O aborto e a má fé

A falsa polêmica em torno da lei que protege as vítimas de violência sexual mostrou que o nível da campanha de 2014 poderá ser ainda mais baixo do que na disputa de 2010

Em 1º de agosto, a presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou sem vetos a lei que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Nas semanas anteriores, a presidente foi pressionada e até ameaçada por religiosos para que não sancionasse o texto, aprovado na Câmara e no Senado. Dilma aprovou. Na semana passada, deputados da bancada religiosa do Congresso apresentaram vários projetos com o objetivo de anular a lei e católicos ligados ao grupo Pró-Vida e Pró-Família anunciaram uma vigília de protesto diante do Palácio do Planalto, segundo a Folha de S.Paulo. A polêmica se apega ao direito de acesso das vítimas à pílula do dia seguinte (pílula anticoncepcional com uma dosagem maior de hormônios), que as impediria de engravidar do estuprador. Com isso, alguns representantes evangélicos e católicos dizem que, na prática, a lei estaria legalizando o aborto no Brasil. É preciso se espantar – e muito – antes que a má fé se naturalize, carregando com ela avanços históricos no campo dos direitos humanos. A entrada do tema do aborto como instrumento de chantagem na campanha presidencial de 2010 iniciou um ciclo de retrocessos que marcou o governo Dilma. E, como ficou claro na polêmica que envolveu a lei do atendimento às vítimas de violência sexual, tem potencial para levar o debate político para as catacumbas em 2014.

A polêmica, para começar, é falsa. Militantes e representantes religiosos sabem muito bem disso. O aborto em caso de violência sexual é permitido no Brasil desde 1940. Qualquer mulher, ao descobrir-se grávida do estuprador, tem o direito legal de abortar. Não é melhor que, em vez de enfrentar o aborto do filho do estuprador, a mulher violentada tome a pílula do dia seguinte e evite uma gestação? Que tipo de gente é capaz de protestar contra isso e por quê?

O mais curioso, nesta lei, o que poderia revoltar pessoas de boa fé, é o fato de, em pleno século 21, ser preciso fazer uma lei para obrigar hospitais a dar assistência emergencial a vítimas de violência sexual. Então os hospitais se recusam, apesar de ser um direito legal e uma questão básica da mais primária compaixão humana? Não seria este o escândalo?

Deveria ser, mas não é. Espertamente estabelece-se uma falsa polêmica para enganar incautos e mal informados, com objetivo de aumentar o apoio popular para pressionar por retrocessos na legislação que protege os direitos da mulher e o acesso à saúde pública. Assim como para aumentar o poder de barganha nas eleições presidenciais de 2014, anunciando o início – ou a continuação – de uma campanha suja, que se vale de ameaças e difamação.

Se o embate em torno do aborto atravessa a história, talvez tenha sido a campanha de 2010 o momento de mais baixo nível desde a redemocratização do país. A campanha de 2010 abriu a porta para todas as leviandades e recuos que se seguiram. E, nisso, José Serra (PSDB), primeiro, e Dilma Rousseff, depois, tem e terão para sempre responsabilidade.

Devemos lembrar que, no final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e alguns bispos e padres católicos exortaram os fiéis a não votarem nela. Serra empenhou-se de corpo e alma em tirar proveito da baixaria, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, no qual teve papel central o deputado Gabriel Chalita (PMDB). Acabou por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”, na qual se comprometia, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema.

Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”, Dilma que agradecia “a Deus pela dupla graça”, repetindo que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. No programa de Serra mulheres grávidas desfilavam pela tela porque o candidato prometia cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem. (Escrevi sobre isso aqui.) Na campanha de 2012 à prefeitura de São Paulo, na tentativa de obter o apoio de setores religiosos conservadores e melhorar o desempenho nas pesquisas, Serra, como devemos lembrar, escolheu outro alvo para atacar seu principal adversário, Fernando Haddad (PT): o “kit gay” (cartilha anti-homofobia produzida para trabalhar nas escolas conceitos como tolerância e respeito às diferenças).

Ao longo do seu governo, Dilma tem capitulado diante da bancada religiosa em quase todas os embates ligados aos direitos de mulheres e de homossexuais. Como ao suspender a distribuição do kit anti-homofobia produzido na gestão de Fernando Haddad como ministro da Educação, abrindo espaço para os ataques que vieram depois. A lista de recuos é longa, sendo um dos mais recentes o cancelamento do vídeo de uma campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, nos quais uma prostituta dizia ser feliz. Dilma capitulou tanto, desde que assumiu o cargo, que houve até uma certa surpresa quando ela aprovou integralmente a lei que obriga os hospitais a prestar atendimento a vítimas de violência sexual. Afinal, tornara-se difícil ter certeza se Dilma ainda seria capaz de não capitular diante de uma queda de braço.

A presidente capitulou o suficiente para, poucos dias antes de o prazo para a lei ser sancionada ou vetada se esgotar, ter sido ameaçada por membros do movimento Pró-Vida, como está contado nessa matéria de O Globo, comentada depois por Drauzio Varella, em sua coluna na Folha de S.Paulo. Em audiência com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, como conta o repórter Evandro Éboli, um dos representantes do movimento católico Pró-Vida afirmou que, se não houvesse veto ao projeto, a campanha anti-Dilma voltaria em 2014. A ameaça está explícita no documento entregue ao ministro e protocolado na presidência da República: “As consequências (da sanção do projeto) chegarão à militância pró-vida, causando grande atrito e desgaste para Vossa Excelência, senhora presidente, que prometeu em sua campanha eleitoral nada fazer para instaurar o aborto em nosso país”. Em 2010, a Polícia Federal apreendeu mais de 19 milhões de panfletos associando a liberação do aborto a então candidata Dilma Rousseff. Em julho, circulou na internet a seguinte campanha: “Dilma, não sancione. Não quero sangue inocente em minhas mãos!”. A frase era acompanhada pela imagem de uma mulher com as mão sujas de sangue.

Nas frentes evangélicas conservadoras, Marco Feliciano (PSC), o pastor que ganhou fama – e provavelmente mais eleitores – ao ser alçado à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara sob intenso protesto, também ameaçou o PT por diversas vezes, acenando com retaliações na campanha de 2014. Depois da sanção da lei que protege as vítimas de violência sexual, exortou os fiéis a não votar em Dilma.

A má fé é evidente. Ao garantir o atendimento emergencial das vítimas de violência sexual, com acesso à pílula do dia seguinte, o número de abortos cai, na medida em que a gravidez não se concretiza. Mesmo tendo direito legal a um aborto em caso de estupro, as mulheres não teriam de passar por mais esse sofrimento. O que acontecia era que muitos hospitais não asseguravam assistência às vítimas, deixando-as desamparadas. É importante sublinhar que a violência sexual no Brasil é um problema de saúde pública: estima-se que a cada 12 segundos uma mulher é estuprada, com todas as consequências físicas e psicológicas resultantes desse crime. Entre 2005 e 2010, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de estupros registrados aumentou em 168%. Entre 2009 e 2012, conforme dados do Ministério da Saúde, os estupros notificados cresceram 157%. Vale a pena lembrar que a violência sexual é um crime marcado pela sub-notificação, já que parte das vítimas tem vergonha e medo de registrar a ocorrência, inclusive porque não são raros os casos em que elas são humilhadas nos postos policiais e mesmo nas delegacias de mulheres. A lei aprovada obriga os hospitais a prestar atendimento multidisciplinar: além de anticoncepção de emergência, o direito a diagnóstico e tratamento das lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; prevenção e combate de doenças sexualmente transmissíveis; realização de exame de HIV; acesso a informações sobre direitos legais e serviços disponíveis na rede pública.

Que tipo de gente pode ser contra uma lei que ampara vítimas de violência sexual, lançando uma falsa polêmica e manipulando o tema do aborto para fins eleitorais?

A mais recente ofensiva do lobby religioso conservador dá uma ideia do que espera o país no ano que vem. O debate político foi rebaixado na campanha de 2010, primeiro e principalmente por Serra, depois por Dilma – e seguiu rebaixado nos últimos anos, como constata qualquer um que acompanhe minimamente o noticiário. Se o aborto, a quinta causa de morte materna no Brasil, fosse de fato discutido com seriedade não só, mas também no curso do processo eleitoral, seria um grande avanço. O atual governo já foi inclusive cobrado por peritos da ONU por não enfrentar a questão e permitir a morte de brasileiras. O SUS gasta cerca de R$ 30 milhões anuais em curetagens, a maioria delas resultante de abortos mal feitos em clínicas clandestinas, sem nenhuma condição sanitária, ou mesmo no banheiro de casa, por brasileiras pobres e desesperadas (leia aqui). Um número, como se vê, que deveria merecer a atenção do Estado. Mas enfrentar a questão com a seriedade necessária nenhum dos candidatos costuma querer, o que faz com que o tema seja reduzido a instrumento de chantagem a cada eleição.

Quando se abre mão dos princípios e se rasga a biografia para angariar votos e aliados de ocasião, é preciso saber que a chantagem nunca mais vai parar. Pelo contrário, depois que o flanco é aberto e o sangue aflora, a sanha aumenta. Basta ver o que corre nos sites e blogs dos “militantes pró-vida” para se ter uma ideia do nível da campanha que nunca parou. Uma pequena amostra são as miniaturas de fetos – e até terços de fetos – distribuídas durante a visita do Papa. Que, pelo menos desta vez, Dilma Rousseff tenha resistido e aprovado integralmente uma lei que assegura o cumprimento da Constituição é uma boa notícia. Mas o fato de que uma mera questão de bom senso e de garantia dos direitos humanos mais básicos, como assegurar assistência a vítimas de violência sexual, tenha sido saudada como um avanço – e, em alguns setores, até como “coragem” – mostra o nível a que despencou o debate.

A campanha de 2014, que obviamente já começou, vai mostrar até onde a chantagem chegará – e como cada candidato lidará com ela. E também como cada eleitor vai olhar para religiosos que transformam Deus em moeda eleitoral.

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P.S. – Neste Dia dos Pais, os seis filhos de Amarildo de Souza acordaram sem saber onde estava o pai deles. O ajudante de pedreiro, conhecido como “Boi”, desapareceu em 14 de julho, depois de ser levado a uma unidade da UPP, na favela da Rocinha, no Rio. “Onde está Amarildo?” é talvez a pergunta mais importante no Brasil, hoje. Pela vida de Amarildo, o indivíduo, único e insubstituível; pelo que sua possível morte significa ao revelar a violência recorrente do país; pelos milhares que desaparecem e são mortos por serem pobres e frágeis; porque é a primeira vez que um número tão expressivo de brasileiros protesta pelo sumiço de um homem que até então era anônimo, sinalizando que a sociedade brasileira pode estar mudando para melhor. É importante repetir e persistir: onde está Amarildo?

(Publicado na Revista Época em 12/08/2013)

 

O Doping das Crianças

O que o aumento do consumo da “droga da obediência”, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, revela sobre a medicalização da educação?

Um estudo divulgado na semana passada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas – e aberto um grande debate no país. A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A droga é usada para combater uma patologia controversa chamada de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Isso significa que há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da obediência”.

O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um problema de saúde pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é a capital brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é, entre as unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o estado com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros, concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e 16 anos. É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.

A TDAH seria um transtorno neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8% . Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada; parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez; interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.

Um parêntese. A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela potencializaria a atenção e o rendimento. É difícil quem não conheça alguém que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional, utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados” para uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.

Entre as considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:

– Os dados demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de medicamentos.

O documento pode ser lido na íntegra aqui.

Além do questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados “diferentes”? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie de “método pedagógico” perverso? O que isso significa? E por que não há uma discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira?

A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população. É comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é “hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas” inquestionáveis.

Na realidade, os questionamentos são muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a doença sequer existe – seria uma invenção promovida pelo marketing da indústria farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de “o outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados – exceto um, ainda inédito – têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet. O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.

1) A medicina e a definição da “normalidade”

A história da medicina é uma história também de como ela deixa de ser o estudo das doenças para passar a definir o que é a normalidade. “A medicina se atribui todo o universo de relações do homem com a natureza e com outro homem, isto é, a vida. Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário, habitação, higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às doenças. Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as pessoas, porque neutro”, afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo muito interessante, intitulado “A Medicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente” (leia aqui). “Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem. (…) É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão, para que o pensamento racional e objetivo se imponha. Não se esqueça que o discurso médico, nesse momento – aliás, o discurso científico, em qualquer momento – está afinado com as demandas dos grupos hegemônicos.”

A medicalização, segundo a pediatra, é resultado do processo de conversão de questões sociais e humanas em biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou distúrbios. É neste contexto que teria surgido uma doença que impediria a criança de aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH. É assim que se medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas e médicas. “O discurso médico irá apregoar a existência de crianças incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção especial – uma intervenção médica”, afirma. E conclui: “A atuação medicalizante da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios e preconceitos que regem a vida cotidiana. E a extensão (e a intensidade) em que esse processo ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico, não importa se científico ou preconceituoso, pela população. A medicina constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças do não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda por serviços de saúde especializados, ao se afirmar como instituição competente e responsável por sua resolução. A partir deste momento, a medicina se apropriará cada vez mais do objeto aprendizagem. Sem mudanças significativas, apenas estendendo seu campo normativo”.

Em “Os Equívocos da Infância Medicalizada” (leia aqui), Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, com doutorado em educação, explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social”.

2) A escola e o ciclo da medicalização da infância

O caminho que leva ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da droga da obediência, entre os mais pobres e usuários da rede pública de ensino, inicia na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou adolescente. Como a família em geral não conseguiria dar uma resposta ao problema, a escola ou encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar. Entre as crianças mais ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é semelhante, com exceção de que estas não estão vulneráveis à tutela e à vigilância do Estado. Neste caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao neuropediatra – ou diretamente ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.

Esta é a análise da psicanalista Michele Kamers, professora do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora dos cursos de especialização em psicologia hospitalar e da saúde e psicopatologia da infância e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de São Paulo. No artigo intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância: Psiquiatrização do Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no campo do saber médico-psiquiátrico. “As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica sobre a criança, fazendo com que a medicalização venha se convertendo na principal forma de tratamento utilizada para responder às demandas sociais realizadas pelas instituições de assistência à infância”, diz. “A medicina, juntamente com a assistência psicológica, social e pedagógica, forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos. A partir do momento em que a criança e sua família são capturadas, não conseguem mais sair.”

É corriqueiro, segundo Margareth Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos por exigência da escola. “Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais elementares de seu aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais, mais especificamente as mães, que nos formulam esse pedido. O que torna esses pedidos curiosos é que, invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos: ‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de um acompanhamento’”.

A psicóloga Renata Guarido, que defendeu uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que Não Tem Remédio, Remediado Está: a Medicalização da Vida e Algumas Implicações do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança passou de objeto da pedagogia a objeto da medicina. Renata afirma que a medicina passou a determinar quem era “educável ou ineducável” (leia aqui): “Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido pela constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o contexto de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados para outras formas de consideração da subjetividade, que não a normalizante e de ‘treinamento’”.

Em sua análise, Renata reforça como são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que professores e coordenadores dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados comportamentos das crianças e adolescentes, encaminhando-os para avaliação psiquiátrica, neurológica e psicológica. Também já faz parte da rotina professores e outros agentes escolares perguntarem aos pais de um aluno em tratamento se ele foi corretamente medicado naquele dia. “Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano escolar. (…) Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos”.

3) A criança como objeto, não mais como sujeito

Entre as principais críticas feitas por aqueles que alertam para o processo de medicalização da infância – e especificamente sobre o TDAH e a droga da obediência – está a constatação de que as crianças deixam de ser escutadas na sua singularidade, como um protagonista que tem uma história e está inserido num contexto familiar e social, para se tornar um objeto com uma falha no corpo, sujeito à intervenção e à correção por medicamentos. Assim, as crianças e adolescentes têm sido calados naquilo que estão tentando dizer a pais e professores, em nome de um ideal de “normalidade” determinado pelo olhar médico e legitimado e reproduzido pela escola – e também pelos dispositivos de vigilância do Estado. O que se cala são os conflitos – que deveriam ser os propulsores do ato de educar.

Em O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via Lettera, 2011), o psicanalista Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a infância”. Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (…) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (…) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”. Escrevi sobre este livro na coluna “Os Robôs Não Nos Invejam Mais”, que pode ser lida aqui.

Em artigo já citado, Renata Guarido mostra que não é calada apenas a voz dessas crianças e adolescentes classificados como fora do padrão de uma pretensa normalidade. Mas até mesmo o seu nome é apagado. “Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata. “A medicalização em larga escala das crianças nos tempos atuais pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos, negando-os como inerentes à subjetividade e ao encontro humano. Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo de recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de que o lugar do ato educativo seja redefinido.”

Em “Hiperatividade: o ‘Não Decidido’ da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda no Tempo da Infância”, as psicanalistas Viviane Neves Legnani, professora da Universidade de Brasília (UnB), e Sandra Francesca Conte de Almeida, professora da Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH a partir da descrição de um caso concreto (leia aqui). Elas afirmam: “Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos professores se servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico de TDAH para sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para lidar ‘com os difíceis alunos portadores de hiperatividade’. O preço deste planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade. Como consequência da padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada, tem-se que o educador não escuta e não legitima a palavra dita pela criança, já que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”.

4) Ninguém se responsabiliza – ou por que a medicalização prospera

Não é apenas a escola que se desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado como patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma vida. Ao serem classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino. Na hipótese de realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga. Em “O Sujeito Refém do Orgânico” (leia aqui), Renata Guarido afirma: “Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a impotência é então mais um efeito deste discurso biológico. Só é visto como potente o especialista que saberia o que fazer diante do diagnóstico que profere. Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos. Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos história”.

Margareth Diniz analisa por que a aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é por ela reproduzido: “A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais. A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas questões, na busca de aplacar o mal-estar. A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela promessa de um saber total, sem furos”.

Não são apenas os professores, mas também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento para calar os conflitos na escola e dentro de casa. Afinal, é muito mais fácil lidar com uma “doença”, quase uma fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um corpo e para a qual existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma criança ou um adolescente está dizendo com seu comportamento. “Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado por ‘droga da obediência’”, afirma Margareth. “Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar seus computadores e jogos eletrônicos.”

5) O marketing da indústria farmacêutica

O transtorno de hiperatividade pode ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o diagnóstico. Críticos da medicalização afirmam que não é comprovada a existência de uma doença que só altere o comportamento e a aprendizagem. Neste sentido, a disseminação do diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso primeiro comprovar a doença e depois tratá-la. O fenômeno obedeceria mais à lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios e médicos. “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e Silvia Fendrik em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.

“A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século XX”, analisa Renata Guarido. “Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico, guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios. Há aí uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica atual de construção diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno. Visto que não há mais uma etiologia (estudo das causas da doença) e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.”

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Estes cinco pontos são apenas algumas pistas para compreender o crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade entre as crianças e adolescentes e a disseminação da droga da obediência. Dito de outro jeito, questionar o aumento dos “anormais” nas escolas brasileiras. Ou dos “desobedientes”. A falta de espanto de pais e professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está naturalizada na sociedade brasileira. Afinal, parte destes pais e professores também fazem, no seu próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar suas dores humanas. Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria diferente? Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.

Ninguém sabe quais serão os efeitos a longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação das crianças. O que acontecerá no futuro com essa geração legalmente drogada ainda é uma incógnita. Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar escutá-los e entendê-los em sua singularidade? E o que isso diz sobre nós, os adultos?

(Publicado na Revista Época em 25/02/2013)

 

A educação tem sotaque

Ao completar 10 anos, a Olimpíada de Língua Portuguesa mostra que a escola exerce seu papel quando acolhe a diversidade – não só de experiências, mas também da linguagem na qual a vida se expressa

“Ê, Ê, Ê… Morena/ Ô, Ô, Ô… Machada/ Ê, Ê, Ê… Graúno/ Ô, Ô, Ô… Pelada.
O vaqueiro solta a voz/ No oco do mundo,/ Com seu aboio triste,/ Em poucos segundos,/ Encanta gente e gado./ Eita aboio profundo!”

O trecho acima é palavra escrita de um menino chamado Henrique Douglas de Oliveira, de 12 anos. Filho de vaqueiro, ele transcendeu – virou a vida do pai em poesia. Ao fazê-lo, tornou-se um dos 20 vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

Eu só tinha passado pela terra do Henrique, José da Penha, no Rio Grande do Norte, quando acompanhei Gretchen, a rainha do rebolado, em sua peregrinação por circos mambembes do interior nordestino, para fazer um documentário. Gretchen aparece numa cena do filme, falando com a dona do circo, pelo telefone, com o Brasil diante dela feito mapa, óculos se fazendo de equilibrista no nariz: “Zé de José?”. Era José da Penha, menos de 6 mil habitantes, aonde Gretchen vai atrás do povo, ela que vai a Brasis aonde bem poucos vão. Mas, quando estive lá, eu não sabia que José da Penha era também uma terra rica de Henriques. Por não saber, eu era mais pobre e também não sabia disso.

Foi o que eu descobri, quando, semanas atrás, aterrissaram dois calhamaços lá em casa, contendo 152 textos, divididos em quatro categorias: poesia, crônica, memória literária e artigos de opinião. Eram os finalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa. Em 2012, esse programa de educação envolveu cerca de 100 mil professores e cerca de 3 milhões de alunos, de 40 mil escolas, em mais de 5 mil municípios brasileiros. Eu tinha aceitado o convite para participar como jurada da comissão julgadora nacional, mas não tinha avaliado bem a trabalheira em curto espaço de tempo. Pensei: “Ai!”. Mas doeu só até começar a ler.

Percebi duas coisas: 1) que falta faz esse Brasil com sotaque não só no falar, mas também na escrita; 2) que falta faz esse contar que não está nos jornais para nos contar de nós. Só então alcancei o privilégio de receber notícias dos tantos Brasis dos quais poucas notícias nos chegam, em várias línguas portuguesas – e não numa só. Os melhores textos eram justamente aqueles como o do Henrique, que não tentaram encaixotar a vida na linguagem dominante (mais ou menos essa que eu uso aqui, disseminada pelo Brasil especialmente pelos telejornais). Os melhores textos eram aqueles que carregaram para a escrita a variação linguística do seu Brasil, com palavras e ritmos nascidos de uma experiência diversa de ser brasileiro.

A Olimpíada de Língua Portuguesa, para quem não conhece, é um concurso de textos entre escolas públicas de todo o país. Mas é muito mais do que isso, porque a ideia é iniciar uma transformação, pela palavra escrita, tanto no modo de ver o mundo, como a si mesmo – um modo de ver por escrito que ultrapasse os limites da escola e contamine a família e a comunidade, transformando-as também. Porque uma palavra só é com relação a um outro – e uma escola só é com relação à sua comunidade. Fora disso ela implode, perde a si mesma, arrastando família, comunidade, professores e alunos nessa perdição, que é o que temos testemunhado nas últimas décadas no país.

Fazendo uma ponte com outros saberes e olhares do Brasil, a Olimpíada retoma a ideia do que um guarani-caiová (“Kaiowá” com “k” e “w” quando eles mesmos escrevem) chamaria de “palavra que age”, como já contei em outra coluna, ou até “palavra-alma”, aquela que circula pelo corpo. E como essa palavra age. Dentro e fora. Os estudantes descobrem que a palavra escrita, quando é escrita não apenas para cumprir tarefa ou para agradar ao professor, não como algo chato ou esvaziado de sentido, mas sim para expressar a experiência, registrar a memória e transcender a vida, mobiliza forças. Ao mobilizar forças, coisas acontecem.

Algumas delas bastante reveladoras, como conta Sônia Madi, coordenadora da Olimpíada. Numa cidade do Mato Grosso, no curso do programa, professora e alunos montaram na escola um painel sobre as graves questões ambientais. Foi destruído. Em outra cidade, uma aluna discutiu em seu texto de opinião a legitimidade ou não da candidatura a prefeito de um homem que havia cometido um assassinato, mas ainda não tinha sido julgado. Ela e a mãe sofreram ameaças. A ponto de a mãe pedir para a filha desistir de continuar na Olimpíada. A garota permaneceu.

Nestes casos, a escola documentou aquilo que acontecia na vida, mas nem sempre era registrado pela imprensa – e provocou reações de quem, escorado no poder, não estava acostumado a ser questionado. Provocou também conhecimento, debate e ação na comunidade. Como a professora Elisângela de Araújo e um grupo de alunos de Cruzeiro do Sul, no Acre. No curso das atividades propostas pela Olimpíada, eles criaram um folheto para os moradores com o objetivo de barrar o que poderia ser chamado de morceguicídio. Como os morcegos eram populosos na região e não são animais simpáticos aos olhos humanos, apesar da recente febre vampirística, eram vítimas de chacinas cotidianas. Ao compartilhar conhecimento com a comunidade, mostrando que os morcegos tinham uma função importante no meio ambiente, inclusive como agente de reflorestamento, esse grupo de professora e alunos cumpriu o papel da escola – fez uma intervenção.

É como palavra que age que os trabalhos são propostos à rede pública do país. Coordenada pelo Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), com financiamento da Fundação Itaú Social e, desde 2008, também do Ministério da Educação, a Olimpíada completou uma década. Na primeira edição, em 2002, o estudante Ronilson da Silva Procópio desfilou em carro de bombeiro pelas ruas de Benjamin Constant, no Amazonas, por tê-la vencido. Os criadores do programa tiveram certeza de que o projeto tinha dado certo: já não era apenas jogador de futebol que desfilava em carro aberto pelas ruas do Brasil.

Cada edição da Olimpíada dura dois anos – nos pares é realizado o concurso de textos, nos ímpares a formação de professores. Todas as secretarias municipais de educação são convidadas a participar e, as que aderirem, elegem uma pessoa que vai coordenar a campanha no município – integrando tanto escolas municipais quanto estaduais, superando já de início a costumeira e boba rivalidade entre as duas redes. As escolas/professores que aderirem recebem um manual com oficinas de escrita, sempre com a ideia de ampliação de repertório e da construção de uma experiência que vá muito além do concurso e da escola. O tema é o mesmo para os quatro gêneros: “o lugar onde vivo”.

Os alunos que trabalham com poesia, da quinta e sexta séries do ensino fundamental, são estimulados a conhecer os poetas da sua comunidade. Em memória literária, no sétimo e oitavo ano, buscam a história das pessoas mais velhas, rompendo a barreira das gerações e valorizando o conhecimento do outro. Em crônica, gênero do nono ano do ensino fundamental ou do 1o do ensino médio, o desafio é encontrar as marcas da cidade, as frestas nas quais a vida se reedita no cotidiano. Como faz uma das estudantes, ao descobrir que, na sua cidade, onde não tem nenhuma rua plana, os verbos mais conjugados são “descer” e “subir”. Nos textos de opinião, escritos pelos alunos da 2a e 3a séries do ensino médio, devem abordar os vários lados de uma questão que mobiliza – ou deveria mobilizar – a comunidade. E, a partir daí, posicionar-se.

Cada escola elege seus melhores textos, nos diferentes gêneros, e disputa a etapa municipal. E assim por diante, até chegar a nacional. Os selecionados de cada estado participam das oficinas regionais, para as quais viajam com seus professores, o que já é um prêmio. Quem participou da oficina de crônica, entre outras atividades, ganhou uma câmera e entrevistou um fotógrafo sobre a apreensão do momento; quem trabalhou com memória literária ouviu do maestro João Carlos Martins: “No momento em que você usa a memória para aprimorar aquelas qualidades que você recebeu, você realmente está construindo o seu futuro”.

É neste momento que surgem depoimentos como o do menino que explica seu processo criativo: “A pessoa escreve na ponta do lápis, a pessoa vai escrevendo de letra em letra, de pouquinho em pouquinho, e quando vê já tem uma estrofe. Eu gosto de trabalhar com rima porque a rima é divertido, a rima dá um diferente sentido na estrofe”. Ou a menina indígena que conta: “Lá na reserva, o povo diz que é indígena. Mas aqui na cidade não fala que é, por medo de ser… como é que se diz? Rejeitado. Eu falo, pra quem quiser ouvir”.

Ao ler os textos, descobrimos Brasis que a maioria de nós desconhece. Roberta Oliveira Morim, aluna da professora Rosangela Aparecida Morim, da Escola Estadual Anita Ramos, nos conta que, em Douradoquara, no estado de Minas Gerais, “não tem shopping, não tem churrascaria, não tem pizzaria, não tem funerária, não tem feira, não tem zoológico, não tem Pronto-Socorro, não tem espaço cultural, não tem parque, não tem quase nada”. É importante observar com que inteligência ela faz a sua crítica. E com que inteligência ela reconhece uma riqueza que só há lá, na sua aldeia: “Mas aqui tem uma coisa que cidade nenhuma tem. Sabe o que tem aqui? O jumento do tio Joãozinho”. Ficamos sabendo então que, em Douradoquara, a população não acorda nem com despertador, nem com apito de fábrica, nem com galo: acorda com jumento. Quem anuncia o dia por lá, pontualmente, às 6h da manhã, é o zurro do Paioso, um “jumento pega” de pelos acinzentados e metro e trinta de altura.

“Relógio Jumento” foi uma das cinco vencedoras nacionais, na categoria crônica. Desde que li, não tem dia que eu acorde em São Paulo – neste último domingo acordei com o foguetório dos corintianos às 5h30 da manhã – sem que eu lembre do Paioso. Que, graças à Roberta, agora também faz parte do Brasil que me habita.

Em memória literária, um dos cinco textos vencedores foi o extraordinário “O tempo, o chiado e as flechas”. Escrito por Jhonatan Oliveira Kempim, de 13 anos, e orientado pelo professor Alan Francisco Gonçalves de Souza, da Escola Municipal Teobaldo Ferreira, de Espigão d’Oeste, em Rondônia, ele documenta um conflito real, mas o transcende pela literatura. Assumindo a primeira pessoa da narradora, ele conta o encontro entre indígenas e posseiros na derrubada da floresta amazônica nos anos 70. Mas o faz usando o chiado da panela de pressão como metáfora da invasão de um mundo pelo outro.

Ao escutar o chiado da panela, um barulho que não pertencia ao seu universo, um pequeno indígena apavorado disparou uma flecha que alcançou a garganta do filho daquele que derrubava a mata e com ela o território do outro, acreditando nas promessas de progresso do Brasil Grande da ditadura militar. Duas crianças inocentes numa guerra que não lhes pertencia.

Ao transformar memória em palavra, aquela que narra se descobre em terra arrasada, cercada por grades e muros eletrificados. Identificada não mais com o “progresso” que foi buscar, mas com as últimas árvores sobreviventes e com rios que têm sede. Descobre que ela também resta em um mundo no qual até o chiado da panela se calou, porque tanto o indígena quanto o invasor foram sequestrados de si.

Nesta edição de 2012, há muitas pistas para reflexão. Trago algumas delas para cá. No quesito “as notícias que o Brasil nos dá”, destaco que boa parte dos textos de opinião escritos pelos estudantes revela a preocupação das pequenas e médias cidades com o impacto, no meio ambiente e na vida das pessoas, das grandes obras de infraestrutura promovidas pelo Estado e também pela intervenção de grandes empresas em áreas como a mineração. Me chamou a atenção o fato de que essa preocupação não alcança expressão correspondente na imprensa que tem como missão documentar a história cotidiana do país, na qual me incluo.

Um outro ponto importante é perceber a procedência dos trabalhos vencedores na etapa nacional. Entre os 20 vencedores, nas quatro categorias, quatro são de Minas Gerais, três do Paraná, dois do Rio Grande do Norte e dois do Ceará. E cada um dos seguintes estados tiveram um vencedor: Acre, Amapá, Rondônia, Pará, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nesta relação chama a atenção pelo menos duas ausências: São Paulo e Rio de Janeiro, sendo que São Paulo participou com o maior número de textos na etapa inicial.

Outro dado revelador é que, entre os 20 vencedores, apenas quatro são estudantes de escolas nas capitais: Natal, Recife, Macapá e Rio Branco. Entre os 152 finalistas, a proporção é semelhante: apenas 24 estudam em capitais – o equivalente a 16%. Olhando apenas para finalistas fora das capitais, 64% vivem em cidades com até 50 mil habitantes.

Vale a pena pensar no que isso significa. E várias hipóteses podem ser levantadas. Sônia Madi, a coordenadora da Olimpíada, acredita que uma das questões decisivas para o resultado é o envolvimento da comunidade em todo o processo, das oficinas aos textos. “Em cidades pequenas, a comunidade adota a ideia e se envolve com as atividades. A Olimpíada é um acontecimento”, diz. “Já nas maiores, especialmente nas capitais, tudo é mais difícil. Em São Paulo, por exemplo, os professores já vivem a dificuldade de ir de uma escola à outra, de dobrar período, tudo é mais complicado.”

Me arrisco a sugerir uma hipótese, entre as tantas que podem ser examinadas. Quem conhece as periferias do Rio e de São Paulo sabe que tanto as experiências quanto as variações linguísticas pelas quais as experiências são expressadas são riquíssimas. Tão ricas quanto diversas entre si – e diversas das realidades dos muitos interiores do Brasil. Só na periferia de São Paulo, que conheço um pouco, a quantidade de palavras que precisaram ser criadas para dar conta da realidade é enorme. Mas talvez a escola não esteja conseguindo acolher essas variações linguísticas, já que elas não apareceram nos textos – pelo menos naqueles que eu li.

Imagino que seja muito difícil para um estudante se expressar com palavras que não sejam as suas – traduzindo uma experiência de periferia com uma linguagem falada nos Jardins. Uma espécie de “preconceito linguístico” que pode ter sido reproduzido em parte das escolas. Isso acontece quando a escola não consegue construir a ponte com a comunidade na qual está – e na qual se realiza como escola.

É apenas uma das hipóteses a ser investigada e posso estar equivocada. O fato é que a riqueza encontrada em manifestações artísticas como o hip-hop ou em eventos literários como a FLUPP (Festival Literário das UPPs, realizado nas comunidades do Rio neste ano) e a Cooperifa (o maior sarau literário do país, reeditado a cada quarta-feira na periferia da Zona Sul de São Paulo) não apareceram na Olimpíada.

Neste sentido, sempre lembro do poeta Sérgio Vaz, da Cooperifa, numa entrevista que fiz com ele anos atrás. Um intelectual reclamou ao poeta: “Na Cooperifa vocês ensinam a escrever errado! Vão acabar deixando recado na porta da geladeira com ‘nóis vai’”. Sérgio Vaz retrucou, com a verve habitual: “Primeiro, que não tem geladeira pra botar recado. Segundo, que quando nóis vai, nóis vai mesmo”.

O que a Olimpíada nos mostra é que, quando a escola pública cumpre o seu papel, o Brasil dialoga. E dialoga pela diversidade – tanto de experiências quanto de variações da língua portuguesa. Quando a escola pública perdeu qualidade e prestígio, a classe média desertou. Mas o que poucos pais percebem é que uma escola não se define apenas pela competência em transmitir conteúdos programáticos, mas também e principalmente pela capacidade de ser um espaço de convivência dos diferentes.

No momento em que a escola privada vira um gueto de classe, cada vez mais fechada em si mesma, ela perde uma das principais razões de ser de uma escola, na medida em que só é possível o convívio entre iguais. É por isso que, na minha opinião muito pessoal, mesmo aquelas que são consideradas as escolas privadas de excelência do país, com aprovações massivas nos vestibulares das melhores universidades, são escolas que falham tremendamente na sua missão de educar.

As consequências dessa deformação naquilo que é a essência da educação a gente percebe nas ruas. Assim, me parece, as lições da Olimpíada de Língua Portuguesa, que bota a dialogar a filha de um plantador de fumo da região sul com o filho de um vaqueiro do Nordeste, dizem algo crucial não só para a escola pública, mas também para a privada. Se quisermos ter educação de qualidade neste país, é preciso derrubar os muros – tanto os reais quanto os simbólicos – e dialogar.

Dialogar a partir da experiência de cada um, com a experiência de todos os outros. Quando a educação se precariza, não é apenas de falta de mão de obra qualificada que o Brasil padece – mas de brasileiros capazes de reconhecer a experiência do diferente e dialogar com ela, em todos os espaços da vida. Porque é neste diálogo que um país cresce – ou se torna.

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P.S. – Recomendo – com muita veemência – que, sobre a língua portuguesa, assistam à conferência do linguista Carlos Alberto Faraco sobre a “senhora dona norma culta” e o “pretoguês” (clique aqui).

(Publicado na Revista Época em 17/12/2012)

É possível obrigar um pai a ser pai?

A “filha abandonada” encarna a época dos adultos infantilizados – e dos cidadãos-filhos diante do Estado-pai

Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça tomou uma decisão inédita no Brasil: determinou a um pai o pagamento de R$ 200 mil por “abandono afetivo”. Antonio Carlos Jamas dos Santos, empresário do ramo de combustíveis de Sorocaba, no interior de São Paulo, terá de pagar à sua filha, Luciane Nunes de Oliveira Souza, professora da rede municipal da mesma cidade, por sua ausência como pai. Na sentença, manchete da maioria dos jornais brasileiros de quinta-feira (3/5), a frase lapidar da ministra-relatora do caso, Nancy Andrigui: “Amar é faculdade, cuidar é dever”. Nos dias posteriores, Luciane deu entrevistas, em que chorou muito pelo abandono, assim como comemorou a vitória dos filhos abandonados do Brasil, representada pelo seu triunfo no tribunal. Minha pergunta: é possível – e desejável – que um pai seja condenado por falta de afeto?

Apesar da frase de efeito da ministra, é disso que se trata. Este pai, agora condenado, pagou uma pensão para a filha até os 18 anos. Portanto, deu as condições materiais para o seu sustento, o que é garantido pela legislação brasileira há muito e não está em discussão. Se o valor era abaixo das necessidades concretas da filha e abaixo das possibilidades concretas do pai, esta é uma falha de quem arbitrou a pensão – uma falha da Justiça, portanto.

Estou rodeada de pessoas que acreditam que seus pais não lhes deram o afeto que mereciam. Acho mesmo que boa parte das pessoas acha que seus pais são deficitários no quesito afeto e no quesito presença. Da mesma maneira que, se fôssemos perguntar aos pais – e também às mães –, boa parte deles compartilha da convicção de que são abandonados pelos filhos. Mas esta, decididamente, não é a hora dos pais. Os filhos reinam absolutos nesse momento histórico, com o apoio irrestrito do Estado.

Se os pais derem uma palmada em uma criança, logo estarão cometendo uma infração. O Congresso prepara-se para determinar que palmadas são inaceitáveis como método educativo. Se a conclusão for a de que os pais não amaram bem, a Justiça pode obrigar os pais a indenizar os filhos com o valor equivalente ao de um apartamento. Em breve, suponho, teremos mais novidades na vigilância dos pais pelo Estado. E não estou sendo irônica. É para esse mundo que temos caminhado. E é preciso perceber que temos dado sempre um passo além. Em minha opinião, além do bom senso.

Se um pai espanca um filho ou qualquer pessoa espanca uma criança, já existe lei para punir esse ato bárbaro. Mas, não, em vez de aprimorar as ações de prevenção e tornar mais eficiente a repressão, considera-se necessário criar mais uma lei e punir também a palmada. Se um pai não garante as condições materiais para assegurar educação, alimentação e casa para um filho, também já existe lei para obrigá-lo a cumprir o seu dever. Mas agora é preciso ir mais adiante, é necessário punir também a falta de afeto.

Coloco essas duas questões – a da “palmada” e a do “abandono afetivo” – no mesmo texto, porque, ainda que venham de instâncias diferentes do Estado, elas me parecem emblemáticas dos novos tempos que vivemos. E tenho dúvidas se refletimos o suficiente sobre o que estamos fazendo ao achar aceitável que o Estado entre na casa das pessoas e julgue o subjetivo. Tudo isso vem embalado “em nome do bem”. Mas me parece que “o bem”, assim como “as boas intenções”, tem trilhado caminhos estranhos.

Como um juiz pode determinar o que é “abandono afetivo” em uma relação complexa como a de pais e filhos? E por que o Estado deveria fazer isso? E por que deveríamos achar legítimo que o faça?

Não tenho dúvidas de que Luciane sofreu. E desconfio que seu pai também pode ter sofrido. E gostaria que o sofrimento de ambos jamais tivesse se tornado público, porque acho que isso deveria seguir sendo tema do privado – longe da mão do Estado e longe dos holofotes. Mas, como abri a porta do meu apartamento na semana passada e me deparei com o rosto de Luciane no jornal, é preciso pensar sobre isso.

As imagens de Luciane, com sua expressão sofrida e chorosa, mesmo quando sorridente, provocam-me aflição. Porque é uma mulher de 38 anos, mãe e professora, dizendo coisas como: “Desde que eu nasci, meu pai nunca me quis!”. Eu facilmente poderia ver essa frase na boca de uma adolescente falando com as amigas num bar ou no pátio da escola. Mas, em uma mulher adulta, essa queixa – e uma queixa pública, com acolhimento público – me causa estranheza. Como se estivesse fora de lugar, deslocada no tempo de uma vida.

Luciane se coloca numa posição infantilizada. E me parece que ela encarna a posição infantilizada na qual todos nós nos colocamos ao permitir que o Estado legisle e arbitre sobre como devemos amar ou como devemos educar um filho. Como se jamais nos tornássemos adultos, na medida em que precisamos de um Estado-pai para nos dizer o que fazer. Um Estado que cada vez mais se arma do direito de entrar dentro das nossas casas e determinar como devemos viver.

São tempos curiosos. E o mais curioso é que a tese do “abandono afetivo” seja acolhida na mesma época em que a família já não é mais aquela. Nem sempre o pai biológico é aquele que assume a função paterna. Ou a mãe biológica é aquela que desempenha a função materna. As combinações, hoje, são as mais variadas. E nem sempre o pai que paga as contas é o pai que busca na escola, coloca a criança no colo, conta histórias antes de dormir, repreende um deslize ou conversa sobre a iniciação sexual da filha ou do filho. Pode ser – e pode não ser.

A função paterna pode ser assumida pelo padrasto, por um tio, por um irmão mais velho, pelo avô ou mesmo por uma mulher, em um casamento gay. E o mesmo acontece com a função materna. Para ser pai ou mãe, não basta gerar uma criança, é preciso “adotá-la”. E isso vale também para os pais biológicos. E nem todos conseguem ou desejam fazê-lo. Quem desempenha a função paterna ou a função materna é aquele que gerou uma criança e “adotou-a”. Ou aquele que adotou uma criança e “adotou-a”. São dois atos – e não um. E o segundo é mais difícil, demorado e cheio de percalços.

Que o pai biológico de Luciane se responsabilize ou seja responsabilizado pelo sustento material da filha ninguém discute. Mas não é possível obrigá-lo a ocupar a função paterna no sentido mais amplo e subjetivo. Não há como obrigar ninguém a ser pai ou mãe no sentido pleno. Se o Superior Tribunal de Justiça acredita ter esse poder e, para exercê-lo, bastaria obrigar um pai a pagar um valor em dinheiro, está completamente equivocado.

Todos nós temos de lidar com o que consideramos ausência ou falta de afeto, em várias medidas ao longo da vida. Faz parte da complexidade das relações humanas. E faz parte do humano do nosso tempo acreditar que nunca é amado o suficiente – não só pelos pais, mas pelos filhos, pelos namorados, pelos maridos e pelas esposas, pelos amigos, pelo mundo inteiro.

Temos de lidar com as faltas inerentes a qualquer vida da melhor forma que conseguirmos – e lidar com isso significa crescer. E crescer significa parar de choramingar e seguir adiante. Acho grave que a Justiça considere legítimo cristalizar essa mulher adulta no lugar de vítima e de menina abandonada. E congelar esse homem no lugar de pai ausente e de algoz. A vida é mais complicada do que isso. E um juiz tem o dever de compreender isso. As implicações públicas da decisão do STJ, na minha opinião uma decisão desvairada, ecoarão na vida de todos nós.

Em entrevista à rádio CBN, a ministra Nancy Andrighi afirmou que a decisão do STJ “analisa os sentimentos das pessoas”. Se analisa, ministra, errou. Não cabe ao STJ ou qualquer tribunal analisar “sentimentos” e desferir punições pela ausência ou excesso de “sentimentos”. Isso colocaria os juízes em lugar bastante indevido.

A ministra também disse: “Não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe”. Alguém conhece uma vida ou mesmo uma relação entre pais e filhos que não tenha sofrimento, mágoa ou tristeza mútuas? Como é que uma juíza pode comprar a versão de filha de “segunda classe” de uma forma tão barata?

A ministra ainda disse mais: “Todo esse contexto resume-se apenas em uma palavra: a humanização da Justiça”. Pelo contrário, me parece que a decisão ignora justamente a complexidade e a ambivalência das relações humanas. E desumaniza, ao compensar afeto com dinheiro – o que também é mais um dado interessantíssimo da nossa época de relações monetarizadas.

Luciane, por sua vez, afirma que não sente “raiva ou mágoa” do pai. Só quer “justiça”. Se colocar o pai no banco dos réus e dizer ao país inteiro que ele é um pai ausente, relatando suas desventuras nos mínimos detalhes, não é uma vingança monumental, eu não sei o que é. Mas que Luciane busque isso, podemos até compreender. Que um tribunal legitime a vingança é que é surpreendente. O que poderíamos estar nos perguntando, neste momento, é: como a gente faz para alertar um juiz por “abandono da razão”?

Na Folha de S. Paulo do último sábado (5/5), há duas fotos de Luciane: uma segurando um retrato dela quando bebê, no colo da mãe; a outra vestida de caipira na escola. São fotos comoventes e também são fotos escolhidas para comover – o que me faz ficar ainda mais aflita por ela. As duas fotos, assim como seu discurso, parecem dizer: “Pai, veja como sou ‘amável’”. Ou: “Brasil, veja como sou ‘amável’. Por que este homem mau não quis me amar?”. Parece que é isso que Luciane foi buscar na Justiça: a comprovação, pelo Estado, de que ela é ‘amável’, o pai é que falha. E continua, tristemente, tentando chamar a atenção do pai.

O problema é que dificilmente Luciane conseguirá seguir adiante, paralisada como parece estar no mesmo lugar simbólico. E mais difícil será agora que o tribunal a acompanha na ilusão de que é possível obrigar um pai a ser pai. Ou obrigar um pai a amá-la. E não há dúvida de que ela sofre muito com tudo isso. Tornar-se adulto, porém, é descobrir que o baralho nunca estará completo, que nem mesmo existe um baralho completo. Temos de jogar com as cartas que temos. E tentar recuperar cartas que jamais existiram, como se elas estivessem apenas perdidas, não nos ajuda a viver melhor. Apenas nos congela em um lugar infantil.

É um caso fascinante pelo que revela sobre o nosso tempo. E há bem mais ainda para se ver nele. Por enquanto, ainda queria lembrar que, às vezes, o melhor que pode acontecer a um filho é que certos pais e mães fiquem bem longe.

(Publicado na Revista Época em 07/05/2012)

Eike Batista, um superpai?

O comportamento do pai de Thor nos leva a refletir sobre o que é a paternidade em nossa época

Na noite de sábado, 17/3, Thor Batista, 20 anos, atropelou Wanderson Pereira dos Santos, 30 anos, na rodovia Washington Luís, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Wanderson morreu na hora. De imediato, Eike Batista, o homem mais rico do Brasil, passou a defender o filho de todas as maneiras – e também no microblog twitter. Com tanta veemência que o humorista Tutty Vasques comentou em sua coluna no Estadão, de 21/3: “Não satisfeito com o lugar de destaque que ocupa na mídia como o homem mais rico do Brasil, o insaciável Eike Batista tem se esforçado um bocado para virar capa de revista como o Pai do Ano em 2012”. A observação é aguda, como costuma ser o humor de qualidade. E é algo que vale a pena pensar: ao defender o filho com os melhores advogados, com assessores de imprensa e com seu próprio discurso público, Eike Batista é mesmo um superpai? O que se espera hoje de um pai, afinal?

Ainda que a maioria tenha acompanhado o noticiário, é importante recordar os principais capítulos e seus protagonistas, antes de seguirmos adiante. Assim como é importante fazer algumas perguntas óbvias sobre a investigação.

Thor é o mais próximo de um príncipe herdeiro que o Brasil atual pode ter: filho do homem mais rico do Brasil e da eterna musa do Carnaval. Como disse Eike Batista (@eikebatista) no twitter: “A mídia e todos vão já já perceber que o Rio tem um Príncipe Harry! O Thor”. Wanderson era ajudante de caminhoneiro e filho de criação de Maria Vicentina Pereira. Thor foi batizado com o nome de um deus nórdico. Ninguém se preocupou em perguntar qual é a origem do nome de Wanderson na mitologia familiar, mas com certeza existe uma história, sempre existe. Thor dirigia um Mercedes SLR McLaren, o mesmo que costumava ser exibido como obra de arte na sala da mansão de sua família. Wanderson, uma bicicleta. Na BR-040, Thor e Wanderson encontraram-se não apenas como dois brasileiros, mas como dois Brasis que raramente se encontrariam de outro modo.

A vontade de condenar Thor, em um país tão desigual como o nosso, sempre pródigo em presentear os mais ricos com a impunidade, é imediata. É necessário, porém, resistir a ela. Ninguém pode ser condenado sem julgamento, sob hipótese alguma. Da mesma forma, pelos mesmos critérios e também pela sobriedade que a morte de uma pessoa exige, Eike Batista deveria ter resistido a condenar Wanderson.

Em suas afirmações na imprensa e no twitter, o pai de Thor apressou-se em culpar o morto pela própria morte. E afirmou que Wanderson poderia ter matado não só a si mesmo, como também seu filho e o amigo que o acompanhava – o que é altamente improvável. Segundo pesquisa citada pela jornalista Maria Paola de Salvo, no Blog do Sakamoto, apenas 0,3% dos motoristas envolvidos em atropelamento com vítima fatal morrem.

Enquanto as investigações não forem concluídas, nenhum de nós – e muito menos Eike – tem o direito de condenar alguém. Até agora, ninguém – nem mesmo Eike – pode afirmar se a morte de Wanderson foi fatalidade ou homicídio. Até agora, ninguém – nem mesmo Eike – pode declarar se a morte de Wanderson é responsabilidade exclusiva da vítima, é responsabilidade exclusiva de Thor ou é responsabilidade de ambos.

Infelizmente para todos, já pairam dúvidas sobre as investigações. É difícil entender, por exemplo, por que um carro envolvido em uma morte está na casa de Thor, o investigado – e não nas dependências da polícia. Depois da perícia feita no local, o carro foi liberado. As demais diligências seriam feitas na mansão do Jardim Botânico. “No dia seguinte, meu advogado me informou que havia sido feita a perícia do carro no local do acidente, e que o carro teria sido liberado pela PRF para que pudéssemos trazê-lo para casa, garantindo deixá-lo intacto”, afirmou Thor.

Segundo o próprio Thor relata na conta no twitter que criou para dar sua versão dos fatos, ele primeiro foi para casa, onde seria atendido pelo médico da família, e só depois, por iniciativa própria, foi a um posto da Polícia Rodoviária Federal próximo ao local do acidente para se submeter ao bafômetro e demais procedimentos exigidos em um caso de atropelamento com vítima fatal. O exame deu negativo para a presença de álcool, ao contrário do resultado de Wanderson, que revelou um índice elevado de álcool no sangue.
Se Thor não fugiu do local – o que não é um ato louvável, como seu pai quer convencer a opinião pública que é, mas uma obrigação –, por que a polícia não fez o que devia fazer, na hora em que devia fazer, por sua própria iniciativa? A conta de Thor no twitter é esta: @Thor631. Nela, é narrada sua versão da cronologia dos fatos. Pensado para defendê-lo e escrito com método, o relato revela mais do que gostaria.

É uma pena que as partes nebulosas darão, mais uma vez, algum grau de legitimidade às dúvidas sobre a lisura do inquérito policial, mesmo depois da sua conclusão – ou de seu arquivamento. Para o futuro em aberto de Thor, pelo futuro interrompido de Wanderson e para o Brasil, um país partido pela impunidade dos poderosos, seria fundamental que a polícia e o Estado demonstrassem total correção e transparência ao investigar uma morte que envolve o filho do homem mais rico da nação.

A condenação prévia de Thor nas redes sociais e nas conversas de bar deve-se não apenas à raiva que parte da população teria dos ricos e poderosos, ou à tendência de se colocar ao lado dos mais fracos, mas também à percepção legítima de que os atos criminosos dos ricos e poderosos permanecem impunes. A pressa em acusar e condenar Thor não demonstra apenas histeria ou irresponsabilidade das “massas”, ou mesmo “inveja”, como chegou a ser dito, mas a ansiedade de fazer uma justiça que temem, com todas as razões históricas e objetivas para isso, que não seja feita por quem tem o dever constitucional de fazê-la. Seria, nesse sentido, uma espécie de antecipação e compensação pela justiça que não acreditam que aconteça. E aqui me limito a analisar o fenômeno – e não a defendê-lo.

Quem é Thor, o filho de Eike Batista? Seu perfil é fascinante e quase obrigatório para compreender o Brasil atual. Basta procurar no Google para encontrar pelo menos uma matéria exemplar sobre sua vida, seus hábitos e seus pensamentos. Aqui, vou me deter apenas em quem é Thor como motorista. Em seu prontuário no Detran constam 51 pontos e 11 multas, parte delas causada por excesso de velocidade. Thor deveria ter perdido a carteira de habilitação por isso, mas não a perdeu. Se a tivesse perdido, como determina a lei, talvez não estivesse dirigindo na noite daquele sábado, e Wanderson possivelmente não estaria morto. Thor ama carros, velocidade e potência. Como declarou em uma entrevista anterior ao acidente, ele já teve um Aston Martin: “Trouxe de São Paulo e fiz 280 quilômetros por hora na Dutra”.

Segundo o colunista Ancelmo Gois, do jornal O Globo, em 27 de maio de 2011, a bordo de um Audi placa EBX 0001, Thor atropelou um homem de 86 anos, também em uma bicicleta, na Barra da Tijuca, no Rio. Thor prestou socorro, e sua família pagou todas as despesas médicas. A vítima fraturou o acetábulo (parte da bacia onde a cabeça do fêmur se encaixa) e teve de colocar duas placas e cinco parafusos, além de se submeter à fisioterapia, à hidroterapia e a sessões com psicólogo para superar o trauma. Em entrevista à coluna de Ancelmo Gois, um dos filhos da vítima afirmou não ter registrado queixa nem pedido indenização: “Estávamos preocupados em salvar nosso pai, que também não queria confusão”.

No dia seguinte à publicação, a vítima, José Griner, hoje com 87 anos, manifestou-se através de uma nota na qual afirma que nem ele nem Thor tiveram culpa: “Houve uma colisão que envolveu a lateral do carro dele e a roda dianteira da minha bicicleta”. Disse mais: “Ele agiu com lisura e deu suporte à minha recuperação”. Que tudo isso nos faz pensar na excelência do “gerenciamento de crise”, faz. Mas o que podemos afirmar é que, em menos de um ano, Thor exibe uma estatística incomum como motorista: atropelou dois ciclistas. Um sobreviveu, o outro não.

Qual é o papel de um pai em um momento crucial como este? Não há resposta fácil para isso, mas há muitas perguntas que podem ser feitas. E essas perguntas são pertinentes porque a defesa imediata e veemente que Eike Batista fez publicamente do filho ilustram bem o que hoje se acredita ser o papel de um pai.

Um pai – ou um superpai – seria aquele que defende o filho contra tudo e contra todos, tenha ele ou não razão – e mesmo que ele já tenha 20 anos e seja moral e legalmente responsável por seus atos. Um pai – ou um superpai – afirma a inocência do filho e usa todos os recursos para convencer a opinião pública dela, mesmo que ele não possa garanti-la, já que ninguém ainda pode. Um pai – ou um superpai – usará todos os meios de que dispõe para impedir que o filho seja punido, mesmo se for provado que ele merece a punição.

Pelo comportamento público de Eike Batista, me parece que ele acredita com sinceridade que esta é a função de um bom pai – ou mesmo de um superpai, já que, pelo que tem demonstrado em sua trajetória de vida, ele não aceitaria nada menos do que ser um supertudo. No twitter, ele assim definiu seu desempenho: “Vou defender como um Leão! Tenho certeza que todo Pai que ama seu Filho faria o mesmo!”. É interessante observar as palavras escolhidas por ele para colocar em maiúsculas.

O cotidiano mostra que Eike Batista está longe de estar sozinho em sua crença sobre a educação de um filho – e a postura de um pai. Tenho certeza de que muitos leitores aqui compartilham da visão de Eike sobre a paternidade e acham sua defesa e suas ações dignas dos maiores elogios – e fariam o mesmo pelos seus filhos se tivessem a infelicidade de se encontrar em situação semelhante. Esses mesmos leitores afirmariam que isso é prova de amor verdadeiro – que só um superpai pode dar.

Será?

Tenho dúvidas. E me arrisco a discordar não só como mãe, mas como cidadã que tem de conviver com os filhos desses pais em todas as esferas da sociedade. Já havia me surpreendido com a atitude da mãe do menino que, em fevereiro, atropelou e matou com um jet ski Grazielly Lames, de 3 anos, que construía castelos de areia na praia de Bertioga, no litoral paulista. Segundo o advogado da família, o adolescente de 13 anos correu para a casa em que estavam hospedados em busca de orientação da mãe. Em vez de voltar e prestar socorro, junto com o filho menor de idade, dando o exemplo do que uma pessoa decente deve fazer, a mãe preferiu fugir com o garoto. A tese da defesa é a de que o adolescente não dirigia o jet ski, “apenas” o ligara. Ou seja, o menino não teria nenhuma responsabilidade e, se tudo der certo do ponto de vista do que os pais desse menino entendem por dar certo, seu filho não será punido pelo fim da vida de uma criança.

Os casos guardam diferenças. Mas também semelhanças. Tanto para a mãe do adolescente do jet ski, quanto para o pai de Thor, a proteção de filhos que podem ser responsáveis pelo fim de uma vida parece ser uma preocupação acima de todas as outras. Ambos já decretaram previamente a inocência dos respectivos filhos antes que ela fosse provada. Pode ser que a inocência seja mesmo provada, em um ou em ambos os casos, mas nenhum deles poderia tê-la garantido antes de a investigação ser concluída.

Vivemos numa época em que se acredita que, ao dar limite para um filho, estamos comprometendo seu projeto de felicidade. E o que é entendido como felicidade? Ter tudo, ter gozo ilimitado. Qualquer imprevisto nesse percurso deve ser apagado, custe o que custar, para não virar trauma – e, assim, comprometer o futuro do filho, que deve passar pela vida sem ser marcado pela vida. Deve fazer marca na história, mas não ser marcado por ela. Neste cálculo, não são admitidos erros, covardias, irresponsabilidades, deslizes, excessos…. máculas.

Na biografia futura de Thor Batista, que, como seu pai já disse, espera-se que supere a sua em feitos, as máculas devem ser apagadas. Se existirem máculas, é necessário “ligar o dispositivo de administração de crise” – e eliminá-las da linha do tempo. Se alguém errou, foi sempre o outro. Para ter certeza disso não é preciso nem apurar os fatos: o filho de um superpai é automática e previamente inocente. E não acho que essa mentalidade pertence apenas aos mais ricos, apenas que eles têm recursos para garantir essa inocência – e os mais pobres, raramente.

É legítimo fazer algumas perguntas – que podem ser propostas tanto para Eike Batista como para nós mesmos. Se seu filho já atropelou uma pessoa, será que o melhor é emprestar a ele um dos carros mais velozes do mundo? Se seu filho tem 11 multas e 51 pontos na carteira de habilitação, será que você deveria permitir que ele dirigisse o seu carro, mesmo que o Detran não tenha cumprido seu dever e suspendido a licença? Se seu filho atropelou alguém e essa pessoa morreu, não seria o caso de silenciar até que os fatos fossem esclarecidos, ainda que fosse por respeito à enormidade do que é a morte de um ser humano? O que cada um de nós faria nessa situação? E por quê?

Acho que é uma situação muito dura para qualquer pai – ou mãe. É duro dizer a um filho que ele errou. Em qualquer escala – e muito mais em uma escala dessa envergadura. É duríssimo. Mas é necessário. Não é fácil ser pai ou mãe exatamente porque a educação se dá nas escolhas difíceis. Educar é, em grande parte, ensinar aos filhos que eles são responsáveis pelos seus atos, dos mais simples aos mais complexos – e devem responder por eles. Mesmo que tudo o que gostaríamos, como pais amorosos, fosse voltar no tempo e apagar o passado.

Penso que um pai ou uma mãe deve se colocar ao lado do filho não para absolvê-lo, mas para apoiá-lo enquanto ele assume as consequências dos seus atos. Você errou, vai responder por seus erros, e eu vou estar ao seu lado. Ou: não sabemos se você errou, então vamos aguardar a apuração dos fatos. Se for concluído que você não errou, ótimo, mas mesmo assim uma pessoa morreu e é preciso lidar com essa tragédia. Ou: se for concluído que você errou, você vai responder pelos seus erros como a lei determina e um cidadão decente deve fazer, e eu vou ajudá-lo a seguir em frente apesar e a partir disso, aprendendo com a tragédia e não a esquecendo.

A revolta da opinião pública levou a muitas ironias – entre elas, as com o nome de Thor, o deus nórdico do trovão. Eike Batista seria uma versão contemporânea de Odin, o pai de Thor na mitologia, já que em nossa época é o dinheiro que concede algo próximo a uma divindade terrena. Nesse sentido, é curioso lembrar que nas histórias em quadrinhos inspiradas na mitologia nórdica, Odin expulsou Thor de Asgard. Thor, então um jovem arrogante e impulsivo, em uma de suas aventuras adolescentes invadira o reino dos gigantes de gelo, rompendo o tratado selado por Odin. A honra do pai e sua autoridade entre os deuses dependiam de punir exemplarmente o filho, que com suas ações havia prejudicado a todos e comprometido a segurança de Asgard.

Thor foi enviado para a Terra – um exílio que significava punição e aprendizado. Ao expulsar Thor, Odin disse a ele: “Tu és o filho favorito de Odin! Além de valente e nobre, tua alma é imaculada! Mas ainda assim és incompleto! Não tens humildade! Para consegui-la deverás conhecer a fraqueza… sentir dor! E para isso necessitas deixar o Reino Dourado e despir-te de tua aparência divina! A Terra, lá aprenderás que ninguém pode ser verdadeiramente forte se, em realidade, não for humilde! Por um tempo não mais serás o Deus do Trovão! A tua memória também tirarei! Agora, vai! Uma nova vida te espera!”. Thor transformou-se então em um mortal chamado Donald Blake, médico talentoso mas manco. Até que aprendesse o dom da humildade e estivesse apto a cumprir seu destino.

Por que vale a pena lembrar esse episódio? Porque este é o Thor de Stan Lee, o grande criador da Marvel Comics. E Stan Lee é um homem nascido em 1922, que criou o seu deus do trovão no início da década de 60. Ao tecer o enredo, Lee revela a mentalidade da sua época. E nos mostra como a paternidade – e o que se compreendia como amor e como obrigação de um pai – já foi diferente. Nos lembra, portanto, que a construção da paternidade é cultural. E, portanto, mutante.

Acredito valer a pena pensar sobre o que é ser pai hoje. E que tipo de consequências essa ideia de paternidade, tão bem ilustrada na relação de Eike Batista com seu Thor da vida real, acarreta para a sociedade como um todo. Este episódio nos leva a várias vertentes de reflexão – e uma das mais interessantes é a nossa relação com os limites na educação de um filho.

Tenho muito cuidado em tocar em assuntos que envolvem tanta dor. Acho que testemunhar a morte de um ser humano – sendo ou não responsável por ela – é uma experiência devastadora, que deixa marcas profundas, para além da punição legal. Mesmo atropelar um homem de 80 anos e machucá-lo deve ser terrível. Não sei como é estar na pele de Thor. Tentei descobrir pelo twitter como ele se sentia em sua humanidade.

Primeiro, percebi que Thor estava mais preocupado em garantir sua inocência, provar a culpa do morto e nos convencer da correção de seus atos, assegurando também o apoio material à família da vítima. Depois, na sexta-feira, 23/3, descobri que já tinha mudado de assunto. Thor estava dando a fãs no twitter o que chamou de “dica de endocrinologia do dia”: “Eu recomendo o uso da cabergolina (Dostinex) para baixar a prolactina. Comece com 0,25 mg por semana, por 4 semanas, e dose no sangue”, é um dos tuites. Na sexta-feira, copiei toda a página, como material de pesquisa para esta coluna. Pouco antes de publicá-la, voltei a entrar na sua conta de twitter e constatei que o post reproduzido acima havia sido apagado. Os demais permanecem lá.

Depois de prescrever uma receita que só um médico poderia, sugerindo inclusive a dose, para seus milhares de seguidores, imagino que alguém o tenha alertado que a postagem era irresponsável e indevida. Thor então escreveu: “Meus comentários sobre endocrinologia são inúteis. Não sou médico, não posso recomendar nada. Apenas gosto de botar para fora conhecimento”.

Em todo o episódio – trágico de várias maneiras, e de algumas outras que ainda vamos testemunhar – me chamou a atenção – positivamente – o silêncio de Luma de Oliveira, a mãe de Thor. Justamente ela, a celebridade, a ex-modelo, a musa do Carnaval, aquela que tudo expôs de si mesma. Procurada por repórteres, Luma pouco falou. Disse ao jornal O Globo, na sexta-feira 23/3: “Este não é o momento de dar entrevista. É o momento de sentimentos, de solidariedade”. Posso estar sendo ingênua, e a sobriedade de Luma seja apenas mais um cálculo, mas penso que a mãe de Thor estava sendo sincera.

Thor afirmou no twitter: “A frase que mais admiro é ‘The truth sets you free’. Author: Jesus”. Imagino que a original tenha sido pronunciada em aramaico, mas a tradução da frase postada por Thor seria: “A verdade vos liberta”. É possível. Mas talvez pai e filho um dia descubram, ainda que em seus pesadelos noturnos, naqueles que não se pode controlar mesmo sendo um superpai ou um superfilho, que a verdade é uma criatura complexa e que pode levar a territórios imprevisíveis. Ela pode libertar, sim – mas dificilmente sem dor. E dificilmente sem um profundo e corajoso olhar para dentro.

(Publicado na Revista Época em 26/03/2012)

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