Morte Sem Tabu – Entrevista com Eliane Brum

Por CAMILA APPEL/Folha de S.Paulo – Uma pensadora dos nossos tempos, uma artista das palavras, mestre da capacidade de emocionar contando histórias reais. Uma escutadeira que escreve, como gosta de dizer. Alguém que se apodera da sua voz e da sua presença no mundo.

É a jornalista Eliane Brum. O m originalmente era n. Foi amputado num registro errado do tetravô italiano ao desembarcar no Brasil. Essa perna a mais assinala para si tanto uma presença, quanto uma ausência, como ela conta no livro “meus desacontecimentos” (ed. Leya, 2014). A palavra é fundamental para Eliane. “A palavra é outro corpo que habito. Não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não, sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. No meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, assim como o vazio entre as letras, o incapturável em mim. O indizível também me constitui”.

Ela tem uma voz suave com leve sotaque de Ijuí (Rio Grande do Sul), sua cidade natal. Seu celular está sempre desligado ou no mudo, por não se considerar imprescindível para ser encontrada de imediato, e sentir que nosso tempo perdeu a noção de urgência – “Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata” (aspas da coluna “É urgente recuperarmos os sentido de urgência) .

Após vinte anos respirando no tempo da rotina de uma redação jornalística, ela decidiu dar um mergulho no seu próprio tempo. Foi descobrir, por exemplo, qual era seu tempo de acordar. Por um período, passou a dormir das 19h às 2h30 da manhã. A mudança no seu modo de viver tem inspiração numa frase de Ailce, protagonista da reportagem “A mulher que alimentava” (“O Olho da Rua, ed. Globo, 2008 – esgotado no impresso mas disponível no Kindle. Será reeditado no final de outubro pela ed. Arquipélago) – na qual acompanhou os últimos 115 dias de vida de Ailce, tocada por um câncer sem chances de cura. Ailce diz: “quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Esse tecido da vida, como Eliane chama o tempo, é a grande questão da atualidade.

Eliane começou a escrever e a estudar a morte em 2008. Na entrevista abaixo, ela fala sobre “a morte silenciada”. E, principalmente, sobre a oportunidade única que vivemos, de testemunhar a quebra desse silêncio, impulsionada pelos tempos confessionais das redes sociais. Ver o que será dito a respeito da morte agora que se fala sobre ela, é o que fascina Eliane Brum.

Conversamos sobre morte (a última experiência da vida, como diz), o tempo e a medicalização da vida, num restaurante com jeito de sala de estar e LPs à venda na entrada. Um casal na mesa ao lado se agarrava numa paixão admirável, enquanto partíamos da morte para falar sobre a vida, sobre o momento histórico em que vivemos e sentindo talvez certa emoção em poder testemunhar o que está acontecendo, além de uma curiosidade pelo o que está por vir.

Sobre seu futuro, Eliane diz que qualquer coisa pode acontecer, inclusive voltar para uma redação, por que não? Afinal, “a vida cimentada é uma vida morta”.

O que você quer dizer com o que chama de silenciamento da morte nos nossos tempos?

Eu acho que a imprensa, em geral, fala muito de uma morte especificamente – que precisa ser falada também – que é a morte violenta, a morte por assassinato, a morte por acidente de trânsito, a morte por catástrofe… Essa é uma morte frequente no noticiário. E acho até que algumas dessas mortes são menos faladas do que deveriam, como a questão do assassinato de parte da juventude negra. Os números de jovens negros assassinados são um escândalo. E deveria ser um escândalo na imprensa também. Então, apesar de a imprensa, em geral, falar da morte violenta com frequência, fala pouco das mortes que têm cor, têm classe social, para além das estatísticas. Eu fiz algumas matérias sobre isso, como as mães que enterram seus filhos assassinados, mulheres que são submetidas a essa dor inominável – e não nomeável. Porque é uma dor sem nome. O marido que perde sua companheira é viúvo, os que perdem os pais são órfãos, mas quem perde os filhos não tem nome.

Eu acho que a gente viveu, especialmente no século 20, o silenciamento da morte por velhice e por doença, que é a morte da maioria. A maioria não vai morrer de bala perdida, de acidentes de trânsito ou por assassinato. A maioria vai morrer por velhice e doença. Essa morte, que costuma ser vivida dentro dos hospitais, passou a ser vista no século passado quase como um fracasso. No momento em que passamos a valorizar o prolongamento da vida a qualquer preço e a juventude se tornou um valor em si, o morrer passou a ser algo clandestino.

Também se passou a falar pouco sobre o luto. Uma prova disso é a quantidade de dias que a legislação garante de licença para alguém que perde um familiar (segundo a CLT, são dois dias consecutivos com algumas variações dependendo do grau de parentesco e da profissão. Para servidores públicos são oito dias). Como essa morte é ignorada, nem se precisa dar tempo para que ela seja superada, já que é como se não tivesse acontecido.

Mas eu acho que isso está começando a mudar. Por uma série de questões históricas e também com as redes sociais. Acho que estamos num tempo muito confessional. As pessoas estão falando sobre tudo. O antropólogo britânico Geoffrey Gorer escreveu no ensaio “Pornografia da Morte”, de 1955, que a morte do século 20 passou a ter o mesmo caráter que tinha o sexo no século 19, na era vitoriana. Ela teria se tornado obscena e feia e por isso deveria ser escondida. E o luto passou a ser tão secreto quanto a masturbação.

Neste século 21, com as redes sociais da internet, as pessoas passaram a falar sobre seus desejos sexuais, e formas de experimentá-los. Muita gente que não tinha espaço para falar daquilo que não era convencional, encontrou seus pares na internet. Encontrou seu grupo. Claro que eu estou falando de adultos e de sexo consentido – é sempre bom sublinhar isso.

A morte começa a aparecer aí também, com grupos como o “Mães sem Nome” (e “Mães para Sempre”), e plataformas do tipo “Vamos Falar Sobre o Luto”. As pessoas também começaram a falar sobre como elas se sentem ao envelhecer. Não da forma como a propaganda vende, entre aspas, a terceira idade, mas sim da forma como elas se sentem realmente. Parece que a internet abriu espaço para relatos confessionais que começam a dar conta também da morte, do luto e do envelhecimento e que, com frequência, saem do lugar comum e do campo da publicidade e do marketing.

Especialmente neste século 21, e com cada vez mais frequência, têm surgido muitos livros e relatos sobre o assunto, de pessoas passando pela experiência da morte ou do luto ou do envelhecimento, também aqui no Brasil. Uma das frases que me parece mais exata sobre isso é que “a morte não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A morte está dentro da vida, o morrer é a última novidade que todos nós teremos sobre a vida. A nossa última experiência viva em uma vida é o morrer.

Oliver Sacks (neurologista e escritor anglo-americano) tem escrito belíssimos textos sobre o morrer vivo. E outros vêm contando de outras maneiras. É múltiplo, não tem um jeito certo ou errado de dizer as coisas. Tem o jeito de cada um. Mas acho que estamos testemunhando, nesse início de século especialmente, a quebra desse silêncio. E eu estou muito curiosa para saber quais são as narrativas que virão. Tanto de pessoas conhecidas, como o Oliver Sacks, quanto de anônimas.

Acho que é um momento interessante esse que a gente vive. Agora que esse silenciamento está sendo quebrado, minha grande curiosidade é: agora que podemos falar, o que falaremos? Essa é uma grande questão que para mim é fascinante. Mas sem esquecer que é importante respeitar também quem quer silenciar. Não o silenciamento que é opressor, que é uma imposição. Mas sim a escolha pelo silêncio, a escolha pelo recolhimento. Nem todo mundo precisa contar, nem todo mundo precisa confessar. Nem todo mundo precisa se expor. É importante que cada um possa viver da maneira que lhe for possível e da maneira que desejar esse momento tão crucial da vida.

Você acha que a mudança na estrutura etária da sociedade está interferindo na nossa visão da morte?

Acho que sim. Quando eu fiz a matéria sobre os últimos 115 dias de vida da Ailce, algumas pessoas achavam que era mórbido fazer essa escolha de contar o processo da morte dela. Acho que hoje, talvez, menos pessoas achassem isso, e se passou menos de dez anos. Nossa época é acelerada, em vários sentidos. Mórbido é o não poder contar. É aquilo que paralisa, que não pode ser dito. Contar uma vida é o contrário de ser mórbido.

Você comenta que essa reportagem impactou muito seu modo de viver. Olhando para trás, hoje, você ainda vê impactos daquele momento?

Sim. Fiz várias reportagens sobre o morrer e sobre os diferentes sentidos do morrer. Mas essa em que acompanhei os últimos 115 dias da vida da Ailce me impactou muito porque acho que foi o ato de maior confiança que alguém já me deu como repórter. Porque eu ia escrever uma história que ela jamais leria. E eu queria muito contar essa morte silenciada. Eu escolhi fazer essa matéria, mas no momento em que me vi diante da Ailce, na casa dela – ela morava na periferia de Guarulhos – me dei conta da situação impossível em que eu tinha me colocado.

Por um lado, eu queria que essa reportagem acabasse o mais rápido possível, porque era muito duro lidar com isso, e por outro, eu queria que ela nunca acabasse. Porque o fim dessa reportagem era o fim da vida dela. Então eu tinha me colocado numa situação impossível.

Percebi que a única maneira de fazer essa reportagem era – como é em qualquer reportagem – pela escuta. Logo no início dessa escuta, Ailce me disse algo que vai me marcar para sempre: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Ela estava num momento muito particular. Tinha sido merendeira de escola a vida toda. Aí se viu aposentada, com uma casa própria, começando a fazer as coisas sempre adiadas, como tanta gente faz, com os filhos já grandes, com tempo para ela – ela estava começando a viajar, a ir dançar, a ir em bailes, a experimentar outras coisas… Nesse momento, ela descobre um câncer sem chances de cura.

Ela nunca pronunciou a palavra câncer. Eu falava todos os dias com ela e ela nunca pronunciou essa palavra. Eu também nunca a pronunciei, senão jamais saberia que ela não a pronunciava. Uma parte da minha escuta era saber como ela nomeava aquilo que a mataria.

Mas quando ela disse essa frase, eu percebi que falar sobre a morte era falar sobre o tempo. E o que a gente perdia quando calava sobre a morte era justamente uma oportunidade única de pensar sobre a vida. Falar sobre a morte é pensar sobre a vida, é qualificar a vida. E especialmente, falar sobre o tempo.

Tem uma outra frase que eu adoro, do professor Antônio Cândido, em que ele diz que tempo não é dinheiro. Essa seria uma brutalidade que o capitalismo faz em se considerar o senhor do tempo. Tempo é o tecido das nossas vidas.

Pensar sobre a morte pela reportagem me fez questionar o tecido da minha vida, o tempo da minha vida. Várias das minhas escolhas que vieram a seguir, até hoje, surgiram dessa compreensão profunda. Eu queria me apropriar do meu tempo. Viver nos meus próprios termos. Isso me fez tomar decisões maiores como sair do dia a dia da redação impressa.

Eu já estava há mais de vinte anos dentro de redações e queria saber como era viver no meu tempo. A vida dentro da redação era muito significativa, eu sempre procurei fazer da minha vida algo com significado para mim e para as pessoas, algo com sentido. Sou muito grata pelo tempo que eu vivi nas redações, foi uma vida muito viva. Mas eu estava com 44 anos e queria experimentar um outro tipo de vida. Não quer dizer que eu não vá voltar um dia, porque a vida é movimento, e eu busco não cimentar nada. Uma vida cimentada é uma vida morta.

Fui buscar outro jeito de viver mesmo nas coisas mais banais. Eu queria saber, por exemplo, qual era o meu tempo de acordar. Nunca tinha pensado sobre isso. Uma coisa simples assim. Desde criança, sempre tive hora para acordar. Primeiro era o colégio, depois era o tempo do jornal, que era diário, depois o tempo da revista, que era semanal, o tempo do fechamento, e o tempo do mundo. Porque a gente vive num mundo que lida de determinada forma com o tempo, e essa forma de lidar não é um dado da natureza, é também um dado do campo da política. Então, eu queria saber quando eu gostava de acordar e quando eu gostava de escrever. Comecei a acordar às 2h30 da manhã, naturalmente. E passei a dormir muito cedo, por volta das sete da noite. Sempre gostei desse momento da madrugada, quando está todo mundo dormindo. Hoje eu durmo cedo, mas não tão cedo, então posso ter algo próximo a uma vida social, como ir ao teatro, jantar com os amigos, e acordo às 5h da manhã, sem despertador. Deletei o despertador da minha vida, exceto em casos obrigatórios.

Escolhi também, por exemplo, não usar celular. Eu tenho um para emergências. Ele fica no mudo ou, em geral, desligado.

As pessoas perderam o sentido da urgência. Tudo virou urgente. E quando tudo vira urgente, nada é urgente. Essa também é uma questão do tempo. Saber o que é importante e o que é urgente. E, portanto, o que é prioritário. Quando se perde esse sentido do prioritário na vida de cada um, se perde muito. Eu tenho a consciência de que não sou imprescindível. As pessoas podem viver perfeitamente sem me acharem de imediato. Eu não tenho a arrogância de pensar que todo mundo precisa me encontrar.

Se você ligar para meu celular, vai encontrar uma gravação assim: “não uso o celular, por favor me mande um e-mail”. Para mim, a melhor maneira de me comunicar é o e-mail. Para muita gente é antiga, eu gosto porque escolho a hora de ler e sei que não estou invadindo o espaço do outro, porque ele também pode escolher quando quer abrir e quando quer me responder. Às vezes, a gente precisa pensar para responder. Não precisa ser de imediato. Não existem repostas imediatas para as pessoas. Acho que o tempo é a grande questão. Ser acessível a qualquer momento é, para mim, insuportável. Então, eu não uso telefone fixo e não uso celular.

Você escreveu várias colunas sobre a medicalização da vida. Porque é um tema que te mobiliza?

Acho que a medicalização da vida é uma marca, um traço do nosso tempo histórico. É claro que há casos de depressão severa e situações em que a medicação pode ser muito importante – não se pode esquecer disso. Mas acredito que estamos vivendo uma espécie de doping generalizado. É um doping, legalizado (com drogas lícitas), e que acontece cada vez mais cedo. Esse doping já começa na infância, com as crianças, com a massificação de diagnósticos como os de síndrome de hiperatividade e déficit de atenção – que eu acho no mínimo questionáveis. O que tem acontecido com frequência é que as crianças fora da caixa, que não se enquadram no modelo, têm sido diagnosticadas e medicalizadas cada vez mais cedo, e com remédios cujos efeitos a longo prazo não conhecemos. E as crianças dependem da responsabilidade dos adultos, são indefesas diante desse processo. Acho que deveríamos ter um debate maior sobre o doping das crianças por medicamentos. Basta andar por aí, especialmente em grupos na internet, para perceber que essa geração, ao chegar à adolescência, muitas vezes se une e se define pelo diagnóstico, como se isso fosse tudo o que são. É um mundo bem complexo e acredito que precisamos pensar mais sobre isso.

Se um adulto usa drogas, seja quais forem, me parece que é uma escolha dele. Mesmo no caso das drogas lícitas, ele pode aceitar ou não o diagnóstico do médico, ele pode buscar outras formas de encarar seus sentimentos e o que se chama de sintomas, ele deve ter garantido o acesso às várias formas de lidar com o que é do humano. Mas se uma criança é obrigada a usar drogas porque a escola antecipou um diagnóstico e o médico avalizou esse diagnóstico, seja com a justificativa que for, é mais complicado, porque ela não tem escolha e essa imposição terá consequências. Muitas vezes, e há várias pesquisas bem conceituadas sobre isso, o diagnóstico e drogas como a ritalina podem servir para tentar calar algo que deveria estar sendo discutido dentro da família, dentro da escola, com aquela criança. O tratamento, nestes casos, pode estar a serviço de um silenciamento. É preciso discutir mais esse fenômeno e todos os atores desse processo – pais, professores, médicos, psicólogos, etc – tem de ser mais responsáveis e mais responsabilizados por suas escolhas. Não há verdades únicas em nenhum campo da vida.

Estamos vivemos numa sociedade dopada por medicamentos, na qual a grande autoridade é o médico. Temos agido como se tudo o que é da vida fosse uma patologia, transformando, por fim, a própria vida numa patologia. Como se a tristeza fosse uma patologia, como se a angústia fosse uma patologia, como se a ansiedade fosse uma patologia. E no lado oposto, há o imperativo de felicidade de consumo. De certa maneira, eu sou uma defensora do mal-estar. Nesse momento histórico que estamos vivendo, ser feliz e saltitante como um carneiro de desenho animado é o que deveria ser preocupante, é o que deveria fazer tocar a sirene. Eu defendo o mal-estar como um movimento, como algo ativo, algo transformador. Porque o grande risco de silenciar com medicamentos aquilo que é da vida é não elaborar, não pensar, não reagir, não transformar, não fazer marca do vivido. E com isso a gente perde muito. Acho que, em parte, as séries, os filmes, a literatura de zumbis, fazem tanto sucesso porque o mundo está cheio de mortos vivos, paralisados e anestesiados, não só, mas também por medicamentos. Acho que o mais triste é essa vida morta.

Há tanta histeria com as drogas que são proibidas, mas as que me preocupam são essas legalizadas, vendidas massivamente como remédio, exatamente porque são muito pouco questionadas, como se não tivessem efeitos colaterais variados. Principalmente com as crianças, que não têm formas de se defender desse processo, nem escolha. E começam a ser silenciadas desde cedo por não caberem num determinado modelo de comportamento. Não sou contra as drogas, nem sou contra os medicamentos. Só acho que esse olhar disseminado, que patologiza a vida e tudo o que é da vida, e que se tornou uma característica tão presente nessa sociedade, não é uma verdade única e serve a muitos interesses, como aos da indústria farmacêutica. Acho que precisamos discutir mais e não naturalizar uma vida em que é preciso tomar um remédio para ficar acordado e ser produtivo, outro para dormir, outro para não ficar ansioso, outro para não ficar triste, outro para ter desejo sexual e assim por diante. Acho que a gente precisa voltar a exercitar o espanto e a dúvida também sobre a patologização da vida e a medicalização massiva, o espanto e a dúvida como algo que nos impulsiona a ter uma vida mais interessante. E por mais interessante eu entendo não uma vida necessariamente feliz, mas uma vida viva. E uma vida viva tem de tudo. Tem, especialmente, movimento.

Em alguns artigos, eu usei o termo “boa morte”. Na sua coluna “Morrendo na primeira pessoa”, você faz a consideração de que não seria um conceito correto, por considerar que não existe morte boa ou ruim. Mas o que seria, para você, uma morte que gostaria de viver?

O que eu critico é trocar um tabu por outro. Ou trocar um imperativo por outro. Passamos boa parte do século 20 silenciando sobre a morte, e agora, quando ela começa a ser falada, seria muito triste que se criasse outros dogmas para isso.

Eu não acho que tem um jeito certo ou errado de morrer. Tem o jeito de cada um. Algumas pessoas acham melhor morrer em casa, cercadas pelas pessoas que amam, pelos objetos que fazem parte do seu mundo, contando histórias e ouvindo histórias. Outros vão achar melhor morrer no hospital. Tem quem vai tentar tratamentos invasivos, mesmo sabendo que têm pouca ou nenhuma chance de ter resultado, outros vão preferir não. O importante é que os desejos sejam respeitados, que esse último ato da vida de alguém seja vivido nos termos dessa pessoa. Que a pessoa possa escolher e não que escolham por ela. Hoje em dia, muita gente é submetida a tratamentos invasivos, dolorosos e inúteis, condenadas a morrer sozinhas numa UTI. Acho que se é uma escolha daquela pessoa, tudo bem. Mas, em geral, não é uma escolha. Por isso, considero muito importante o testamento vital. Nesse documento é possível decidir e informar os familiares das suas decisões, como, por exemplo, se deseja ser ressuscitado ou não…

Se eu adoecer, ou tiver um acidente, e ficar impossibilitada de manifestar as minhas escolhas, as minhas opiniões, eu gostaria de morrer em casa, com as pessoas que eu gosto, cercada com as coisas que fazem parte da minha vida. Com as músicas que eu gosto, se eu for capaz de ouvir. Com os meus livros mais queridos. Sem dor física ou com o melhor que possam fazer para minimizar minhas dores e desconfortos físicos. Se não houver chance de cura, eu não quero tratamentos invasivos, não quero ir para uma UTI, não quero ser entubada sem necessidade, ou ressuscitada… Já deixei esses desejos claros para a minha família. Mas pode ser que na hora de morrer, eu descubra que quero outras coisas. Isso não será mais certo ou mais errado, mais digno ou menos digno. Eu acho que a dignidade está em respeitar a escolha daquele que está morrendo.

Eu já comprei meu túmulo porque quero escolher o lugar onde vou ficar. Gostaria de ser enterrada e não cremada porque eu gosto da ideia de me misturar à terra depois de morta. Ao contrário da maioria das pessoas, a ideia de que virarei comida de vermes me parece interessante, porque me manterá viva de alguma maneira, nessa eterna transformação da matéria que faz nosso universo tão fascinante.

Eu tenho uma amiga, Debora Noal, que trabalha no Médico Sem Fronteiras, que diz que ela tem raízes aéreas. Eu me identifico com isso. Gosto muito de estar em trânsito, o meu lugar é um lugar de estrangeira – não de turista. Mas eu queria ser enterrada num local onde a minha família tem uma história, por isso escolhi um cemitério no Barreiro (RS) – povoado rural onde meu pai nasceu, no interior de Ijuí, e onde está enterrada a primeira professora do meu pai, Luzia, a mulher que, com esse nome profético, nos arrancou simbolicamente da escuridão e da cegueira das letras, já que meu pai foi o primeiro a estudar depois de uma longa série de gerações à margem das letras. Para morrer, quero replantar as minhas raízes, que, na minha vida, tratei de deixar voando pelo mundo.

Mas eu queria mesmo era não morrer. Tem uma frase do Woody Allen na qual ele diz que a única imortalidade que o interessa é não morrer. Adoro essa frase. Mas como morrer é inescapável, o que eu quero é me apropriar do meu tempo, para que quando a morte chegar, eu morra sabendo que o tempo foi meu, que eu teci esse tempo. Uma vida boa é uma vida cheia de marcas. Marcas do vivido. Eu quero morrer cheia de marcas. No sentido da poesia de Adélia Prado, como um vitral – fazer das minhas marcas um vitral bem colorido. Eu quero morrer sabendo que eu tive uma vida viva, então essa morte também vai ser viva. Se existe uma “boa morte”, talvez seja a de morrer sabendo que eu fui viva.

“Alguns acham que sou mórbida. Estão enganados. Encarar a morte com naturalidade é o mais longe da morbidez que se pode estar. Só espero ter sabedoria para viver minha vida com intensidade até o último suspiro. E sabedoria para morrer, sem tentar espichar a vida nem abreviá-la. Não gostaria de morrer de repente, como tantos desejam. A curiosidade sempre moveu meus passos. Quando a morte chegar, não quero perder a única chance de olhar no seu olho. Quero saber o que é morrer. Quero me lambuzar de morte como me lambuzei de vida. Quero viver. Até o fim” – Eliane Brum na coluna “Comprei meu túmulo”.

Lilo Clareto/Divulgação

Lilo Clareto/Divulgação

Vamos precisar de um balde maior

Quem seremos nós, sem água? Caberá a essa geração imperfeita enfrentar os desafios de um futuro que chegou antes
Carro abandonado em Atibainha, que integra o sistema Cantareira. ANDRÉ PENNER AP (El País)

Carro abandonado em Atibainha, que integra o sistema Cantareira. ANDRÉ PENNER AP (El País)

Quando a gente abre a torneira em São Paulo e não sai nada, e sabe que logo chegará o dia que não haverá nada no dia seguinte e no dia seguinte ao dia seguinte e assim por um tempo que ninguém sabe quanto será e quem diz que sabe mente, descobrimos que nos tiraram muito mais do que água. Essa é a parte aterrorizante. E é aterrorizante para além das vidas secas. O terror é menos pelo que só agora faltou, mais pelo que nunca existiu. O terror é dado pela perda das ilusões de que tudo estava sob controle. E, de repente, aqueles que repetiam que estávamos todos bem bem mostraram que, na verdade, estamos todos bem perdidos. O estado de torpor dos moradores de São Paulo foi perfurado pela realidade, abriu-se um rombo que talvez seja impossível fechar. No fundo desse buraco não há vazio, mas espelho. É nesse ponto que existe algo de fascinante. É quando o morador de São Paulo vira todos, encarna o humano dessa época, uma catástrofe diante da catástrofe. Nós, o futuro que chegou primeiro.

Quem seremos nesse mundo em que o clima se mostra alterado, nesse planeta agora mais hostil pela nossa ação? Que filosofia produziremos? E que sentidos criaremos?

São Paulo sem água é uma imagem poderosa. A cidade expandida em que mais de 20 milhões vivem à beira de um rio que matamos. A cidade que virou estufa, abarrotada por carros que se movem mais e mais lentamente, queimando combustíveis fósseis e lançando gases na atmosfera. A cidade que desmatou o entorno dos mananciais e desprotegeu-se. A cidade em que, quando a chuva cai, parece que evapora antes de chegar ao chão convertido em concreto e, nas tempestades, alaga e é destruída porque o cimento não pode absorver a água. As chaminés das fábricas do século 20 da São Paulo “que amanhece trabalhando”, assim como os canos de descarga dos carros de cada dia, são falos decaídos. As ilusões de potência e de superação, o sem limites da modernidade, viram pó na cidade imensa, transformando São Paulo num monumento que ela não sonhou ser – e nós em seres trágicos.

O dia em que as autoridades ruíram

O momento em que a máquina do mundo se abriu para a maioria foi no final desse janeiro, ao ser anunciado que poderia haver um rodízio 5X2 – cinco dias sem água, dois com água. A classe média correu a comprar caixas d’água extras e galões, houve quem estocou centenas de litros, os baldes viraram objetos de desejo. Lembrou “Tubarão”, o filme de Steven Spielberg que talvez tenha inaugurado o conceito de blockbuster, na cena em que o monstro emerge com uma boca capaz de palitar os dentes com o barco que pretendia caçá-lo e o xerife da cidade diz, na frase que ficou antológica para quem gosta de cinema: “Vamos precisar de um barco maior”. Parece que, por aqui, nós vamos precisar de um balde maior.

Nosso momento presente é enorme. Precisaríamos ter na liderança um estadista, uma pessoa capaz de botar o interesse público acima de suas ambições eleitorais, alguém que compreende a amplitude do que está em jogo, um político com visão de século 21. Nosso desamparo é maior porque não temos essa figura nem no governo de São Paulo nem no governo do país. Temos no comando do estado alguém com uma mentalidade de vereador de cidade pequena. E nada contra vereadores de cidade pequena, existem os bons, apenas que para um governador o olhar precisa ser muito mais amplo e a política exercida num outro nível. E, no Planalto, temos uma presidente vendida como “gerente”, o que não é exatamente o que se espera de alguém que comanda um país, mas, como sempre pode piorar, se mostrou uma má gerente ainda no primeiro mandato.

O futuro chegou antes. E justamente no momento em que as instituições políticas e os grandes partidos estão desacreditados, em que se pode mentir para ganhar a eleição e dizer o contrário em seguida. É assim que a população descobre que as autoridades não só falsearam a realidade como não sabem o que fazer agora que a calamidade se instalou. As autoridades desautorizaram-se, num fenômeno político tão grave quanto complexo. E a população encontrou-se só e com o monstro na sala.

Se a realidade é assustadora, também é muito interessante. Nenhum dos governantes que deixaram a situação chegar a esse ponto – sem esquecer que Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo rumam no mesmo sentido – estão no poder por um processo autoritário. Não, estão lá porque a maioria dos que hoje se sentem desamparados votaram neles. No caso de São Paulo, o PSDB está indo para 24 anos no governo, há uma geração de paulistas que nasceu, passou pela infância e pela adolescência e virou adulto sob o comando da mesma sigla e nenhum alternância de poder. Dilma Rousseff está no segundo mandato, e o PT vai para 16 anos no Planalto. Geraldo Alckmin se elegeu no primeiro turno quando a “crise da água” era evidente, mesmo que o governador tenha negado a gravidade da realidade durante toda a campanha. Elegeu-se no primeiro turno em parte porque dava aos eleitores a chance de continuar fingindo que estava “tudo sob controle”. E, assim, ninguém precisou se mover, mudando velhos hábitos perniciosos e assumindo a responsabilidade de economizar água.

É como disse no Twitter André Vallias, poeta e designer gráfico, referindo-se à situação da água e da energia: “O Brasil não é o País do Futuro, mas da Fatalidade: atrás dessa palavra nossas autoridades se escondem para fugir à responsabilidade”. E isso vale também para os prefeitos, em especial para Fernando Haddad (PT), em São Paulo, e os das cidades da Grande São Paulo, que parece que acordaram só ontem, assim como para os parlamentares desse Congresso, que iniciam um novo mandato atolados na velha lama viciada, fazendo com que a maioria sequer espere qualquer coisa deles, a não ser mais do pior. Mas, se a responsabilidade das autoridades eleitas é muito maior e elas têm de responder pelo que não fizeram e pelo que não disseram, tanto quanto pelo que fizeram e disseram, numa democracia nenhum cidadão é inocente, ainda que alguns possam ser menos culpados do que outros.

A hora de se inspirar nos jovens e virar gente grande

Agora que as figuras paternas e maternas ruíram – e a gente tem certeza disso quando, diante da catástrofe em curso, elas mandam rezar para um Pai maior ou invocam São Pedro – seria uma boa hora para virar gente grande. E recuperar a amplidão da política, como nos lembraram os manifestantes de 2013. E continua a nos lembrar o Movimento Passe Livre em 2015, com os protestos pela tarifa zero. Precisamos ser eternamente gratos a esses jovens tão jovens, porque têm sido eles os verdadeiros adultos, no sentido de apontar que o rei está nu (e perdido) e somos nós que temos de assumir a responsabilidade de pensar a cidade. Cada vez que eles vão para as ruas contra o aumento da tarifa do transporte público, o que fazem é uma denúncia profunda do modelo desastroso de ocupação urbana e da opção criminosa pelo transporte privado e individual. Lembram-nos de que, sem a liberdade de ir e vir, não somos nada além de coisas. São eles que se movem diante da paralisia alienada dos mais velhos – e a experiência de literalmente se mover nas manifestações, por ruas de uma cidade que não se move, é de uma enorme força simbólica.

Na catástrofe da água que se anuncia já existem focos de cidadania consolidados, outros surgindo agora, que reúnem cidadãos que assumiram a responsabilidade de participar das decisões e de pressionar as autoridades. Enquanto o governador de São Paulo diz que não há certeza de que será preciso fazer rodízio, cidadãos começam a reivindicar que, sim, é preciso haver rodízio agora, neste instante, já que não é possível voltar atrás no tempo e começar a fazê-lo meses e até anos antes, o que teria tornado a situação de hoje menos desesperadora. Gente que percebeu que deveríamos desde sempre ter compreendido que não é possível consumir água dessa maneira descuidada, como se os recursos fossem infinitos, nem jamais deveríamos ter nos acostumado a abusos como usar água potável para dar descarga no banheiro ou deixar a água ir embora sem criar sistemas de reúso. Cidadãos que sabem que é preciso mudar não na emergência, mas para sempre. Enquanto o governador, mais uma vez, prioriza suas ambições eleitorais e ainda está “estudando” se haverá um plano de contingência, há cidadãos que decidiram lidar com a realidade e pressionar as autoridades a tomar decisões reais num mundo real, antes que só reste o êxodo.

Este é um dos poucos efeitos positivos da catástrofe que se anuncia. Aponta que ainda temos um caminho se cada um assumir a sua responsabilidade, incluindo aí a de pressionar o poder público a assumir a sua própria. Pertence a esse conjunto de reação a Aliança pela água, reunindo várias organizações que superaram suas diferenças em nome da emergência comum. Assim como os coletivos de jornalismo independente, entre eles a Mídia Ninja e a Ponte, que se uniram para documentar o colapso da água criando “a conta da água” na internet. Diante da pouca confiabilidade da informação oficial e da certeza de que foram enganadas por tempo demais, por todos os lados pessoas estão se juntando na busca de abarcar a dimensão do que está acontecendo e pensar no que fazer e em como viver daqui para a frente.

Um desses encontros aconteceu em 28 de janeiro na Casa de Lua, uma organização feminista que chamou os moradores de São Paulo pelas redes sociais para debater, produzindo um momento muito rico, tanto na intensidade das angústias quanto na sinceridade das respostas em construção. O encontro pode – e deve – ser assistido aqui. Entre os vários momentos interessantes, uma mulher fez a pergunta: “Eu sou uma pessoa comum, uma microempresária. Eu quero saber o que fazer, como eu posso ajudar”. A resposta de um dos debatedores, que restringiu-se a alterações no perímetro da casa e da família, não a satisfez. Ela então retrucou: “Vocês não estão entendendo. Eu acho que chegamos a esse ponto por que cada um sempre pensou em resolver apenas o seu problema. Eu quero saber o que posso fazer não para mim, mas para todos”.

“A negação como política de governo e como defesa psíquica”

A psicóloga paulistana Camila Pavanelli de Lorenzi, 32 anos, é uma das que está fazendo alguma coisa, se moveu. Ela começa a se tornar uma referência nas redes sociais por causa de seu Boletim da Falta D’água, criado em outubro de 2014. Nessa conversa comigo, ela conta como passou a dividir o doutorado na Universidade de São Paulo – sobre “os conceitos psicanalíticos de sublimação e realidade”, a partir da série de TV “The Wire” e de dois livros nos quais a série é baseada – com sua investigação pessoal sobre a catástrofe em curso. É revelador que seja uma psicóloga a tentar compreender o que as notícias da água dizem para além do que está escrito. Os grifos são meus, os parênteses são dela:

Como foi que começou a fazer o boletim?

Camila – Comecei numa noite em que eu estava especialmente de saco cheio de passar o dia lendo notícias – tanto sobre a falta d’água quanto sobre o posicionamento oficial do governo de que não faltava água – e decidi reunir e resumir tudo o que eu havia lido num texto só. Postei no Facebook. Compilar essas informações me trouxe algum alívio. Eu precisava (preciso ainda) entender o que diabos estava acontecendo. Havia muita coisa sendo publicada sobre a falta d’água, mas em veículos diferentes – era difícil ter uma visão mais abrangente da real gravidade da situação. Então fiz essa compilação de notícias naquela noite. Fiz a mesma coisa na noite seguinte, com o mesmo objetivo de me situar melhor em meio ao caos – e, de quebra, compartilhar o que eu estava lendo com meus amigos. E depois não vi motivos para parar. Eu sentia (sinto ainda) que não havia uma linguagem para falar sobre a chamada crise da água, e que era preciso (é ainda) criar essa linguagem. Depois de uma semana postando os boletins no Facebook, várias pessoas começaram a sugerir que eu criasse um blog ou tumblr só para eles. Achei que fazia sentido, e fiz um tumblr. Mas continuo postando os boletins na minha página pessoal do Facebook também, para facilitar os compartilhamentos.

Como você faz esse acompanhamento cotidiano?

Camila – No começo eu fazia todo dia. Acessava sites de notícia, fosse da grande mídia ou da mídia alternativa, e os órgãos oficiais do governo. Aí uma coisa levava a outra. Saía uma notícia sobre um processo ou decisão judicial, eu ia atrás desse documento. Saía uma notícia que não diferenciava muito bem os conceitos de pluviometria e vazão, eu ia atrás de um manual de hidrologia para entender os conceitos um pouco melhor. E assim fui construindo uma narrativa sobre a falta d’água no estado de São Paulo, dia a dia. Parcial, informal, incompleta, amadora. A minha narrativa do que estamos vivendo, enfim.

Como são seus dias desde então?

Camila – No ano passado, dediquei cerca de duas horas todas as noites à escrita do boletim. Passei a frequentar menos a academia. Passei a escrever menos no meu blog pessoal. Passei a escrever menos e-mails longos para os amigos. Neste ano, ainda não sei dimensionar quantas horas essa maluquice está me tomando. Ainda estou aprendendo a fazer um boletim semanal. Acabei de criar uma conta no Twitter (@bolfaltadagua) para me ajudar, para reunir uma pré-seleção de links. Vou tuitando e retuitando ali tudo o que leio de interessante. Desse mundaréu de notícias, vou selecionar algumas para costurar a narrativa da semana.

O que você faz quando não está olhando para a água ou para a falta dela?

Camila – Trabalho na minha tese, cozinho, cuido da casa, escrevo no meu blog. Levo a mais pequeno-burguesa das vidas, em suma.

O que te pega mais nessa questão da água?

Camila – A negação. Sobretudo a negação como política de governo. Eu não entendo nada de água, meio ambiente, gestão de recursos hídricos, nada disso. Mas eu entendo muito de negação como defesa psíquica. A negação foi catastrófica na minha vida pessoal e precisei de anos de análise para começar a elaborar alguns lutos (para não soar muito enigmática: minha mãe morreu quando eu tinha dez anos e sempre encarei isso como um fato normal e corriqueiro da vida, como se não fosse nada demais, “é chato, mas acontece” etc. Foi com a análise que pude sentir pela primeira vez a tragédia que foi eu ter perdido a minha mãe). Aí, de repente, eu vejo a negação sendo adotada pelo governo do estado como forma de lidar com uma crise sem precedentes na história do Brasil. E isso evidentemente tem efeitos sobre a população. Isso me fascina, na verdade: as relações entre a negação como política de governo e a negação como defesa psíquica. Porque ninguém, de verdade, acredita que a água vai acabar (ou, se acredita, não consegue conceber o que significa isso). E é compreensível que seja assim. Como acordar de manhã, ir para o trabalho, cuidar dos filhos – levar a vida de sempre, enfim – quando se tem a perspectiva de que a água pode acabar dentro de poucos meses? Melhor acreditar que a crise não é tão grave assim. E acabou que tivemos a união da sede com a vontade de beber. De um lado, a população que desejava ouvir que estava tudo bem e que poderia seguir com a vida normalmente; de outro, um governo que realizou plenamente esse desejo, garantindo que não faltava nem faltaria água em São Paulo.

Você termina seus boletins dizendo: “Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais”. Vi no debate da Casa de Lua que essa questão, entre ter calma, como foi colocado por outra debatedora, e a sua conclamação/autorização para, ao contrário, entrar em pânico, te perturbou. O que tem pensado sobre isso?

Camila – Fiquei perturbada, sim. Nos primeiros dias eu concluí o boletim com “calma que amanhã tem mais”. Mas logo me dei conta de que o problema era justamente que estávamos calmos demais. Pânico, para mim, não é “ó meu deus vamos todos morrer mesmo então melhor se matar antes”. Pânico, para os fins do Boletim da Falta d’Água em SP, é o oposto da letargia institucionalizada. É o oposto de “não falta água, não faltará água em São Paulo”. É o meu manifesto antinegação. É um apelo para que as pessoas se informem sobre o que está acontecendo e, a partir daí, tomem as ações que julgarem mais adequadas. Como não acredito em ação sem reflexão, acho importante estar bem informado para resolver o que fazer. E isso em todos os níveis: desde construir cisterna em casa até exigir providências das autoridades, passando pela organização de redes de solidariedade nos bairros e comunidades.

(Fim da conversa com Camila)

A disputa da narrativa já começou

A palavra “crise” me parece muito pequena diante do que já está desenhado. Talvez coubesse anos atrás, momento em que, se tivesse sido pronunciada, assumida e enfrentada, poderia ter tido seu impacto reduzido. Hoje, não mais. Alguns têm sugerido a palavra “colapso”. E colapso pode dar conta da impossibilidade de viver como antes, da convicção de que não existirá mais “a vida de sempre”, de algo que não pode ser refeito sobre as mesmas bases. O que se anuncia me parece poder ser representado por “catástrofe”, palavra que escolhi usar mesmo correndo o risco de ser chamada de “apocalíptica”, como já se acostumaram a ouvir todos aqueles que alertam para os rumos perigosos de São Paulo e do país, assim como para os desafios da mudança climática do planeta há anos, décadas. Já padecemos demais com os eufemismos esgrimidos pelas autoridades. Mas, ainda que saibamos que as palavras são importantes, jamais podemos esquecer que os extremos de nossa condição são irrepresentáveis, escapam da linguagem. É também a batalha da linguagem que travaremos – e nela está também tudo aquilo que não vira palavra.

É isso que Camila também diz quando afirma que ainda não encontrou a linguagem para expressar o que vive. Ela, assim como todos aqueles que, individual ou coletivamente, se mobilizaram para documentar a catástrofe da água são filhos desses tempos de internet e têm enorme importância para a construção da realidade do dia seguinte. Quanto mais múltiplas forem as versões, melhor para a busca das verdades dos fatos e para a interpretação das subjetividades. A disputa narrativa já começou, e as armadilhas são proporcionais ao tamanho do desafio.

Uma versão bastante difundida por alguns noticiários, em especial os da TV aberta, tem sido a de que o problema dos apagões de energia seriam decorrentes das hidrelétricas que ainda não foram concluídas, como Belo Monte, ou das que ainda não foram iniciadas. Em seguida, vem o culpado: “por atrasos/dificuldades no licenciamento ambiental”. Por que eu me refiro à escassez de energia quando estava falando da escassez de água? Primeiro, porque são temas relacionados. Segundo, porque aqui claramente é demonstrada a repetição do discurso da dissociação e da negação. E foi também a dissociação e a negação, em todos os planos, que nos trouxe até o estado atual de calamidade.

Talvez nunca tenhamos precisado tanto fazer relações e compreender o mundo dentro de uma teia de ação e consequências como hoje. A narrativa que compartimenta falseia e informa mal. Está superada em todas as áreas, inclusive na educação. No momento em que sofremos as consequências da irresponsabilidade de nossas escolhas, em que as questões ambientais devem estar no topo das nossas prioridades se quisermos ter alguma chance, em que executivos das grandes empreiteiras que constroem as grandes hidrelétricas e que são as grandes financiadoras de campanhas políticas estão na cadeia por conta da operação Lava Jato, tenta-se de novo e sempre colocar ambientalistas e preocupações ambientais como um “entrave”. Por que e a serviço de quem? Ignorância, má fé ou ambas?

Um exemplo. A falta de água se anuncia como catástrofe, mas, ao mesmo tempo, o governo federal quer concluir Belo Monte, no rio Xingu, apesar de todas as irregularidades e da denúncia de etnocídio indígena, e barrar o Tapajós. Aqui, há algumas relações que podem ser feitas: 1) as hidrelétricas têm grande impacto no desmatamento e na destruição ambiental, não apenas pela obra em si, mas também pelo desequilíbrio que provocam ao expulsar ou realocar comunidades, assim como a quantidade de migrantes que atraem e todas as consequências envolvidas nisso; 2) a devastação da Amazônia, onde hoje estão sendo feitas e planejadas as grandes barragens, já é dramática e compromete o clima; 3) há cientistas e trabalhos científicos de alto nível mostrando que a floresta amazônica tem um papel estratégico na regulação do clima do Brasil e do planeta, o que envolve a questão das chuvas no sudeste do país; 4) os reservatórios das hidrelétricas ficam baixos quando a chuva é escassa, comprometendo o abastecimento da energia; 5) priorizar hidrelétricas na Amazônia e culpar a resistência a elas pelo desabastecimento é encobrir que o governo federal não fez o necessário investimento na diversificação de fontes de energia; 6) é também escamotear que, em vez de conscientizar a população da necessidade de poupar, porque os recursos são finitos, o governo federal fez exatamente o contrário disso, estimulando o consumo; 7) os enormes problemas sociais e ambientais causados pelas hidrelétricas, e neste quesito Belo Monte é o nosso atual mostruário (ou “monstruário”, como alguns preferem), são causados também porque o processo de licenciamento ambiental não é respeitado nem as condicionantes legais, aquilo que é preciso fazer para que a obra possa ser realizada com danos menores, não são cumpridas.

Em resumo: a verdade é muito mais complicada e atrapalha os poderosos interesses envolvidos. Os links dos últimos parágrafos são de grande importância para quem compreender que precisa compreender o que está em jogo e participar das decisões. Se pode emergir algo de positivo desse momento que vivemos é o de fazer com que questionemos a nossa relação com o meio ambiente, assim como o nosso lugar num planeta cada vez mais hostil pela nossa ação, dando-nos a chance de nos tornarmos pessoas capazes de enfrentar os desafios dessa época, que, como qualquer um pode perceber, são enormes.

O que está em jogo não são obras, mas nossa relação desastrosa com o meio ambiente, nossa dissociação com a natureza e nossa ignorância. Ignorância no sentido de desconhecer até mesmo que é preciso conhecer. É imperativo romper com a negação. E podemos começar a fazer isso aumentando nossa leitura crítica e construindo as relações necessárias. Não custa lembrar sempre que, como diz a frase famosa, “na guerra, a verdade é a primeira vítima”.

Os possíveis cenários da “guerra da água”

Quem seremos nós quando a água acabar? Tudo indica que saberemos muito em breve. Uma reportagem de O Estado de S. Paulo mostra que, seis anos atrás, um estudo envolvendo 200 especialistas mostrou ao governo paulista uma projeção do que aconteceria se a crise não fosse enfrentada. O relatório chama-se “Cenários ambientais 2020”. Nele, projetava-se, a partir das informações disponíveis, o que aconteceria até este ano caso medidas não fossem tomadas. O objetivo do estudo era estabelecer planos de ação para impedir que os cenários mais pessimistas se realizassem – ou seja, para evitar a realidade de hoje.

É aterrador de várias maneiras, a começar pelo fato de que o estudo encomendado pelo governo do PSDB foi ignorado pelo governo do PSDB, resultando no que está aí. Mas é aterrador também pelo cenário sugerido no documento como o mais provável. O texto é escrito como se o narrador já estivesse em 2020 e tudo já tivesse acontecido.

Diz a reportagem: “O estado (de São Paulo) teria assistido nesse período (2015) a um ‘conflito pelo uso dos recursos hídricos’, que desencadeou uma ‘guerra da água’ entre algumas regiões. Essa guerra teria começado após ‘um ano atípico de chuvas, com precipitações muito abaixo do esperado’”. O documento diz ainda: “O ano de 2018 significou um marco na história do uso da água no estado de São Paulo e os problemas verificados podem ser considerados uma continuação daqueles da crise de 2015. Em determinadas regiões, em função do uso intensivo de agrotóxicos (defensivos agrícolas) e fertilizantes (adubos), as águas superficiais e subterrâneas foram afetadas, comprometendo o abastecimento público de alguns municípios. As ações judiciais se multiplicaram, no rastro das manifestações populares que reivindicaram o abastecimento público em detrimento do agronegócio. A Agência Nacional de Águas (ANA) disponibilizou técnicos que auxiliaram na mediação do conflito. No auge da crise, prefeitos e vereadores aprovaram pacotes com leis restringindo temporariamente atividades econômicas de uso intensivo de água”.

Esta é a projeção realizada em 2009 – e ignorada. Agora, estamos no presente, em 2015, ano em que a “guerra da água” começaria.

Que impacto terá a falta de água nos empregos? Como farão os pais para trabalhar se os filhos ficarem sem escola e sem creche? O que acontecerá com os doentes e os velhos? Que tipo de inferno ainda maior se tornarão os presídios e as instituições para crianças e adolescentes infratores? Como será nos hospitais se as doenças aumentarem? Será que devemos tentar fugir de São Paulo?

Estas são algumas das perguntas que aparecem nos debates sobre a água, vindas de uma plateia cheia de angústia diante da incerteza de um futuro que é logo amanhã. Da experiência concreta da realidade vem o exemplo da cidade paulista de Itu, no ano passado, quando donas de casa foram para as ruas com tomates e ovos e seus filhos com pedras, quando carros-pipa precisaram de escolta policial, quando surgiram traficantes de água, quando as pessoas foram assaltadas depois de horas na fila para encher um galão ou um balde. Quando os assaltantes queriam não mais dinheiro, mas água. A Grande São Paulo se tornará Itu, multiplicada por milhões?

Depende de nós construir, coletivamente, uma resposta que não seja a barbárie do individualismo e do salve-se quem puder ou quem tem mais dinheiro. Os mais ricos podem sair da cidade, a classe média vai ter que aprender com os mais pobres, que há muito estão submetidos ao regime de rodízio de água sem que ninguém se importe além deles, como é que se vive na escassez. O que não podemos permitir é que a catástrofe da água seja reduzida a um problema de segurança pública, com as forças de repressão do Estado a serviço dos mesmos de sempre, como já se tornou um hábito no tratamento das questões mais profundas, exatamente para desviar o foco, esvaziar o conteúdo e escapar das responsabilidades.

Para começar, precisamos entender que o que parece anormalidade, exceção, é possivelmente a normalidade daqui em diante. São Paulo apenas antecipa o futuro por todos os superlativos com os quais foi construída. Precisamos nos preparar para um clima de extremos, nosso mundo já é pior. E é pior, na compreensão de 97% dos artigos científicos sobre o clima, por causa da ação humana sobre o planeta. Assim, precisamos mudar mesmo. E a água é apenas o tema mais urgente que exige nossa participação nas decisões da cidade, do estado e do país – do mundo. E está relacionada com as principais questões socioambientais. A água não pode mais ser vista como mercadoria.

Não há tempo para formar uma geração que compreenda os desafios desse momento histórico. Teremos de enfrentá-los com os homens e mulheres imperfeitos de nossa época – arrogantes, consumistas, egoístas e inconsequentes, ainda com as ilusões da modernidade batendo em nossos corações enquanto o mundo ao nosso redor se arruína. Terá de sermos nós, a única matéria humana disponível, com o melhor que conseguirmos encontrar na escassez íntima de nossos interiores.

O tempo de despertar já passou. Agora é preciso acordar em pé.

(Publicado no El País em 02/02/2015)

 

Limites da linguagem

Uma história em que faltam cada vez mais palavras

 

A entrevista estava marcada na casa dele, numa das favelas mais pobres de Fortaleza. Era o dia do jogo do Brasil contra o México, e o menino com nome de poeta fazia parte de uma seleção que jogou a Copa do Mundo dos Meninos de Rua. De manhã bem cedo, eu e o fotógrafo esperávamos, na porta de uma ONG ainda fechada, o educador que nos levaria até aquele emaranhado de endereços desencontrados, um território dividido por duas quadrilhas rivais do tráfico de drogas. O menino apareceu de repente, vestido com uma camiseta do Brasil. Sem olhar para mim, ele disse: “Na minha casa, não.” Não dizia o porquê. Apenas sacudia a cabeça em sinal de negativa explícita. Ele era pequeno para os seus 15 anos, mas o seu “não” era enorme.

A porta da ONG abriu, e ele entrou. Sentou-se na cadeira da recepção e tentou ligar o computador. Me agachei ao lado dele e arrisquei algumas perguntas. Ele só me atirava monossílabos. Passou-se muito tempo, talvez quase uma hora de silêncios entre nós, interrompidos por uma ou outra palavra que servia ao menino apenas como demarcação do território. O território que ele não queria que eu alcançasse, as palavras curtas marcando que não haveria palavras longas. Eu não sabia se tinha o direito de continuar ali, talvez nunca saiba. Mas ele também não ia embora. Ficamos os dois, eu tentando entrar, ele se esforçando para que eu não entrasse, o que era uma forma de conexão, já que nos mantinha ambos ali.

Então a cozinha da ONG abriu. E, de um salto, ele já estava lá. Como se eu fosse um vira-lata esquecido, me chamou com displicência. Mas continuava sem me olhar. Sentei-me diante dele e o vi devorar um pão em menos de um minuto. No segundo pão, ele me enxergou pela primeira vez. Me ofereceu um pedaço. A certa altura, parecendo com pena de mim, disse:

– Você entende só um pouco de português, né?

O menino tinha razão. Eu não falava o português dele, como conto na reportagem que escrevi. Não alcançava a riqueza da sua língua portuguesa, que dava conta de um Brasil diverso, com palavras nascidas ali mesmo. Expressões gestadas na necessidade de dar conta de uma realidade na qual era necessário, por exemplo, nomear o momento-limite em que o gatilho da arma é acionado, mas a bala não sai.

Mas era mais do que isso. Eu demorei a lê-lo. Eu era analfabeta dele. O seu “não” da altura de um edifício, a postura do seu corpo, entre acuada e pronta para saltar no meu pescoço, o seu medo de mim, que às vezes beirava a raiva, era fome. Algumas vezes me deparei com essa fome, a fome que é um substantivo sem adjetivo possível. E em todas elas foi difícil para mim reconhecê-la, porque esse alfabeto, irredutível e irrepresentável, me é inacessível.

O menino me leu muito antes de eu a ele. Percebeu que eu era estrangeira ao seu Brasil. Estranhou a cor da minha pele, a tonalidade do meu cabelo, a forma e o som das minhas palavras. Estranhou que eu precisasse de tradução para algumas de suas frases. Estranhou porque havia que estranhar.

Contei essa história, na versão resumida de um parágrafo, em minha participação na FLIP (Festa Literária de Paraty), na semana passada. Penso que quem escreve está sempre nessa condição de estrangeiro. Não turista, jamais turista. Mas estrangeiro, aquele que estranha e que é estranhado, movimento duplo que nos torna capazes de escutar um outro ser-estar na linguagem – e também fora da linguagem. Ser capaz de estranhar para não cometer a traição de encaixotar o outro num escaninho seguro onde ele é reduzido a uma daquelas borboletas mortas presas por um alfinete.

A literatura é a experiência da alteridade, que só se completa na incompletude refletida no olhar do outro. Por isso demanda o movimento de abertura para o desconhecido, mesmo que o sentimento seja incômodo ou mesmo perturbador. Mesmo que não se possa nomear o contato com as palavras disponíveis, mesmo que seja preciso escutar no tempo do outro.

Depois que o menino com nome de poeta me dá um lugar, o de estrangeira, ele de súbito me aperta num abraço. Ele me acolhe com minhas faltas, ele completa com explicações as ausências que ainda tenho de sua língua portuguesa, na qual sou uma ouvinte aprendiz. Ele me reconhece como uma pessoa. A condição estrangeira que encontramos num e noutro nos torna, paradoxalmente, sem fronteiras. Como pessoas, transitamos entre um e outro. É por isso que nossos corpos podem se tocar para muito além da carne.

O menino então me leva à sua casa. Há nela um velho móvel-geladeira, o único lugar para guardar comida. Ele hesita em me mostrar. Ainda não sabe se pode abrir mais essa fechadura. Mas ele abre, porque eu insisto. (E não deveria ter insistido, porque não tinha esse direito.) Eu enfio a cabeça dentro da boca do móvel-geladeira e vejo. Eu faço o que costumo fazer quando enxergo mais do que deveria: baixo os olhos e garrancho anotações no meu bloquinho. Ele diz: “não”. Não conte. Eu não conto. E, porque não conto, não posso esquecer.

Às vezes acontece assim. Há pessoas que continuo lendo e lendo e lendo porque escrevi sobre elas e as palavras continuam faltando. E quanto mais escrevo, mais as palavras faltam. É uma vertigem, quase uma alucinação, em que as palavras avançam e o texto aumenta, mas o espaço em branco é maior, sempre maior. Por escrito, o menino com nome de poeta é assim.

Eu me equilibrava sobre as pedras de Paraty nos últimos dias, entre escritores e leitores, e o menino era o livro para sempre incompleto que carregava comigo. Há livros que não podem ser terminados, e isso é brutal. A vida avança no tempo, e com ela as páginas que jamais serão concluídas, as páginas que denunciam nossa impotência, vão ficando mais numerosas. De todas as páginas em branco que carrego comigo as da fome talvez sejam as piores. Porque só tenho uma palavra, fome, e ela tão pouco diz. E me faltam todas os substantivos que alimentam.

Num desses dias abri um livro de Octavio Paz. A epígrafe é um texto do poeta espanhol Antonio Machado. Evoca a resistência do “outro” diante das tentativas de torná-lo o “mesmo”.

“O outro não existe: essa é a fé racional, a crença incurável da razão humana. Identidade=realidade, como se, afinal de contas, tudo tivesse que ser, absoluta e necessariamente um e sempre o mesmo. Mas o outro não se deixa eliminar; subsiste, persiste; é o osso duro de roer no qual a razão humana perde os dentes”.

Um livro é como o móvel-geladeira do menino com nome de Poeta que me tratou como Pessoa. Se abrir, o risco é seu. E é para sempre.

(Publicado no El País em 04/08/2014)

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