O inimigo sou eu

Foto: André Valentim/ÉPOCA

Foto: André Valentim/ÉPOCA

A escuridão era absoluta. Tive medo de ficar presa dentro de mim. Meu coração disparou. Achei que fosse morrer

 

Eliane Brum*

Para onde eu fui, só havia mapa para chegar ao ponto de partida. Ele me deixou numa estradinha de terra, no interior do município de Miguel Pereira, na região serrana do Rio de Janeiro. Na porteira, estava escrito: “Meditação Vipassana”. Como eu, outras 60 pessoas desembarcaram de diferentes geografias para o início de uma viagem capaz de mudar a vida de todos. Alguns eram americanos, havia latinos de diversos países, brasileiros, a maioria. Durante dez dias, eu não poderia falar com meus companheiros de jornada. Nem olhar para eles, muito menos tocá-los. Só chegaria ao final quem conseguisse esquecer que existiam outros viajantes. Quando a travessia terminou, cinco pessoas – três homens e duas mulheres – haviam ficado no meio do caminho.

Para ser aceito nessa excursão de dez dias, cada um de nós assinara um compromisso: não roubar, não matar nenhum ser vivo (incluindo baratas e pernilongos), não mentir, não fazer sexo (nem mesmo do tipo que se faz sozinho), não usar substâncias como álcool, drogas ou medicamentos.

Antes de iniciar a expedição, abandonamos tudo o que nos ligava ao mundo exterior. Em vez de levar a bagagem, tivemos de deixá-la. Meu legado consistiu no seguinte: o livro que comecei a ler na ponte aérea São Paulo–Rio de Janeiro (O Homem Comum, de Philip Roth), um bloco de anotações, duas canetas, uma agenda de telefones, celular, fotos da família, dinheiro, cheques e cartões de banco e de crédito, carteira de identidade.

E alguns objetos de superstição que eu, agnóstica desde os 11 anos, costumo carregar por precaução científica: meu louva-a-deus da sorte (de borracha), medalhinhas de São Francisco de Assis e Nossa Senhora de Fátima, uma pedra do Deserto do Saara e um pequeno Golem (personagem da mitologia judaica).

Durante dez dias viajaríamos sempre para longe e para dentro, mas sem sair do lugar. Na janela, a mesma paisagem de folhinha de calendário: montanhas, árvores, vento e silêncio. Parecia que o mundo começava e acabava ali. Confinados em um espaço de cerca de 200 metros, os dias teriam três cenários: o refeitório, o alojamento e a sala de meditação. Homens e mulheres não se cruzariam em caminho algum. Nas fronteiras invisíveis entre os sexos, placas de madeira avisavam: “limite”.

Para mim, permanecer em silêncio por dez dias era a parte mais confortável do roteiro. Sou tímida. Olho muito mais do que falo. Sou ranzinza a ponto de achar que há excesso de ruídos no mundo, muita gente falando o tempo todo, dizendo quase nada, não escutando sequer a si mesma. O que me assustava era a imobilidade física que a viagem exigia. Eu sabia que teria de passar 12 horas por dia sentada, coluna ereta, cabeça firme sobre o pescoço. Em dez dias seriam 120 horas na mesma posição – o equivalente a um curso básico de inglês.

Meu recorde de meditação eram 15 minutos nas aulas de ioga. Não sou atleta, mas faço exercícios com regularidade há anos. Tinha acabado havia poucos meses um tratamento na coluna lombar e estava muito satisfeita por espirrar sem sofrer. Aos 41 anos, sem dores, sem bagagem e sem palavras, estava pronta para começar a me desligar de um mundo e entrar em outro.

E então o sino tocou. Eram 4 horas da madrugada do dia 1. Eu dividia um quarto pequeno, ocupado por uma cama e um beliche, com duas mulheres. Antes de o sol nascer, encontrava outras 28 companheiras no banheiro coletivo em silencioso mau humor. Um dia uma delas encarou o espelho, puxou o cabelo para cima e, com o olhar vidrado, disse em voz alta para si mesma: “Você está ficando doida”. Depois, no refeitório, ela olhou para a banana que comia e teve um ataque de riso.

“Viajaríamos sempre para longe e para dentro, mas sem sair do lugar. Um dia ela encarou o espelho, puxou o cabelo para cima e, com o olhar vidrado, disse: ‘Você está ficando doida’”

Às 4h30, estávamos sentadas no chão, sobre um fino tapete, cada uma em seu lugar determinado. O professor entrou na sala e sentou-se em posição de lótus sobre um tablado. Era magro, comprido e careca. Gastei um tempo considerável pensando com qual personagem de animação ele se parecia, mas não cheguei a nenhuma conclusão. Ele espichou o braço e ligou um aparelho de CD. Ouvi, pela primeira vez, a voz do mestre de origem indiana S.N. Goenka falando num inglês carregado. Depois, suas instruções eram traduzidas para o português em outra gravação.

Na primeira instrução, Goenka mandou… respirar.

Inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira.

Um minuto. Se o parágrafo anterior for repetido 660 vezes, é possível ter uma idéia aproximada do primeiro dia do curso de meditação vipássana. A estréia ocuparia 134 páginas de revista, uma edição de ÉPOCA inteira, preenchida apenas com a observação do “ar que entra, o ar que sai; assim como entra, assim como sai”.

A tarefa era apenas observar a respiração, de olhos fechados, sem interferir. Desde o primeiro dia, somos ensinados a observar “a realidade como ela é”. Minha grande descoberta nessa estréia foi perceber que o ar não entra sempre pelas duas narinas e sai pelas duas, mas às vezes entra pela direita e sai pela esquerda. Ou vice-versa.

Isso foi instigante nos primeiros cinco minutos. Nos outros 640, tive de vencer o tédio e a sonolência, nem sempre com êxito. A agenda era rígida e imutável: acordar às 4 horas; das 4h30 às 6h30, meditar; das 6h30 às 8 horas, tomar café-da-manhã; das 8 às 11 horas, meditar, com um intervalo de dez minutos; das 11 às 12 horas, almoçar; das 12 às 13 horas, inscrever-se, se quiser, para fazer perguntas privadas ao professor; das 13 às 17 horas, meditar, com dois intervalos de dez minutos; das 17 às 18 horas, lanchar; das 18 às 19 horas, meditar; das 19 horas às 20h15, escutar uma palestra na mesma posição de meditação; das 20h15 às 21 horas, meditar seguindo novas instruções; das 21 horas às 21h30, fazer perguntas públicas ao professor. Das 21h30 às 22 horas, preparar-se para dormir. Às 22 horas, a luz se apagava.

E tudo recomeçava às 4 horas da madrugada do dia seguinte, com o sino. E com o sino tudo terminava, 18 horas depois – dez horas e 45 minutos preenchidos com meditação, uma hora e 15 minutos de palestra e seis horas para comer, tomar banho e descansar. O sino marcava os horários de início e fim das meditações, início e fim dos intervalos e também as refeições. Era o som da vida no retiro.

Às 4 horas, eu me contorcia dentro do saco de dormir. Dava, literalmente, o primeiro de uma série de gritos silenciosos. Eu me sentia a pintura mais famosa do Edvard Munch. À noite, eu, uma insone crônica, dormia no minuto em que me deitava. Nunca tinha pensado que observar a respiração pudesse ser mais extenuante que um fechamento da revista. Ou uma rave. Mas era. Muitos pensam que meditação é um descanso, um relaxamento. Descobri que era uma s maratona da mente. Eu estava imóvel, mas dentro de mim parecia que eu corria descalça a São Silvestre.

Na última meditação da noite, recebíamos as novas instruções. Na noite 1, soube que no dia 2 observaria “o pequeno toque do ar ao entrar pelas narinas”. Sem interferir. Pode parecer incrível, mas eu ansiava por esse momento: passar da observação do ar que entra e o ar que sai para o toquezinho no nariz era um instante de grande dinamismo.

Descobri que não tinha nenhum controle sobre minha mente. Parece óbvio, mas achar que controlamos nossa vida é uma das grandes ilusões contemporâneas. E eu sempre a tive em alta conta. Manter a mente no exato momento presente é um desafio: em geral, estamos no passado (nostálgicos ou lamentosos) ou no futuro (antecipando catástrofes ou adiando possibilidades). Aqui, agora, pouco estamos.

Desde o início, Goenka, o mestre da vipássana, pedia que cada aluno desse “uma chance justa à prática”. Sua proposta era semelhante ao método científico. Não acredite, duvide. Teste. Mas faça isso com rigor para que os resultados sejam confiáveis. Pareceu-me uma proposta honesta. Era uma apuração pouco ortodoxa, mas dediquei-me a ela com o mesmo rigor de uma reportagem sobre grilagem de terras na Amazônia ou crimes na internet – dois temas mais familiares a minha vida de repórter.

No segundo dia, isso significava obrigar minha mente a voltar para o toque do ar entrando pelo nariz a cada uma das centenas de vezes em que ela decidiu pegar uma rota alternativa sem me consultar. A concentração transformou meu mundo numa espécie de filme de Zhang Yimou, o cineasta chinês que filma como um pintor impressionista. Em suas imagens cada folha tem nuances, textura, é parte de um conjunto harmonioso. Eu percebia o vento em câmera lenta, a luz filtrada pelas nuvens no céu. Iniciei uma exploração sem palavras, pelos sentidos. Captava as mulheres a meu redor sem ouvi-las. Por algumas, tive uma aversão instintiva. Outras me despertaram ternura e uma afinidade profunda.

No terceiro dia, devíamos prestar atenção no triângulo cuja base é formada pelo lábio inferior, e cujo vértice pelo final do nariz. Nossa missão era perceber cada sensação nessa área. Coceira, calor, frio, amortecimento, pressão, dor. Sem julgamentos. E sem apego. Eu observava uma cócega na ponta do nariz, em seguida a abandonava por um amortecimento no lábio inferior, e assim por diante. Na hora do almoço, meu nariz sangrou. Não liguei muito porque estava com fome.

Nesses primeiros dias, eu era muito dedicada à comida, me apressava a ser a primeira da fila. Fazíamos duas refeições e um lanche. Toda alimentação era vegetariana. Eu, uma comilona convicta, tinha me despedido do mundo exterior com uma feijoada. À meia-noite, havia devorado uma caixa de bombons. Era minha estratégia para enfrentar tempos de Scarlett O’Hara, a heroína de …E o Vento Levou. No retiro, comecei comendo tudo o que me ofereciam, de mingau sem identificação a berinjela.

No terceiro dia, quando deitei ao sol depois de um delicioso arroz integral com o que pareceu ser carne de soja, percebi que uma formiga estava presa na manta. Tentei libertá-la, mas no afã heróico de salvá-la devo ter me excedido, porque ela desencarnou. Esse cadáver me doeu mais que qualquer crime do passado. Homicídio culposo, defini. Não houve dolo, intenção. Devo fazer um B.O.?

Debati-me por alguns minutos com essa questão. Afinal, eu havia assinado o compromisso de não matar nenhum ser vivo. No dia anterior, eu tinha capturado uma perigosa aranha marrom que passeava pelo colchão. Corri risco para devolvê-la ao mato sã, salva e letal. E agora essa fatalidade. Decidi então me abster de uma confissão pública. Compensaria meu crime quando saísse de lá. Daria imortalidade à formiga. Criei um argumento para um filme em que ela seria a personagem principal. Eu faria um roteiro para uma animação da Pixar.

Seria assim. Insetos nascidos e criados no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, estão cansados de enterrar cadáveres esmagados por tênis aerodinâmicos. Descobrem, então, que existe um lugar onde matar insetos é contra a lei, crime punido com sofrimentos atrozes nas 20 encarnações seguintes. Partem em busca da terra prometida e, depois de uma série de tribulações, alcançam o templo budista. Era tudo o que haviam prometido, mas o lugar estava infestado de pregadores que descobriam todo dia um demônio novo no corpo da formiga e de seus amigos. Incapaz de suportar mais um exorcismo sem rir, minha formiga se tornaria líder de um movimento pelo Estado laico. Interrompi nesse ponto porque o sino tocou chamando para a meditação. Na hora, me pareceu um réquiem genial para a formiga. Agora, com o salutar distanciamento dos dias, começo a aceitar a idéia de que a Pixar talvez não perceba o brilhantismo do argumento.

No intervalo seguinte lembrei que aos 9 anos eu havia escrito meu primeiro romance depois de esmagar um filhote de barata. Eu não era ré primária, portanto. Tinha antecedentes. Ainda havia sangue em minhas mãos quando comecei a imaginar a dor da dona barata voltando do trabalho com o jantar e deparando com o corpo do filho, estatelado no meio-fio do corredor lá de casa. No romance, eu expiava a culpa me retratando como uma assassina “fria e calculista” porque ainda não conhecia a palavra “psicopata”. Chamei a “obra” de “Autobiografia de uma barata” e, por tê-la cometido, eu merecia cadeira elétrica. Estava nesse ponto das minhas recordações quando tocou o sino para mais meditação.

Essa era minha situação no terceiro dia.

No quarto, a cada intervalo emergiam do meu inconsciente lembranças que eu não sabia que tinha. Gente que eu havia esquecido, episódios apagados. Alguns dramáticos, outros singelos, um repertório bem variado. Lembrei, por exemplo, do Chico, um menino deficiente que estudava comigo na 1a série. Ele gostava de mim porque eu era a única colega que falava com ele. Um dia ele foi brincar comigo e, num arroubo de amor, jogou o balanço na minha cabeça, causando comoção na escola.

Essas imagens emergiram de mim como um filme remasterizado. Eu me senti mal porque tinha vergonha quando o Chico dizia que eu era a namorada dele. Aos 7 anos, eu não queria ser namorada de um menino “diferente”. Eu me lembrei da irmã dele, que estudava na mesma sala e passava o tempo todo sozinha. Tive vergonha por não ser tão bacana quanto o Chico achava que eu era. Coisas assim surgiam o tempo todo. Pronto, abriram os portões do inferno, pensava.

A tarefa estimulante desse período era observar as sensações que ocorriam no ínfimo pedaço de pele entre o final do lábio superior e o início do nariz. Para “afiar a mente”, explicava Goenka. Era domingo. E era só o primeiro domingo que eu passaria lá. Mais uma semana inteira viria – e um feriadão. E eu seguiria não apenas no mesmo lugar, mas na mesma posição.

Ter controle sobre a mente é um desafio. Em geral, estamos no passado, nostálgicos ou lamentosos. Ou no futuro, antecipando catástrofes ou adiando possibilidades. No presente, nunca

Às 4h30 da madrugada, sentada com as pernas cruzadas na sala de meditação, tentando observar o que acontecia no espaço de 1 centímetro de comprimento acima da minha boca, abaixo do meu nariz, por determinação de um indiano que me dava ordens em inglês por meio de um aparelho de CD, eu tive um pensamento ruim sobre meu chefe. Mas passou.

Na tarde do quarto dia se encerrou o período preparatório. Havíamos aprendido uma técnica de meditação chamada anapana, para domar uma mente acostumada a ir aonde bem entende, ensiná-la a nos obedecer e torná-la capaz de perceber sensações muito sutis em espaços muito pequenos do corpo.

Até então, era permitido mover uma mão ou esticar uma perna, abrir os olhos por um momento, se precisasse muito, ir ao banheiro. Na vipássana, deveríamos tentar não mover pernas e braços durante as instruções e, até o fim do retiro, passar uma hora, três vezes ao dia, absolutamente imóveis. E, nas demais, tentar nos mexer o mínimo possível. Segundo Goenka, uma hora sem movimento é o mínimo necessário para atingir níveis mais profundos do corpo.

A meditação vipássana consiste em observar as sensações de cada milímetro do corpo: começamos pelo topo da cabeça e vamos descendo, no máximo um minuto em cada lugar, até chegarmos ao pé. Repetimos esse itinerário interno centenas de vezes, hora após hora, de cima para baixo, de baixo para cima.

Naquele momento lembrei-me de outra viagem insólita, a do francês Xavier de Maistre, em 1790. Ele era um desbravador de geografias perigosas. Mas naquela primavera, vestindo um pijama de algodão rosa e azul, ele empreendeu o que chamou de “Viagem ao redor do meu quarto”. Mais tarde, fez ainda uma segunda etapa: “Expedição noturna pelo meu quarto”. De Maistre gastou um bom tempo admirando a elegância dos pés de seu sofá, assim como eu fiquei extasiada com a quantidade de sensações na minha orelha esquerda.

De Maistre propunha um novo olhar para a paisagem supostamente entediante do cotidiano: o olhar do viajante, o sentido do extraordinário. Lembrei-me dele ao iniciar minha longa jornada corpo adentro. Em minha primeira hora, além de detectar as sensações do corpo, senti os grandes tormentos que me acompanham vida afora: o temor de não conseguir s fazer alguma coisa (naquele momento, sentir as sensações), claustrofobia (no meu caso, pânico de ficar presa na escuridão do meu corpo), medo de morrer (tive taquicardia e pensei que meu coração cessaria de bater). Isso tudo passou pela minha cabeça em menos de cinco minutos, nessa ordem.

Percebi sensações em quase todo o corpo, me apavorei com a escuridão nos primeiros minutos, mas não fiquei presa dentro de minhas entranhas, nem morri. Passamos a vida sem perceber no corpo nada além das sensações óbvias de prazer ou de dor. Na trilha cartesiana (“penso, logo existo”), fizemos uma cisão entre corpo e mente. Em nossa época, essa ruptura atingiu seu ápice: o corpo foi reduzido a pouco mais que um objeto de intervenção, malhado ou modificado para o olhar do outro; um estranho para nós mesmos.

De repente, descobri que um universo complexo me habitava, com manifestações tão desconhecidas que nem sequer conseguia nomear. Guardadas as proporções, é como passar a vida olhando o oceano da praia e um dia mergulhar. Senti certa euforia com esse novo mundo descoberto no lugar mais óbvio e improvável. Como o russo Yuri Gagarin, tive vontade de gritar: “Meu corpo é azul!”.

Vipássana significa “insight”, “visão interior”. Segundo seus mestres, é a meditação usada pelo próprio Buda, 2.500 anos atrás, em sua busca pela iluminação. Ao longo dos séculos, foi sendo corrompida e se diluiu na Índia. Manteve-se, porém, em Mianmar, antiga Birmânia, país que virou manchete da imprensa mundial no fim de setembro, quando monges budistas entraram em sangrento confronto com o governo militar pelas ruas do país. Goenka é hoje o mestre de vipássana mais conhecido e o principal divulgador da técnica pelo mundo. No Brasil, a vipássana apareceu em 1994, e o primeiro centro em 2003. Nos cursos, todo trabalho é voluntário, inclusive o dos professores, para “evitar exploração comercial”. Ao final, os alunos podem doar qualquer quantia ou trabalho. Ou não dar nada.

A idéia básica está presente em diferentes linhas do budismo: o que nos faz sofrer é o apego. Na vida, o apego se manifesta por uma reação de cobiça ou aversão. Queremos continuar sentindo o que nos dá prazer e não aceitamos sentir o que nos causa algum tipo de dor. Se aprendermos a arte do desapego – ou seja, não cobiçar o prazer nem sentir aversão pela dor –, a fonte do sofrimento estanca. Para isso, precisamos compreender que a vida é impermanência. Que nada dura, nem o prazer nem a dor. É necessário realmente entender que tudo é efêmero e, portanto, só a ignorância nos leva a qualquer tipo de apego – e ao sofrimento.

A vipássana é uma prática. Sem a prática, os mestres acreditam que a filosofia se torna vazia, um exercício intelectual sem importância. No curso, é ensinado que Siddhartha Gautama, o Buda histórico, teria percebido que cada reação de aversão ou cobiça causa uma espécie de nó em nosso corpo. E só removendo – fisicamente – esses nós, e não fazendo outros, poderíamos parar de sofrer. Como técnica, a vipássana pode ser usada por adeptos de qualquer religião ou de nenhuma.

Um exemplo prosaico. Eu adoro comprar sapatos. Buda poderia dizer que não é o sapato que compro – e Karl Marx concordaria… O que busco é repetir a sensação que sinto ao comprar um sapato. Não percebo que, por mais que gaste meu salário tentando transformar uma sensação prazerosa em permanente, ela vai passar e vou ter de gastar mais dinheiro para repeti-la. É cobiça, é apego. É ilusão.

Se Buda tivesse conhecido esse mundo de consumo, provavelmente o veria como uma fonte permanente de sofrimento causado pela cobiça. Nós nos tornamos escravos das sensações, com todas as implicações na vida que a escravidão representa. Uma pessoa pode passar a vida num emprego ruim, mas com um bom salário, só para ter a sensação efêmera causada pelo ato de consumo. Ou pelo poder que um cargo de chefia supostamente lhe dá. Ou pela sensação oposta, mas igualmente de apego, que é aversão à idéia de que não sabe o que vai acontecer se tentar algo novo na vida.

Essa idéia, a maioria de nós já ouviu por aí ou leu num livro de auto-ajuda. Mas compreender algo intelectualmente é fácil. Mudar é bem mais difícil. Quem faz anos de terapia às vezes se desespera porque já entendeu as razões que o levam a um tipo de comportamento destrutivo. Mas entender não é suficiente. Mudar é o processo mais difícil na vida, especialmente mudar o funcionamento da mente desde que nascemos. É aí que entra a técnica de meditação vipássana.

No quinto dia, eu estava encantada pelas sensações recém-descobertas no meu corpo. A ponto de esquecer a parte principal e mais difícil da prática: ser equânime. Observar, sem reagir, as sensações sutis e também as grosseiras. Na vipássana, essas são as duas únicas categorias para classificar as sensações. Eles não chamam sensações grosseiras de dor ou dizem que um arrepio de prazer é bom porque implicaria um julgamento da realidade, o início do apego.

O objetivo é aprender a olhar o prazer e a dor com a serenidade de quem sabe que tanto um quanto o outro vão mudar, passar. Isso não significa que vamos virar uma alface, apenas que não é necessário surtar de alegria ou desesperar-se quando algo dá errado. A verdadeira felicidade, segundo a vipássana, é a paz interior conquistada pela consciência de que não podemos controlar nem o mundo nem os outros, mas podemos controlar como vamos lidar com o mundo e com os outros. Sem aversão ou cobiça, é possível viver o presente sem ansiedade pelo sofrimento futuro ou nostalgia pelo passado.

Tudo isso eu ouvia repetidamente no curso – e entendia. Mas, até o quinto dia, só compreendi da forma habitual: intelectualmente. À noite, experimentei o que depois o mestre chamaria de “fluxo”. Havia sensações por todo o meu corpo. Uma corrente de energia subia e descia por ele. Ao deixar a sala de meditação, tive uma percepção do céu estrelado semelhante a uma viagem com alucinógenos. Entrei no meu saco de dormir muito contente comigo mesma e, pela primeira vez, ansiosa pelo sino das 4 horas da madrugada.

Descobri que um universo complexo me habitava, com manifestações novas e desconhecidas. Foi como passar a vida olhando o oceano da praia e, de repente, mergulhar

Eu achava que já sabia tudo, mas na verdade tinha cometido um erro primário: me apegara a uma sensação prazerosa e acreditava poder controlar a realidade para repeti-la. Cobiça.

O sino tocou e, pela primeira vez, levantei animada. Era o sexto dia. Na primeira hora sem me mover, comecei a ter uma dor forte nas costas, logo abaixo do ombro direito. Primeiro, pensei que havia dado um mau jeito ao me alongar, quando acordei. Ao final da manhã, a dor aumentava sempre que eu me sentava e desaparecia depois de alguns minutos deitada.

De novo, eu fazia o oposto do que me ensinaram: havia me apegado a uma sensação dolorosa e tentava controlar a realidade para que ela desaparecesse. Aversão.

Finalmente entendi: eu não havia dado um mau jeito, essa dor era causada por permanecer sentada. E, se essa era a razão, fiz as contas, eu teria mais quatro dias e meio de sofrimento, 54 horas de dores horríveis. E, se estava ruim naquele momento, pela lógica pioraria muito porque eu continuaria na mesma posição.

Disse um palavrão em perfeito silêncio. E chorei pela primeira vez. Percebi como eu havia sido prepotente ao imaginar que havia atingido uma espécie de iluminação e por me achar tão importante por causa disso. É difícil explicar, mas chorei por ter me percebido demasiado humana.

Pela primeira vez, me inscrevi para falar com o professor, após o almoço. Nesse momento, ele fica sentado no tablado e cada aluno, individualmente, senta-se no chão diante dele. Como discípulos, ficamos um nível abaixo do mestre. Eu disse: “Professor, costumo suportar bem a dor, mas estou sentindo uma dor muito forte nas costas e sei que ela não vai melhorar porque vou continuar sentada na mesma posição”. Ele olhou para mim, abriu um largo sorriso, espichou aqueles braços enormes e disse: “Aceita a dor”. E me despachou.

Eu juro. Saí dali achando que ele tinha dito a coisa mais inteligente que eu já tinha ouvido. O homem é muito carismático, pensei. Ou estou desenvolvendo uma síndrome de Estocolmo – o afeto que a vítima sente pelo sequestrador como um mecanismo para suportar a pressão de estar nas mãos de um desconhecido.

Na hora seguinte, continuei sentindo a dor nas costas, mas ela ficou pequena diante do tremor involuntário do braço direito. Ele parecia ter dolorosa vida própria. Intervalo, lanche e, sim, não me preocupei mais nem com a dor nas costas nem com o braço direito, porque a perna esquerda latejou durante uma hora inteira.

Eu aprendia que até as dores são impermanentes, desaparecem, mudam de lugar. Não há como prever o que vai acontecer na próxima meditação. E, quando eu pensava que era possível prever pelo menos que eu sentiria dores, tive uma meditação repleta de sensações deliciosas.

A vipássana ensina, da forma mais dura (e inesquecível), que existe uma realidade interna para a qual nunca olhamos porque fomos ensinados a acreditar que tudo acontece no mundo externo. Segundo, que não controlamos nem a realidade s externa nem a interna. Mas essa é uma lição bem difícil de aprender na prática. Meu último pensamento antes de dormir foi: acho que me acostumei com a posição e não vai mais doer.

Como de hábito, eu estava enganada. Na primeira hora da meditação do sétimo dia, tive mais dores horríveis nas costas e no braço direito. Enquanto tentava me concentrar em cada parte do corpo, imaginei várias formas de escapar da dor e me responsabilizei por ela – se eu tivesse pelo menos trazido um antiinflamatório, tudo estaria resolvido. Em seguida, uma série de gritos ecoava dentro de minha imóvel figura – essa gente é doida, essas pessoas não passam de torturadores, isto aqui é uma insanidade, não faz nenhum sentido, preciso fugir deste lugar a-go-ra, já.

No intervalo, compreendi. Eu só tinha duas opções: ou ia embora, ou teria de vencer essa guerra travada no território do corpo. Fazer as malas e cair num mundo que agora me parecia muito confortável era o que uma parte considerável de mim desejava. Mas havia outra que sempre foi mais forte. Não gosto de desistir e nunca deixei uma reportagem pela metade. A rigidez do curso de meditação se encaixava perfeitamente no meu jeito de funcionar. E eu queria muito saber como tudo isso acabava.

Sentia prazer ao imaginar a seqüência de cenas: a recuperação da bagagem, o motorista chegando para me buscar e, em duas horas, o chope à beira da praia, no Rio. A vida que eu conhecia. Eu quase podia sentir o chope descendo pela minha garganta. Mas essa opção estava excluída. Por mim.

Assim, o que me aguardava era um desafio. Eu teria de realmente compreender vipássana, compreender na prática, para parar de sofrer. Esse era o ensinamento completo. Eu teria de sentir a dor – ou emoção grosseira – e olhar para ela com “equanimidade”. Sem cobiça – e sem aversão. Sem apego. Com a consciência de que não posso controlar a realidade, mas posso controlar como vou lidar com a realidade.

Nessa guerra no território do corpo, o inimigo era eu. Parar de sofrer dependia apenas de mim. E eu tinha acabado de descobrir que, ao contrário do que eu acreditara até então, eu não era resistente à dor. Sempre fui orgulhosa demais para admitir que sentia dor, porque sempre confundi fragilidade com fracasso. Chorei de novo. Dessa vez, porque percebi que essa era a luta mais difícil.

Sempre tive uma enorme dificuldade de aceitar a realidade. Por um lado, isso é ótimo, porque faz andar, criar, transformar. Por outro, há momentos em que não é possível mudar a realidade, só nos resta aceitá-la. Mas, para isso, é preciso aceitar algo ainda mais difícil: nossas limitações. As minhas, no caso. Sempre me debati muito contra aquilo que não podia mudar. Minha onipotência chegava ao extremo de pensar que, se não consegui mudar algo, é porque não fiz o suficiente. Eu sabia muito sobre brigar para mudar alguma coisa, mas pouco sobre aceitar o que não podia mudar.

Dessa vez, eu não poderia mudar a realidade. E, se seguisse com minha onipotência, tentando encontrar um jeito mágico de permanecer 12 horas por dia na mesma posição sem sentir dor, eu só aumentaria meu sofrimento. Decidi então aprender a olhar a dor – ou o prazer (parece mais fácil, mas não é) – com a serenidade de quem sabe que é efêmero. Nesse dia, fui a última a comer. Tinha perdido a fome.

No oitavo dia, na minha vez de fazer perguntas ao professor, ele disse: “Aceita quem você é”. Eu fui chorar no meio do mato. Era difícil olhar para mim mesma sem nenhuma máscara. O que ele disse pode ser uma obviedade, mas soou como uma redenção, porque eu compreendia não apenas intelectualmente, mas na prática. Eu estava havia oito dias isolada dentro de mim, nos últimos três sentira dores terríveis, tinha perdido 3 quilos e encarava todos os meus demônios no olho. Era uma situação-limite.

Na tarde do oitavo dia, consegui praticar vipássana. Em minha viagem por cada centímetro do corpo ou apenas seguindo o fluxo de sensações, eu encontrava as regiões “duras”, dolorosas. Sentia, investigava por um minuto, como se fosse uma cientista examinando um território neutro, e seguia sem desespero.

Eu estava havia oito dias isolada dentro de mim, sentindo dores terríveis. Tinha perdido 3 quilos e encarava todos os meus demônios nos olhos. Era uma situação-limite

Aos poucos, eu sentia mais a dor nas costas e no braço direito nos intervalos da meditação. Quando permanecia dentro de mim, esquadrinhando o corpo e aprendendo a observar a realidade com equanimidade, me mantinha serena. A dor se tornava difusa, porque eu sentia uma infinidade de sensações ao mesmo tempo.

Passei a ter muitos sonhos e pesadelos. Não era a única, descobri depois. Havia quem gritasse dormindo, rompendo involuntariamente o “nobre silêncio”, como era chamada a regra de não falar durante dez dias.

Na noite do oitavo dia, acordei assustada, porque meu corpo inteiro meditava à revelia da minha consciência. Segundo o mestre, é o inconsciente que está o tempo todo desperto, registrando todas as sensações. É ele a parte mais consciente da nossa mente – e não o que chamamos de consciência, que opera apenas na superfície. Naquela noite, meu corpo inteiro era um fluxo de energia muito forte, com tantas sensações diferentes que eu poderia jurar que me movia.

Era tanto movimento interno que acordei – uma experiência ao mesmo tempo extraordinária e assustadora. Isso continuou madrugada adentro. E, depois, por muitas outras noites, mesmo ao voltar para casa. Eu estava submersa em mim mesma.

Mas, de novo, não tanto quanto eu imaginava. A garota que sentava a meu lado tinha falado em voz alta, quase gritando. Era a hora das perguntas públicas. Quem quisesse falar poderia se sentar diante do professor, um de cada vez. O professor brilhava nesses momentos, sempre com um excelente humor britânico. Quando uma das alunas descreveu longamente seu drama por causa da almofada que escorregava, numa oposição flagrante a sua imobilidade, esperando uma resposta filosófica, ele se limitou a dizer, impassível: “Talvez você pudesse trocar de almofada”.

Naquela noite, minha vizinha escutou a pergunta de um dos alunos, sobre “amor, paixão e apego”, e quis emendar a sua, lá de trás. Foi silenciada e, no dia seguinte, partiu. A meu lado, sentou-se uma mulher que lidava com a angústia da situação da forma mais básica: tentando falar com as colegas do quarto, se mexendo muito, fazendo o máximo barulho possível. Enfim, tentando quebrar todas as regras. Eu pensava: mas por que ela simplesmente não vai embora? Provavelmente porque, assim como para mim, para ela não era simples ir embora.
De um lado da sala ficavam os homens, do outro as mulheres. Eu sentava exatamente no limite do espaço das mulheres. Do meu lado esquerdo havia um homem, do direito uma mulher. Entre mim e meu colega havia uma cortina que ele abria e eu fechava, dia após dia. Minha nova vizinha acolheu os olhares do galã do retiro.

A cena era a seguinte: eu no meio, de olhos fechados, imóvel, tentando aprender a olhar para a dor com serenidade, e os dois falando com movimentos da boca, mandando beijos, ela puxando as saias até as coxas. Agora, escrevo e acho engraçado. Mas, na hora, eu queria muito poder falar e, digamos, tocar.

Sempre fui intolerante com as pessoas que, na minha opinião, pioram o mundo. A frase famosa de Sartre, “o inferno são os outros”, sempre foi uma espécie de mantra para mim. Além de me incomodar estar no meio de um fogo cruzado não tão silencioso, eu achava inaceitável alguém desrespeitar as regras do lugar onde era hóspede. De novo, eu tinha duas opções: falar com o professor ou vencer minha aversão. Chorei de novo ao apalpar o tamanho da minha intolerância.

Decidi que estava na hora de aprender a lidar melhor com as agruras da realidade externa. Se conseguisse, eu teria grande chance de não perder mais nenhum minuto de sono sempre que alguém fizesse ou dissesse algo desagradável – ou simplesmente existisse a minha revelia.

Consumi o nono dia inteiro nessa briga interna. Pela manhã, eu rangia os dentes sempre que os dois se mandavam recados. Tudo o que consegui foi uma dor no maxilar. À noite, eu havia me tornado quase uma monja. Parei de ouvi-los, mergulhei em mim.

De qualquer modo, mais alguém se incomodou, porque no décimo dia a cortina estava grudada na parede com fita adesiva. A essa altura, a situação que horas antes havia se tornado um tormento que contaminava todos os meus pensamentos me pareceu bem engraçada. E era: duas pessoas adultas, num retiro de meditação, tentando namorar sem poder falar nem se tocar. Isso era desespero.

Na manhã do décimo dia, eu tinha dores nas costas, no braço direito e quase não podia sentar. Mas isso não me perturbava mais. O mestre ensinou a parte final, chamada metta. Nela, emergimos do nosso interior para, nos minutos finais, darmos ao mundo e às pessoas nossas melhores vibrações de paz.

Não fui capaz de transmitir muita paz ao mundo. Minha mente foi tomada por recordações muito dolorosas, que eu havia evitado mesmo em anos de sessões de psicanálise. Decidi não fugir delas. Senti doença em meu corpo, pensei que teria uma gripe muito forte. Quando acabou, tudo em mim doía, eu era território arrasado. O mestre disse que havíamos feito s uma “cirurgia na mente”, para mudar um jeito muito arraigado de funcionar. Eu me sentia exatamente assim, despertando depois de uma cirurgia. Mas uma sem anestesia.

Eu não queria voltar a falar. Naquele momento, o silêncio era uma proteção. Mas acabou. Teríamos uma tarde de adaptação ao mundo exterior, e o curso acabaria com meditação na madrugada do 11o dia. Para minha surpresa, muitas mulheres queriam falar para poder reclamar do comportamento das outras, das que falavam, roncavam, espirravam, fungavam. Mal abrimos a boca, uma corrente de fofocas já percorria o retiro.

Ao longo do curso, percebi como não falar fazia bem não só para a vida interior, mas para a comunitária. Se cada uma de nós pudesse falar, certamente teria havido cisões, mágoas, alianças, discórdia. E por motivos que não eram tão importantes, motivos que se perderam ao longo dos dias. É o que acontece em nossa vida cotidiana. Estamos em geral confinados ao espaço do trabalho ou da casa, e a maior parte do que nos parece muito importante, definitivo, é só um momento que passa. Quando falamos, materializamos, damos início a uma corrente de reações em cadeia.

Assim que soou o sino anunciando a libertação de todas as línguas, me deu vontade de escapar daquelas mulheres falantes: naquele momento eram 27, contando comigo, a maioria falando muito e ao mesmo tempo. Eu fugiria disso em qualquer circunstância. Mas comecei a gostar de muitas delas, a gostar de ouvi-las.

Procurei me aproximar de todas para descobrir o que mudava na minha primeira percepção agora que escutava suas vozes. Nada. Tive afinidade pelas que já havia sentido e preferi continuar afastada das que evitava. Passei o resto do dia tomando água de dez em dez minutos, porque minha garganta secava, eu só conseguia falar bem devagar.

Percebo imediatamente quando estou vivendo algo especial. E descarto os acontecimentos desagradáveis no minuto seguinte. Minha vida ficou mais larga

No exato momento em que escrevo, faz duas semanas que voltei dessa viagem interior. Parece muito mais. No início, eu não conseguia escrever nenhuma linha. Assim que recuperei meu bloquinho, ainda no retiro, tentei anotar o que tinha acontecido, mas não consegui. A única palavra que escrevi foi esta: “palavra”.

Era difícil tornar qualquer coisa permanente depois de compreender – de forma tão radical – a impermanência da realidade. Eu, que me tornei jornalista na ânsia de capturar o real, me encontrei nesse impasse. Escrever era tornar permanente o momento, o acontecimento fugaz, era impedir que algo fosse embora. Parecia impossível voltar a fazer isso. Na ponte aérea da volta, peguei o jornal e nenhuma notícia parecia fazer sentido, ter importância.

Tinha dificuldade também com as memórias. No início do retiro, percebi que se tornava cada vez mais difícil lembrar o que havia pensado ou sentido no dia anterior. Depois, tornou-se complicado fixar o pensamento nas horas anteriores. Do mesmo modo, eu também não conseguia fazer planos para os dias posteriores. Eu estava sendo treinada para, pela primeira vez, não viver no passado nem no futuro, mas no presente.
Na minha primeira noite em casa, tive um pesadelo, daqueles em que sabemos que estamos dormindo. Arranhei minha perna com as unhas na tentativa de acordar. Então, no sonho, minha espinha se partiu, e uma espécie de duplo saiu das minhas entranhas. Acordei com o fluxo de sensações subindo e descendo pelo meu corpo.

Nos dias seguintes, as dores não foram embora. Procurei ajuda. Fiz um exame de ressonância magnética. Minha coluna não é muito bonita de ver. Eu tinha uma escoliose que não fora diagnosticada porque nunca havia incomodado. Eu poderia passar o restante da minha vida sem ter nenhum sintoma, porque o corpo vai encontrando seus caminhos de compensação – ou poderia ter problemas daqui a dez ou 20 anos.

Mais de uma centena de horas na mesma posição em dez dias desencadearam uma crise severa na coluna cervical. Comecei a sentir perda de força e motricidade no braço direito. Coisas banais como amarrar o cadarço do tênis, escrever à mão, teclar o celular tornaram-se complicadas. Minha letra piorou a ponto de eu mesma não entendê-la. Uma semana depois da minha volta, eu não conseguia sentar para comer ou escrever sem sentir dores muito fortes. Estava difícil levar o garfo à boca, digitar no teclado do computador. Este texto foi escrito lentamente, com dor.

O médico e a fisioterapeuta que me atenderam, ambos profissionais excepcionais, são taxativos ao desaconselhar um curso de dez dias com essa quantidade de horas na mesma posição. Na opinião deles, algo assim deveria ser feito progressivamente, ao longo de muito tempo, para preparar o corpo. Tudo o que é em excesso não teria harmonia. Eles têm razão. É como correr uma maratona sem nenhum treinamento.

Pode ser que eu mude de idéia mais tarde, mas hoje não me arrependo de ter chegado até o fim. O efeito que a vipássana teve em minha vida supera os problemas na coluna que ela desencadeou. Acredito, porém, que as pessoas precisam saber que podem ter problemas. Tem de ser um risco assumido, uma escolha. No caso de uma pessoa com a coluna absolutamente saudável, é claro, a chance de sequelas é menor.

Desde o início, me impressionou o rigor do curso de vipássana num mundo de tantos relativismos, em que sempre se pode dar um jeito, burlar uma regra ou outra. Nos dez dias, as regras eram mantidas, cobradas, fiscalizadas de perto. Bastava alguém tentar escorregar um pouco para que a responsável pelas mulheres já mandasse sentar direito. Era preciso ser sério ou então ir embora. Não era um espaço de negociações.

Surpreendeu-me que apenas cinco pessoas tenham desistido. Menos de 10%. Estou acostumada a situações-limite, tenho grande resistência à pressão, mas pensei seriamente em desistir. Era difícil ficar. E a maioria permaneceu, chegou até o fim. Isso pode significar que há uma busca por rigor – e por limites – neste mundo de permissividades que permeia da política às relações pessoais. Há uma busca por algo que seja real – e não apenas uma promessa fácil de auto-ajuda.

E há também uma necessidade de sentir. Nossa época acredita que é possível viver sem sentir nenhum tipo de dor, física ou psíquica. Não ter dor se tornou quase um direito. Basta uma pontada na cabeça, que já corremos a tomar uma pílula. Basta uma tristeza real, para que imediatamente nos ofereçam um antidepressivo. Não queremos menstruar nem ter dor de parto, qualquer desentendimento com o chefe acaba com nosso dia, desistimos de um amor no primeiro percalço, por acreditar que merecemos a felicidade eterna. Não podemos nem sentir calor ou frio, para isso há ar-condicionado. Parece que não queremos é viver. Descobri no retiro que muita gente pressente que há demasiadas falsas promessas em sua vida.

Talvez houvesse um caminho alternativo para mim. Provavelmente o mais sensato teria sido desistir quando a dor aumentou – aceitar algo mais difícil que a dor, meus limites. Se minha coluna simbolicamente “quebrou”, talvez seja por causa da minha rigidez, da minha dificuldade de ser mais flexível. Talvez houvesse um aprendizado para mim ao desistir de algo importante, aceitar que precisava parar. Hoje, preciso usar o que aprendi na vipássana para enfrentar uma dor constante, 24 horas por dia, com serenidade.

Neste momento, sinto minha vida mais larga. Cada dia é longo. Tenho dificuldade de me concentrar no que aconteceu ontem, e a próxima semana está longe. Percebo imediatamente quando estou vivendo algo especial, coisas muito simples que antes não perceberia. E descarto os acontecimentos desagradáveis no minuto seguinte. Quando sinto medo ou ansiedade, sei que vai passar. Só essa certeza já reduz os monstros à metade do seu tamanho.

A vida parou de correr. É como se o ano, que passou voando, tivesse pisado fundo no freio. Está tudo quase em câmera lenta. Descobri ontem que tenho preenchido meus cheques com a data do mês anterior. Não tenho idéia do que vai acontecer. E acho ótimo não saber. Sempre achei, mas antes tinha mais medo.

Esta é minha aventura, minha experiência, com meu jeito de olhar. Ela é pessoal, única, intransferível. Tentei ser o mais honesta possível com o que sou, senti e vivi. Tudo o que foi escrito aqui é minha interpretação, não tenho o aval de nenhum mestre da vipássana. Esta reportagem é apenas o relato de uma experiência radical um pouco diferente do que estamos acostumados a entender como radical. Não é um incentivo para que os leitores façam um curso como esse – nem um incentivo para não fazer.

Este é apenas o relato de uma viagem para um lugar bem exótico – meu corpo. Você poderia estar lendo sobre uma circunavegação da Antártica ou a escalada da parede sul do Aconcágua. Mas esta é uma expedição de dez dias, mais de cem horas de olhos fechados, sem sair do lugar e sempre para dentro. Ao avesso de qualquer outra aventura, quanto mais longe, mais perto estava de mim. Neste mundo em que todas as geografias já foram devassadas – e a maioria delas devastada – talvez este seja um desafio mais real.

 (*Publicado na Revista Época em 30/07/2008)

À espera do assassino

Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala

ELIANE BRUM E SOLANGE AZEVEDO (TEXTO)
MAURILO CLARETO (FOTOS)

Revista Época, 25/11/2005 – 11:39 | EDIÇÃO Nº 393

MARCADA PARA MORRER
Maria de Fátima da Silva Nunes, a Santa, de Castelo de Sonhos, Pará, conta como é viver na mira de pistoleiros

‘Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que diz que sabe como é viver jurado de morte. Mas não sabe.  Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo que é para não andar mais porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada. É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando a máfia de Castelo de Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida.’

Os que estão enterrados no cemitério de Castelo de Sonhos acreditaram que o nome do vilarejo era um sinal de boa sorte. Os que ainda estão vivos continuaram no lugar porque não têm como voltar ou porque já foram longe demais. Na beira da BR-163, Castelo de Sonhos é uma empoeirada fotografia 3X4 do Pará, o Estado campeão em conflitos de terra, assassinatos no campo e trabalhadores escravizados. O cemitério resume a geopolítica da região, na divisão desigual entre vítimas e pistoleiros. Não há mandante sepultado. Mortes naturais são uma raridade. Passar dos 50 anos é hora extra. Em Castelo de Sonhos assiste-se em tempo presente à repetição da brutal colonização do Brasil, retrato de um país que vive vários tempos históricos simultâneos. Os brasileiros que acompanham o faroeste como folclore de um mundo distante equivocam-se. É o destino da Amazônia que se decide do modo mais arcaico no Pará. A tiros.

Santa – ou Maria de Fátima da Silva Nunes – pode ser a próxima inquilina de uma das sepulturas abertas pelo coveiro para adiantar o serviço. Ela tornou-se a maior liderança popular de Castelo de Sonhos desde que seu irmão, Brasília – ou Bartolomeu Morais da Silva -, foi executado a tiros por um consórcio de grileiros em 21 de julho de 2002. Brasília é dono do túmulo mais visitado do cemitério. E Santa, a candidata mais habilitada a lhe fazer companhia, porque conseguiu botar um mandante e dois pistoleiros na cadeia por força de sua própria investigação: o fazendeiro Manoel Alexandre Trevisan, o Maneca, e os matadores Márcio Antonio Sartor, o Márcio Cascavel, e Juvenal Oliveira da Rocha, o Parazinho. Foi a primeira vez na história do Pará que um latifundiário foi punido por ter ordenado a morte de um trabalhador. A inversão da lógica deu esperança a quem não tinha nenhuma.

O nome de Santa está ao lado de outros 50 líderes marcados para morrer no relatório ‘Violação dos Direitos Humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense’, preparado pelas ONGs Justiça Global, Terra de Direitos e Comissão Pastoral da Terra. O dossiê será lançado nesta segunda-feira em Brasília e entregue à representante especial da ONU que desembarca ä no Brasil em dezembro para investigar a situação dos ameaçados. Nele, constam 772 execuções de trabalhadores nos últimos 33 anos – e apenas três julgamentos. O braço curto da Justiça para alcançar os poderosos, porém, revela-se longo no caso dos pobres: nos últimos dez anos foram presos 607 camponeses.

Os números dão a dimensão da façanha de Santa. A História mostra que ela pode pagar a ousadia com a vida, como aconteceu com a freira Dorothy Stang em fevereiro. Aos 48 anos, Santa sabe disso. Pouco vê os dois filhos, protegidos em uma cidade distante, vive na casa de um e de outro conhecido, quando as ameaças aumentam foge da cidade no porta-malas de um carro ou a pé, disfarçada de velha, mendiga ou aleijada. Mais de um amigo foi executado por tê-la ajudado, como o barqueiro Papamel, que a tirou de um sítio onde pistoleiros planejavam matá-la escondendo-a debaixo da lona preta do barco. Foi morto a tiros dias depois.

Em Castelo de Sonhos, Santa vive acordada, dia após dia, seu pesadelo. O lugarejo é uma vertigem amazônica. A meia dúzia de ruas envoltas em nuvens de poeira pertencem ao município de Altamira. Entre o distrito e a sede há 1.100 quilômetros, distância equivalente à que separa São Paulo de Porto Alegre. Maior município do mundo, Altamira tem o tamanho da Bélgica e da Grécia juntas, seu território é superior ao de 12 Estados brasileiros. Como acontece com toda terra jovem, quem chega a Castelo quer deixar o passado para trás e construir outra identidade. Assim, o lugar tem poucos sobrenomes e muitos apelidos. São esses os mais numerosos no cemitério, sem cruz, sem nome, sem família para cobrar a morte. Conhecido pelo nome completo, apenas ä quem já cercou seu latifúndio e com ele assegurou lugar fixo no novo mundo.

O fundador de Castelo, Leo Reck, é um dos que usam nome e sobrenome. Mas quando alcançou a floresta virgem nos anos 70 era chamado de Onça Branca. Nas terras que cercou, os garimpeiros Gaguinho e Paraibinha descobriram ouro. Batizaram o lugar com o nome da música que não se cansavam de escutar no LP do compositor Walter Basso. ‘No meu castelo de sonhos você é a rainha…’ Foram os primeiros a acreditar que Castelo de Sonhos era sinal de bom augúrio. Desapareceram sem enriquecer nem deixar rastro.

Ouro foi o primeiro ciclo de Castelo de Sonhos. Depois, a madeira e o gado. A soja se avizinha por Mato Grosso, segue a estrada Cuiabá-Santarém, que o presidente Lula prometeu asfaltar. É a seqüência amazônica. Sob a sanha do ouro Castelo viveu seu batismo de sangue: a guerra entre Onça Branca e Márcio Martins da Costa, o Rambo do Pará. Ele conquistou fama e apelido depois de Reck tê-lo arrastado algemado pela via principal do lugarejo, uma rua à qual o fundador deu o nome de Santo Antônio. Partiu como Márcio, voltou como Rambo. Dominou a região à bala no final dos anos 80, no topo de um império de ouro e drogas com ligações na política paraense. Em 1992 foi morto a tiros pela Polícia Militar. Castelo de Sonhos tinha sido semeada com mais de 300 cadáveres.

Um consórcio de fazendeiros conhecido como ‘a Máfia de Castelo’assumiu o poder depois da morte de Rambo. Brasília desafiou sua autoridade ao reivindicar ao governo federal um assentamento para os garimpeiros quando o ouro escasseou. Toda terra em Castelo de Sonhos é pública. Faz parte dos 30 milhões de hectares grilados no Pará, uma área equivalente a quase dez Bélgicas. A média de cada propriedade, conforme o dossiê das organizações de Direitos Humanos, é de 88.000 hectares – o tamanho de Belo Horizonte, Fortaleza e Recife somados. A maioria é mantida – e expandida – por milícias formadas pelos guaxebas, nome dado aos pistoleiros. Eles não ganham por execução, mas por mês, como um funcionário assalariado: em torno de R$ 1.000 para os peões e até R$ 5 mil para o chefe. ‘Tanto faz matar ou não matar. É um valor fixo por mês. Só ganho por cabeça quando faço particular’, conta um deles (leia a entrevista na pág. 102).

Quando o consórcio de grileiros decidiu executar Brasília, enfrentou um problema: ele era popular também entre a pistolagem. O líder tinha carisma, apartava brigas entre marido e mulher, cuidava de doentes. Sua arma era uma caneta acomodada na orelha pronta para ser sacada diante de uma denúncia. O ‘serviço’ foi encomendado a pelo menos três pistoleiros – e recusado. Quando ele foi assassinado, a população venceu o medo e impediu a polícia local de aproximar-se do corpo até a chegada do legista de Belém. Os fazendeiros criaram o primeiro mártir de Castelo.

Mirar nos líderes para eliminar a resistência gerou um fenômeno novo: o aumento de mulheres na lista dos ameaçados de morte. Elas assumem o lugar de maridos, irmãos e filhos executados. Foi assim com Santa. Viúva, ela sobrevivia fazendo salgados para lanchonetes. O povo de Castelo assistiu à pacata salgadeira anunciar aos grileiros na missa de sétimo dia do irmão que viveria para botá-los atrás das grades. ‘Às vezes estou arrebentada por dentro, mas rio e falo alto para não pensarem que tenho medo’, diz. O último recado foi de que lhe cortariam a língua.

Santa só conseguiu instalar os matadores atrás das grades porque teve uma colaboração insólita: a dos pistoleiros do lugar. ‘Devia um favor para o seu irmão, então vou lhe ajudar’, anunciou Tim Maia, um dos mais temidos. Até ser eliminado, em dezembro de 2003, foi o
que fez. Salvou-a várias vezes da morte. Numa delas, Santa foi colocada disfarçada dentro de um ônibus, uma velha doente com sua bengala. Tim Maia avisou que um dos pistoleiros tinha um cavalo na fivela do cinto e o outro um touro. Eles entraram na primeira parada, com a desculpa de procurar uma parente. Passaram por Santa e não a reconheceram. ‘Senti um gelo dentro do coração’, conta ela. Dias antes de ser executado, Tim Maia fez bravata: ‘Matei 150. Já posso morrer feliz’.

Um a um os pistoleiros foram tombando em Castelo de Sonhos. No fim de outubro sumiu mais um. João Moreira, o Carioca, desapareceu com sua moto quando foi verificar uma grota de ouro. ‘É, sumiu. Outro mistério’, comenta Leo Reck. ‘Se sumiu, outros vão poder viver.’ A polícia não tem pistas. Somente neste ano desembarcou o primeiro delegado no distrito. Dias atrás, José Conceição Corrêa já fazia as malas. Sua passagem por lá foi quase um período de férias. Em cinco meses não fez nenhum inquérito. Ele explica: ‘Castelo de Sonhos é um lugar ordeiro, calmo e tranqüilo’.

Matador assalariado

Pistoleiro conta como, para quem e por que matou 16 pessoas em Castelo de Sonhos e em Mato Grosso. Hoje ele é caçado por matadores de fora da região para não abrir a boca

VÍTIMAS O pistoleiro confessou ter matado os dois trabalhadores abaixo

VÍTIMAS O pistoleiro
confessou ter matado os dois
trabalhadores abaixo

Os fazendeiros citados pelo matador de aluguel em entrevista gravada coincidem com os denunciados no relatório ‘Violação de Direitos Humanos no Pará’ como mandantes de crimes. Seus nomes também constam em inquérito policial como membros do consórcio que ordenou a execução de Bartolomeu Dias Morais, o Brasília. Um deles, Fiorindo Minosso, disse a ÉPOCA que ‘é tudo mentira, isso não tem pé nem cabeça’. Confira:

ÉPOCA – Como começou a matar?
Pistoleiro – Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba nas fazendas.

ÉPOCA – O que é guaxeba?
Pistoleiro – É a polícia dos fazendeiros.

ÉPOCA – Para quais fazendeiros trabalhou?
Pistoleiro – Trabalhei na fazenda Tigre (hoje em processo de desocupação pelo Incra). E também para o Maneca (preso como mandante da morte de Brasília) e para o Fiorindo Minosso. O resto foi particular.

ÉPOCA – Como é particular?
Pistoleiro – 50 gramas de ouro por cabeça.

ÉPOCA – Os fazendeiros pagam por morte?
Pistoleiro – Por mês. Uma humilhação. Me pagavam R$ 800.

ÉPOCA – Como é que funciona?
Pistoleiro – O fazendeiro passa a ordem pro chefe dos guaxebas e ele passa pra gente. A gente fica de olho para não invadirem as terras. Se aparecer na picada, é pra atirar e esconder o corpo. A gente pede aumento mas eles não dão. É só aquele valor no fim do mês, tanto faz matar como não matar.

ÉPOCA – E o que você fez com os corpos?
Pistoleiro – Eu carregava pro mato e enterrava. Quando tinha rio grande jogava dentro. Em Matupá (MT) enterrei um atrás do cemitério. Outros joguei debaixo da ponte do Rio Peixoto. Enterrei uns pra frente da sede do Panquinha, em Castelo, mas esses a Polícia Federal já achou. Numa estradinha que vai pra fazenda de um rapaz por nome Toninho tem mais quatro corpos no mato de umas pessoas que queriam a terra do Maneca. Os dois do Minosso foi o chefe dos guaxebas dele, Hamilton, que consumiu. Não sei onde tão.

ÉPOCA – E os da Tigre?
Pistoleiro – Eles tavam no movimento dos sem-terra. Foi o seu Antonio e um outro que tinha apelido Rabo de Couro. Gostava de usar aqueles chapeuzinhos porque veio do Ceará. Mas esse foi por acaso. A espingarda tava destravada e quando eu pulei da caminhonete disparou. Era só para tirar ele de lá, mas o chumbo pegou na garganta.

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

ÉPOCA – Quantos trabalhadores você matou porque queriam fazer acerto?
Pistoleiro – Quatro.

ÉPOCA – O que sentia quando matava?
Pistoleiro – Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu lembro até hoje.

ÉPOCA – Você fazia alguma marca?
Pistoleiro – Só virava de peito pra cima e pulava duas vezes o corpo antes de ir embora. Superstição da gente pra não ser pego.

ÉPOCA – Já foi pego?
Pistoleiro – Graças a Deus só uma vez. Fui condenado a 16 anos, mas vendi tudo o que eu tinha, paguei R$ 72 mil pro advogado e pro juiz e saí. Estou na condicional.

ÉPOCA – Os pistoleiros de Castelo estão sendo eliminados. O que você vai fazer?
Pistoleiro – Vou embora, mas não posso falar nem onde nem quando. Minha história por aqui acaba. Não sei se tem continuação.

RETRATO DE UM FUNDADOR
Quem é o homem que construiu uma cidade na Amazônia

LILO EPOCA2Aos 70 anos, Leo Reck (foto), o fundador de Castelo de Sonhos, vive hoje a segunda fase da colonização do lugarejo aonde chegou em 1975. A convite, como diz, do governo militar, que o exortou a ‘integrar para não entregar’. Leo Reck precisa limpar a biografia para que no futuro, quando o distrito virar cidade, possa ter um busto na praça e uma história bonita para as crianças recitarem na escola em dias cívicos. A guerra entre Onça Branca, como era conhecido, e Rambo do Pará ficou para trás. ‘Cansei de recolher os corpos que Rambo deixava para enterrar. Larguei para os urubus’, conta. ‘Eu nunca matei ninguém e posso andar de cabeça erguida.’

Conversar com ele é como testemunhar a construção de um herói da pátria em tempo real. ‘Quando chegou o título provisório do Incra, descobri que me deram 180 hectares. Terra desse tamanho eu conseguia no Sul’, explica.’Fiquei com tanta raiva que resolvi fazer uma cidade.’ E assim o velho Leo fez um traçado e vendeu terrenos a R$ 10 mil.Castelo de Sonhos, portanto, é uma cidade planejada. E só não é mais progressista, segundo ele, por causa do presidente Lula e da ministra Marina Silva, ‘que embargaram a Amazônia’. Refere-se à suspensão temporária da licença para corte de árvores na região da BR-163. ‘Não é porque morre algum aqui que atrapalha alguém. É aquele presidente comunista que atrapalha a gente’, destempera-se. ‘Seria bom demais se o governo não se metesse em Castelo de Sonhos.’

Leo Reck sente-se desrespeitado pela Polícia Federal, que passou a circular na Amazônia depois da execução da Irmã Dorothy Stang. Está habituado a outro tipo de lei: ‘Polícia aqui é o dinheiro. Se compra soldado por R$ 200, tenente um pouco mais. Uma morte aqui custa R$ 500’. Não se conforma: ‘Agora nos chamam de grileiros. Mas eu sou é desbravador. Tenho coragem agora, com a idade que tô, de ir lá para as bandas do Rio Negro, pegar uma motossera e plantar uma roça’. Depois de explicar que nos velhos tempos jornalistas viravam comida de urubu ou eram atiradas de aviões com as mãos amarradas, Leo Reck irrita-se com o gravador: ‘Desliga essa porra!’.

LEI TRABALHISTA
Paraguai insistiu demais para receber o pagamento
O atestado de óbito de Félix Gonçalves é uma ironia que ilustra a lei trabalhista em Castelo de Sonhos – e na Amazônia. Causa mortis: ‘Acidente de trabalho’. Apesar de a árvore que o matou ter conseguido decepar o tampo de sua cabeça com o exato formato de um golpe de facão, não deixa de fazer sentido. É costume na região esse tipo de acidente profissional. Quando o trabalhador insiste para ‘fazer acerto’, ou seja, receber o combinado, costuma morrer por justa causa. Conforme a viúva, Florentina Gonçalves, Paraguai exigiu o pagamento de uma ponte que fez para a subprefeitura de Castelo. ‘O Leo Reck botou um pistoleiro ao lado do caixão e pressionou tanto para enterrar rápido que não deu tempo de todas as filhas se despedirem do pai’, conta.

BEM-VINDO A CASTELO DE SONHOS
Como a família Branger descobriu o Brasil da pistolagem

LILO EPOCA3
Eles não tinham nenhuma ideia sobre como as coisas funcionavam. A chegada da família Branger (foto) a Castelo de Sonhos foi um encontro entre dois mundos. ‘Quando meu marido falou o nome, Castelo de Sonhos, eu me encantei’, conta Maria Palmira Branger, a Preta. ‘Todo mundo tem um sonho. O do meu marido era uma fazenda. Meus filhos precisavam de espaço. Pensamos que era um lugar que estava começando e precisava de gente com estudo.’ Deixaram Florianópolis em agosto de 2003 seguindo o conselho de um cunhado que vivia em Mato Grosso. Zulmar Branger deixava lotes de terra onde plantava cebola e alho, Preta fechou as portas de uma confecção e os filhos trancaram a universidade. Partiam para a conquista tardia da Amazônia.

Quando o asfalto da Cuiabá-Santarém acabou, na divisa de Mato Grosso com o Pará, Preta começou a chorar. ‘Era só mato. Eu não queria nem deixar o caminhão de mudanças descarregar’, lembra. Mas deixou. Nunca mais esqueceria desse momento-limite. Um ano depois, em 8 de agosto de 2004, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de Arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo de Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Emerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado o galã do faroeste.

A mãe pedia ajuda da Polícia Militar desde o dia anterior. ‘Primeiro o tenente falou que tinha de esperar 24 horas. Depois que precisavam fazer a segurança do rodeio. Na madrugada do domingo, disse que necessitavam dormir, mais tarde que tinham de cuidar da cavalgada. Comecei a gritar. Só depois descobri que ele levou R$ 40 mil para não fazer nada enquanto meu filho era torturado e morto’, conta Preta. ‘A polícia eliminou os vestígios. Tinha carne debaixo das unhas dele, porque lutou. Não sobrou nada para identificar. Encontramos as roupas queimando no lixão.’

Emerson Minosso tentou entrar no velório, mas foi escorraçado. Mostrou a arma. Ainda desfilou em Castelo de Sonhos por mais três dias. Quando teve a prisão preventiva decretada, já estava longe. Seu pai, Fiorindo Minosso, diz que é tudo mentira.

Várias versões circulam em Castelo de Sonhos para explicar o crime. Em uma delas, Emerson teve ciúme porque sua ex-namorada se interessou pela vítima. Em outra, a morte seria uma estratégia para que a família vendesse a terra por preço baixo e voltasse para onde veio. Nos dias posteriores os Brangers encontraram pistoleiros patrulhando a divisa entre as fazendas. ‘Fui aprender o que significava cada morte aqui’, conta Preta. ‘Me explicaram que quando jogam na estrada é para calar a boca porque estão agindo.’

Quando sepultava o filho, um matador sussurrou no ouvido de Zulmar: ‘Você quer que eu faça o serviço?’. Outros dois fizeram a mesma proposta. Ele recusou. Velou o filho no Dia dos Pais. ‘O corretor falou que era um lugar calmo, seguro. Quando chegamos, nos primeiros 60 dias houve 40 mortes. No Brasil não tem pena de morte, mas aqui tem’, conta o pai. ‘Pensava que só matavam peão rodado e pistoleiro. Achei que não matassem gente de bem’, diz a mãe. ‘Vi gente degolada boiando no rio. Vi um pai ser morto na frente do filho de 4 anos no bar. Vi uma bala atravessar o corpo de uma pessoa e atingir o de outra numa festa. Vi um corpo entupir uma bomba de sucção. Tinha pedras no lugar das vísceras’, relata Calebe, o irmão. ‘O que nunca vi neste lugar foi briga a socos.’

O que Cledson viu está sepultado com ele no cemitério de Castelo de Sonhos. A família Branger decidiu ficar. ‘Consegui uma fazenda’, explica o pai. ‘Ganho muito dinheiro aqui’, afirma o irmão. ‘Nós éramos patinhos. Não entendíamos nada. Agora, aquela coisa boazinha que tinha em mim acabou’, diz a mãe. Dias atrás ela viu Fiorindo Minosso na rua. Gritou: ‘Seu desgraçado. Como tem coragem de olhar para mim?’. Castelo de Sonhos é um lugar pequeno. Meia dúzia de ruas desoladas. A família Branger aprendeu que nelas há dois tipos de pessoas: vítimas e assassinos.

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Freud e as fadas

Psicanalistas convocam personagens como Cinderela e Harry Potter para contar os conflitos de crianças e adultos de hoje

fadas diva capaDepois de comer um pouco de carne e beber do sangue da avó, Chapeuzinho Vermelho atendeu ao convite do lobo:

– Tire a roupa, minha filha, e venha para a cama comigo.

O striptease da menina é lento e completo. Passa pelo avental, pelo corpete e pelas meias. Ela joga cada peça no fogo porque o lobo lhe assegura que não precisará mais delas. Deitada com ele, a garota tem uma súbita vontade de urinar. O animal manda que faça na cama mesmo. Chapeuzinho recusa-se. O lobo permite então que ela vá, mas a amarra ao pé da cama com um cordão. Chapeuzinho consegue escapar e corre o mais rápido possível para casa.

Essa é a mais antiga versão para a clássica história contada até hoje para embalar o sono dos pequenos. Com o tempo, as passagens mais eróticas e perturbadoras, como canibalizar a doce avozinha, foram eliminadas. Era preciso atender às necessidades impostas pela moderna visão da infância, com sua exigência de inocência. Ainda que mais insossa, porém, Chapeuzinho Vermelho continua sendo ouvida com atenção por crianças que podem, no minuto seguinte, ligar a TV nos Power Rangers.

Por que histórias como essa sobreviveram? O que faz com que alguns contos de fadas permaneçam e outros pereçam? O que revelam sobre nós as partes eliminadas e as que subsistem? De que necessidade partem as transformações sofridas pelos personagens para se manter vivos, como a mãe má que vira madrasta e o pai cruel que se torna ogro? E, principalmente, o que Chapeuzinho, Cinderela, Branca de Neve, João e Maria e tantos outros habitantes do mundo da fantasia desde os nossos tataravós têm a dizer ao cibernético século XXI? Essas são algumas das perguntas a que os psicanalistas gaúchos Diana e Mário Corso respondem na obra Fadas no Divã. O livro será lançado nesta segunda-feira na Livraria Cultura, em Porto Alegre.

A inspiração, como não poderia deixar de ser, veio da obra seminal do austríaco Bruno Bettelheim – Psicanálise dos Contos de Fada (1977). Diana e Mário, porém, vão além. Têm o mérito de não desprezar o que veio depois da tradição. Na segunda parte do livro, eles vão perguntar a Pinóquio e Peter Pan, Mafalda, Harry Potter e à Turma da Mônica, entre outros ”modernos”, sobre o que têm a dizer às crianças – e aos adultos – para ter conquistado o direito de perambular pelo milênio.

Casados há 21 anos, é como psicanalistas com duas décadas de clínica, mas também como pais, que Diana e Mário se lançam nessa jornada. E pais contadores de histórias – as da tradição, as da modernidade e as próprias. As filhas, Laura e Júlia, hoje são adolescentes. É possível dizer que o livro começou a ser gerado junto com elas – embora só tenha sido escrito a quatro mãos nos últimos três anos.

Um capítulo, inclusive, é dedicado a um conto familiar: ”Vampi, o Vampiro Vegetariano”. Nele, Mário compartilha com os leitores a intimidade da construção de uma história com as filhas pequenas. É um dos momentos mais emocionantes do livro. Mostra a importância dos pais narradores – e criadores. Como diz a psicanalista Maria Rita Kehl no prefácio do livro, ”esses (pais) são capazes de tecer uma teia de sentido em torno das crianças, e ao mesmo tempo deixá-la incompleta para que continuem a tarefa de produzir o romance familiar apropriado a suas pequenas vidas”. Em ”Vampi”, Mário é generoso ao revelar como medos e conflitos de seu pequeno núcleo familiar foram sendo resolvidos na trama – ou como certas verdades se impuseram.

Era para ter sido, no máximo, efeito colateral. Aconteceu, porém, com a maioria dos que tiveram a chance de ler Fadas no Divã antes que desembarcasse nas livrarias. Ao abrir o livro não são as fadas que vão para o divã, mas o leitor. Mário brinca que é uma espécie de ”auto-ajuda psicanalítica”. Cada vez que pediam aos amigos uma crítica rigorosa, eles voltavam entusiasmados com as sacadas que – agarrados às tranças de Rapunzel ou debaixo da asa solitária do Patinho Feio – tiveram sobre sua própria história.

O livro vem com bula, basta escolher o caminho. Os autores sugerem dois modos de usar as 326 páginas: pela ordem original, se o leitor for movido por interesses acadêmicos, ou de forma aleatória, seguindo preferências literárias. Neste caso, pode ir e vir à vontade – e pular capítulos sem susto. A obra foi escrita para todo tipo de gente. Não é preciso ser iniciado em psicanálise – basta ter alguma vez parado diante do espelho mágico e…

”Fizemos o possível para entregar ao leitor o fio de Ariadne, para que o Minotauro da chatice não nos devore…”, dizem. Esse risco não há. Mas muitos outros estão à espreita do leitor a cada página virada.

Entrevista com os psicanalistas Diana e Mário Corso

ÉPOCA – Como vocês tiveram a ideia deste livro?
Diana Corso – A cultura infantil era o que mais consumíamos nos anos de infância de nossas meninas. Com o tempo fomos descobrindo que existia um grande vácuo sobre o assunto, buscávamos literatura e além de escassa, freqüentemente era coalhada de preconceitos. Quase tudo era qualificado de influência perniciosa, que tornava as crianças autômatos agressivos, imediatistas, simplórios e consumistas, enfim, verdadeiros monstros gestados no ventre de produtos culturais malignos. Aquilo não era o que víamos na prática. Nossas crianças, filhos, amigos e pacientes cresciam, brincavam, elaboravam seus pequenos dramas e se divertiam embaladas por todo tipo de fantasias, desde os clássicos contos de fadas, até os filmes da Disney, do maravilhoso Castelo Rá-Tim-Bum, aos programas trash da televisão. A ficção era uma chave para se expressar e interpretar o mundo.

Mário – A ficção que criamos e consumimos é eloquente, ilustrativa, de um tempo e sua gente. Interpretá-la é tentar compreender isso. Falando de livros, filmes e outros fenômenos da cultura contemporânea, podemos divulgar idéias psicanalíticas e principalmente pôr a teoria a trabalhar, testando sua capacidade de interpretar novos fenômenos. Acreditamos que uma teoria só sobreviverá se ela souber adaptar-se e deixar-se questionar pela época em que vive, por isso nos lançamos nesse desafio de conjugar a psicanálise no tempo presente.

ÉPOCA – O que está se oferecendo as crianças hoje é bom, então?
Mário – Nosso estudo é justamente para evitar respostas fáceis e taxativas, do tipo ‘está tudo perdido, não é como antigamente’. Estamos diante dum universo enorme e mal explorado. A conclusão parcial que chegamos é que não devemos nos alarmar tanto. Se quiséssemos apenas julgar, primeiro teríamos que definir o que é bom, e bom para quem? Nossa premissa de que as histórias infantis não prosperam se o que ela tem para oferecer não for o que serve ao seu público, portanto as histórias que se tornaram populares são as que vieram a calhar. Sendo assim, gostando ou não temos que prestar atenção naquilo que cai nas graças das crianças. É como aqueles malditos jingles que grudam, por vezes são terríveis, mas se fazem lembrar… Para nós o que importa é que a ficção possa ser apropriada pelas crianças para fazê-las pensar, para desequilibrar suas maneiras de entendimento e fazê-las ir adiante. Ou seja, que forneça elementos para soltar a sua imaginação e ao mesmo tempo dar forma a seus conflitos.

ÉPOCA – A falta de limites das crianças contemporâneas seria menos uma conseqüência dos programas de TV e dos jogos de computador e mais um problema de educação?
Diana – A gênese dos problemas da infância contemporânea não pode ser vista sem levar em conta a vida real das crianças. Fica mais fácil dizer que elas estão ficando individualistas, precocemente erotizadas e violentas por causa da programação da TV do que concluir o óbvio: que elas reproduzem o que vivem em casa e na rua. As crianças são filhas do seu tempo, é claro, mas principalmente de seus pais.

Mário – Ficar jogando a culpa na mídia, nos games e nas personagens infantis é algo que faz eco porque convém aos pais, que não querem parar para pensar sobre o que transmitem como valores. Além disso, não se deve desprezar o fato de que são as crianças e os jovens, com sua adesão e entusiasmo, que selecionam os produtos culturais que farão sucesso. O que formata o seu gosto e suas preferências senão as referências emocionais e culturais da sua família? Com o livro, queríamos também colocar as coisas em seus lugares e diluir essa caça às bruxas, alimentando o debate sobre o que estamos esperando da infância hoje.

ÉPOCA – E o que estamos esperando?
Diana – Que realizem nossos sonhos… só isso. Para tanto bastam coisas ‘simples’ como ser inteligentes, mas do tipo criativo, que inventa soluções e rompe com o estabelecido (consideramos a tradição uma carga); fortes como ninjas, mas sensíveis como Polyanna; amadas por todos e amantes atléticas, mas independentes de vínculos que fossem lhes limitar o voo. Para os nossos filhos é preciso ‘apenas’ almejar tudo sem abrir mão de nada! Não se estranha, então, que uma criaturinha de meio metro ache que pode com seus gritos e esperneios conseguir que lhe seja comprado o objeto que quer ou dado o alimento que escolheu ou se tornar o centro das atenções. Ela só estará sendo tão importante e grandiosa como queremos que ela seja. O que ninguém se dá conta é do óbvio, as crianças são extensões narcísicas de seus pais, estão aqui para redimir nossas falhas. Se não entendermos essa marca inicial, não vamos entender nada. Quando chegam aos consultórios os pais nos perguntam de que planeta veio essa criança que eles mesmos formataram.

ÉPOCA – Como selecionaram as histórias?
Diana – Quanto às histórias modernas e contemporâneas, o primeiro critério foi o de ter sido um sucesso consagrado junto às crianças. Parece-nos a melhor peneira: se as crianças gostaram, é porque elas têm algo a dizer. Era também necessário que a história trabalhada fosse significativa para nós, pois sem um envolvimento pessoal não conseguiríamos tecer as hipóteses psicanalíticas. Nem todas elas foram de igual intensidade para todos: algumas provieram da nossa infância, compartilhada com nossas filhas, como os contos de fadas e a Turma da Mônica; outras foram escolhidas a partir de descobertas feitas por elas, como é o caso do Ursinho Pooh, do Mágico de Oz e de Harry Potter. Claro que clássicos do século XX, como Pinóquio e Peter Pan, não poderiam ficar de fora. Era necessário também que as narrativas escolhidas possibilitassem uma leitura psicanalítica mais rica, que nos permitisse compreender quais fantasias se precipitavam ali e nos ocorresse um caminho para interpretá-las. Algumas personagens foram examinadas por serem nosso objeto de paixão adolescente, como Peanuts, Mafalda e Calvin & Hobbes, o que nos possibilitou falar da representação da infância contemporânea. Muitas vezes tivemos que escolher os casos mais exemplares e os roteiros mais sintéticos, essa é a razão pela qual João e o Pé de Feijão venceu a concorrência do Gato de Botas. O livro analisa um universo muito vasto de narrativas e cada capítulo funciona como um pequeno ensaio.

ÉPOCA – Como escreviam? A quatro mãos?
Diana – Escrevemos juntos há tanto tempo que não dá para saber direito quando foi que começou. Mesmo os textos que pertenceriam a apenas um de nós têm tanta influência e palpite do outro que acabam sendo de certa forma compartilhados. Há uma parte em que nos diferenciamos, pois cada um tem seus assuntos prediletos. Antropologia e mitologia, por exemplo, é território de conhecimento do Mário, enquanto eu fico incumbida do que diz respeito à psicologia infantil e identidade feminina. Mas isso é somente para o chute inicial, depois um assume o texto do outro, transforma-o, se apropria dele. Funciona mais ou menos como uma trova, na qual um retoma desde onde o outro deixou, numa disputa lúdica, cujo resultado é um texto cadenciado, onde um corrige os vícios do outro… ou se contamina com eles.

ÉPOCA – Como foi o processo de escrevê-lo? Houve participação das filhas?
Diana – Como escrevemos no tempo ‘livre’, pois nossa ocupação profissional é a clínica, o livro se incorporou totalmente à vida familiar. O tipo de pesquisa que fazíamos tinha um lado objetivo, que era o de ler muitos contos de fadas e obras teóricas de referência, assim como os livros originais das obras contemporâneas (como Peter Pan, Ursinho Pooh), mas tinha uma grande faceta emocional. As obras e contos que escolhemos para interpretar eram as significativas para nós e para as nossas filhas, portanto o trabalho era freqüentemente tema de discussão familiar, não somente com a Laura e a Júlia, mas também com as outras crianças e jovens que frequentam a casa. Elas liam originais dos textos e o que escrevíamos, muitas vezes foram autoras das hipóteses propostas, outras contribuíram com críticas e precisões sobre personagens e tramas. Ao longo dos últimos quatro anos, também nossos familiares e amigos queridos acabaram se resignando com o fato de que havíamos nos tornado uns chatos monotemáticos, e aceitaram nos ajudar com evocações, hipóteses e leituras.

Mário – Houve um momento muito prazeroso para mim, quando encontrei nas minhas filhas o mesmo interesse e envolvimento pela Turma da Mônica que tive na minha infância. Certamente o encontro das gerações enriqueceu o capítulo sobre a obra do Maurício, ao meu ver uma grande contribuição do Brasil para o universo infantil popular. Essas personagens são a princípio simples, previsíveis, basicamente cada uma tem uma característica e pronto. Seu universo, o Bairro do Limoeiro, é protegido como o da infância. É nessa redoma que as coisas se complicam: inveja, competitividade, medos, fantasia, dificuldade de se fazer compreender, e assim por diante. Além disso, nas características de cada personagem estão retratados aspectos essenciais das crianças: as fobias do Cascão, tão corriqueiras, a onipotência da Mônica, tanto maior quanto se é menor, a voracidade da Magali (e seu antônimo, o Dudu), a guerra dos sexos do Cebolinha. A leveza do cenário e principalmente o humor, permitem que pequenos dramas sejam encenados.

ÉPOCA – Empacaram em algumas histórias?
Diana – Nem sempre o processo fluía. Houve histórias que pareciam estar prontas no teclado, enquanto outras se revelavam um osso duro de roer. Cinderela, por exemplo, que nos convocava a falar de conceitos psicanalíticos impopulares e difíceis de explicar, tornou-se uma odisseia. Outras nos venciam pela complexidade e riqueza do texto, como foi o caso de Peter Pan. Houve também partes muito divertidas: quando escrevemos o capítulo dedicado aos personagens das histórias em quadrinhos, Mafalda, Calvin e Charlie Brown (um humor para gente crescida, mas com personagens crianças) tínhamos ‘razões científicas’ para ler quadrinhos durante horas a fio, às gargalhadas, assim como para comprar coleções completas de nossas histórias preferidas.

ÉPOCA – O que aconteceu com Cinderela? Que conceitos impopulares eram esses?
Diana – Cinderela é uma história que é simples mas condensa vários níveis de significações. Por exemplo: pensar o fetichismo é incontornável, afinal, ela é lembrada por seu pé delicado. Embora seja uma história ‘de mulherzinha’, ela também é a chave para entendermos a erótica masculina: faz parte do desejo dos homens apegar-se a um traço, uma cor de cabelo, um pé bonito, um par de seios, de nádegas, para se interessar por uma mulher, sem esse atributo, nada feito… Além disso, é uma princesa que tem seu lado ‘sujo’ de Borralheira e sua aparência deslumbrante no baile, sabe ser princesa e ‘vagabunda’, como bem cabe ao jogo erótico. Como se não bastasse, ela é mestre no jogo da sedução, é uma mascarada que encanta e foge, e várias vezes. Isso sem falar nas rivalidades fraternas e na dupla face da mãe: a fada madrinha e a madrasta. Por isso agrada a tantos, mas foi um osso explicá-la.

ÉPOCA – Vocês escrevem que os contos iluminam cantos escuros. Quais são as histórias preferidas de cada um de vocês e por quê?
Mário – Eu não sou muito original. A história que me comovia, na minha memória um conto de terror, era o Patinho Feio. É uma história para todos, a melhor tradução para o desamparo infantil, da sensação de insignificância que temos para o com mundo. Nunca me tornei belo, mas a sensação de desamparo eu já seguro melhor.

Diana – Quando era bem pequena minha personagem predileta era a Branca de Neve. Aliás houve um período em que eu exigia que me chamassem assim, tão identificada eu estava com a personagem. Certamente a fonte de tanta empatia era sua condição de órfã desamparada, pois eu perdi meu pai muito cedo e meu padrasto demorou seis anos para chegar. Mais tarde, era o jogo de esconde-esconde da Cinderela com seu príncipe, assim como a apoteótica revelação da sua identidade secreta o que mais me excitava. Na contramão desse gosto está meu desgosto, por Pinóquio, com cujas trapalhadas sempre me identifiquei e sofri junto. Por isso é uma história significativa, tanto que me é quase insuportável.

ÉPOCA – Qual é a origem da maioria dos contos de fadas que sobreviveu até hoje? De onde eles vêm, já que não vêm das fadas?
Mário – Os contos de fada são, com poucas modificações, oriundo dos contos folclóricos, também chamados ‘Contos Maravilhosos’. Já a origem desses se perde no tempo. Existe um grande desafio nunca respondido pela Antropologia: por que os contos folclóricos se parecem, considerando culturas distintas e muitas vezes isoladas? Talvez a única explicação seja uma origem comum remotíssima, de quando a cultura humana ainda não havia se diversificado tanto. Já outros autores, como Mircea Eliade, por exemplo, acreditam que esses contos são restos, cacos, de antigos mitos, agora dessacralizados. Enquanto gênero, os contos de fada por vezes se aproximam das fábulas, às quais também são histórias curtas, em que os deuses estão geralmente ausentes. Não fazem parte de um todo maior, uma cosmogonia, como os mitos, e tentam passar uma sabedoria. Os contos e as fábulas se opõe aos mitos e às sagas, pois embora estes últimos possam ser também histórias curtas, eles constituem sempre uma peça de um grande painel. Nas fábulas, a moral da história é o fecho e é explicitada, enquanto nos contos de fada isso fica diluído e nem sempre há exatamente uma moral, o mais importante é um desfecho resolutivo.

ÉPOCA – Como foi, usando as palavras de vocês, ‘que esses restos do passado vieram parar nas mãos das crianças de hoje’? O que faz com que sobrevivam? Ou por que ainda ecoam em nós?
Mário – Evidentemente que a sociedade contemporânea tem pouca semelhança com a de nossos tataravôs, não somente no sentido da tecnologia, mas também da vida privada. É do lado das mulheres e das crianças que as grandes modificações se processaram, no sentido da libertação das primeiras e da valorização das segundas. Na realidade, em nossos sonhos utópicos, desejávamos modificar ainda mais, libertando-nos do casamento e da família enquanto núcleo de poder e neurose. Não deu. Com o passar dos anos, terminamos por consolidar ainda mais os vínculos entre pais e filhos, já que a família deixou de ser grande e cheia de ramificações, reduzindo-se a um pingo de gente presa num apartamento. Com o casamento ocorreu o mesmo, pois ele se tornou a grande tábua de salvação contra a solidão e o desenraizamento que sentimos. Não importa que não dure, continuamos casando compulsivamente. Os contos de fadas se prestam para retratar dramas íntimos de forma metafórica: sair de casa, expulsa pela madrasta, enfrentar um ogro, encontrar no amor a solução de todos os males, travar uma luta mortífera com figuras poderosas e aventurar-se na floresta, correr o risco de virar iguaria de uma bruxa canibal. Tudo isso são absurdos que, por incrível que pareça, podem ilustrar nossos conflitos inconscientes. Se outrora os contos folclóricos narraram de forma fantástica questões relativas à sexualidade e aos problemas de filiação, hierarquia e herança, hoje, trazidos para a intimidade doméstica, alguns desses relatos servem para finalidades similares. O mundo pode ter mudado totalmente, mas tornar-se mulher ou homem, assim como enfrentar o crescimento e a morte ainda são nossos problemas. No que diz respeito a certas questões, tudo mudou… para que pudesse continuar do mesmo jeito.

ÉPOCA – Os contos de fadas são muito mais antigos que a visão moderna de infância, datada do século XIX. Eles se tornaram infantis apenas quando o conceito de infância muda?
Diana – De fato, os contos de fadas e a magia sobraram para as crianças quando passaram a ser pensadas enquanto seres humanos em construção e sua fragilidade foi reconhecida. Concomitantemente, a sociedade promoveu a racionalidade enquanto sua maior aquisição. A elas, seres incompletos, coube a identificação com o que restava em nós de primitivo, algo que se acreditava que seria superado com tempo e pedagogia. Mas, apesar da queda da Bastilha, ainda crescemos em um reino, embora reduzido a alguns poucos metros, com seus reis e súditos. Hoje os pais estão mais para monarcas apavorados e inseguros do que para déspotas esclarecidos. Porém, para seus filhos pequenos ainda são figuras enormes e poderosas, não é de surpreender então que as crianças tenham se apropriado, e que os adultos tenham promovido isso, dos restos de um passado socialmente distinto, mas psicologicamente evocativo. É a insegurança infantil da infância que promove os pais a essas encarnações monárquicas: quanto menores somos, maiores terão que ser nossas figuras protetoras, quer seja pela sua nobreza ou pelos super-poderes. Na modernidade não foram só as crianças que mudaram, que ganharam legitimidade e atenção especial, os adultos também são outros. A elas ainda é reconhecido o direito à dependência e à incompletude, enquanto aos adultos, criados no seio do individualismo racionalista e empreendedor, nada deve restar de identificação com os assustados camponeses e sua visão mágica do mundo. Tudo balela: a almejada auto-suficiência e o pensamento científico são constantemente derrotados pelo sonho do amor romântico, assim como crescentes ondas de misticismo tomam conta de tudo. A sociedade contemporânea se infantiliza cada vez mais, e uma das razões é o fato de que o direito ao pensamento mágico ficou teoricamente reduzido à infância. No fundo, nunca crescemos tanto quanto gostaríamos.

ÉPOCA – O que fez com que alguns contos sobrevivessem e outros perecessem? Ou pelo menos parte deles?
Diana – Em primeiro lugar é preciso entender que os contos de fadas são como um caleidoscópio, onde peças se combinam de formas diversas para formar desenhos diferentes. Ler coletâneas de contos folclóricos das diversas origens é surpreendente, pois muitas histórias revelam-se versões, repetições ou combinatórias das nossas clássicas conhecidas. Provavelmente, as sobreviventes foram aquelas que apresentaram as melhores sínteses, o que ajudou com que caíssem nas graças de alguns dos responsáveis pelas versões consagradas, como Perrault ou os irmãos Grimm. Foram estes os maiores responsáveis pelas versões que hoje utilizamos, graças ao seu esforço de adaptação das histórias folclóricas à moral e estética de seu tempo. Justamente do trabalho de encaixe destes narradores é que provém a maior parte das censuras, de histórias ou de partes delas, assim como as distorções.

ÉPOCA – Alguns exemplos…
Diana – No final do século XVII, Perrault contou uma Bela Adormecida que é deixada em seu castelo enfeitiçado com a criadagem, mas sem a companhia de seus pais, os quais devem se resignar a que o tempo do despertar da filha já não será o de seu reino. O príncipe que a desperta envolve-se com ela em uma relação de amantes, que se mantém clandestina por dois anos e somente será assumida após a morte do pai do moço, quando ele precisa fazer aparecer sua rainha. Porém, do lado de fora do castelo da Bela quem a espera é a sogra, uma ogra que tenta comer a nora e os dois netinhos, Sol e Aurora, nascidos durante os anos de concubinato. Pouco mais de um século depois, os irmãos Grimm construíram a versão que Disney consagrou: a família adormece toda junta, os pais não são superados dessa forma tão radical, o príncipe a desperta com um beijo e vivem felizes para sempre. Como se vê, faltam as partes mais picantes e emocionantes. A história fica mais adequada para o uso da família, principalmente a idealizada pela mente romântica dos compiladores alemães, onde se faz de conta frente às crianças que o sexo não existe, e a morte e a violência são ocultas ou amenizadas. Algumas histórias, como Bicho Peludo ou Capa de Junco, ficaram esquecidas devido a seu conteúdo francamente incestuoso. Conhecemos algumas versões de Pele de Asno, onde o pai que quer casar com a filha é convenientemente substituído por um tio.

ÉPOCA – Os contos de fadas contêm mais horror que os noticiários mais sensacionalistas de hoje. Se houvesse censura, eles não baixariam dos 18 anos. Tem incesto, degolas em série, transformações de pessoas em animais, pais que abandonam os filhos na floresta, pais que querem levar as filhas para a cama, bruxas que querem comer gente, lobos que comem avós, horrores sem fim. Tudo o que é considerado sórdido na humanidade está lá. É este o segredo de sua perenidade? Como podem ser infantis?
Diana – Na infância, nosso pensamento é naturalmente hiperbólico, tudo ganha proporções dramáticas. As crianças gostam dos contos de fada pois ali encontram uma similitude no modo de ver o mundo. Tudo é mágico, muito maravilhoso e muito perigoso. O pensamento infantil, se pudesse ser censurado, também ficaria para depois dos 18 anos. No pensamento infantil tem incesto, execuções sumárias e massacre de todos aqueles que se interpuserem entre as crianças e seus desejos, tem canibalismo, adultos assustadores e animais fantásticos. Tudo isso de forma metafórica, inconsciente e até lúdica, bem entendido. Os contos de fadas administram esta pequena loja dos horrores da mesma forma que as crianças: tudo pode ser aludido, sem que nada tenha de ser explicitado. Provavelmente esta é, sim, uma das fortes razões de sua sobrevivência.

Mário – O que nos atrapalha entender a natureza dos contos de fada é a nossa auto-imagem moderna. Gostamos de nos imaginar governados pela razão, quando na verdade somos arrastados pelas nossas paixões e desejos. Nos educamos para pensar e escolher racionalmente, mas muitas vezes o peso dos mitos e das superstições fazem valer sua força. Como os cidadãos do Ancien Régime não tinham essa preocupação de serem racionais, nem tinham a exigência de uma sensibilidade politicamente correta, talvez apreciassem mais intensamente os contos de fada.

ÉPOCA – Muitos contos de fada sofreram modificações para se tornarem mais palatáveis aos tempos de hoje. Quais foram as mudanças mais significativas e famosas? E o que elas significam?
Mário – Creio que a modificação mais interessante é a do Príncipe Sapo. Hoje todos sabemos que ele ganha um beijo e vira príncipe. Ora, na história original a princesa se irrita com a sua asquerosa presença e o joga contra uma parede. É esse ato violento que o desencanta. Surpreendente, não? O que era violência vira amor, essa é a tônica de tantas outras modificações, que suavizam e pasteurizam as tramas. Vivemos uma ÉPOCA de maior sensibilidade para com as crianças e os elementos mais grotescos foram sendo removidos. Quem representou muito bem esse processo foram os irmãos Grimm, que a cada nova edição iam depurando, principalmente atuando na proteção da imagem da mãe. A construção e idealização da figura da mãe como a encarnação do amor que une a família nuclear tornou-se essencial. A família pequena, quente e claustrofóbica como a que temos hoje, levou centenas de anos para ser lapidada. Os irmãos Grimm fizeram sua parte eliminando as mães más, transformando-as em madrastas. O vínculo que o sangue selou não devia ser maculado… Mas esse processo de censura pode atingir uma história inteira, como em Bicho Peludo ou Pele de Asno, por exemplo. São histórias cujo mote é o desejo incestuoso dos pais pelas suas filhas. Nossa nova sensibilidade reprimiu esses contos que circulavam como outros quaisquer nos séculos passados.

ÉPOCA – Quando lemos o livro, não são as fadas que estão no divã. Mas o leitor. O livro, além de nos recordar das histórias da infância que seguem nos habitando (ou assombrando), pode funcionar como uma espécie de terapia. Foi essa a idéia? Poderíamos chamar de auto-ajuda psicanalítica?
Mário – O livro foi pensado como uma contribuição teórica. Nesse sentido é para quem trabalha ou se interessa pela infância (inclusive a própria). Efeitos em quem lê são um contrabando bem-vindo. Aprender psicanálise de um modo verdadeiro significa analisar-se, ou seja, sentir em si os efeitos do próprio inconsciente (aquilo que a gente faz ou pensa e não sabe o porquê) e descobrir que é possível compreender-se a partir daí. Se o nosso texto conseguir tocar o leitor e fazê-lo pensar sobre sua vida ficaremos realizados. Provavelmente o que conseguiremos será precipitar conclusões ou associações que já estavam se insinuando na cabeça do leitor, por isso a leitura pode acabar sendo mais lenta, reflexiva, tendendo a produzir devaneios. Esse é um efeito que não se pode pretender quando se escreve, ele acontece ou não, esperemos que nesse caso sim. Algumas pessoas que o leram enquanto escrevíamos se sentiram pessoalmente tocadas, veremos…

Diana – Esse efeito também é conseqüência do fato de que escrevemos a partir da nossa própria experiência de divã: as leituras que fazemos dos contos contém conclusões pessoais, algo do que aprendemos com o próprio sofrimento neurótico, isso talvez facilite a empatia do leitor. Mas não podemos esquecer que o objeto, especialmente os contos de fada, também são potencialmente capazes de mexer com nossas entranhas subjetivas. Eles ativam pensamentos que temos arquivados desde a infância. Talvez nosso livro possa despertar as histórias infantis adormecidas nos adultos.

ÉPOCA – E as novas histórias, como Harry Potter, elas podem ser consideradas contos de fadas? Com o que rompem, com relação às histórias da tradição, e o que trazem de novo?
Mário – Essas novas histórias fornecem elementos úteis à subjetividade infantil tal qual os contos de fada, mas decididamente não são novos contos de fada. Harry Potter, assim como Pinóquio ou Peter Pan, podem até ter um final reconfortador, mas essas personagens são complexas e ambíguas. Trazem para a infância elementos do romance moderno, onde a aventura tem um papel tão relevante quanto o crescimento subjetivo da personagem ao longo da história. As personagens dos contos de fada são unidimensionais, só são boas ou só são más, o que facilita sua apreensão pelas crianças bem pequenas, mas não devemos subestimar as crianças, elas bem cedo fazem uso e se beneficiam de histórias onde o mundo é mais complexo. Nos contos de fada os heróis não têm impasses, todos querem crescer, ter um lugar no mundo, casar e ter filhos. Peter Pan não quer nada disso, enquanto Pinóquio se arrepia quando o assunto é estudar ou trabalhar. Ou seja, nas histórias infantis modernas a magia se mantém, mas tudo está em questão, inclusive – e principalmente – crescer.

ÉPOCA – Com relação à segunda questão que vocês se propõem a responder no livro, o que estas histórias do século XX dizem sobre o tipo de gente que estamos nos tornando?
Mário – Elas nos dizem o que o resto das produções culturais dizem. Estamos nos tornando mais individualistas, portanto com uma necessidade maior de diferenciar o nosso destino do destino dos outros. Como já não há lugares prontos, é mais trabalhoso para cada um construir o seu. Harry Potter e sua orfandande talvez seja um bom exemplo disso. Todos somos como órfãos, pois não há muitas garantias do lugar que ocupamos, não sabemos bem o que significa a origem familiar que temos e mesmo quando ela se impõe de alguma forma, preferimos corrompê-la, fazer da vida uma versão pessoal. Precisamos sentir que estamos fundando nosso próprio destino. Como Peter Pan, gostaríamos de ser sempre jovens, como Pinóquio gostaríamos de levar uma vida sem tantos fardos, de não pagar um preço tão elevado para nossa estada no mundo. Como Dorothy, do Mágico de Oz, adoraríamos seguir acreditando que existe um pai que possa nos guiar nesse mundo confuso. Além disso, gostaríamos que o mundo fosse seguro como o é para o Ursinho Pooh. A questão é que em todas essas histórias esses personagens têm suas expectativas ou ingenuidades criticadas ou frustradas: Potter tem que aprender muita coisa e está longe de ser um herói auto-suficiente, Pan não cresce, mas vai perder seus amigos para a vida adulta, Pinóquio se resigna a estudar e trabalhar, enquanto Pooh tem suas ingenuidades expostas pelo seu dono, que o chama de ‘velho urso bobinho’. Na verdade, as histórias infantis atuais não são muito alentadoras. Ao contrário dos contos de fada, elas não querem que as crianças se iludam muito com o que nos espera adiante. Elas são mágicas, mas ao mesmo tempo muito realistas…

ÉPOCA – O livro clássico do Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas, foi uma fonte de inspiração? Quais são as principais diferenças e divergências com o Fadas no Divã?
MárioPsicanálise dos Contos de Fadas de Bettelheim foi, sim, a nossa inspiração, um livro que abriu caminhos para o entendimento do papel das histórias infantis. Mas ele tanto está envelhecido quanto comete um pecado que o enfraquece. Existe em Bettelheim uma supervalorização da forma e do conteúdo que não faz sentido para nós. Quanto ao conteúdo, para ele os Contos de Fada, por serem folclóricos e antigos, trariam em si uma profundidade psicológica naturalmente embutida. Na verdade, não há uma simbologia universal em cada trama. Certas questões têm perdurado através dos tempos, mas a leitura que nossos bisavós faziam das mesmas histórias não era como a nossa. Quanto à forma, pensamos que a fantasia e sua eficácia independem do meio ao qual estão vinculados. O que vale são os efeitos que produzem sobre a criança e não se são provenientes de uma história milenar, como Cinderela, ou de um programa de TV descartável, feito em Hong Kong, ao estilo de Power Rangers. As crianças se apegam àquelas histórias que conseguem tocar em alguma questão importante para elas. Por desdenhar a cultura de massa, Bettelheim ficou cego para a produção cultural infanto-juvenil que veio num crescendo durante todo século XX. É claro que recomendamos os Contos de Fada, que são extremamente ricos, mas o importante é ver o que as crianças estão realmente consumindo e o que elas conseguem fazer com isso.

ÉPOCA – Bruno Bettelheim acredita que os contos de fadas passaram por uma espécie de seleção natural de Darwin: ou seja, sobreviveram até hoje os que continuaram tendo o que contar ou os que se adaptaram melhor às circunstâncias, exigências e perguntas do novo mundo. Como esta seleção não é ‘natural’, como ela funciona?
Mário – A seleção é cultural. Vivemos num mundo cada vez mais atento à sensibilidade infantil, acreditamos que devemos poupar as crianças das coisas mais brutas e mais cruas, logo, os contos de fada sofreram uma adaptação aos novos tempos. Eles conservam os elementos centrais, mas estão mais depuradas das ditas ‘grosserias camponesas’. Os traços centrais da censura vão na direção de preservar a família, para tanto os pais maus viram tios ou ogros, e as mães más viram madrastas. O sexo deve ser menos aparente, então as alusões são abrandadas. A violência deve ser contida e o amor prevalecer, como que o século XX não iria deixar suas marcas nos contos de fada?
ÉPOCA – Vocês fazem uma crítica ao apresentar o livro: que apesar de nunca ter se investido tanto e tão obsessivamente na infância – e se esperado tanto das crianças – é muito reduzido e inexpressivo o espaço dedicado à crítica para a ficção que lhes é oferecida (livros, filmes etc). E que, quando ela é feita, em geral é catastrofista, com respeito aos efeitos nefastos de games e desenhos animados violentos. A que vocês atribuem este paradoxo?

Mário – Esquecemos a maior parte da nossa infância e nem sempre lidamos bem com o que resta dela. A amnésia da própria infância se dá porque é difícil constatar que vivemos nossos primórdios alienados nos desejos dos nossos pais, que éramos tão pouco senhores do nosso destino. A criança é frágil, dependente, ilude-se fácil, vive com medo de ser abandonada ou desprezada, sentindo-se minúscula frente ao que se espera dela. Os intelectuais não estão fora disso. Também desconhecem a criança que um dia foram. A produção teórica sobre a cultura infantil sofre as conseqüências dessa relação ambivalente com a própria infância e, quando as resistências são vencidas, ocorre que as ficções e fantasias que faziam sucesso já não estão mais em cartaz. Poucos conseguem conectar-se com o que a próxima geração está assistindo e isso só acontece, parcialmente, quando se têm filhos. Mas nem sempre nossa alma está ali realmente vibrando quando assistimos algo como Pokemon, afinal já não somos mais crianças e nossos desenhos animados eram outros… A tendência é um estranhamento, um raciocínio auto-centrado, acreditando que ali não há uma fantasia com uma pulsação verdadeira. Uma boa critica vêm de quem realmente viveu uma fantasia e não a viu de longe. A indústria cultural tem justamente sanado esse problema com produtos uni-temporais, que tentam atingir pais e filhos. Neles, as gerações podem, como nos contos de fada, falar sobre uma fantasia compartilhada. Esses filmes, sim, possuem uma boa crítica e sabemos sobre o que está sendo ofertado às crianças. Na verdade esses novos produtos culturais, que interessam a gente de todas as idades, retomam algo que é um dos segredos dos contos de fadas: são universais, comuns a pais, avós e crianças, e permitem um diálogo entre as gerações.

Diana – Somos poucos os que realmente sentamos com as crianças e topamos ouvi-las e brincar com elas. Não é difícil de compreender essa dificuldade, pois elas sabem ser repetitivas (chatas) e ter um raciocínio cruel, que deixa o adulto embretado. ‘Mãe, o fulano vai morrer?’, ‘Vamos ficar pobres?’, ‘Porque a gente não dá todas nossas coisas pra essa gente que precisa?’, ‘Eu odeio a professora, tomara que ela seja atropelada por um ônibus!’. Os programas que são oferecidos às crianças e jovens e consagrados pelo seu gosto são muitas vezes grosseiros e cruéis, mas ao pensar tão mal deles esquecemos quão escabrosas sabem ser as idéias que as crianças se permitem ter, já que a relação com seus desejos e tendências inconscientes é menos recalcada que a nossa. Elas costumam expressar sinceramente aquelas coisas que temos vergonha de contar até para o nosso analista.

ÉPOCA – Vocês dizem que as narrativas familiares são muito importantes, que os pais devem criar suas histórias porque só elas podem contar algo importante sobre aquela família, quase como a recriação e transmissão de uma mitologia daquele mundo familiar. E que devem fazer isso sem planejar as histórias, sem medir palavras, como uma livre-associação psicanalítica. O quanto isto é importante? E, no avesso, o que contam aos filhos os pais que não contam histórias suas?
Diana – Fomos pais contadores de histórias. A maioria delas criações coletivas familiares, e não foi muito difícil descobrir (tempos depois, bem entendido) que as tramas que inventávamos eram decantadas do inconsciente familiar. Foi por isso que incluímos no livro uma história que o Mário contava para as meninas. Através da análise dela tentamos demonstrar como é que acabamos falando com as crianças sobre o que nem nós sabíamos que estávamos pensando, como sexo, o amor entre os pais, a morte, as dificuldades da vida. Nas histórias inventadas, assim como nas pré-existentes que escolhemos para contar, palpita o inconsciente de uma família, seus segredos, impasses, frustrações e sonhos. Freud já dizia que os escritores podem antecipar-se, em sabedoria e capacidade de compreensão do inconsciente, aos analistas. Pois bem, as histórias narradas em família oferecem aos pequenos essa mesma sabedoria. Se não houver quem lhe conte histórias, a criança as coletará na televisão, nas conversas dos adultos, no rádio. A única certeza é que a imaginação é artigo de primeira necessidade, feijão com arroz da nossa sobrevivência psíquica, instrumento fundamental de elaboração e construção da nossa identidade.

ÉPOCA – Uma das transformações é a mãe má em madrasta. Quando não podemos mais suportar que nossa mãe seja má? Que época e que mundo é esse em que a mãe precisa ser idealizada?
Mário – A família moderna é fruto de um grande investimento de educadores e moralistas. A Mãe (assim com maiúscula) é uma invenção recente (meados do XVIII, XIX e XX). Nessa invenção, a mãe é representada como um ser maravilhoso, pura bondade, rainha do lar, sempre com a intervenção correta para com os filhos. Essa posição tem a vantagem de fazer parecer que nossa forma de organização social, a família nuclear, é algo da ordem natural. Aparecem como vínculos que se originariam no dom de procriação feminino e se perpetuariam do lado de fora do ventre, com as mesmas características de aconchego e dedicação. Nessa versão idealizada, a mãe nunca quer o mal de ninguém e sempre aponta o melhor caminho para os filhos. O problema não é que tenham inventado semelhante anjo, o problema é que há muitos seres humanos com filhos que se julgam assim, sem falhas, sem mácula, sem maldade, puro amor. Dessas santas é melhor manter distância, pois tanta pureza só pode ser mantida às custas de ignorar (e atuar) os impulsos e sentimentos mais inconfessáveis. Logo, todo cuidado é pouco com essa mãe. É claro que o mundo das fadas acompanhou esse processo, e as mães más viraram madrastas.

ÉPOCA – A batalha das filhas/princesas/afilhadas com as mães travestidas de madrastas/bruxas/madrinhas, segundo o livro, é uma batalha pela conquista da identidade feminina, que implica identificação e superação, a um custo nada baixo. Nos contos, é uma batalha de vida e morte. E na vida, tem como ser diferente?
Diana – O livro não está de marcação com as pobres das mães. Há, por exemplo, o capítulo dedicado a João e o Pé de Feijão, aonde o que vem ao caso é vencer um pai-ogro gigantesco e terrível para passar de menino a homem. A identificação é um processo doloroso, porque se torna necessário superar e derrotar justamente aqueles que mais se admirou e amou: os pais. A relação do menino com seu pai é uma disputa franca e clara, embora dê medo derrotá-lo, pois fica-se desamparado. Já entre a menina e a mãe, essa disputa envolve um problema amoroso, pois a mãe foi, também para a menina, sua primeira paixão. Como então abandonar um vínculo, vencê-la como uma rival qualquer, se de seus olhos, de seu toque, veio nossa imagem corporal, de sua voz nossa primeira identidade? Por isso a separação entre a menina e a mãe, assim como a identificação necessária para tornar-se mulher, é um processo mais tumultuado, que contém mágoas, ressentimentos e agressividade, enfim, tudo que marca o fim de uma história de amor. Assumir uma identidade sexual, seja masculina ou feminina, passa necessariamente por receber um aval para usá-la, ser reconhecido pelos pais nesse lugar. Nos contos isso nunca é fácil: João, por exemplo, cutuca o ogro roubando-lhe todo tipo de tesouros enquanto ele dorme, até que por fim ele acorde e o persiga. Só nesse momento o monstro reconhece no menino o ladrãozinho que o vinha depenando e sai em sua perseguição para o embate final. Observando bem, a madrasta de Branca de Neve vai buscar a pobre coitada, que está escondida na cabana dos anões, sem pretensão de incomodar ninguém, para livrar-se dela ou para prepará-la para a chegada do príncipe? Os feitiços que ela usa para vencer a rival são também mimos de mulher: um pente, cadarços para o espartilho e uma maçã. No final das contas, é ela que acaba tirando Branca de Neve da inocência, oferecendo-lhe o fruto proibido, ensinando-lhe a cuidar dos cabelos e a afinar a cintura. É um drama bem caótico sim, mas é útil.

ÉPOCA – Por que a inveja materna é fundamental para que a filha possa se tornar mulher? E o que resta à mãe na vida, já que nos contos só lhes resta morrer – literalmente? Não bastaria que a filha fosse embora de casa?
Diana – Não basta para a filha ir embora, esconder-se. A mãe tem que participar ativamente dessa separação. É nesse sentido que a inveja materna constrói a identidade da filha. Ela terá que aprender a ser mulher com a mãe, entre tapas e beijos. Quanto à mãe, a inveja é inevitável, pois seu viço declina (independente de quantos recursos ela use contra o trabalho cruel da gravidade) na mesma proporção que o de sua filha desabrocha. Para a filha essa inveja é como o despertar do ogro, o reconhecimento de que ela é uma rival à altura.

ÉPOCA – Vocês escrevem que a adolescência é um período de adormecimento e ilustram essa tese com histórias como Branca de Neve e Bela Adormecida. Por que é necessário estar dormindo para seduzir um homem? Ou é simplesmente um ‘despertar para o sexo’?
Diana – A adolescência não é vivida no mesmo lugar e tempo que a maturidade: durante os anos da juventude os amores são experimentais, os lugares que frequentamos são em geral públicos ou estão vazios de seus donos (praças, parques, shopping centers, a rua, as casas das famílias cujos pais estão ausentes), de tal forma que os acontecimentos demonstrem seu caráter avulso, provisório. Por isso é que os jovens adoram dizer que ‘não dá nada’, quando estão, onipotentemente, recusando-se a escutar os avisos e recomendações dos mais velhos. Estão vivendo um tempo de inconsequência, exilados da seriedade da vida, uma espécie de presente contínuo. Nesse sentido, estão despertos para o sexo, mas adormecidos para o mundo. O momento do despertar das princesas, quando elas acordam para o casamento (como em Branca de Neve e na Bela Adormecida dos irmãos Grimm), equivale para elas também à saída desta vida de estagiário, de adulto em treinamento. Quanto ao sono, ele é uma metáfora da disponibilidade erótica. Convém observar que nesses sonos enfeitiçados elas costumam manter as cores da vida, o rubor, as cores que cativam seus príncipes, os quais estão longe de ser necrófilos. Sua espera é passiva, mas de uma expectativa excitada. O gosto pelos amantes em posição de passividade, abandonados à serviço do desejo de outrem não é exclusivo do amor adulto: as mães se derretem frente a seus anjinhos adormecidos, inermes, entregues à sua adoração, seus obscuros objetos de desejo.

ÉPOCA – Ao ser uma princesa adormecida, à espera do primeiro mané real que chegar até lá, ela não se exime de assumir a autoria de seu desejo? Por que essa figura sobrevive no tempo em que as mulheres se tornaram caçadoras assumidas e leitoras compulsivas de revistas femininas?
Diana – Não é pelo fato de que uma mulher tenha aprendido a arte da caça que ela vai abrir mão do desejo de ser caçada. Aliás, as histórias de fadas que foram expurgadas (como Bicho Peludo, Capa de Junco), aquelas que não se tornaram tão populares, são pródigas em princesas que caçam seus príncipes enquanto se fazem de caçadas. Um bom exemplo é a própria Cinderela, a qual se paramenta toda, vai ao baile, enlouquece o príncipe e some, fazendo-o procurá-la que nem um louco, rodando o sapatinho por todas as moças do reino. Se a seleção social, através do tempo, tem dado destaque às princesas inermes, que ficam se fazendo de mortas enquanto o beijo não vem, a leitura que as mulheres fazem disso não é, nem nunca foi, simplória. Antes de deitar, numa aparente entrega total, não há mulher que não prepare a cena, ajeitando cada detalhe, e isso não é de hoje. A fêmea humana sempre foi temida, considerada ardilosa, fofoqueira e pouco confiável, vide as tantas que acabaram na fogueira. Os contos de fadas sempre lembram que as moças até podem jogar o jogo da passividade, mas basta a maturidade chegar e a bruxa ou a madrasta revelam todo seu fel. Mulher madura boazinha nos contos de fadas é mulher morta, como a mãe da Branca de Neve…

ÉPOCA – Neste mundo em que tenta se impor a juventude como período único e eterno da vida, especialmente às mulheres, o que as mães/madrastas/bruxas dos contos de fadas têm a nos dizer? As plásticas, botox, cremes, academias e outras mirabolâncias/feitiços as impede de matar todas as filhas/princesas realmente jovens de hoje?
Diana – Realmente, se temos algum tabu hoje, esse é o envelhecimento. Aliás ele surge exatamente quando a longevidade tornou-se possível graças aos avanços da Medicina. Foram eles que geraram a expectativa não da vida prolongada, mas da juventude eterna. Apresentar sinais da passagem do tempo, como as rugas de expressão que deixam estampado no rosto nossas caretas mais típicas, é como andar por aí com uma bomba relógio na testa, mostrando que resta pouco prazo. Admiramos nos jovens sua condição de potencial, de promessa, eles não escolheram ainda seu amor, sua profissão, seu modo de vida, por isso nos parece que eles têm o mundo em suas mãos, pois escolher é perder. Acredito que a qualquer momento da vida estamos em condições de reinventar outro destino, dar guinadas (por isso sou psicanalista), e quando fazemos isso na maturidade é de forma menos ingênua, e, porque não dizer, mais sábia. Se investirmos todas as nossas energias em ocultar a idade (e isso custa muito tempo, trabalho e dinheiro), como o hábito faz o monge, seremos imaturos como nossa imagem sugere, o que, convenhamos, numa pessoa mais vivida é bem patético. Conseqüentemente, acabaremos sem condições emocionais para aproveitar a vida do jeito que a sabedoria do tempo nos ensinou. Aliás, quanto mais sabedoria, menos remendos na imagem necessitamos. Quanto às mulheres, como no nosso baralho o amor é uma carta que vale mais do que no baralho masculino, somos mais dependentes da imagem, a qual consideramos decisiva para ser amadas. Porém essa é uma diferença que está diminuindo entre os dois sexos, cada vez mais encontramos homens na frente do espelho dizendo: ‘espelho, espelho meu, haverá um homem mais belo do que eu?’.

ÉPOCA – Na maioria dos contos, a casa paterna/materna é sempre uma ameaça. Mais seguro se está na floresta. Por quê?
Mário – A casa paterna nem sempre é uma ameaça, ela torna-se quando exigimos que a criança cresça, pois ela se sente expulsa. Nesse momento a floresta (representando tudo que é fora de casa) confunde-se com o lar, pois o aconchego, segundo a criança, já não existiria. Não raro as crianças tomam as tentativas educacionais dos pais como maus tratos. A mensagem ‘cresça’ é escutada como ‘não gostam mais de mim’. Outro momento em que esta questão pulsa é quando o jovem desperta para o sexo e, como sabemos, o destino dessas pulsões só pode ser o dos habitantes da ‘floresta’. Nesse momento a floresta apresenta sua face ameaçadora, terrífica, obscura, como são os segredos do sexo para quem está começando.

ÉPOCA – Que lugar tem o espelho, falante ou não? Quem ou o que é – e nos diz?
Diana – Assim como o ‘auto-móvel’, que não sabe mover a si mesmo sem um motorista, a auto-imagem depende de que alguém testemunhe, confirme e afirme em alto e bom som eu que somos bonitos, amados e tudo de bom. Como se vê, não temos muita ‘auto-nomia’! É aí que entra o espelho em seu caráter metafórico. Nós o olhamos um número maior de vezes do que seria necessário para ver se o cabelo, a maquiagem ou a barba ficaram bons, e isso é porque ele é mudo. Fosse como o da madrasta da Branca de Neve talvez tivéssemos alguma independência dele. Poderíamos ficar nos repetindo suas palavras – és a mais bela das mulheres- como um mantra auto-reconfortante. A imagem corporal que temos foi construída quando éramos bebês graças à voz, ao toque, ao olhar da nossa mãe (ou quem ocupe lugar similar), por isso ela será para sempre uma fonte de diálogo com essa alteridade, esse olhar de fora que o espelho representa.

ÉPOCA – De todos os contos, o que mais se prestou a apropriações eróticas nos dias de hoje foi Branca de Neve por causa dos sete anões. O que aconteceu com o anões? O que eram e o que são?
Mário – Sinceramente não conheço estatísticas de uso erótico das histórias de fada, mas faria sentido. Os anões nos parecem uma fusão do ‘fora do sexo’ ou seja, eles têm o tamanho das crianças e as barbas e a idade da velhice. Quando Branca de Neve procura um lugar onde sua beleza não incomode é ali que encontra um lugar seguro. Nos mais variados contos de fada os anões estão sempre em busca de um tesouro ou guardando um tesouro, o seu objeto de cobiça nunca é erótico/amoroso. Logo sexualizar os anões seria, se a simbologia se mantém, sexualizar as crianças e os velhos, o que de fato cria um eco em todos, pois na verdade são seres sexuados desde sempre, embora isso seja um tabu.

ÉPOCA – Por que, ao contrário das mães, os pais são sempre perdoados, mesmo quando seu desejo é incestuoso, como em ‘Pele de Asno’?
Mário – Os pais nem sempre são perdoados. Quando o herói é masculino, como em João do pé de feijão, por exemplo, o pai-ogro termina morto. As mãe boas não são perdoadas por que nem ao menos foram acusadas, pobrezinhas, morreram no começo da história. Quem vai para a fogueira mesmo é a madrasta. Em Pele de Asno não há uma figura de pai dissociado, onde um possa morrer e o outro maravilhoso estará sempre no nosso coração. Só nos resta fazer as pazes com ele, então. Até por que os contos de fada trazem uma verdade psicológica importante, depois de sair de casa fica mais fácil conviver com os pais. Acredito que o perdão das princesas que foram desejadas pelos pais chega depois que elas se dão conta que estavam mais envolvidas nesse processo que gostariam de admitir. Em suma, o desejo que esses homens-pais expressaram por elas ajudou com que se tornassem mulheres (porém, este deve ser suposto, jamais atuado). Senão, por que pediriam aos pais mais e mais vestidos deslumbrantes, mesmo sabendo que eles os davam movidos pela paixão incestuosa? Assim é o processo de construção da identidade feminina: é necessário que pai esteja lá na medida certa.

ÉPOCA – Mesmo como as vilãs dos contos, o veneno/maldição que as mães/madrastas/bruxas dão às filhas/princesas/afilhadas é justamente a sexualidade (seja pela maçã, seja pelo fuso da roca), o que torna esta morte apenas uma passagem da vida de menina para a vida de mulher. Neste sentido, as vilãs não estariam libertando as princesas?
Diana – Com certeza. As vilãs como a bruxa de Branca de Neve estão dando às princesas os atributos necessários para despertar para o desejo sexual (nas três vezes que a visita, a madrasta entrega a ela um pente, cadarços para o espartilho e o fruto proibido). Em muitos contos de fadas, as jovens mulheres recebem de auxiliares mágicas, mulheres mais velhas, objetos que representam a identidade feminina e com os quais conquistarão seus príncipes. Porém, nesses casos, a sucessão se dá sem conflitos, o que não ocorre quando a mulher mais velha ainda mantém seu viço, ainda não abdicou de seu lugar entre as mulheres desejáveis. Via de regra é assim que ocorre na vida, pois quando a filha fica com aquele corpinho invejável, a mãe ainda é uma mulher jovial, que gosta de sexo e quer ser desejada. É aí que a inveja materna, representada por disputas de beleza ou algumas farpas verbais (mulheres lutam com as línguas, não com os punhos) cumprem uma função importante: a de assinalar à jovem que a mãe a reconhece como uma rival à altura, uma a mais entre as mulheres. Quando isso ocorre, a criancinha amada da mamãe, aquela que era arrumada como uma bonequinha, morre. Em seu lugar desperta uma jovem mulher, que poderá, nas histórias da vida com final feliz, tornar-se uma amiga de sua mãe, mas não será mais seu bebê encantado. Sendo assim, se alguma libertação acontece, é a de que com essa disputa o idílio entre mãe e filha se encerra de vez, assim essas mães vilãs estariam libertando as filhas-princesas de si mesmas.

ÉPOCA – O que acontece depois do ‘felizes para sempre…’ E quando e porque os ‘felizes para sempre’ passaram a encerrar os contos de fadas?
Mário – A ideia de Bettelheim ainda é a melhor explicação. Ele nos diz que a expressão significa, na verdade: ‘Agora não haverá mais angústia de separação’. Em boa parte das histórias há um desencontro radical inicial e o final é o re-encontro num patamar mais elevado. O que as crianças e, convenhamos, os adultos querem acreditar é que nunca mais vamos nos separar dos seres amados que nos cercam, nunca mais vamos ter perdas amorosas. Nem todas histórias da tradição tinham o fecho com essas palavras, mas o conteúdo tinha esse mesmo sentido. Atualmente é um mote tão obrigatório assim como o: ‘Era uma vez…’ Os contos de fada são por definição resolutivos ao contrário dos mitos que tendem ao trágico. Logo, depois do felizes para sempre pode haver outra história que, por mais tenebrosa que seja, também terá um final feliz.

ÉPOCA – Qual a personagem infantil mais moderna? A que retrata melhor o nosso tempo?
Mário – Acredito que seja o Pinóquio. Embora escrito no fim do século XIX, talvez seja o mais atual. O drama dessa marionete, que quer a qualquer preço chegar a ser um menino, centra-se na incomunicabilidade entre pai e filho. Eles não se entendem, vivem momentos muito diferentes. Gepeto quer que ele seja obediente como um…marionete, enquanto Pinóquio é neurótico, desobediente e confuso como um… menino! No mesmo processo que se constrói a maturidade do filho, o pai vai aprendendo os ossos do ofício, tanto que, já nas primeiras páginas do livro de Collodi, Gepeto chora lágrimas de arrependimento quando descobre quão trabalhoso é ser pai e descobre que é tarde demais para voltar atrás. Pinóquio traz principalmente uma verdade cruel para os pais: eles vão ter que aguentar os filhos fazendo os mesmos erros que eles próprios cometeram. Pinóquio é um banho de água fria nas utopias pedagógicas, considera que a transmissão da experiência é quase impossível. É preciso errar para crescer, e ser pai é também saber aguentar isso.

Trecho do livro Fadas no Divã, de Diana e Mário Corso

O Rei Sapo

A mais célebre história de um noivo animal e da transformação do repulsivo em atraente é com certeza O Rei Sapo. Nele, um monarca enfeitiçado depende do afeto de uma princesa para voltar à forma original. Uma das mais clássicas cenas evocadas pelos contos de fada é justamente a da bela princesa beijando um repulsivo batráquio, permitindo-lhe o retorno da metamorfose. A possibilidade de um sapo virar príncipe é um bom argumento para o fato de que as aparências não devem ser impedimento para uma relação. Seguidamente as mulheres recorrem a essa história como metáfora, quando argumentam que vale a pena investir em determinado pretendente, apostando mais no que ele se tornará do que naquilo que é no presente. Mas vale a leitura do conto, tal como estabelecido pelos irmãos Grimm, para nos surpreendermos com um fato importante: a princesa também tem lá sua feiura.

Trata-se da filha mais jovem do rei, como sempre, a mais bela de todas as princesas. Nos dias quentes, ela tinha por hábito brincar com sua bolinha de ouro perto de uma fonte, mas uma vez deixou cair seu precioso objeto na água profunda, fazendo o brinquedo desaparecer. Desesperada, pôs-se a chorar como um bebê, aos gritos. Nesse momento surge um sapo, prometendo alcançar-lhe a cobiçada bola, mas somente se ela concordar em levá-lo para a casa dela. Além disso, teria de lhe aceitar como companheiro de brincadeiras, compartilhar com ele seu prato e admitir sua companhia até na própria cama. A jovem concordou, mas sem a mínima intenção de honrar uma promessa feita a tão desprezível criatura – e aqui ela se mostra uma pessoa bem pouco bonita. Depois de obter a bola de volta, ela foge correndo do sapo, mas ele vai até o castelo e bate à porta, exigindo o cumprimento da palavra da princesa caçula.

Horrorizada com a aparição do sapo, a princesa relata o ocorrido ao pai que, ao invés de apoiá-la, exige-lhe que faça jus à promessa. Assim, tomada de nojo, é obrigada a admitir o batráquio em sua mesa e em sua cama; na hora de dormir, ela não aguenta mais o assédio dele e raivosa o atira contra a parede. Ele, então, se transforma num belo príncipe e ela, numa enamorada princesa.

É surpreendente que o gosto popular recente tenha se apegado a uma cena que simplesmente não existe na narrativa clássica dos irmãos Grimm: a da princesa beijando o sapo. Não só nossa heroína jamais se disporia a isso, como também a transformação não era provocada por um ato de amor e sim de violência. Na atual versão popular, o sapo esclarece à jovem que ele é um príncipe enfeitiçado e, em nome da perspectiva da transformação, ela se sacrifica e vence o nojo, beijando-o. Já nesta narrativa mais antiga, a princesa se envolve com o animal sem esse consolo, a aparição do belo príncipe é uma surpresa que a recompensa pelos maus bocados por que passou.

Ao sermos fisgados pelo amor, temos como conseqüência a saída da casa dos pais para vivermos a relação, porém, isso nem sempre é pacífico. Por mais que os contos insistam que o amor é uma promessa capaz de recompensar pela infância e pela família perdidas, partir é mais fácil para os heróis que têm madrastas bruxas, pais fracos, egoístas ou que são mesquinhos movidos pela fome. Quando o lar convida a ficar, sair será uma operação dolorosa e brusca, que pressuporá algum tipo de expulsão, comumente personificado por um casamento imposto contra os desejos da jovem. Na história do Rei Sapo, o pai da princesa lhe impõe a companhia do ser viscoso em seu leito, submetendo-a à violência desse convívio. O gesto agressivo da jovem está à altura do caráter torturante da situação em que se viu envolvida, mas também é um gesto dramático de rompimento, de revolta contra a autoridade do pai e contra as exigências do sapo. A independência não pode ser construída de submissão, crescer é também perceber a limitação da força e do poder da autoridade parental.

A versão popular do beijo não enfatiza o ato de rebeldia da princesa. Naquele caso, a jovem se dispõe a uma troca vantajosa: ela faz um esforço para vencer o nojo em nome de um amor possível (voltaremos ao tema da repulsa mais adiante). De qualquer maneira, ela se submete, mas o fará somente se isso lhe convier. Um sacrifício movido por uma razão pragmática não é um ato de obediência, é uma troca.

De qualquer maneira, o que é conhecido como um beijo, originalmente foi escrito como um arremesso, sendo assim, não há como suavizar essa trama. Para ocorrer, um amor depende de que um rompimento com a família de origem esteja em curso ou consumado, é necessário que o amor entre pai e filha tenha encontrado uma nova dimensão.

Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida, mas ajudam. Elas são como exemplos, metáforas que ilustram diferentes modos de pensar e ver a realidade e, quanto mais variadas e extraordinárias forem as situações que elas contam, mais se ampliará a gama de abordagens possíveis para os problemas que nos afligem. Um grande acervo de narrativas é como uma boa caixa de ferramentas, na qual sempre temos o instrumento certo para a operação necessária, pois determinados consertos ou instalações só poderão ser realizados se tivermos a broca, o alicate ou a chave de fenda adequados. Além disso, com essas ferramentas podemos também criar, construir e transformar os objetos e os lugares.

Uma mente mais rica possibilita que sejamos flexíveis emocionalmente, capazes de reagir adequadamente a situações difíceis, assim como criar soluções para nossos impasses. Certamente essas qualidades dependem de que tenhamos recebido um suporte adequado na infância, ou seja, uma família que nos ofereceu a proteção e o estímulo necessários para crescer, um nome e uma missão na vida. Porém, independente do quanto nossa família tenha nos providenciado um bom acervo emocional, os problemas, as dúvidas e as exigências surgirão, como uma esfinge devoradora que se interpõe no caminho. Bem, essa é a hora em que uma boa caixa de histórias é de grande valia.

Por acreditar no poder da fantasia, nos lançamos na tarefa de refletir sobre o que as histórias antigas, que ainda são narradas, e as novas, que surgiram modeladas por valores contemporâneos, têm a dizer às pessoas que recorrem a elas. Supusemos que há uma relação pragmática com a ficção, usamos o que nos é útil. Porém, essa utilidade não depende de mensagens diretas, pois, se esse fosse o caso, apenas se consumiriam livros de auto-ajuda e manuais variados, o que felizmente não é verdade. Muitos adultos caem nessa cilada, fato que somente os torna mais pobres de espírito, na medida em que esse tipo de leitura não os alivia das obsessões, nem os livra de suas ruminações labirínticas.

Por sorte, as crianças são muito mais espertas, elas são adeptas irrestritas da ficção e quanto mais mágica, onírica, radical e absurda, melhor. Pode-se também traçar um paralelo interessante com a poesia, através da qual as palavras se tornam ferramentas polivalentes. Crianças adoram trocadilhos, rimas divertidas, sentidos surpreendentes e humor, e é nisso que as julgamos sábias, pois o domínio da língua flexibiliza o entendimento da realidade e faz nosso pensamento mais versátil e ágil. Enfim, é uma sorte que na mesma época em que estamos em formação, arrumando as malas que conterão os fundamentos que vamos levar na viagem pela vida afora, sejamos consumidores vorazes de ficção.

(Publicado na Revista Época em 23/09/2005)

O Povo do Meio

Esses brasileiros não votam, são analfabetos e oficialmente não existem. À margem do país, estão jurados de morte

Eliane Brum (texto) e Maurilo Clareto (fotos)

Raimundo Nonato da Silva e família

Raimundo Nonato da Silva e família

Raimundo Nonato da Silva não sabe quem é Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os dois Silvas, o presidente do Brasil e o brasileiro sem presidente, há um vasto mundo no qual se chamar Raimundo nem é rima nem é solução. Ele vive num país desconhecido do próprio Brasil, onde a maioria dos homens atende por Raimundo. Sua república fica no coração da Amazônia e pertence a uma região cujo nome parece ter saído do universo mitológico de J.R.R.Tolkien: Terra do Meio. É um país invisível porque 99% dos habitantes não têm documentos. Oficialmente, os Raimundos e Raimundas não existem. Mas estão lá, insistem em existir, rasos de letras, plenos de paradoxos. São analfabetos ou, como eles dizem, “cegos”. Nunca votaram porque fantasmas só se tornam eleitores em currais de fins de mundo. E eles vivem um pouco mais além do fim do mundo. O Povo do Meio pode desaparecer antes que o país oficial se aperceba dele. Como a floresta em que vive, e com a qual se confunde, está ameaçado de extinção.

Descendentes de soldados da borracha, nordestinos levados para os confins da selva pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, por lá ficaram e multiplicaram-se formando uma só família com menos de duzentas pessoas entrelaçadas em intrincada teia de parentescos. Vivem como os índios viviam antes de terem contato com o que se chama de civilização. Caçadores e coletores, comem o que a floresta lhes dá. E ela lhes dá muito. Castanha no inverno, caça, pesca e óleo das árvores de copaíba e andiroba o ano todo.

Assim seguiriam com a vida em seu país sem moeda, não fosse terem sido descobertos pelos homens que são chamados de grileiros. Esses predadores da floresta são velhos conhecidos da Amazônia. Enviam seus pistoleiros carregados de armas e licença para matar. Empunham títulos de terra forjados numa rede de corrupção que começa nos cartórios e chafurda em intermináveis caminhos da Justiça. Apregoam-se donos de milhares, milhões de hectares de floresta. Poucos aparecem como o que são. A maioria vive nas grandes cidades do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, usam testas de ferro para cometer seus crimes enquanto sentam-se com as unhas polidas para assistir a concertos de música clássica.

Como no tempo de Pedro Álvares Cabral, os representantes dos grileiros ofereceram primeiro espelhinhos aos Raimundos: no caso, um punhado de reais para deixar a floresta. Depois, exibiram o cano da espingarda. Hoje, o Povo do Meio está jurado de morte. Só o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, um dos poucos rostos conhecidos, disputa na Justiça uma área que pode chegar a 7 milhões de hectares – um território com o tamanho da Holanda e da Bélgica somadas. Se conseguir, vai obrigar todo o Povo do Meio a abandonar suas terras.

“Só me arrancam daqui com uma arma na cabeça”, diz Raimundo Belmiro, 39 anos, nove filhos. Raimundo, um dos líderes da comunidade, é um homem quieto, com a coragem de quem faz o que o caráter manda apesar do medo. “Um dia eu voltei do mato e os homens de fora estavam na minha casa. Depois vieram outros e não pararam mais de chegar. Me ofereceram 10 mil reais pela minha terra. Eu disse não. Eles então começaram a cercar meu lugar por todos os lados. Passam no rio em rabetas cheias de pistoleiros armados. São armas garantidas, de repetição, não como a minha espingarda de caça que tem 23 anos. Querem me botar medo. E conseguem. Sou um homem jurado de morte.”

Raimundo e sua família acordaram naquela manhã sem nada para comer. Cada um embrenhou-se num ponto cardeal da mata em busca de alimento. Antes do meio-dia, Fernando, de treze anos, caçou uma anta de quase trezentos quilos e Francisco, de catorze, trouxe duas queixadas. Raimundo explica: “A floresta é assim, rica de um tudo. Por isso tô marcado pra morrer, mas fico”.

O país dos Raimundos

Raimundo reedita a história de Chico Mendes, promovido a herói nacional depois de um assassinato anunciado que ninguém impediu. Seu mundo, porém, fica ainda mais longe. Com quase 8 milhões de hectares, a Terra do Meio transformou-se numa das derradeiras possibilidades de preservação da Amazônia. Encravada no estado do Pará, tem esse nome porque fica entrincheirada entre os rios Xingu e Iriri. Cercada por territórios indígenas e florestas nacionais, seu paradeiro geográfico acabou protegendo-a por muito tempo da devastação: a oficial, representada pelas várias tentativas desastradas de ocupação da selva, especialmente pelos governos militares; e a privada, liderada por predadores disfarçados de empreendedores, usando a palavra bonita do agronegócio. Terra de ninguém, é reivindicada por muitos.

Nos anos noventa, o assalto dos grileiros a suas fronteiras recrudesceu com a operação da máfia do mogno. Nos últimos meses, a notícia do asfaltamento da Transamazônica e da Cuiabá – Santarém multiplicou a pressão. A sudeste, em torno de São Félix do Xingu, a região se transformou num faroeste. É lá que acontece a maioria dos flagrantes de trabalho escravo, extração ilegal de madeira e mortes por conflitos de terra que alimentam o noticiário nacional. Na fronteira nordeste, cuja porta é Altamira, a invasão avança em ritmo apressado. É a noroeste, à beira de um igarapé chamado Riozinho do Anfrísio, que vive a população de Raimundos – cada casa a horas, até dias, de canoa de distância uma da outra.

O nome vem de Anfrísio Nunes, um sergipano que, como outros tantos, recebeu autorização do governo para explorar os seringais da Amazônia. Seus descendentes também reivindicam a posse da terra. “O Anfrísio levou mais de duzentas famílias de arigós do Nordeste para cortar seringa no Riozinho”, conta sua enteada e nora, Vicencia Meirelles Nunes, de 74 anos. “Naquele tempo os índios dizimavam famílias inteiras de arigós. O Anfrísio criou dezoito órfãos de gente morta pelos caiapós e pelos araras.”

Os Raimundos são justamente os descendentes dos “arigós”. Abandonados à própria sorte quando a borracha deixou de ser lucrativa, moldaram seu destino à revelia do Estado: sem escola, sem saúde, sem registro de nascimento. Não querem a posse da floresta, só querem viver nela. Sua concepção de mundo não inclui cercas.

A travessia de Herculano

Herculano Porto

Herculano Porto

Para mostrar ao Brasil que seu povo existe, um homem miúdo chamado Herculano Porto, de sessenta anos, foi escolhido para empreender uma viagem à cidade de Altamira. Único chefe de família com documento, só ele estava apto a realizar a travessia. Tornou-se o presidente da comunidade. Depois de um dia remando na sua canoa, esse homem com perfil de passarinho e olhos de gato alcançou a boca do Riozinho do Anfrísio. De lá, pegou um barco a motor. No caminho, chegou a topar com uma onça que atravessava o rio. “A gente achou que era um veado e botou o barco por cima”, conta.

Era 7 de setembro quando Herculano iniciou a viagem de volta. Havia cumprido sua missão: carregava duas bolas de futebol e um documento elaborado pela Comissão Pastoral da Terra no qual a comunidade pedia ao governo federal a criação de uma reserva extrativista. Abaixo da reivindicação, seu povo teria de gravar os polegares para valer como assinatura.

Entre Herculano e seu país acessível somente por água estendiam-se 328 quilômetros de rios. Sua saga só terminaria dias mais tarde, ao final de uma trama fluvial que conduz sempre para dentro. Depois do Xingu, o Iriri aprofunda-se na Terra do Meio sobre um labirinto de pedras. É preciso vencer meia dúzia de corredeiras, cada vez desembarcando e subindo a pé para depois içar o barco com cordas em meio à correnteza. Na empreitada, as mãos arrebentam até sangrar.

Homem alfabetizado na língua da água, Herculano não temia as armadilhas do rio. Só era assombrado pelos conselhos do proeiro, Benedito dos Santos, que em 62 anos de vida amazônica foi seringueiro, garimpeiro, cafetão, caçador de onça e jagunço. Não tem história contada por ele em que não morram uns dois ou três. “Já botei muita gente pra fora de terra pros doutor nesta Amazônia. Tem mais facilidade tomar conta com agressão. Essa história já se repetiu tantas vezes e nunca vi posseiro ganhar. Sempre vai ter essa briga de terra no mundo”, ia desfiando rio afora. “Homem, vende logo seu pedaço antes que lhe joguem fora.” Herculano esboçava um sorriso falhado de dentes, mas farto de persistência.

Para alcançar a boca de sua terra na estação da seca são sete dias num barco de linha. Isso se tudo correr bem. É comum os passageiros terem de acampar numa passagem mais difícil por semanas até conseguir vencê-la. Pelo caminho, homens como Herculano vão sondando o rio e a mata em busca da comida – em especial um tipo de quelônio chamado tracajá. Eles têm a selva por restaurante. Para ganhar tempo, só fazem uma refeição ao final do dia, depois que o sol se deita e as pedras do leito do rio tornam-se invisíveis e fatais. Banham-se arrastando os pés no fundo, cuidando para não pisar nas arraias, com seu ferrão de punhal. A alguns metros os jacarés perscrutam com seus olhos de lanterna, à espera de um incauto que se aventure mais longe. Herculano e os seus não arriscam. Pertencem a esse mundo, são natureza. Atam a rede nas árvores e deitam-se para uma noite de sono sussurrado.

Nessas madrugadas, o silêncio da selva é feito de ruídos. Herculano Porto conhece cada um deles pelo nome. Tem a floresta dentro da cabeça. Os animais não atacam. Como o ecossistema ainda é equilibrado, há comida para todos e o homem é um predador que nem as onças desafiam sem um motivo forte. Nas águas, apenas as sucuris devoram pessoas como seres de um mundo quase perdido. Logo depois de Herculano passar, uma delas matou um homem quando ele nadava. A cobra triturou seus ossos. Depois o engoliu.

Enquanto Herculano singrava os rios de seu mundo primitivo, parte de sua terra era oferecida na internet por 6 milhões de reais pela imobiliária Sofazenda, de Varginha, em Minas Gerais. A oferta anunciava as maravilhas do Riozinho do Anfrísio: “Dezenas de qualidades de madeiras de lei, em densas florestas, ricas em mogno…”. Assim como “grande reserva de minério, cassiterita, ouro, diamante e outros”. Procurado pela repórter, o corretor Aldamir Rennó Pinto explica que a área foi tirada do catálogo “porque estava enrolada”. Oferece outra, de 390 mil hectares, por 27 milhões de reais. “Inclusive, a outra terra estava dentro dessa que estou lhe oferecendo. Ela pertence aos herdeiros do Anfrísio Nunes e já estou com os títulos, tudo certinho.”

Analfabeto, Herculano enfrenta a golpes de dedão o universo da grilagem cibernética. Quando finalmente desembarcou em casa, descobriu que seu castanhal havia sido posto abaixo. Faltava apenas a derrubada das árvores maiores. E depois o fogo. Para Herculano, um castanhal contém o passado, o presente e o futuro. É quase o reflexo do homem. Também marcado para morrer, Herculano havia cumprido sua missão. Mas, quando o documento com as digitais de seu povo alcançar o país oficial em Brasília, ninguém terá a dimensão do tamanho da odisseia.

A disputa das almas

Até a chegada dos invasores, a Terra do Meio havia girado sem dinheiro. Os grileiros levaram moeda e cobiça. Foram penetrando pelas frestas das almas, dividindo para semear a discórdia. Francisco dos Santos, o homem que mais conhece o rio e suas manhas, foi o primeiro a ser assaltado por tentações. Chico Preto, como é chamado, vendeu-se por vinte reais ao dia para botar e tirar peão e pistoleiro do interior do Riozinho do Anfrísio. “Eu luto pela reserva, mas eles pagam em dia e aqui é difícil ganhar dinheiro de outro modo”, diz Chico. “São pessoas alegres, prestativas, nem parece que matam gente.” Seu enteado, mais um Raimundo, tornou-se o homem de confiança de um grileiro conhecido por Goiano, cujas atrocidades já viraram lenda. Opera na boca do rio o rádio que denuncia a chegada de estranhos. “É melhor vender a terra porque vão tomar de qualquer jeito. Aí botam a gente pra fora sem nada”, defende esse Raimundo dissidente.

Os grileiros aproveitam-se do abandono para oferecer o que o Estado não dá. “Quero levar melhorias para aquele povo. Escola e posto de saúde. Já botei um carro à disposição deles”, diz Edmilson Teixeira Pires, 51 anos, que reivindica a posse de algumas dezenas de quilômetros quadrados. Já riscou uma estrada a partir da Transamazônica, onde instalou mais de uma casa e dezenas de peões. Só não chegou ao rio porque encontrou em seu caminho Luiz Augusto Conrado, 51 anos, conhecido como Manchinha por conta de uma mecha de cabelos brancos que ostenta desde bebê. “Pode recuar. Na minha terra vocês não entram”, avisou.

Manchinha conhece bem a caridade dos doutores. Antes de casar com Francineide, parteira do Riozinho do Anfrísio, foi escravo em fazendas no Pará por mais de dez anos. Depois virou garimpeiro em Serra Pelada. Viu de tudo, menos ouro suficiente para mudar a sina. Sabe muito bem de que matéria é feita sua resistência: “A floresta é o único lugar que tem fartura pra pobre. Os homens vão nos cercando e a gente precisa da castanha, da caça, da pesca. Vão nos matando porque encolhem a terra. Quando uma das estradas, das tantas que tão cortando por aí, chegar ao rio, acaba nós e o mato”.

Ameaçados de extinção

Se os invasores vencerem essa que é uma das últimas guerras da Amazônia que ainda é possível ganhar, com a selva desaparecerão 346 espécies de árvores, 1.398 tipos de vertebrados, 530 qualidades de peixes. Boa parte dessas variedades são endógenas – ou seja, só existem na Terra do Meio. O mundo ficará mais pobre em biodiversidade, que é o tipo de miséria irrecuperável. Mas, além da perda de milhares de espécies, o planeta estará também menos sortido de gente. O Povo do Meio é um dos últimos de sua estirpe, ceifada junto com a floresta. O isolamento – e o abandono – construiu nos confins do Brasil a extravagância de uma cultura sem imagem que ainda persiste no século XXI.

É por isso que se tornou uma terra de Raimundos. Sem TV, eles nunca batizaram filhos de “Maicon” ou “Dienifer” – nem ficaram sabendo que João e Maria viraram nomes chiques. São consagrados a São Raimundo Nonato, que, por ter sido extraído do útero da mãe morta, ao tornar-se santo virou protetor das parteiras. Todo o imaginário é costurado de ouvido. As cenas são formadas a partir de fragmentos da Rádio Nacional da Amazônia, o único contato com o Brasil. É assim que reinventam as jogadas de futebol a partir dos lances escutados – e jamais vistos.

Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho são ídolos sem rosto, cujas façanhas são reinterpretadas na cabeça de cada Raimundo. É no futebol que esses homens da floresta forjam seu RG de brasileiro. A identidade é a bola, trocada por duzentos quilos de castanha no Regatão, espécie de shopping fluvial que passa meia dúzia de vezes por ano para o escambo da produção local pelos artigos da cidade.

Raimundo Nonato da Silva, o brasileiro que não sabe quem é Lula, tem um campo de futebol diante de sua casa de pau a pique coberta de babaçu. Nos domingos, seus meninos trocam a faquinha da seringa pela bola. É nesse cartório de chão batido que registram seu nascimento. “Era bom saber o nome do presidente do Brasil por saber, mas diferença não faz”, afirma.

Quem não conhece a sina de Raimundo poderia achar que ele é variado das ideias. Desde que nasceu, herdeiro de um soldado da borracha que caiu morto no seringal – “Meu pai se chamava Zuza, sobrenome Zé” –, viveu uma vida sem Estado. Sabe apenas que para além do rio há um lugar chamado cidade, que concebe, enigmaticamente, como “um tipo de movimento”. Para ele, tanto faz mesmo o nome do presidente. A ideia de país não pertence ao seu imaginário. É o Brasil que precisa descobrir Raimundo, antes que seja tarde.

Reportagem publicada na Revista Época

Ao amigo presidente

Eleitor gravou todas as promessas de Lula e fez o próprio balanço do primeiro ano do governo

O brasileiro Hustene Pereira terminou o primeiro ano do governo Lula sem emprego e, a suprema ironia, com bursite. Foi o que o médico do plantão lhe disse depois de examinar as radiografias: ‘Tá com doença de presidente’. Não era exatamente essa a herança que ele esperava do homem que ajudou a eleger. Doía mais o coração que o braço direito quando, nos últimos dias de dezembro, Hustene trancou-se no único dormitório da casa e só saiu depois de assistir a seis horas de fitas gravadas em vídeo. Nelas, ele tinha registrado todas as promessas de Lula para que pudesse fazer seu balanço pessoal do governo. Saiu do quarto constrangido.

Desgostar do governo mas não conseguir xingar o presidente é o que há de realmente novo em sua vida. Ele acha que o país não mudou, mas continua tendo uma empatia enorme por Lula. Ao preencher quatro páginas em letra corrida numa carta endereçada ao Planalto, Hustene reclamou do desemprego, que joga gente como ele no abismo, do Fome Zero, que parece atolado no marketing, de que Lula saracoteou muito no estrangeiro quando os problemas estavam bem aqui, em sua barba aparada. ‘Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir’, diz. Assim mesmo, despediu-se com um ‘forte abraço ao amigo Lula’.

Hustene não é petista, é lulista. Sem ser filiado ao PT ou militante, ele votou em Lula em 1989, em 1994, em 1998 e finalmente em 2002. E votaria mais ä quatro vezes se fosse preciso. ‘Eu assisti à posse chorando. Tinha certeza de que voltaria ao mercado de trabalho’, cobra. ‘A gente não está pedindo absurdos. Um homem não quer esmola, vale-isso, vale-aquilo. Quer salário. A dignidade do homem é levantar, sair para trabalhar e pagar as contas.’

O último trabalho registrado na carteira de Hustene terminou em 17 de outubro de 2001. Em fevereiro do ano seguinte, ele ilustrou uma reportagem de ÉPOCA sobre desemprego. Dava rosto à estatística de milhões de pais de família que se descobriram do lado de fora da porta – depois de experimentar o gosto das ofertas nas prateleiras do consumo e de prometer aos filhos que se estudassem mais venceriam na vida. Ele sempre havia trabalhado no escritório de empresas, orgulhoso de sua datilografia e escrituração fiscal. Passou dos R$ 1.000 de salário. Em mais de dois anos de desemprego conseguiu fazer dois bicos como trabalhador braçal. No segundo, já completa um mês. Acorda às 4 horas para ajudar na carga e descarga de bebidas e alimentos. Ganha R$ 15 por dia quando há serviço. Em média, R$ 200 por mês sem benefícios.

‘Aos 44 anos de idade, estou no zero’, conclui. Ele não é do tipo que se entrega. Hustene é do gênero esperneante. Cansado de ouvir que não conseguia trabalho porque só tinha a 7ª série, bateu na porta do supletivo. Em dois anos de desemprego se formou no ensino fundamental, e faltam três matérias para ganhar o diploma do ensino médio. No meio, fez um curso de computação. Na escola, copiava tudo o que ouvia. Não perde documentário ou noticiário da TV e assim vai complementando a educação. Fez questão de escrever a carta a Lula para se certificar de que ele, Hustene, existe.

Acha que um homem precisa de futebol, fé e ideologia para não perder a sanidade. Fincou três pilares no assoalho de sua brasilidade: Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. O que sente pelo presidente é próximo do que nutre pelo Timão. Tanto um como o outro o decepcionaram no ano que passou. ‘Lula e o Corinthians empataram em 2003’, diz. ‘Jogaram para não cair.’ Mesmo assim, continuará torcendo por ambos. Não por um amor incondicional, mas por pertencerem ao reduzido rol de escolhas que definem o caráter de um homem.

Ao usar uma das metáforas preferidas do presidente, Hustene não está confundindo futebol com política. Está dizendo que perder a esperança tanto em um como no outro lhe custaria mais do que pode pagar nesta altura da vida. ‘A esperança que eu tive nestes anos todos era a de um trabalhador no governo. Se ele falhar, o que me resta? Rezo a Nossa Senhora de Fátima que ele não chute o pênalti para fora.’

Hustene escreve à noite na cozinha para não se sentir só, a mulher, a neta e dois filhos dormem no quarto, os dois mais velhos no chão da sala. Em forma de diário, manteve o ‘camarada Che’ informado. ‘Che, hoje o Brasil tem alguém digno dele’, na vitória. ‘Que o espírito guerrilheiro acompanhe o Lula nesta batalha’, na posse. ‘Aos 40 anos somos nós reserva do passado’, em junho. ‘Somos sufocados por uma herança neoliberal’, em julho. ‘Falta pulso’, em outubro. ‘É quase um ano de um governo com que tanto sonhei e não vi coisas concretas, mas espero ver ainda’, em dezembro. ‘Olha, Che, não desabafarei mais este ano. Estou preocupado com o Lula.’

No primeiro ano do governo, o Natal de Hustene passou sem peru nem presentes. O nome continuou sujo no SPC. A carteira de trabalho seguiu em branco. Hustene prometeu manter sua esperança em Lula por mais três anos. Só espera que, ao final, não lhe dêem para a vida a mesma solução que o médico deu para a bursite: ‘Não tem cura, só nascendo de novo’.

(Publicado na Revista Época em 05/01/2004)

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