Isso é – ou não é – um escândalo?

Até agora, a turma que aposta na impunidade está ganhando. Depois de denunciar a farra do ipê no oeste do Pará, Junior José Guerra continua sem proteção. O assassinato de João Chupel Primo segue impune. E o governo federal tampouco fez qualquer ação efetiva de ocupação pelo Estado daquele pedaço do país dominado por quadrilhas de madeireiros. Em entrevista, o presidente do ICMBio, Rômulo Mello, dá uma aula sobre as relações entre o órgão de proteção e o grileiro Sílvio Torquato Junqueira, que controla cerca de 80 mil hectares dentro da Floresta Nacional do Trairão

Na coluna anterior, a reportagem “A Amazônia segundo um morto e um fugitivo” detalhava uma operação de roubo de madeira de dentro de unidades de conservação do oeste do Pará por quadrilhas do crime organizado. Toda essa madeira – mais de 90% dela ipê – passa por uma única rua de um assentamento agrário do INCRA. Os conflitos em torno dessas transações criminosas já produziram pelo menos 15 cadáveres nos últimos dois anos. João Chupel Primo e Junior José Guerra, as duas pessoas que denunciaram a operação – em detalhes, com nomes, locais e funcionamento – estão na seguinte situação: João virou cadáver e Junior foge com a família, sem proteção do Estado.

Isso não é um escândalo?

Vou dizer de outra maneira. As unidades de conservação são áreas da floresta amazônica que, por decreto federal, deveriam ser protegidas pelo governo por causa de sua riqueza e biodiversidade. É patrimônio nosso – meu, seu, de todos nós. Nesse patrimônio que é nosso há bandidos tirando ipê, em grande quantidade, para exportação. Por que ipê? Porque hoje o ipê é uma das madeiras mais valorizadas no mercado internacional. Para você, leitor, ter uma ideia, esses bandidos que estão lá, saracoteando tranquilos pelo patrimônio público, pagam cerca de cinco reais o metro cúbico para o ribeirinho e, nas lojas de Paris, o metro cúbico do ipê é vendido ao consumidor por um preço que varia entre 3.000 e 4.000 euros. O negócio parece bom, não é?

Os bandidos têm certeza que sim – e mais certeza têm porque nada acontece com eles e, nas poucas vezes em que acontece, é com o peão, não com o madeireiro. Para tirar toda essa madeira de dentro da nossa terra, os criminosos controlam um assentamento do INCRA, estrategicamente localizado, a ponto de os assentados terem vivido por anos pagando pedágio para conseguir alcançar seus lotes. Assentados e ribeirinhos que tentam resistir ao crime organizado são ameaçados de morte – e, se ainda assim seguirem resistindo, são executados.

Isso não é escandaloso e grave, muito grave?

João Chupel Primo e Junior José Guerra pensaram que era. Acreditaram que, ao denunciar a operação às autoridades, haveria indignação, seguida por ação, seguida por ocupação da área pelo Estado. Não é legítimo imaginar que o Estado vá ocupar um pedaço do Brasil que está na mão do crime organizado? Me parece um pensamento bem razoável. Mas, para muitos, é apenas ingenuidade. Como seria ingenuidade minha insistir no assunto.

Até agora, pelo menos, é preciso reconhecer que a turma que aposta na impunidade está ganhando. Depois que esses dois brasileiros denunciaram a operação ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e à Polícia Federal, em setembro de 2011, nenhuma providência foi tomada. Então, em 20 de outubro, Chupel denunciou ao Ministério Público Federal de Altamira. Nessa reunião, havia uma representante da Secretaria-Geral da Presidência da República. O que aconteceu? Menos de dois dias depois Chupel estava morto. E Junior assinalado como o próximo cadáver.

Isso não é sério, muito sério? O governo federal reconhece que é sério, mas não age como se fosse sério. E muita gente com poder para pressionar que o governo cumpra o seu papel de ser governo também parece achar que é apenas “mais uma bizarrice da Amazônia”. Sim, a Amazônia, esse lugar que 11 entre 10 brasileiros batem no peito para dizer: “É nossa!”. Esse lugar que estará no centro dos debates da Rio +20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável que acontecerá no Brasil em junho.

Desde a sexta-feira, 27/1, eu tenho perguntado a vários órgãos do governo, com toda educação e com palavras mais finas, algo que pode ser resumido como: “E aí, o que vocês vão fazer a respeito?”. De concreto, nenhuma resposta. A pedido do Ministério Público Federal do Pará, a Polícia Federal teria aberto um inquérito “sigiloso”. A Secretaria-Geral da Presidência da República, que conhece o caso, como já foi dito, desde pelo menos 20 de outubro, afirma que quem pode falar, “oficialmente”, pelo governo, é a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). Na sexta-feira, 3/2, o secretário-executivo da SEDH, Ramaís de Castro Silveira, deu uma entrevista ao editor de Brasil de Época, Ricardo Mendonça. Você pode ler aqui e concluir por si mesmo se estou sendo exagerada.

Na minha opinião, Franz Kafka, se estivesse vivo, poderia escrever uma segunda versão de “O processo”. A impressão que eu tive ao ler a entrevista é que, a depender dos recursos e tramitações necessários, o pistoleiro pode buscar Junior a pé, caminhando pelo Brasil continental, e tem chances de encontrá-lo antes que ele consiga proteção. Junior vai estar atrapalhado com todas as vias e carimbos enquanto o pistoleiro toma um refrigerante na esquina do seu esconderijo. Espera-se, por exemplo, que Junior, ameaçado de morte, faça um recurso para que seu caso seja novamente analisado. Você, leitor, com certeza já enfrentou a notável burocracia brasileira alguma vez na sua vida. Pois é. Imagine-se ameaçado de morte, mantendo-se com pouco dinheiro e precária estrutura, escondido com sua mulher e seus dois filhos menores de idade – e fora da escola porque também estão sendo caçados por bandidos – e tendo que fazer um recurso para tentar convencer as autoridades de que sua vida precisa ser protegida. Simples, não é?

Há uma parte dessa entrevista, entre tantas, que é particularmente interessante. Nela, Ramaís refere-se ao fato de que João Chupel Primo foi assassinado menos de dois dias depois de fazer a denúncia ao MPF. O secretário da Secretaria de Direitos Humanos afirma: “Neste caso, eu não tenho a menor sombra de dúvida de que o procedimento correto era não ter deixado ele sair na porta do depoimento sem a proteção. Ali, de fato, parece que houve um equívoco”. A crítica ao MPF é legítima. O que chama a atenção, porém, é que Ramaís “não tem a menor sombra de dúvida” de que Chupel não poderia ter saído da sala do procurador sem proteção. E acredito que, hoje, ninguém, com algum senso de humanidade, tenha essa dúvida. Mas Junior tenta, desde o final de outubro, há mais de três meses, portanto, obter proteção do programa coordenado pela secretaria que Ramaís representa e não consegue. Me diga, leitor, estou vendo coisas que não existem ou há um problema de lógica no raciocínio do senhor secretário?

Porque eu insisto nesse assunto? Porque acredito que João Chupel Primo e Junior José Guerra denunciaram um escândalo que diz respeito a todos nós, cidadãos brasileiros. E agora me deparo com outro escândalo, que é a ausência de medidas concretas e efetivas tanto de proteção a Junior, o único dos dois denunciantes que ainda sobrevive, como de medidas concretas e efetivas para retomar aquele pedaço do Brasil para o Brasil. E me deparo ainda com um terceiro escândalo, que é a ausência de espanto geral, tanto com relação ao crime quanto com relação à falta de reação ao crime.

Dito isso, vou abrir uma pequena janela no cenário maior, para compartilhar mais um espanto com vocês. No oeste do Pará, há uma área de cerca de 80 mil hectares de terra chamada de Fazenda Santa Cecília. Essa área foi grilada por Sílvio Torquato Junqueira, um homem da elite paulista, no velho hábito de se adonar de áreas públicas na Amazônia e ver o que dá. Em 2006, essa área pública foi decretada unidade de conservação e chamada de Floresta Nacional do Trairão. O decreto prevê a retirada de qualquer ocupação não compatível com uma unidade de conservação. Grileiros, por exemplo, nunca deveriam ter botado uma cerca em terras que pertencem a todos os brasileiros, sejam unidades de conservação ou não.

O espantoso nessa história é que todas as apropriações similares foram retiradas da Terra do Meio – menos a Fazenda Santa Cecília. O próprio Sílvio Junqueira, na reportagem publicada aqui em 28/1, conta o processo de ocupação com notável transparência e até uma certa singeleza. Disse ainda o seguinte: “Se o governo mandar sair de lá, eu saio”. Isso me fez pensar que talvez, por mais incrível que possa parecer, o governo nunca tenha mandado Junqueira sair da Floresta Nacional do Trairão.

Pois bem, fui compartilhar meu espanto com a autoridade devida: Rômulo Mello, o presidente do ICMBio – órgão que tem a responsabilidade de proteger, fiscalizar e consolidar as unidades de conservação federais. A entrevista me deixou mais espantada ainda. Vou reproduzi-la tal e qual aconteceu, acrescida de comentários, para que você possa compreender por que meu espanto se multiplicou.

Pergunta: Na Terra do Meio, há uma área grilada por Sílvio Torquato Junqueira, em nome de mais de duas dezenas de pessoas, cuja sede é conhecida como Fazenda Santa Cecília. Essa fazenda fica dentro de uma unidade de conservação chamada Floresta Nacional do Trairão. O próprio Sílvio afirmou em entrevista que os funcionários do ICMBio passam por lá e até elogiam, dizendo como a área está bem cuidada, cercada… Minha pergunta é: naquela região, todas as ocupações similares à Fazenda Santa Cecília foram retiradas. Por que só a Fazenda Santa Cecília permanece?

Rômulo Mello – Veja bem, a fazenda, enquanto atividade de pecuária, não funciona lá. O que funciona é a estrutura física relacionada à sede da fazenda.

(Espanto: Me arrisco a cogitar que, se a atividade não é comercial, o gado que por lá pasta deve estar a passeio.)

Pergunta: Mas como é possível existir uma fazenda numa unidade de conservação?

Mello – É possível porque ela está sendo mantida pelo posseiro. Ao criar a unidade de conservação, aquela casa que está lá só vai ser de responsabilidade do Instituto Chico Mendes depois que nós procedermos com o processo de regularização fundiária. Isso quer dizer o seguinte: ou nós indenizamos o Sílvio pela benfeitoria dele ou ele retira suas benfeitorias. Há algum tempo atrás, ele veio aqui no Instituto pedindo que nós autorizássemos que a fazenda funcionasse como empresa de turismo, e nós não autorizamos isso. Ele continuou mantendo a posse dele lá, inativa.

(Espanto: As áreas ocupadas por grileiros foram retomadas nas unidades de conservação da Terra do Meio. Se o grileiro entendesse que tinha direito à indenização, entrava na Justiça. É inevitável pensar: se eu ou você decidimos ocupar uma terra pública na floresta amazônica e, além dessa primeira ilegalidade, cometemos outra, que é a de desmatar para instalar “benfeitorias” sobre terra pública, em vez de sermos responsabilizados pelo malfeito, o Estado deve nos premiar? É a conclusão possível diante da resposta do presidente do ICMBio. Juro que já vi casos em que situações semelhantes foram consideradas crimes ambientais.)

Pergunta: Mas por que só essa fazenda não é tirada?

Mello – Quem tem de tirar as benfeitorias de lá é ele, não somos nós. E nenhuma outra foi tirada por nós. Se alguém tirou foi o próprio posseiro ou o ocupante ou a pessoa que tinha a posse do imóvel.

(Espanto: Isso significa que o Estado deve esperar que as pessoas que cometem atos ilegais deixem de cometê-los, por um súbito ataque de consciência? Não me parece que tenha sido assim que parte dos grileiros foi tirada de áreas públicas da Amazônia. Operações do próprio Ministério do Meio Ambiente, como a Boi Pirata I e II confiscou e retirou gado da Terra do Meio, como nessa notícia produzida pelo próprio governo.)

Pergunta: Mas é legal ele permanecer na unidade de conservação?

Mello – É legal ele permanecer lá até que seja indenizado pelas benfeitorias. Ele não pode é usar, como ele gostaria de usar, como hotel de turismo.

(Espanto: Então, se eu entendi bem, é mais ou menos como dizer o seguinte para alguém que pegou um carro que não era seu – neste caso, uma viatura pública: “Olha, a gente descobriu tudo. Você terá que devolver esse carro. Mas você devolve quando quiser, ok? E tem mais: se você colocou rádio, ar-condicionado, calota ou qualquer outra coisa, avise na hora da devolução porque o Estado vai te dar uma indenização pelas benfeitorias. Mas, alto lá: se você não quiser devolver o carro, já, tudo bem, mas está proibido de ficar andando com ele por aí, entendeu?”.)

Pergunta: Entre as denúncias que foram feitas (por João Chupel e Junior Guerra) está a extração de madeira naquela área, operação comprovada pela análise de imagens de satélite. O que o senhor me diria sobre isso?

Mello – Nós temos apurado e buscado equacionar todas as denúncias que recebemos. Se há uma retirada de madeira na região, as ações de fiscalização em curso enfrentarão isso e tomarão as providências necessárias. O fato de alguém passar por lá e entender que aquilo está bem tratado não quer dizer, absolutamente, que há uma conivência ou que se está tratando de forma diferenciada um determinado ocupante ou infrator na região. Quem for identificado retirando madeira das áreas vai ter o produto apreendido e vai passar pelo processo de apuração e de fiscalização.

(Espanto: Como será que o os funcionários do ICMBio que andaram por lá elogiando as cercas conseguiram não perceber que o ramal madeireiro que corta a Floresta Nacional do Trairão passa na porta da sede da Fazenda Santa Cecília? Mesmo depois de tantas denúncias, não ocorreu a ninguém parar para perguntar se quem ficava na varanda não percebia o fantástico tráfego de caminhões madeireiros avançando por ali vindos da imensa área grilada controlada por Sílvio Junqueira?)

Pergunta: Mas o fato de ter um grileiro numa unidade de conservação já não é em si uma ilegalidade?
Mello – Deixa eu lhe dizer. Dentro do processo de consolidação fundiária, ele construiu uma propriedade lá. O imóvel dele é uma propriedade dele. É uma posse dele. Para que eu tire ele de lá nós temos de indenizá-lo pela benfeitoria. Ou ele retira as suas benfeitorias de lá.

(Espanto: Eu pensava que só poderíamos considerar “propriedade” o imóvel com título registrado e reconhecido, que tivesse cumprido todos os trâmites legais. Eu também pensava que “posseiro” era aquele cara em busca de um pedaço de chão para sobreviver com sua família, que ocupa uma área de algumas dezenas de hectares, para morar e trabalhar. Jamais imaginaria que alguém como Sílvio Junqueira, um homem tão bem sucedido na vida, vivendo a milhares de quilômetros da Amazônia, na rica Ribeirão Preto, pudesse um dia ser chamado de “posseiro” ao grilar cerca de 80 mil hectares de floresta, numa espécie de “condomínio” com familiares e amigos. Eu acreditava ainda que igualar grileiro a posseiro era um tipo de má fé.)

Pergunta: E por que ele não “retira” a fazenda?

Mello – Como eu estou lhe dizendo, ele procurou o Instituto objetivando viabilizar aquilo como um hotel de turismo, e nós nos recusamos a fazer uma parceria com ele.

Pergunta: Mas o ICMBio não tem poder de mandá-lo retirar as “benfeitorias”, já que a terra não pertence a ele?

Mello – Eu só posso fazer isso depois de indenizá-lo pelas benfeitorias. Ou eu o indenizo ou ele retira (as benfeitorias). Ou então por decisão judicial. Nós, apesar de termos poder de polícia, para destruir ou retirar ou derrubar uma benfeitoria teríamos de ter autorização judicial.

Pergunta: Se ele não for indenizado, então é só ele saindo sozinho, por conta própria?

Mello – Precisa ser indenizado, sim, porque eram benfeitorias e ele tem direito a elas. Agora, ele não tem direito ao uso da unidade de conservação para qualquer atividade econômica.

Pergunta: Mas ele está lá, mantém um funcionário, dentro de uma unidade de conservação. E vacas, também.

Mello – Mas não desenvolve qualquer atividade econômica dentro da unidade.

Pergunta: Então, qualquer grileiro, que queira manter uma casa dentro da unidade de conservação…

Mello – (Interrompendo) Não é assim. Não é qualquer grileiro que queira manter papapá… Ao promover qualquer processo de regularização fundiária, a gente toma as providências necessárias à consolidação da área. Ou a gente indeniza as benfeitorias ou judicializa.

Pergunta: E isso já foi feito com relação à área grilada pelo Sílvio Junqueira?

Mello – Eu não posso te afirmar isso porque eu não estou no meu escritório. Mas posso levantar isso para você.

Nesse ponto da entrevista, o presidente do ICMBio pediu que eu ligasse mais tarde, para que pudesse fornecer as informações. Meia-hora depois, Rômulo Mello afirmou: “O Silvio foi autuado várias vezes por nós. E existe uma ação civil pública tramitando para regularização fundiária”.

A entrevista foi feita na sexta-feira, 27/1. Na segunda-feira, 30/1, solicitei, por meio da assessoria de imprensa do ICMBio, a cópia da ação civil pública citada e a lista de autuações. Reiterei o pedido várias vezes ao longo da semana. Apenas no final da tarde da última sexta-feira, 3/2, recebi, por escrito: “Com relação à Fazenda Santa Cecília, houve um equívoco na informação, pois não existe ação civil pública”.

Você, leitor, se espantou? Eu me espantei. E sigo espantada.

Alguém poderia pensar que o tema do início não se relaciona com o tema do final dessa coluna. Equivoca-se. Sempre foi mais fácil tratar apenas dos feios, sujos e malvados – e principalmente distantes – bandidos que atuam nos confins da floresta, sem fazer as relações devidas. Mas só é possível atuar de forma efetiva na pacificação da Amazônia se todas as relações de poder forem feitas. A linha de produção precisa ser seguida e traçada até o final. Junior José Guerra costuma comparar o que acontece no oeste do Pará com o crime organizado nas favelas do Rio. É uma boa analogia.

Pela Fazenda Santa Cecília passa parte da madeira roubada de dentro da Floresta Nacional do Trairão. Nesse caso, a denúncia é comprovada pela análise de imagens de satélite. Não há quem não saiba disso na região – inclusive os funcionários do ICMBio. O caso da Fazenda Santa Cecília foi, inclusive, citado na publicação “Via de Direito, Via de Favor”, feita pelo próprio órgão, em conjunto com o Instituto Socioambiental. Sílvio Junqueira, é importante ressaltar, afirma não pisar na área grilada desde 2006 e nega qualquer conhecimento sobre a operação criminosa. Por outro lado, assegura que controla a área, com cercas e porteiras, inclusive, e acompanha o que acontece lá pelos relatos assíduos do seu “funcionário”.

Sim, eu me espanto. Mas não estou sozinha. Nesse momento, os vários atores envolvidos tanto na operação criminosa como na denúncia da operação criminosa olham para as autoridades. E aguardam. O que o governo federal fizer – ou deixar de fazer – vai definir o futuro próximo. Se a impunidade persistir, apesar das denúncias e do conhecimento público das denúncias, a violência e o crime organizado vão recrudescer no oeste do Pará. Se o denunciante – o que ainda não morreu –, em vez de protegido for assassinado, nenhum outro brasileiro vai ter a coragem de abrir a boca para denunciar um crime.

Veremos.

(Publicado na Revista Época em 06/02/2012)

Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney

Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

Se você é aquele tipo de leitor que acha que Belo Monte vai “afetar apenas um punhado de índios”, esta entrevista é para você. Talvez você descubra que a megaobra vai afetar diretamente o seu bolso. Se você é aquele tipo de leitor que acredita que os acontecimentos na Amazônia não lhe dizem respeito, esta entrevista é para você. Para que possa entender que o que acontece lá, repercute aqui – e vice-versa. Se você é aquele tipo de leitor que defende a construção do maior número de usinas hidrelétricas já porque acredita piamente que, se isso não acontecer, vai ficar sem luz em casa para assistir à novela das oito, esta entrevista é para você. Com alguma sorte, você pode perceber que o buraco é mais embaixo e que você tem consumido propaganda subliminar, além de bens de consumo. Se você é aquele tipo de leitor que compreende os impactos socioambientais de uma obra desse porte, mas gostaria de entender melhor o que está em jogo de fato e quais são as alternativas, esta entrevista também é para você.

Como tenho escrito com frequência sobre a megausina hidrelétrica de Belo Monte, por considerar que é uma das questões mais relevantes do país no momento, observo com atenção as manifestações dos leitores que comentam neste espaço ou em redes sociais como o Twitter. Anotei as principais dúvidas para incluí-las aqui e assim colaborar com o debate.

Desta vez, propus uma conversa sobre Belo Monte a Célio Bermann, um dos mais respeitados especialistas do país na área energética. Bermann é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Publicou vários livros, entre eles: “Energia no Brasil: Para quê? Para quem? – Crise e Alternativas para um País Sustentável” (Livraria da Física) e “As Novas Energias no Brasil: Dilemas da Inclusão Social e Programas de Governo” (Fase). Ex-petista, ele participou dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Célio Bermann foi também um dos 40 cientistas a se debruçar sobre Belo Monte para construir um painel que, infelizmente, foi ignorado pelo governo federal.

Vale a pena ouvir o professor a qualquer tempo. Mas, especialmente, depois de uma semana dramática como a passada. Na quarta-feira (26/10), o julgamento da ação movida pelo Ministério Público Federal reivindicando que os índios sejam ouvidos sobre a obra, como determina a Constituição, foi interrompida e adiada mais uma vez no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Na mesma quarta-feira, chamado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para explicar por que não suspendeu as obras de Belo Monte, o Brasil não compareceu, desrespeitando o organismo internacional e exibindo um comportamento mais usual em ditaduras. Em reportagem publicada em 20/10, o Estadão denunciou que, como retaliação por ter sido advertido sobre Belo Monte, o Brasil deixou de pagar sua cota anual como estado-membro.

Na quinta-feira (27/10), centenas de pessoas, entre indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades atingidas, ocuparam pacificamente o canteiro de obras de Belo Monte, no rio Xingu, pedindo a paralisação da construção da usina. Foram expulsos por ordem judicial. Enquanto o canteiro de obras era ocupado por uma população invisível para o governo de Dilma Rousseff, o cineasta Daniel Tendler apresentava no Seminário Nacional de Grandes Barragens, no Rio de Janeiro, o projeto de uma megaprodução cinematográfica que se propõe a documentar as obras de Belo Monte por cinco anos. O projeto é comandado pela LC Barreto, a produtora da poderosa família Barreto, a mesma que fez “Lula, O Filho do Brasil”. Tendler, aliás, foi um dos roteiristas do filme sobre a vida do ex-presidente. Entre as repercussões da megaprodução cinematográfica sobre a megaobra do PAC no Twitter, destacou-se uma: “Os Barreto estão para o cinema nacional como os Sarney para a política”.

Ainda na semana passada, o governo federal publicou um pacote de sete portarias ministeriais com o objetivo de “destravar a concessão de licenças ambientais no país para acelerar grandes empreendimentos, como rodovias, portos, exploração de petróleo e gás, hidrelétricas e até linhas de transmissão de energia”. Ou seja: o governo caminha para anular as conquistas socioambientais obtidas na redemocratização do país.

Dias antes, em 26/10, o Senado havia aprovado um projeto de lei que retira o poder do Ibama para multar crimes ambientais, como desmatamentos. Se não for vetado pela presidente, o poder de multar passará para estados e municípios, sujeito às pressões locais já bem conhecidas. A aprovação do projeto aconteceu quatro dias depois de mais um assassinato no Pará: João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, foi morto com um tiro na cabeça, depois de denunciar ao Ministério Público Federal, em Altamira, uma rota de desmatamento ilegal na reserva extrativista Riozinho do Anfrísio e na Floresta Nacional Trairão, área do entorno de Belo Monte. Como de hábito, o Congresso decide os rumos do país desconectado com o que acontece na vida real para além do aquário brasiliense.

No momento histórico em que recursos como água e biodiversidade se consolidam como o grande capital de uma nação, o Brasil, um dos países mais beneficiados pela natureza no planeta, corre em marcha à ré. O cenário que você acabou de ler tem no centro – como obra simbólica e estratégica – Belo Monte, a maior obra do PAC. A seguir, parte de minha conversa de quase três horas com o professor Célio Bermann, em sua sala no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.

– Por que o senhor, assim como outras pessoas que estudam o setor, afirma que a área energética do país é uma “caixa preta”. Afinal, que caixa preta é essa?
Célio Bermann – A política energética do nosso país é uma caixa preta e é mantida dessa forma por uma série de razões. Primeiro, porque a baixa escolaridade da população brasileira não permite, por exemplo, que o leitor da Época entenda o que é terawatts-hora. Mas seria interessante que a população toda tivesse conhecimento e pudesse, com informação, começar a definir junto com empresas e governo os rumos que são mais adequados. Acho que a academia tem um papel fundamental nesse processo. Eu, particularmente, tento, na área do meu conhecimento, procurar as populações tradicionais, mostrar o que é uma usina hidrelétrica, por que alaga quando você interrompe o fluxo, o que é uma barragem, e como isso vai acabar transformando a vida da comunidade. Acho importante que a academia preste esse tipo de informação, já que governo e empresas não o fazem.

– Sim, mas por que o setor energético tem sido uma caixa preta por décadas?
Bermann – A governabilidade foi encontrada através de uma aliança que mantém o círculo de interesses que sempre estiveram no nosso país. É a mesma turma que continua na área energética. E isso é impressionante. A população não participa do processo de decisões. Não existem canais para isso. Ainda no governo FHC, durante a privatização, o governo criou um Conselho Nacional de Política Energética. Nos dois mandatos de FHC participavam os dez ministros, mas havia um assento para um representante da academia e um da chamada sociedade civil. Eles sentavam, discutiam as diretrizes energéticas de uma forma aparentemente saudável, mas, no frigir dos ovos, na prática não mudava nada. De qualquer forma, havia pelo menos esse sentido de escutar. Isso, com Lula, acabou. O resultado do governo “democrático popular” do Lula, nos dois mandatos, e da Dilma, agora, é a negação de escutar outros interesses que não sejam aqueles que sempre estiveram junto ao poder. A própria Dilma, no início do governo Lula, tinha uma dificuldade muito grande de ouvir, de sentar-se com os movimentos sociais e ouvir. Eu tive a oportunidade de vivenciar o primeiro mandato do Lula, lá, em Brasília.

– E qual era o seu papel?
Bermann – Era apagar fogo, este era o meu papel…

– Mas, oficialmente…
Bermann –  O meu papel era tentar amenizar um pouco os conflitos, mas, oficialmente, eu fui trabalhar com a Dilma como assessor ambiental no Ministério de Minas e Energia. A ideia inicial era criar uma Secretaria de Meio Ambiente dentro do ministério. Era a época em que tínhamos a Marina (Silva) falando em transversalidade, então havia um ambiente extremamente propício para aparar arestas e ver se a coisa poderia caminhar de uma forma mais adequada. Achei, então, que a melhor forma de fazer isso não era criar um lugar dos ambientalistas no ministério, mas colocar em todas as secretarias do ministério gente que pensasse o meio ambiente. Mas acabei ficando um ano lá em Brasília. Mesmo assim, foi extremamente interessante, porque me permitiu sair da academia e ter, na prática, a percepção de como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo.

– E como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo?
Bermann – É um horror. É uma lentidão. É um imobilismo. É incrível a capacidade da máquina de governo de fazer de conta que faz sem estar fazendo absolutamente nada. Eu falo isso com todos os pontos nos “is”. No início do governo se buscava um entendimento entre os chamados “ministérios fins” e o meio ambiente. Transportes, por causa da construção de estradas e portos, e Minas e Energia, por causa da atividade mineral, metalúrgica e energética, e as questões ambientais que são intrínsecas a essas atividades. Houve uma boa intenção de levar adiante a possibilidade do estabelecimento de pontos comuns. Fizemos, então, um acordo entre Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente em função da definição de “pontos comuns”, de procurar verificar onde poderíamos estabelecer alguns consensos. Era um documento em que se definia uma agenda energética e ambiental comuns aos dois ministérios. Se bem me lembro, o documento foi concluído em setembro de 2003. Mas as duas ministras só foram assinar em 31 de março de 2004.

– Por quê?
Bermann – Boa pergunta. Por quê? Boas intenções… mas por quê? Eu realmente não consigo definir exatamente se era uma questão de veleidade… não sei. No final de 2003 a Marina começou a perceber a dificuldade de ela continuar, e o Lula, daquele jeito dele, deixando a coisa acontecer. Naquele momento, o governo poderia ter tido uma agenda comum, um processo extremamente positivo de entender que existem usinas hidrelétricas que não devem ser construídas.

“Em 2003, a Dilma estava feliz porque tinha conseguido afastar a turma do Sarney do setor elétrico”

– Imagino que não era fácil ser assessor ambiental da Dilma Rousseff…
Bermann – É, foi uma coisa meio… difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita, alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época, o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte… e depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011).

– O José Antonio) Muniz (Lopes O José Antonio Muniz Lopes, um homem da cota do Sarney, é um personagem longevo nessa história de Belo Monte… Só para situar os leitores, em 1989, no último ano do governo Sarney, ele era diretor da Eletronorte e foi no rosto dele que a índia caiapó Tuíra encostou seu facão por causa da proposta de Belo Monte (então chamada de Kararaô), naquela foto histórica que correu mundo. O tal do Muniz já estava lá… Depois de deixar a presidência da Eletrobrás, no início deste ano, continuou lá, agora como diretor de Transmissão da Eletrobrás…
Bermann – Pois então. Naquela época, em 2003, era ele o diretor da Eletronorte que a Dilma tinha ficado feliz por ter conseguido afastar. Por isso que eu falo que não é o governo Lula, é o governo Lula/Sarney. E agora Dilma/Sarney. Constituiu-se um amálgama entre os interesses históricos do superfaturamento de obras, sempre falado, nunca evidenciado. Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente o espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte.

– No momento em que o senhor encontrou a Dilma, logo na constituição da equipe do primeiro mandato de Lula, o senhor conta que ela estava feliz porque tinha conseguido tirar a turma do Sarney do comando da área energética. O que aconteceu a partir daí?
Bermann – A pergunta é: tirou mesmo?

– E qual é a resposta?
Bermann – Naquele momento, manter esse pessoal à distância era estratégico para reconstruir as relações e viabilizar algumas das diretrizes que tinham sido objeto da proposta de governo. O que aconteceu é que a vida dessa situação (de afastamento) foi extremamente curta devido às relações de poder. Eles não gostaram de se sentir afastados. E eu suponho que a percepção do problema da governabilidade no governo Lula foi uma ação desses setores que tinham percebido que estavam longe da teta da vaca e que não podiam continuar assim. Qual era o jeito de fazer? PMDB era oposição. Vamos conversar… E aí se reacomodam as questões. Eu não digo que seja um grupo de ladrões mercenários. Não é isso que está em jogo. Mas essa capilaridade do Sarney permite manter o usufruto do poder. Eu não sou psicólogo para entender o que o senhor Sarney pensa quando vê o Muniz voltar para o governo, ou quando se encontra diante da incapacidade técnica do senador Edison Lobão ao conduzir o Ministério de Minas e Energia no governo Lula e agora no de Dilma. Não há lógica para isso. Vou dizer de novo: não é possível a gente acreditar na capacidade gerencial de um governo que se submete a esse tipo de articulação política, colocando uma pessoa absolutamente incapaz de entender o que é quilowatt, quilowatt-hora. De ir a público sem saber a diferença entre tensão em volts e energia em quilowatts-hora.

– O senhor está falando do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão?
Bermann – Edison Lobão.

– E Belo Monte ocupa que lugar nesse jogo?
Bermann – É a oportunidade de se fazer dinheiro e de se reconstituir as relações de poder. Essa obra tinha sido sepultada em 1989, por conta da mobilização da população indígena, e voltou à tona no governo Lula, aprovada pelo Congresso (em 2005) com o discurso de que era um novo projeto.

“O valor de Belo Monte aumentou em mais de R$ 20 bilhões em apenas cinco anos. E deverá ser maior ainda. Sem contar que 80% do financiamento é dinheiro público”

– A ameaça de retomar Belo Monte esteve presente também durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas só no governo Lula saiu mesmo do papel, o que ninguém imaginava que acontecesse, devido ao apoio massivo dos movimentos sociais da região à campanha de Lula. O senhor acha que o fato de Belo Monte ter saído do papel tem a ver com a denúncia do Mensalão, em 2005, e a recomposição das forças políticas para a eleição de 2006?
Bermann – Não tenho a mínima ideia. Mas vamos falar em cifras, agora. Em 2006 o projeto foi anunciado com um custo de R$ 4,5 bilhões. Você sabe, as cifras avançaram violentamente. Antes de ir para o leilão, a usina foi avaliada em R$ 19 bilhões. Foi feito o leilão e se definiu um custo fictício de geração de energia elétrica de R$ 78 o megawatt-hora.

– Por que fictício?
Bermann – Fictício porque esse custo não remunera o capital investido. É por isso que várias empresas caíram fora do empreendimento, sob o ponto de vista da geração da energia elétrica. Mas as grandes empreiteiras estão presentes, porque não é na venda da energia elétrica, mas sim na obra que se dá uma parte significativa da apropriação da renda. Com o consórcio constituído com 50% entre Eletrobrás e Eletronorte, as empreiteiras voltaram para fazer a obra. A elas interessa a obra – e não ficar vendendo energia elétrica. Essa situação é entendida pelos dirigentes, pelo governo, como normal. Para o governo federal, é uma parceria público-privada que está dando certo. Em que termos? A obra hoje está oficialmente orçada em R$ 26 bilhões. Imagine, de R$ 4,5 bilhões para R$ 26 bilhões…

– Em cinco anos, o valor da obra avançou em mais de R$ 20 bilhões?
Bermann – Oficialmente está hoje orçada em R$ 26 bilhões. Mas existem estimativas de que não vai sair por menos de R$ 32 bilhões. Isso sem falar em superfaturamento.

– Deste valor, quanto sairá do BNDES, ou seja, do nosso bolso?
Bermann – Oitenta por cento da grana para isso é dinheiro público. O que estamos testemunhando é um esquema de engenharia financeira para satisfazer um jogo de interesses que envolve empreiteiras que vão ganhar muito dinheiro no curto prazo. Um esquema de relações de poder que se estabelece nos níveis local, estadual e nacional – e isso numa obra cujos 11.200 megawatts de potência instalada só vão funcionar quatro meses por ano por causa do funcionamento hidrológico do Xingu. Então, é preciso entender que a discussão sobre a volta da inflação não se dá porque está aumentando o preço da cebola, do tomate, do leite… É por causa da volúpia de tomar recursos públicos que será necessário fabricar dinheiro. O ritmo inflacionário vai se dar na medida em que obras como Belo Monte forem avançando e requerendo que se pague equipamento, que se pague operários, que se pague uma série de coisas e também que se remunere com superfaturamento.

“Com Belo Monte, ganham as empreiteiras e os vendedores de equipamentos. E ganham os políticos que permitem que essa articulação seja possível”

– Quem perde a gente já sabe. Agora, quem ganha, além das empreiteiras envolvidas na obra?
Bermann – Há as pessoas que ganham pela obra – fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: “É obra minha!”. É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É complicado.

– O senhor costuma usar a expressão “Síndrome do Blecaute” para se referir ao pânico da população de ficar à luz de velas devido a um apagão energético. Acredita que essa “síndrome” é manipulada pelo governo federal e pelos grandes interesses empresariais para emprestar um caráter de legitimidade a megaobras como Belo Monte?
Bermann – O que eu tenho chamado de “Síndrome do Blecaute” conduz à legitimação de empreendimentos absolutamente inconsistentes. Belo Monte, como foi provado pelo conjunto de cientistas que se debruçaram sobre o tema (painel dos especialistas), é uma obra absolutamente indesejável sob o ponto de vista econômico, financeiro e técnico. Isso sem falar nos aspectos social e ambiental. Mas se dissemina uma ideia do caos e, hoje, há 77 projetos de usinas hidrelétricas somente na Amazônia que utilizam a “Síndrome do Blecaute” para se viabilizarem. O fato de hoje o aquecimento global dominar a mídia e o senso comum, assim como a própria academia, ajuda a mostrar a hidroeletricidade como uma grande maravilha, independentemente do lugar em que a usina vai ser construída e dos impactos que ela vai causar. Mas o que é preciso compreender e questionar? Hoje, seis setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no país. Dois deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é o cimento e a indústria química. Mas os outros quatro têm uma parte considerável da produção para exportação: aço, alumínio primário, ferroligas e celulose.

– As chamadas indústrias eletrointensivas…
Bermann – Isso. Eu não estou defendendo que devemos fechar as indústrias eletrointensivas, que demandam uma enorme quantidade de energia elétrica a um custo ambiental altíssimo. Mas acho absolutamente indesejável que a produção de alumínio dobre nos próximos 10 anos, que a produção de aço triplique nos próximos 10 anos, que a produção de celulose seja multiplicada por três nos próximos 10 anos. E é isso que está sendo previsto oficialmente.

– O que poucos parecem perceber e menos ainda questionam, quando essas metas são comemoradas, é a forma como o Brasil está inserido no mercado internacional em pleno século XXI. O quanto o fato de nossa economia estar baseada na exportação de bens primários tem a ver com a necessidade de grandes hidrelétricas?
Bermann – Desde a ditadura militar, passando pela redemocratização, pelos sucessivos governos até FHC, tem sido assim. Nós imaginávamos que, com Lula, essa questão ia ser reorientada. Porque o programa de governo em que eu me envolvi preconizava a necessidade dessa mudança. E o que aconteceu? Se você comparar os dados de 2001 com os dados de 2010, vai constatar que a economia brasileira está se primarizando cada vez mais. Isto é: cada vez mais são produzidos no Brasil bens industriais primários, sem agregação de valor. E são justamente os bens primários que consomem muita energia e geram pouco emprego. Além disso, satisfazem uma demanda marcada pelo consumismo. E o Brasil se mostrou incapaz de dizer: “Não, nós não vamos fazer isso”.

– E depois esses produtos retornam para o Brasil, via importação, com valor agregado…
Bermann – É. Eu sempre chamo a atenção para o fato de que, do alumínio primário que o Brasil produz, 70% é exportado. E o alumínio consome muita energia. Para se pegar um barro vermelho, que é a bauxita, e transformá-la em alumínio, é preciso um processo de produção extremamente devastador sob o ponto de vista ambiental. Há um primeiro refino para obter a alumina, que é um pó branco. Esse pó branco tem como consequência ambiental uma borra chamada de “lama vermelha”. Um ano atrás, na Europa, na Hungria, houve uma catástrofe em função do rompimento de uma barragem que continha essa lama vermelha e tóxica. Ela se espalhou pelo Rio Danúbio e foi um horror. E cada vez mais se faz isso no nosso país – e, claro, não se faz mais isso nos países centrais. Isso não está acontecendo agora no Brasil, está acontecendo desde os anos 70.

“Com Lula – e agora com Dilma – ocorreu a reprimarização da economia, com exportação de bens primários sem valor agregado, numa subordinação ao mercado internacional”

– Houve acentuação desse processo no governo Lula e agora no de Dilma Rousseff?
Bermann – O que acontece a partir de Lula é o que eu tenho chamado de “reprimarização da economia”. Nós já tivemos uma época em que a economia dependia basicamente da produção de bens primários: café, açúcar e também alguns bens industriais primários. Depois, tivemos Getúlio Vargas, Juscelino (Kubitschek), e nos anos 50 houve a substituição das importações com a vinda da indústria pesada. Aquele período marca um processo acelerado de industrialização da economia brasileira em que se buscava um desenvolvimento tecnológico para acompanhar o ritmo internacional. Agora, vivemos a reprimarização da economia. E não é uma questão do governo, simplesmente. O governo poderia tornar essa questão pública, dar condições para que a população compreendesse e debatesse o que está em jogo, e isso pudesse servir como base de apoio para uma tomada de decisão do tipo: “Olha, Alcoa (corporação de origem americana com grande presença no Brasil, é a principal produtora mundial de alumínio primário e alumínio industrializado, assim como a maior mineradora de bauxita e refinadora de alumina), vocês não vão continuar aumentando a produção aqui no Brasil. Procurem um outro lugar. A produção de energia elétrica gera um problema ambiental enorme, um problema social enorme, e nós vamos priorizar a demanda da população”. Mas, infelizmente, isso não é feito.

– Mas essa obstinação do governo Lula, e agora do governo Dilma, em fazer Belo Monte, mesmo já tendo um prejuízo de imagem aqui e lá fora, mesmo tendo mais de uma dezena de ações judiciais contra a obra movidas pelo Ministério Público Federal, fora as outras… Essa obstinação se dá apenas por causa do esquema de governabilidade, do esquema político para as eleições a curto e médio prazo, ou é por mais alguma coisa?
Bermann – Isso já não te parece plausível? Ou você acha que tem alguma coisa meio doentia, que precisa ser explicada? (risos)

– Doentia, não sei. Mas eu gostaria de compreender melhor por que o senhor e a maioria dos especialistas que estudaram o projeto afirmam que esta obra é ruim também do ponto de vista técnico.
Bermann – Divulgaram que esta será a única usina do Xingu. Inclusive, houve um seminário recente aqui na USP em que tive a oportunidade de discutir com o Mauricio Tolmasquim (presidente da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia). E ele veio com essa ladainha: “Vai ser a única…”. E eu disse a ele: “Com o perdão do poeta, o que você está afirmando, somente de papel passado, com firma em cartório e assinado: Deus”.

– O senhor não acredita que será a única usina do Xingu, então?
Bermann – Me diga alguma coisa no nosso país que vigorou como cláusula pétrea. Me fale alguma coisa aqui no nosso país que foi dito de uma forma e se manteve ao longo do tempo. VAI ser necessário construir outras usinas. No atual projeto, esta é uma usina que vai funcionar à plena carga, no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime hidrológico. Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas dependerá da quantidade de chuva. E aquela região tem a seguinte característica: quando chove, quando tem água, quando desce a água dos tributários para o Xingu é muita água, é um volume enorme de água. Mas isso só acontece durante quatro meses por ano. Só nesse período os 11.200 megawatts vão estar operando. Em outubro, na época da estiagem, será apenas 1.100 megawatts, um décimo. Então, a pergunta é: por que construir uma usina desse porte, se, na média anual, ela vai operar com 4.300 megawatts? Necessariamente vão vir as outras quatro. Eu estou afirmando isso, infelizmente. Tecnicamente, eu tenho absoluta certeza. Porque as usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte não vai depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência instalada de 11.200 megawatts existir de fato.

“O conceito do governo e das empresas não é o de população atingida, mas o de população afogada”

– O senhor está dizendo que o governo federal está mentindo ao afirmar que será apenas uma usina, para conseguir vencer as resistências ao projeto e aprová-la, e depois fará mais três ou quatro?
Bermann – Estou dizendo que, da forma como esta usina está colocada, é uma aberração técnica tão grande que é totalmente ilógico construí-la.

– E essa afirmação, discutida hoje na Justiça, de que os povos indígenas não serão atingidos?
Bermann – A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de população afogada – e não atingida.

– Agora, digamos que nós concordássemos que a obstinação de construir Belo Monte, ainda que atropelando a população e talvez a Constituição, se devesse à necessidade de energia elétrica. E digamos que Belo Monte fosse de fato um projeto de engenharia viável e inteligente. As usinas hidrelétricas são as melhores opções para a geração de energia no Brasil de hoje? Quais são as alternativas a elas?
Bermann – Não podemos olhar a questão da produção de energia sem questionar ou considerar o outro lado, que é o consumo de energia. Parece meio prosaico, porque envolve hábitos culturais da população. E a população sempre entendeu que energia elétrica se resume a você apertar o botão e ter eletricidade disponível. E por isso fica em pânico com a “Síndrome do Blecaute”. Mas é preciso pensar além disso. Não estou dizendo para fechar as fábricas de alumínio, de aço e de celulose no Brasil. O que estou dizendo é o seguinte: parem de ampliar a produção. Parem, porque diversos países desenvolvidos já fizeram isso. O Japão fez mais do que isso. O Japão produzia, em 1980, 1,6 milhões de toneladas de alumínio. Nós estamos produzindo quase 1,7 milhões de toneladas hoje. Só que a energia elétrica necessária para produzir alumínio tornou-se da ordem do absurdo. Então o governo japonês, as empresas japonesas produtoras de alumínio e os trabalhadores da indústria do alumínio realizaram um debate que culminou com o fechamento de todas as usinas de produção de alumínio primário no Japão, exceto uma. Isso ainda nos anos 80. Hoje, o Japão produz apenas 30 mil toneladas. De 1,6 milhões para 30 mil toneladas. Diante da necessidade de gerar muita energia para produzir alumínio, o que o Japão fez? O governo e a sociedade japonesa disseram: “Vamos priorizar a eficiência, o maior valor agregado. Nós não precisamos produzir aqui. Tem o Brasil, tem a Venezuela, tem a Jamaica, tem os lugares para onde a gente pode transferir as plantas industriais e continuar a assegurar o suprimento para a nossa necessidade industrial. A gente pega esse alumínio, agrega valor e exporta na forma de chip. Parece uma coisa tão besta, né? Mas foi isso o que os japoneses fizeram. Eles mantiveram o crescimento econômico e reduziram a demanda por energia. Nós estamos caminhando no sentido inverso. Estamos aumentando o consumo de energia a título de crescimento e desenvolvimento, e, numa atitude absolutamente ilógica, porque a gente exporta hoje a tonelada de alumínio a US$ 1.450, US$ 1.500 dólares. E, para se ter uma ideia, hoje falta esquadrias de alumínio no mercado interno, no mercado de construção brasileiro. O preço foi aumentado por indisponibilidade. Hoje, e fizemos um estudo recente sobre isso, é preciso importar esquadrias de alumínio porque a oferta no mercado interno é insuficiente. E, enquanto o Brasil exporta o alumínio por US$ 1.450, US$ 1.500, o preço da tonelada de esquadria importada é o dobro: cerca de US$ 3 mil a tonelada.

– Para o senhor, a questão de fundo é outra…
Bermann – Nós temos pouca capacidade de produzir alumínio com valor agregado. Então, não estou dizendo para fechar essas fábricas, botar os trabalhadores na rua, mas dizendo para parar de produzir alumínio primário, que exige uma enorme quantidade de energia, e investir no processo de melhoria da matéria-prima para satisfazer inclusive a demanda interna hoje insatisfeita. Agora, vai perguntar isso para a ABAL (Associação Brasileira de Alumínio). Veja se eles estão pensando dessa forma. Billiton, Alcoa, mesmo o sempre venerado Antônio Ermírio de Moraes, com a Companhia Brasileira de Alumínio. A perspectiva desse pessoal é a cega subordinação ao que define hoje o mercado internacional, o mercado financeiro. E é assim que o nosso país fica desesperado com a ideia de que vai faltar energia.

“Não é Programa Luz para Todos, mas Luz para quase Todos ou Conta de Luz para Todos”

– Além de ser um modelo de desenvolvimento que prioriza a exportação de bens primários, sem valor agregado, é também um modelo de desenvolvimento que ignora o esgotamento de recursos. Enquanto tem, explora e lucra. Alguns poucos ganham. O custo socioambiental, agora e no futuro, será dividido por todos…
Bermann – Isso. Os recursos naturais são limitados. Por isso, no meu ponto de vista, a discussão do aquecimento global obscurece o entendimento da hidroeletricidade em particular. Ficamos às cegas. Para transformar o barro da bauxita naquele pó branco do alumínio, que depois é fundido através de uma corrente elétrica, é uma quantidade de energia enorme, absurda. Essa possibilidade você não vai conseguir com energia solar, com energia eólica. São processos produtivos que exigem a manutenção do suprimento de energia elétrica 24 por 24 horas. A solar não consegue fazer isso na escala necessária. Uma tonelada de alumínio consome 15 a 16 mil kilowatts-hora. Para se ter uma ideia, na média, o consumidor brasileiro consome, por domicílio, 180 kilowatts-hora por mês, o que é baixo. Nós ainda estamos vivendo uma situação muito próxima da miserabilidade em termos energéticos para a população. Nós temos uma demanda a ser satisfeita com equipamentos eletrodomésticos. Satisfeita não construindo grandes usinas hidrelétricas para as empresas eletrointensivas, mas para conseguirmos equilibrar a qualidade de vida, que se deve fundamentalmente a uma herança histórica: a de sermos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo.

– Uma das piores distribuições de renda e uma das piores distribuições de eletricidade do mundo…
Bermann – Eu chamo o programa de universalização de “Luz para quase todos”. Não é para todos, é para quase todos. Desde que estejam próximos da rede para extensão, tudo bem. Mas, para o sujeito distante, só agora é que se começa a pensar em sistemas de produção descentralizada. A percepção ainda é, infelizmente, de pegar e estender a rede. Mas o custo de extensão da rede é muito alto. Principalmente, se você pegar e atravessar 15 quilômetros para atender duas, três casas. O lógico seria a adoção de energia descentralizada em escala menor, que seja mais bem controlada pela população. Mas isso não passa pela cabeça porque define inclusive uma outra relação social. Eu também chamo esse programa de “Conta de luz para todos”, porque de repente você fica refém de uma companhia e necessariamente paga conta de luz, quando você poderia criar uma situação de autonomia energética.

– O senhor poderia explicar melhor quais são as alternativas para a população, já que todos nós crescemos dentro de uma lógica em que recebemos a conta da luz e pagamos a conta da luz; apertamos um botão na parede e a luz se faz. A realidade está exigindo que sejamos mais criativos e tenhamos mais largura de raciocínio. Quais são as alternativas para o cidadão comum, especialmente o de regiões mais afastadas?
Bermann – Depende muito do acesso à tecnologia existente no local ou na região. Hoje, por exemplo, temos no Rio Grande do Sul uma experiência de queimar casca de arroz para gerar energia. O calor da queima da casca de arroz aquece a água, a água se transforma em vapor e esse vapor é injetado num tubo e gira uma turbina produzindo energia elétrica. Não tem nada de fantástico nisso, esse processo é conhecido há muito tempo, mas, puxa vida, eu estou tão acostumado a simplesmente acender e apagar o botão… Vou ficar agora me preocupando se tem combustível? Existe um lado meio trágico da população em geral que é o comodismo: deixa que resolvam por mim. Então, quando você me pergunta sobre alternativas, depende do que a gente está falando. Existem alternativas promissoras deixando de produzir mais mercadorias eletrointensivas. Como também é promissor ter esquemas de financiamento para que o pequeno empresário adquira um painel fotovoltaico (placa que transforma luz solar em energia elétrica) ou uma usina de geração eólica (transformação de vento em energia elétrica). E use essa tecnologia que está disponível para satisfazer as suas necessidades, sem necessariamente ficar ligado a uma grande linha de transmissão, de distribuição, puxando energia não sei de onde.

– O que o senhor diria para a parcela da população brasileira que faz afirmações como estas: “Ah, se não construir Belo Monte não vai ter luz na minha casa”, ou “Ah, esses ecochatos que criticam Belo Monte usam Ipad e embarcam em um avião para ir até o Xingu ou para a Europa fazer barulho”. O que se diz para essas pessoas para que possam começar a compreender que a questão é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista?
Bermann – Não é verdade que nós estamos à beira de um colapso energético. Não é verdade que nós estamos na iminência de um “apagão”. Nós temos energia suficiente. O que precisamos é priorizar a melhoria da qualidade de vida da população aumentando a disponibilidade de energia para a população. E isso se pode fazer com alternativas locais, mais próximas, não centralizadas, com a alteração dos hábitos de consumo. É importante perder essa referência que hoje nos marca de que esse tipo de obra é extremamente necessário porque vai trazer o progresso e o desenvolvimento do país. Isso é uma falácia. É claro que, se continuar desse jeito, se a previsão de aumento da produção das eletrointensivas se concretizar, vai faltar energia elétrica. Mas, cidadãos, se informem, procurem pressionar para que se abram canais de participação e de processo decisório para definir que país nós queremos. E há os que dizem: “Ah, mas ele está querendo viver à luz de velas…”. Não, eu estou dizendo que a gente pode reduzir o nosso consumo racionalizando a energia que a gente consome; a gente pode reduzir os hábitos de consumo de energia elétrica, proporcionando que mais gente seja atendida, sem construir uma grande, uma enorme usina que vai trazer enormes problemas sociais, econômicos e ambientais. É importante a percepção de que, cada vez que você liga um aparelho elétrico, a televisão, o computador, ou a luz da sua casa, você tenha como referência o fato de que a luz que está chegando ali é resultado de um processo penoso de expulsão de pessoas, do afastamento de uma população da sua base material de vida. E isso é absolutamente condenável, principalmente se forem indígenas e populações tradicionais. Mas também diz respeito à nossa própria vida. É necessário ter uma percepção crítica do nosso modo de vida, que não vai se modificar amanhã, mas ela precisa já estar na cabeça das pessoas, porque não é só energia, é uma série de recursos naturais que a gente simplesmente não considera que estão sendo exauridos e comprometidos. É necessário que desde a escola as crianças tenham essa discussão, incorporem essa discussão ao seu cotidiano. Eu também tenho uma dificuldade muito grande de chegar aqui na minha sala e não ligar logo o computador para ver emails, essas coisas. Confesso que tenho. Mas eu também percebo uma grande satisfação quando eu consigo não fazer isso. E essa percepção da satisfação é uma coisa cultural, pessoal, subjetiva. Mas ela precisa ser percebida pelas pessoas. De que o nosso mundo não existe apenas para nos beneficiarmos com essas “comodidades” que a energia elétrica em particular nos fornece. Agora isso exige um esforço, e a gente vive num mundo em que esse esforço de perceber a vida de outra forma não é incentivado. Por isso é difícil. E por isso, para quem quer construir uma usina, quer se dar bem, quer ganhar voto, quer manter a situação de privilégio, seja local ou nacional, para essas pessoas é muito fácil o convencimento que é praticado com relação a essas obras. Por mais que eu tenha sempre chamado a atenção para o caráter absolutamente ilógico da usina, das questões que envolvem a lógica econômico e financeira dessa hidrelétrica, para o absurdo que é a utilização do dinheiro público para isso, para a referência à necessidade de se precisar, num futuro próximo, enfrentar um ritmo violento de custo de vida, emitindo moeda para sustentar empreendimentos como esse, é muito difícil fazer com que as pessoas compreendam a relação dessa situação com as grandes obras. E Belo Monte é mais um instrumento disso. Eu não sou catastrofista, não tenho a percepção maléfica da hidroeletricidade. Não demonizo a hidroeletricidade. Eu apenas constato que, da forma como ela é concebida, particularmente no nosso país nos últimos anos, é uma das bases da injustiça social e da degradação ambiental. Se não é pensando em você, você necessariamente vai precisar pensar nas gerações futuras. Este é o recado para o leitor: é preciso repensar a relação com a energia e o modelo de desenvolvimento, é preciso mudar o nosso perfil industrial e também é preciso mudar a cultura das pessoas com relação aos hábitos de consumo. Nós precisamos mudar a relação que nos leva a uma cega exaustão de recursos.

“Em Brasília há um vírus letal que se chama ‘Brasilite’. É um verme que entra pelo umbigo e faz com que a pessoa se ache o centro do universo”

– O senhor acha que a Dilma tem essa obstinação com Belo Monte, em parte, por teimosia?
Bermann – Ela é muito cabeça dura.

– Às vezes eu acho que as questões subjetivas têm um peso maior do que a gente costuma dar. Não sei…
Bermann – É, mas eu também não sei, não tenho nenhuma proximidade maior com o que ela está pensando agora. O que eu sei é que, no dia a dia, lá no ministério, ela demonstrava uma capacidade muito reduzida de ouvir. Ela pode até ouvir, mas as coisas na cabeça dela já estão postas.

– Por que o senhor saiu do governo em 2004?
Bermann – Porque venceu o contrato, e eu achei que não valia a pena continuar. Há conhecidos meus que foram na mesma época que eu e estão até hoje em Brasília. Não estão mais no ministério, mas estão em Brasília. Acho que Brasília é uma cidade com um vírus letal, que é a “Brasilite”. A “Brasilite” se compõe de um verme que entra no umbigo e toma a barriga da pessoa de forma a ela achar que é o centro do universo. A partir daí, mudam as relações pessoais, o que a pessoa era e o que ela passa a ser. Eu mesmo perdi muitos amigos que começaram a empinar o queixo. Fazer o quê? E isso faz parte do “modus vivendi” brasiliense. Basta você ter um terno e uma gravata que você é doutor. Eu acho que a gente não vai muito longe alimentando isso.

– O senhor participou da elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e participou do primeiro ano de governo. Está desiludido?
Bermann – Eu não aceito quando me definem como: “Ah, você também é daqueles que estão desiludidos, estão chateados…”. Tem essa conotação, né? Em absoluto. Eu não estou desiludido, chateado, bronqueado. Eu estou indignado!

– Quando o senhor se desfiliou do PT?
Bermann – Ah, quando o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos.

(Publicado na Revista Época em 31/10/2011 e atualizado em 16/11/2011)

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