Entrevista: Brasil, o “eterno país do futuro” que se viu “atolado no passado”

No Público, jornal de Portugal, respondo a duas perguntas sobre o Brasil feitas pela ótima Mariana Correia Pinto. Está dentro de uma reportagem maior, que ela fez sobre os brasileiros chegando em Portugal para viver.

 

Fotos: Lilo Clareto

Fotos: Lilo Clareto

ENTREVISTA

Brasil: o “eterno país do futuro” que se viu “atolado no passado”

Há um país em “profundo desencanto” e em crise. Mas há também resistência e reinvenção. Os “Brasis” possíveis pelos olhos da jornalista, documentarista e escritora Eliane Brum.

MARIANA CORREIA PINTO
20 de Julho de 2018, 8:38
Leia o original em Público

Se perante um acontecimento o mundo estiver a olhar para um lado, é provável que Eliane Brum esteja a fitar o sentido contrário. Repórter, documentarista e escritora, nascida em 1966 em Ijuí, no Brasil, Eliane define-se como “uma escutadeira que escreve” — porque acredita que é nesse dom de saber ouvir que está boa parte do segredo de um bom jornalista. E ela escuta, muitas vezes “a vida que ninguém vê” (como diz o título de um dos seus livros), as que raramente são notícia, encontrando nelas o princípio de tudo. Na Amazónia, onde faz reportagem há 20 anos e para onde se mudou em Agosto passado, tem conhecido esse Brasil que não faz manchetes de jornal. Nesse país que jamais se conjuga no singular pode estar a resposta de futuro, disse ao P3 numa mini-entrevista feita por email. As lições dos invisíveis, as crises do Brasil, erros e virtudes e as novas gerações num breve olhar da jornalista mais premiada do Brasil, autora de vários livros e colaboradora do El País e do The Guardian.

Para uma “escutadeira” de histórias, como você mesma se define, alguém que está habituada a ver as vidas que ninguém vê, que narrativas tem ouvido nesse Brasil de hoje que ainda a surpreendem?

Acho que não se pode falar no Brasil no singular. São Brasis, muito diferentes entre si. Embora esse seja um momento extremamente duro para o país — e para boa parte do mundo —, há Brasis invisíveis com uma imensa força criadora. Faço reportagens na Amazónia há duas décadas, mas desde Agosto do ano passado moro em Altamira (Pará), no rio Xingu, e acompanho muito de perto os movimentos dos povos da floresta. Nessa época em que a mudança climática provocada pela nossa espécie se tornou o grande desafio, esses povos nos apontam uma outra forma de ser e de estar no mundo. Temos muito a aprender com eles se quisermos ter uma vida possível neste planeta. Eles nos trazem uma outra relação com o tempo e com os recursos naturais. Essa relação questiona profundamente as escolhas que nos trouxeram até esse momento tão grave. Acho fascinante escutar pessoas que vivem a partir de lógicas tão diferentes, que questionam com sua própria existência aquilo que naturalizamos como o único jeito de viver. Pergunto a eles o que é pobreza, eles me dizem que “ser pobre é não ter escolha”. Pergunto o que é riqueza, eles me dizem que “ser rico é não precisar de dinheiro para viver bem”. O orgulho da maioria dos ribeirinhos da Amazónia, por exemplo, é nunca ter tido um emprego ou um patrão, é ter vivido uma vida sem ninguém mandando neles. Vivem da floresta, mas sem uma lógica de posse da floresta. É importante perceber que, hoje, talvez a única relevância do Brasil no cenário internacional é ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Mas, se existe floresta em pé, é por conta dos povos da floresta. Onde eles já foram expulsos ou exterminados, a devastação é enorme. O conhecimento dos povos da floresta, que são os que eu escuto como repórter actualmente, é fundamental para que o Brasil possa criar uma experiência diferente de todas as outras em vez de copiar, e copiar mal, experiências de outros países que já se mostraram perversas e excludentes. Infelizmente, o Brasil que detém o poder económico e político ignora os Brasis mais originais e, aceleradamente, os destrói.

O meu trabalho centra-se nessa vaga migratória de brasileiros que está a ver em Portugal uma geografia de futuro que de certa forma deixou de encontrar no Brasil. Como tem acompanhado esse fenómeno e de que forma acha que ele pode reflectir-se no futuro do seu país?

Uma grande questão do nosso tempo, e não só no Brasil, é a dificuldade de imaginar um futuro que não seja uma distopia. Duas crises muito profundas nos levaram a essa situação: a crise climática e a crise da democracia como sistema capaz de garantir a melhoria da vida das pessoas. Quando a gente não consegue imaginar um futuro, fica muito difícil viver no presente. O presente é resultado também do futuro que somos capazes de imaginar.
No Brasil, esse momento é agravado por um profundo desencanto. Essa actual geração de jovens brasileiros cresceu na primeira década deste século, um período em que o Brasil, eterno país do futuro, acreditou ter finalmente chegado ao presente. Nos últimos anos, porém, o Brasil se descobriu atolado no passado. E se descobriu de forma brutal e acelerada. Por quase uma década acreditamos ter uma democracia estável, a pobreza havia diminuído, grandes eventos mundiais seriam sediados no Brasil, como a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016, e o futuro parecia não só garantido, como brilhante. De repente, tudo se corroeu de forma acelerada, a corrupção virou a marca do país, a mudança pela via da política se tornou desacreditada, os ódios explodiram, os conflitos históricos, aqueles que jamais foram enfrentados com o empenho necessário, como o racismo e a desigualdade, se revelaram em toda a sua urgência. Assim, o desejo de buscar um outro país onde seja possível imaginar um futuro no qual se queira viver é compreensível.
Por outro lado, acho triste que parte dessa geração não consiga se sentir responsável pela criação de um futuro possível. Acho que a desresponsabilização também é uma marca da juventude actual. Corroemos o sentido de comunidade e de convivência entre os diferentes, o que resulta na corrosão do sentido de responsabilidade com o outro. As soluções acabam sendo sempre pela via individual, o que importa é salvar o meu ou aquilo que é dos “meus”, em vez de buscar juntos, construir juntos, se sentir parte da criação de um país possível para a maioria.
Então, se é legítimo buscar um lugar melhor para viver, também é triste não se sentir responsável por criar um futuro possível, não se sentir parte da construção de um país mais igualitário, não achar que tenha algo a ver com a sua comunidade. Mas esta é uma parcela dessa geração, não o todo. Quem anda pelos Brasis vê muitos jovens pressionando pela ampliação da participação democrática, criando alternativas criativas e fazendo movimentos de mudança. Tenho conhecido jovens maravilhosos, totalmente comprometidos com a refundação tanto da democracia como do sentido de comunidade.

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O desafio da reportagem é recuperar o olhar do espanto, diz Eliane Brum

Fabio Pontes | 16/10/2017 às 11:16
Amazônia Real

“Bons repórteres são bons escutadores da realidade. O mais difícil é justamente aprender a escutar com todos os sentidos”, a frase é da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum ao falar sobre o jornalismo e a importância da escuta na reportagem durante eventos que participou, no último dia 6, em comemoração aos quatro anos de fundação da agência de jornalismo independente Amazônia Real, em Manaus.

A jornalista proferiu a palestra “Escuta e Transgressão: a reportagem como documento da história em movimento”, no mini-auditório da Escola Superior de Artes e Turismo (Esat), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Também lançou a segunda edição do livro “O Olho da Rua”, na Banca do Largo São Sebastião, no entorno do Teatro Amazonas.

“Eu tenho muito medo de jornalistas que acreditam pairar acima da realidade, capaz de uma total isenção porque essa ilusão da imparcialidade total faz com que não tome as precauções necessárias, não tome as precauções sobre si mesmo para que possa chegar o mais perto da verdade, já que não existe uma verdade só e nunca conseguimos alcançar totalmente as verdades múltiplas”, afirmou Eliane.

Para ela, o papel do jornalista no exercício da função não é o de “apaziguar o leitor, mas o de incomodá-lo”. “O desafio da reportagem é recuperar o olhar do espanto”, disse.

Manaus, AM 06/20/2017 - Palestra da jornalista,documentaris e escritora Eliane Brum no miniauditório da Escola Superior de Artes e Turis mo (ESAT) da Universidade do Estado do Amazonas UEA, promovida pela Agência de Jornalismo Independente Amazônia Real pelos seus 4 ano e criada pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias. A professora Dra Lucia ne Páscoa, coordenadora do Programa de Pós Graduação em Letras e Artes (PPGLA-UEA) falou na abertura do evento. (Foto Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Fotos: Alberto César Araújo/Amazônia Real

No livro “O Olho da Rua”, reeditado e ampliado pela editora Arquipélago, Eliane publica dez grandes reportagens feitas na primeira década do século 21. Para cada uma delas há um texto que revela a história dentro da história, ao narrar os bastidores a partir dos dilemas, das descobertas e também das dores a que se lança uma repórter disposta a se interrogar sobre sua própria jornada.

Mediada pela jornalista Elaíze Farias, cofundadora da Amazônia Real, a palestra “Escuta e Transgressão: a reportagem como documento da história em movimento” de Eliane Brum contou com a presença da coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes (PPGLA), professora Luciane Páscoa, e de um público de cerca de 60 pessoas, entre coordenadores de cursos de jornalismo, jornalistas, estudantes e convidados da agência.

Com quase 30 anos de profissão, a gaúcha Eliane Brum foi repórter do jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre (RS), e repórter especial da revista “Época”, em São Paulo. Atualmente assina uma coluna quinzenal no “El País”, que é publicada em português e em espanhol.

Escrever sobre a Amazônia e desde a Amazônia, tirando da invisibilidade as suas populações e diversidade. Assim definiu a jornalista Eliane Brum sobre o trabalho desenvolvido pela agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real. “A Amazônia Real desenvolve um trabalho fascinante de tirar as Amazônias do invisível”, disse.

Na palestra, Eliane Brum falou sobre a tendência de parte da imprensa de buscar no sensacionalismo policial, que busca sempre qualificar os personagens num lugar-comum, de fortalecer a “desumanização” de ambas as partes: vítimas e criminosos.

“As pessoas não são um substantivo: monstro, bandidos, vítima, etc. As pessoas são pessoas e o jornalismo precisa combater a desumanização para não falsificar a vida. Qualquer desumanização, especialmente as mais difíceis.”

Na análise de Eliane Brum, desfazer essas formas de jornalismo só será possível com o aperfeiçoamento da capacidade de se escutar as fontes – e o escutar no sentido mais amplo da palavra.

“Sem o instrumento da escuta, sem despir-se de si, não seria possível escutar um pedófilo de criança, por exemplo. E a gente precisa escutar, não para absolver ou condenar porque jornalista não é juiz, embora alguns pensem que são”, disse.

Manaus, AM 06/20/2017 - Palestra da jornalista,documentaris e escritora Eliane Brum no miniauditório da Escola Superior de Artes e Turis mo (ESAT) da Universidade do Estado do Amazonas UEA, promovida pela Agência de Jornalismo Independente Amazônia Real pelos seus 4 ano e criada pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias. A professora Dra Lucia ne Páscoa, coordenadora do Programa de Pós Graduação em Letras e Artes (PPGLA-UEA) falou na abertura do evento. (Foto Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Eliane Brum diz que sem essa escuta feita com todos os sentidos o jornalista não terá a capacidade de produzir uma boa reportagem. Sem aprender a escutar, diz ela, o jornalista pode ter um dia ou três meses para fazer uma reportagem, que não fará diferença. Pode atravessar o mundo literalmente, mas simbolicamente não saiu do lugar, porque vai apenas levar seus conceitos e preconceitos para passear de avião.

“Há uma dificuldade tremenda em escutar. Todo mundo quer falar, mas ninguém quer escutar.”

Além de jornalista e escritora, Eliane Brum codirigiu quatro documentários, entre eles, “Laerte-se” (Netflix, 2017). Desde o final dos anos 1990, ela faz reportagens em diferentes regiões da Amazônia. Há 13 anos, acompanha populações ribeirinhas na região da bacia do Xingu, no Pará. Em 2011, passou a acompanhar pessoas e comunidades atingidas pela hidrelétrica de Belo Monte.

Eliane Brum acompanhou de perto o drama de centenas de famílias ribeirinhas que foram expulsas de suas casas por causa da inundação da barragem da usina. A essas pessoas ela deu o nome de “refugiados dentro de seu próprio país”.

“Eles foram reduzidos do território do próprio corpo. Tudo o que diz respeito à memória deles virou água, virou liquido.”

Os dramas vividos por essas pessoas estão entre as histórias incluídas no documentário independente “Eu +1: uma jornada de saúde mental na Amazônia”, dirigido por Eliane Brum, e financiado pela internet como parte do Projeto Clínica de Cuidado/Refugiados de Belo Monte.

Manaus, AM 06/20/2017 - Palestra da jornalista,documentaris e escritora Eliane Brum no miniauditório da Escola Superior de Artes e Turis mo (ESAT) da Universidade do Estado do Amazonas UEA, promovida pela Agência de Jornalismo Independente Amazônia Real pelos seus 4 ano e criada pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias. A professora Dra Lucia ne Páscoa, coordenadora do Programa de Pós Graduação em Letras e Artes (PPGLA-UEA) falou na abertura do evento. (Foto Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Manaus, AM 06/20/2017 - Palestra da jornalista,documentaris e escritora Eliane Brum no miniauditório da Escola Superior de Artes e Turis mo (ESAT) da Universidade do Estado do Amazonas UEA, promovida pela Agência de Jornalismo Independente Amazônia Real pelos seus 4 ano e criada pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias. A professora Dra Lucia ne Páscoa, coordenadora do Programa de Pós Graduação em Letras e Artes (PPGLA-UEA) falou na abertura do evento. (Foto Alberto César Araújo/Amazônia Real)

 

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