos séculos, para se tornarem mais palatáveis às sensibilidades do momento. Especialmente a partir do século 19, quando viraram histórias para crianças. Há algum tempo, passam por uma nova mudança, com releituras politicamente corretas. O que acontece com as histórias e com as crianças que ouvem as histórias, quando é promovida esta “limpeza”?
Corso – Na verdade, os contos foram se adaptando ao público. Existem três migrações importantes e cada uma deixou uma marca. Não necessariamente elas seguiram uma ordem, mas podemos sistematizá-las assim: 1) os contos de fada provêm da tradição folclórica oral e, naquele momento, não pertenciam a nenhum público específico; 2) as histórias mudaram de veículo e ganharam um registro escrito, modificando então seu habitat, já que não eram contadas mais nos serões de trabalho e sim nas cortes, ou seja, deixaram o campo e vieram para a cidade; 3) por último, foram destinados às crianças. Cada mudança implicava uma adaptação a uma sensibilidade diferente. Perderam, portanto, certa crueza e rudeza camponesa.

Além disso, depois que ficaram exclusivamente infantis – e na medida em que se acredita na influência educadora de tudo o que se ministra à infância –, é natural que tenham ganhado um filtro adicional, especialmente nos aspectos que remetem à questão sexual. Mas houve também a limpeza de várias outras arestas, como passagens mais violentas, francamente incestuosas, canibalismo, esquartejamentos, tortura de vilões, filhas entregues a monstros, adultério e outros eventos mais espetaculares que divertiam seu público original, que pedia mais emoção. Quem se preocupa com os filmes violentos e o gosto dos contemporâneos por emoções fortes não se dá conta que os camponeses daquele tempo achariam Tarantino uma florzinha.

EU – Estaríamos então passando por mais uma mudança nos contos de fadas e no folclore brasileiro, com o politicamente correto? O quanto é relevante esta intervenção de certo tipo de pedagogia nos contos de fadas e no folclore? Isso no caso de podermos chamar de pedagogia uma intervenção que busca eliminar os conflitos em vez de trabalhar a partir deles…
Corso – Existem coisas que se pode dizer e coisas que não se pode dizer, esta é a lógica do politicamente correto. Aplicado a questões raciais e sexistas, o discurso de correção política pode ser muito bem-vindo. Por exemplo, eu mesmo fico muito contente em não escutar mais as piadas racistas que escutava na minha infância. Nunca gostei de escutar esse lixo, me fazia mal. Mas chegando à discussão política, aos temas amplos contemporâneos, é um desastre.

O politicamente correto na política já não é só uma escolha de palavras, mas é uma forma de não pensar. Ela pressupõe certos axiomas, especialmente o “coitadismo” e a vitimização do cidadão. E, como contrapartida, a responsabilidade total do Estado: se as coisas chegaram aonde chegaram é por que o Estado em algum momento falhou. As pessoas, os cidadãos, não falham. Eles são sempre bons e oprimidos por forças superiores.

A questão aqui é definir o que se entende por um discurso politicamente correto. Se você está pensando em algo como “1984”, de George Orwell, eu concordo. Ou seja, ele projetou nesse livro um mundo em que o totalitarismo venceria – e para quem viveu no século XX foi um pesadelo bem possível. Uma das consequências do totalitarismo seria a “novilingua”. Esta língua teria um número mínimo de palavras, feitas para diminuir a capacidade de pensar e, consequentemente, a de manifestar críticas ao governo. A lógica era a de que só corrompendo a linguagem era possível corromper o pensamento. Os fascismos e o stalinismo e várias ditaduras nos deram demonstrações práticas de um vocabulário oficial como este. É bom lembrar que os governos autoritários são muito atentos às palavras – mais do que as democracias.

Porém, a questão que nos interessa: seriam sociedades ditas democráticas imunes à corrupção da linguagem? Será que nestas sociedades democráticas encontraríamos a plena expressão? Escutando certas pessoas, eu penso que, infelizmente, não. Estamos utilizando novas formas de “novilingua”. Isso tanto na política quanto na linguagem empresarial, nos discursos sobre marketing.

Também poderíamos dizer que andamos falando “Jerkish”. Ivan Klima, um romancista tcheco, usou essa palavra para designar a linguagem oficial da cortina de ferro. Na origem, “Jerkish” quer dizer uma linguagem desenvolvida para falar com chimpanzés, portanto sem possibilidade de metáfora, onde tudo é direto. Pão-pão, queijo-queijo – ou então banana-banana. Na verdade, trata-se de um vocabulário oficial baseado em clichês e que nos faz falar sem dizer nada. Não sai nada além da informação mais banal e esperada. Quem fala com esse vocabulário dá voltas e mais voltas nas questões, diz o que é previsível, o óbvio ululante, e estamos conversados.

A questão principal é que o “Jerkish” não pede a marca singular de quem fala. Dessa forma, todos ficam iguais, independentemente se enunciado por um ou por outro. O que é dito será a mesma coisa, já que essa linguagem não permite um estilo próprio. O resultado é um empobrecimento da linguagem, e, em decorrência, o esvaziamento do pensamento.

EU – O politicamente correto é um fenômeno da nossa época?
Corso – Quem acha que a correção política é nova não é atento à História. Depois da Revolução Francesa, por exemplo, houve um surto de correção política. A abelha rainha tornou-se abelha poedeira (abeille pondeuse). E também houve trocas nos baralhos e nos jogos de xadrez. Nada de reis, rainhas, valetes, bispos… Os baralhos vinham com “liberdade, igualdade, fraternidade”. O “vous”, que supunha uma certa assimetria social, foi trocado pelo “tu” ou “tois”. A esperança revolucionária era substituir todo “vous” por “tu”. “Monsier” e “Madame” viraram “Cidadão” e “Cidadã”. Hoje, a gente pode até rir disso, mas os revolucionários achavam isso uma grande questão.

Mas, voltando. Sim, podemos dizer que os contos de fada, as histórias e canções para as crianças, podem estar ganhando mais uma “limpeza”.

“Ao tentar proteger os filhos, os deixam sem armas para o pior”

EU – Que mundo é este que precisa “limpar” os contos de fada e as histórias do folclore brasileiro? Não sei que palavra você usaria para o que está acontecendo já há algum tempo… Censura? De onde vem essa necessidade?
Corso – É um pouco de tudo, algo entre uma nova sensibilidade e a censura. Um conto muito popular até o século XIX era Bicho Peludo (ou Pele de Asno). Ele tem como mote o desejo incestuoso de um pai por sua filha. Ora, isso não é bem visto hoje, logo a história não é mais contada. Certamente Disney não vai fazer uma versão. E olha que ela era tão popular como Cinderela! Vivemos tempos psicológicos, sabemos ou intuímos o que as histórias mais transparentes nos dizem e temos uma convicção interior de que as obras de arte ou ficção mobilizam elaborações e sentimentos importantes. Portanto, passamos a evitar a evocação de assuntos polêmicos quando nos dirigimos às crianças. Talvez na esperança mágica de que o conflito não se estabeleça.

EU – Quem perde com isso?
Corso – Quem perde com isso são as crianças. São os adultos que censuram, mas são elas que deixam de dispor de excelentes histórias, que poderiam ajudar a dramatizar os conflitos que vivem. Ou alguém acredita que uma menina vai deixar de se apaixonar por seu pai e querer que a mãe suma do mundo só por que não escutou uma história infantil?

EU – Esta ânsia de eliminar os conflitos, como se os conflitos fossem ruins e incompatíveis com os bons valores da vida, é movida por qual desejo?
Corso – O que está por trás de tudo é proporcionar uma “boa educação” para as crianças e não poluí-la de maus exemplos. O mesmo serve para a violência, como se a violência fosse fruto não das relações reais que a criança vive, mas do mundo da imaginação. O que esse pessoal que acredita nessa pedagogia cor-de-rosa demonstra é que conhece muito pouco de seus filhos e esqueceu totalmente da sua infância. Esqueceu os fatos, mas de certa forma é traumatizado pela infância, tanto que quer evitar que seus filhos tomem contato com as fantasias que eles viveram e não elaboraram.

O que temos aqui é uma transmissão do medo que eles sentiram na infância. Ao tentar proteger seus filhos os deixam sem armas para o pior. Serão crianças que, sem trânsito mais aberto pelo mundo da fantasia, o que poderia treiná-las para o mundo real, vão viver os golpes do destino da forma mais dura. E ninguém pode viver sendo poupado.

Portanto, mais do que exercer uma atividade de censura, no sentido de julgamento moral, a transformação dos contos de fadas em histórias mais suaves ou mesmo didáticas provém muito mais de uma condição neurótica de pais e educadores. Eles tentam criar condições para uma infância livre de conflitos, como se isso fosse possível.

Cada novo indivíduo que nasce está fadado a ter seus sofrimentos neuróticos, que são normais e dão consistência à personalidade que ele está construindo. Seus adultos, porém, gostariam que ele fosse livre de tudo isso. O ideal dos adultos é o transcurso de uma infância e adolescência que sejam leves, uma vida de puro prazer e liberdade, uma onde eles imaginam que seria bom terem crescido.

Não estamos defendendo que se mantenha a versão da Chapeuzinho Vermelho na qual o lobo a convida a comer a carne do corpo da vovó assassinada, mas que se mantenham as histórias com direito a dramas mais encorpados, onde a complexidade do destino e da personalidade não fiquem tão abafados. Os pais e escolas de hoje “escaneiam” os livros em bibliotecas e livrarias buscando eliminar qualquer coisa que possa angustiar os pequenos. Mas eles se angustiam igual, porque a infância é uma época difícil de viver, e não há outro jeito de atravessá-la. Sentir coisas fortes sozinho é pior. A criança se sente maluca, estranha.

EU – Há algum risco dessa “reforma” nos contos de fadas e outras histórias infantis vingar? O cinema, os games e a literatura continuam produzindo vilões. Do contrário, provavelmente teriam prejuízo. Não dá para imaginar Harry Potter sem o Voldemort, por exemplo. Até mesmo “Up – altas aventuras” tem um vilão interessante….
Corso – Vinga e não vinga. Uma coisa é o que a intenção pedagógica reinante quer, outra é o que as crianças vão buscar. Existe um sem número de livros infantis e programas de crianças que são falidos, ficaram pelo caminho. As crianças cheiram o cavalo de tróia da vontade moralizadora e nem o deixam entrar. Os grandes estúdios, as grandes editoras e especialmente os games, que movem um montante de dinheiro incrível, sabem do gosto infantil por sentir medo, por temer vilões, e fabricam esses pequenos diabos para deleite dos pequenos. Não é a indústria cultural de produtos para a infância que tem essa visão moralizadora. É o espírito da nossa época, dos pais e mestres contemporâneos que acreditam que é possível e necessário educar também através das obras e personagens da cultura infantil. Invadem então o território da fantasia com tarefas escolares e tentam usar a ficção como veículo para seus sermões subliminares.

EU – Nos contos de fadas, em geral os vilões são bem populares. Por quê? Imagino que nenhuma mãe precise ficar preocupada se seus filhos gostarem do lobo mau ou da bruxa da Branca de Neve…
Corso – O mundo é muito perigoso, até para os adultos. Imagine então para as crianças, que são frágeis, pequenas, dependentes, e que não entendem metade do que está acontecendo. Como é que elas não vão querer brincar e fantasiar com o elemento do medo? O medo na fantasia é controlado, a criança pode evitá-lo, se aproximar, se afastar, ter a ilusão de controle. Enfim, ela dialoga com algo que lhe é importante. Por isso o vilão é importante. Ele é o mal, e cada um quer saber como se defender dele. O mal é um grande assunto.

O mundo não vai ficar melhor se privarmos as crianças da violência dos games, das histórias, que não é nada mais do que um aprendizado para uma violência que um dia ela vai ver na realidade. Ninguém fica violento porque joga games, eu diria até o contrário. Salvo raríssimos casos de crianças gravemente perturbadas, todas as crianças têm muito claro o que é fantasia e o que é realidade. O nosso mundo é que é violento, esses produtos são só um reflexo disso. Não adianta tentar arrumar a violência real pelo cerceamento da violência virtual. Isso é uma bobagem.

“Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice”

EU – É possível educar para a não-violência?
Corso – Eu acredito em uma educação para a não-violência, mas esta deve ser feita nas relações reais que essa criança tem, na forma como ela deve tratar os outros, os seus semelhantes, a funcionária que trabalha em sua casa, o porteiro do prédio, os colegas da escola que são mais tímidos, os velhos. Como os pais não educam seus filhos onde devem educar, ficam tentando o caminho mais fácil, imaginando que é nos seus brinquedos e fantasias que está a chave para a formação do caráter.

Educar dá muito trabalho, mas muito trabalho mesmo. Essa é a chave, e nem todos estão preparados para isso, pois é preciso ler um pouco, sair do senso comum, cultivar-se. Os pais não preparados para a função projetam no mundo, em especial na mídia, a responsabilidade pela formação moral dos seus filhos. Por isso essa histeria com a violência e a sexualidade nas histórias infantis, na TV, nos games.

EU – Se as crianças procuram o medo, usam as histórias para elaborar suas questões, faz sentido histórias em que todo mundo é bom, se dá bem e não há nenhum conflito? Para que serviria uma história como essa?
Corso – Histórias assim tão chatas só servem para tranquilizar pais medrosos. Por outro lado, esse tipo de obra, que no fundo é paradidática, presta um desserviço para a literatura. Através desse tipo de narrativa – que era para ser literária e na verdade é pedagógica – afasta-se a criança da experiência estética, que é a de se emocionar com uma narrativa, com uma imagem que as traduza poeticamente, que as faça entender algo além da compreensão racional. A arte pode ser nossa melhor tradução, ou talvez a tradução do melhor de nós. Ao reduzi-la à educação, como tanto se tentou nos regimes totalitários, mata-se ao mesmo tempo a obra e seu público.

EU – E histórias como a do Shrek, em que os lugares são embaralhados… O monstro é o herói (ainda que como anti-herói), a princesa arrota e prefere ser ogra etc. Continua tendo vilões, mas o vilão maior é o príncipe encantado e a fada madrinha… Histórias como esta têm espaço para a elaboração, na medida em que, embora embaralhem a identidade de vilões e heróis, reproduzem os conflitos clássicos?
Corso – Shrek é um exemplo perfeito da atualização possível dos contos de fadas, que têm sido umas dos raros elementos da tradição que apresentam eterna vitalidade em nossa sociedade tão fascinada pelo novo. Para isso, porém, precisam se reciclar a cada nova geração de crianças. Para as atuais, um herói tem que ter consistência emocional, o antigo e simples maniqueísmo é pobre para elas. O ogro verde tem conflitos interiores, para se socializar, para aceitar os outros e se aceitar. E isso é muito compreensível para as crianças, que se vêem psicologicamente retratadas nele, que também é tão deliciosamente humano em seu corpo gordinho e produtor de todo tipo de gases.

Além disso, há o humor, que é um pré-requisito de crítica e inteligência da qual nem as crianças nem nós, adultos, abrimos mão. O humor é o grande herdeiro artístico de todas as revoluções que já protagonizamos e vivemos. Enquanto ele sobreviver, nenhuma ditadura será eterna.

Para as crianças, há poucas idealizações disponíveis. Nem seus pais, nem mestres, nem governantes, nem mesmo deuses estão disponíveis para serem admirados irrestritamente. A irreverência chegou para ficar entre os humanos e isso é bom. Por isso, devemos acrescentar atributos aos elementos imaginários disponíveis, como o ogro e o Saci – e não tirar os que eles já têm. Ziraldo já fez do Saci um bem humorado personagem. E este é o caminho, já que se trata de arranjar oportunidades para as criaturas mágicas. E não relegá-las ao desemprego, alegando que estão fora de moda.

EU – O politicamente correto nos é vendido embalado nas melhores intenções. Mas, como você disse, contém nele um germe totalitário. Como podemos nos contrapor a isso, como pais e pessoas que vivem nesse mundo?
Corso – Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice mesmo. A gente usa totalitarismo com muita leviandade. Se o discurso politicamente correto for totalitarismo, teremos de inventar outra palavra para dizer como funcionava o nazismo ou mesmo a vida hoje no Irã. Lá sim é que o bicho pega. Que um iraniano ouse em um lugar público discordar do que diz um Aiatolá e veja onde vai parar…

Ou seja, o discurso politicamente correto é a versão ligth do discurso totalitário. Afinal, vivemos num estado democrático. Eles se parecem na essência porque ambos são armadilhas do pensamento, são formas de suprimir e atalhar pensamentos complexos. Ambos usam um jargão pré-estabelecido sobre todos os assuntos polêmicos, tapando as questões ou os seus desdobramentos. Ambos falam em nome do bem comum. E falar em nome do bem comum funciona como um escudo. É como os religiosos que falam em nome de deus. A partir dessa premissa não há mais questionamento possível. Eles se acham certos e pronto, estão do lado do bem.

Todo valor pode ser transformado em uma espécie de mercadoria esvaziada do seu papel. Quanto mais estratificado nosso mundo se torna, mais falamos em igualdade e tolerância. E mais falamos em igualdade e tolerância justamente quando estamos quase totalmente desprovidos de pensamento utópico, da esperança de um mundo diferente, norteado por valores realmente igualitários. Quanto mais imersos numa cultura de mercado, onde a produção de lixo se dissemina e é democratizada, mais ecologia ensinamos aos pequenos. As intenções são boas, mas a coerência é que está em falta.

“Ninguém diz mais o que pensa, e sim o que é certo dizer”

EU – O que nos leva a esse discurso vazio?
Corso – O que leva ao clichê, ao discurso vazio, é a falta de sinceridade. Ninguém diz o que realmente pensa e sim o que é certo dizer. E, com o tempo, de tanto insistir no que seria correto dizer, convencemo-nos de que aquilo é o que realmente pensamos. Só que isso não é mais um pensamento: sendo uma repetição de fórmulas esquemáticas, é justamente a ausência de pensamento. Aqui a preguiça contribui de fato: é mais fácil não pensar.

A utilização da linguagem politicamente correta, ou seja, o policiamento do que é dito em busca de que a tolerância seja um enunciado universal, baseia-se justamente nessa premissa: de que o modo de falar daria forma ao modo de pensar – e não o inverso. A intenção é das melhores, mas o resultado foi esse saneamento da linguagem, visando expurgá-la dos preconceitos a partir de uma esterilização dos enunciados.

Eu sempre fui envolvido com a questão da reforma psiquiátrica. Estudei muito a questão, estive presente em momentos políticos e desdobramentos práticos desse movimento. Especialmente na questão de formação de pessoas com um arsenal teórico para dar conta desse novo momento. Mas não consigo usar o famigerado “portador de sofrimento psíquico” para dizer “louco”. Acho que eu sempre fui atento aos loucos, cuidei de muitos deles, milito para que os escutemos na sua singularidade, que sempre que possível não se abafe seus delírios com medicamentos. Enfim, para que sejam tratados como iguais. Não acredito que eu vá mudar dizendo isso – “portador de sofrimento psíquico” –, nem eles. Posso mudar de idéia, mas até agora ninguém me convenceu.

EU – Não me parece que essa “limpeza” esteja acontecendo na produção cultural para adultos. Não é o que a literatura e o cinema nos mostram. Já no mundo das crianças tiraram até o pau que elas atiravam no gato. Por que essa preocupação com o mundo infantil? Há aqui uma nova idéia de infância em curso?
Corso – Não há nova idéia sobre a infância, o que existe é uma neo-ignorância sobre a infância. Estamos esquecendo o que já sabíamos.

EU – Por que estamos esquecendo? E por que agora?
Corso – Talvez com um exemplo fique mais claro. É fácil encontrar mães que não cantam canções de ninar para seus filhos do tipo “a Cuca vem pegar…” O que elas dizem é que a Cuca criaria uma fobia na criança. E elas têm razão, a Cuca serve para isso mesmo. A questão é que é melhor um objeto fóbico do que uma angústia difusa. Se é a Cuca que vem me pegar, eu posso me defender, eu nomeio um mal-estar. Além disso, se é a Cuca que me quer não é a minha mãe. Ela está do meu lado e não quer me botar para dentro de seu corpo, de onde eu saí. Ou seja, elas raciocinam corretamente, mas não conhecem o psiquismo de um lactente. Pensam nos seus medos.

A tradição, neste caso, é mais sábia que essas mães que, tentando defender seus filhos, os deixam mais desprotegidos, mais ansiosos. A eliminação de figuras como a Cuca empobrece uma cultura. Abandonamos a tradição e colocamos no lugar um pretenso saber científico que, na verdade, é um senso comum rasteiro.

O que se perdeu é a continuidade entre as gerações. As mães não recorrem às suas mães – ou pensam que elas não sabem de nada – para criar filhos. Então, entra a figura do especialista. O médico, o pediatra, o psicólogo, o psiquiatra… Cada um falando de um saber técnico sobre a criação dos filhos. Ou seja, tudo fragmentado e, não raro, superficial.

Bom, não vou ficar com saudades dos tempos dos palpites das comadres, mas se jogou muita coisa fora com o afastamento das gerações. Ou ainda, dizendo de outra forma, são pais que não mais confiam no seu nariz para criar seus filhos. Não se posicionam, estão perdidos sobre o que fazer e como fazer.

Como você disse, só falta proporem uma prótese para a perna do Saci. Ou, em vez de prendê-lo numa garrafa, para que nos sirvamos de suas travessuras, a gente se penalize de seu defeito físico e as crianças sejam chamadas a incluí-lo em suas brincadeiras, como se fosse um amiguinho cadeirante.

O Saci só tem a perna esquerda. Ele é assimétrico, como ocorre com várias criaturas mágicas, que mancam de um pé. Ou é assimétrico como sinal de sua passagem pelo mundo dos mortos. Tudo na natureza tende ao simétrico. Logo, o sinal de pertencer ou ter passado pelo outro mundo é a assimetria. Essa simbologia é muito antiga. Portanto, o Saci recebe seu poder do seu contato com o outro lado da força. Essa é uma tradição imaginária cuja profundidade não nos cabe julgar nem compreender, só deixar que ela se revele em nós e reverbere em nossas fantasias.

As maiores maldades vêm das menores almas”

EU – O Saci é um personagem bem menos popular hoje do que foi na minha infância. Me parece que ele já vem perdendo prestígio há mais tempo. Como, em geral, os personagens do folclore brasileiro. Por que você acha que isso acontece?
Corso – Eu acredito que muito dos nossos monstros estão desaparecendo. Creio que a responsabilidade por isso é da incompetência dos nossos escritores para escrever e reinventar boas histórias sobre nossos personagens folclóricos. Descreveram com maestria nossa realidade, mas se esqueceram da nossa alma mágica, supersticiosa, nossos medos arcaicos. Não é a toa que temos uma invasão, especialmente da cultura de língua inglesa, nesse assunto. Harry Potter, o Senhor dos Anéis... Mais recentemente, a atenção dos mais jovens têm se polarizado em torno das sucessivas séries que reciclam os vampiros. Há ainda os livros americanos da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, que proporcionaram uma nova visada na mitologia grega. Seus autores, todos de língua inglesa, prosperam porque usam uma faixa que está livre. No Brasil, depois de Monteiro Lobato, poucos se aventuram nessa trilha. Nós deixamos o terreno baldio, não podemos reclamar se outros ocuparam.

EU – Há algumas semanas se estabeleceu uma polêmica sobre o fato de o Internacional (time gaúcho de futebol), cujo símbolo é o Saci, estar progressivamente limando o personagem, apagando o Saci…
Corso – Sim, acompanhei um pouco a discussão e me entristeço tanto por ser colorado como por ser sacizista. Não está bem definido isso ainda. A questão é que o cachimbo do Saci poderia lembrar o cachimbo do crack. Não podemos esquecer que estamos vivendo o pesadelo dessa droga. Mas acho que isso é pegar o problema pelo lado errado. Ninguém vai começar no crack porque viu um saci com cachimbo, vamos ser sérios!

De novo esquecemos a vida real da pessoa, seus laços ou a ausência deles, sua família e geralmente a omissão e a ausência dela. É aí que está a porta do crack, não em qualquer coisa que ele viu na TV ou no pátio da escola.

EU – Tudo isso só revela nossa confusão com relação à violência?
Corso – Acredito que há uma confusão sobre a gênese da violência. E ela revela o tipo de relação que temos com os outros humanos e com os limites que a vida nos impõe. Mas lidamos com o assunto como se ela fosse apenas a gênese de um aprendizado, como se pudéssemos eliminar a violência apenas com educação, sem mexer no mundo real. Somos violentos porque estamos pouco preparados para pertencer a uma sociedade. Dependemos de códigos sociais muito rígidos para ter um mínimo de capacidade de conviver em sociedade, pois a cada passo imaginamos que o outro pisou em nosso território, invadiu e baniu nossa individualidade.

O dramático em nossa sociedade é justamente a exigência da individualidade, o valor que damos a ser únicos, ímpares, e ter que conviver numa sociedade a cada dia mais massificadora. A individualidade é vendida como algo natural – e não como uma construção social de alguns séculos. Dá muito trabalho e é fonte de um bate-cabeça eterno com nossos semelhantes.

É complicado de compreender, já que nossa subjetividade nasce dessa interação: é o olhar da mãe, é o modo como nossa família fica dizendo o que somos e o que seremos que nos constitui como alguém que acabamos nos tornando um dia. Mas passamos o resto da vida tentando lidar, nos digladiando com a importância superlativa que esse olhar do outro tem sobre nós. Precisamos partilhar a vida com outros seres humanos, amar e ser amados, mas odiamos depender tanto, e acabamos mesmo odiando todos aqueles cuja presença no mundo parece ocupar o mesmo lugar da nossa ou mesmo excluí-la.

Vivemos em camadas onde o círculo da intimidade, das classes sociais, das culturas, nada disso dialoga entre si. Temos pavor de todo tipo de diferença e questionamento. Portanto, não adianta treinar as crianças para a tolerância se estamos tentando abafar nelas, e em nós, tudo aquilo que nos impede de compreender o contexto maior da nossa vida, a repercussão de nossos atos e pensamentos individuais sobre o lugar e o tempo em que vivemos. Nosso isolamento alienado faz com que tudo seja vivido como ameaça à nossa integridade. Tendemos, então, a sermos defensivos como cães em seu jardim.

EU – As crianças são mais violentas hoje ou é a nossa sensibilidade para a violência que mudou, como você costuma dizer?
Corso – É muito engraçado. Minha geração era muito cruel com animais. Na minha infância assisti a todo tipo de morte e maus tratos com passarinhos, gatos, cães, sapos, morcegos. Os animais eram um suporte para a crueldade humana. Os adultos pouco se inteiravam do fato, ou não davam a mínima. As crianças de hoje são muito melhores com os animais. Não consigo imaginar hoje bodocadas em passarinhos. Mas nós achamos que elas é que são violentas por causas de seus desenhos animados ou games.

Existe uma mudança na sensibilidade. Mesmo o bullying, que hoje é tão falado – parece que descobriram a América! – era muito pior, pois incluía o racismo e a homofobia. Eu creio que nós não vivemos tempos tão violentos, o que mudou é a sensibilidade. Toleramos menos a violência, o que é ótimo. A questão, insisto, é onde estaria a gênese da violência. A confusão vem disso.

EU – E onde está a gênese da violência?
Corso – As crianças, deixadas à própria sorte, sem a presença de adultos, podem desenvolver pequenas e grandes tiranias umas com as outras. Elas podem ser especialmente cruéis e violentas, justamente porque são frágeis, inseguras, pequenas. A violência sempre está acompanhada da impotência e/ou da ilegitimidade. As maiores maldades vêm das menores almas.

Quando uma criança apela para isso, quer fazer valer um espaço, um valor que simbolicamente não tem, e então usa do ato violento, da intimidação, para “crescer” frente ao grupo. A resposta para a violência e o bullying é que as crianças estejam acompanhadas, que seus adultos responsáveis – incluindo os professores, que geralmente e infelizmente têm de se ocupar de um número excessivo de alunos – zelem por elas. E isso, eu insisto, dá muito trabalho. E é caro. É mais fácil botar a culpa nos games e no cinema.
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Ou no cachimbo do Saci.

(Publicado na Revista Época em 24/05/2010)

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