Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite

Um filme da vida real que ninguém merece assistir. Ou merece?

Gostaria que o episódio “Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite” fosse ficção. Se fosse, seria muito engraçado. Uma coisa meio bufa. Tão absurda que corria o risco de parecer inverossímil, um defeito que a realidade é pródiga, mas a ficção não perdoa.

Vamos aos fatos, para quem perdeu o show. O cineasta José Padilha pediu autorização para gravar cenas do filme Tropa de Elite 2 na Câmara de Deputados. As cenas da ficção seriam ambientadas no conselho de ética e teriam um personagem de nome Fraga. No filme, Padilha faz relações entre segurança pública e financiamento de campanha.

Michel Temer (PMDB-SP), o presidente da Câmara de Deputados, negou autorização para as filmagens. Ele justificou: “De fato, não foi possível, sem nenhum antagonismo democrático, ceder o plenário, as dependências da Casa, para essa filmagem. Fizéssemos a autorização para essa matéria, haveríamos de fazer para toda e qualquer outra tentativa de filmar no plenário da Câmara. Este é o plenário do povo brasileiro. Não havia como autorizar essa filmagem”.

A negativa de Temer é questionável. Na condição de integrante do povo brasileiro, eu gostaria de compreender em que uma filmagem comprometeria “o plenário do povo brasileiro”. Justamente por ser “o plenário do povo brasileiro” seria legítimo poder usá-lo também como cenário de filme ou qualquer outra apropriação legal. Mas, vá lá. Padilha então filmou a cena em um conselho de ética improvisado na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro.

O que se seguiu a isso é que virou comédia. E, como não é um filme de ficção, para nós é uma tragédia. O deputado Alberto Fraga (DEM-DF) tomou a atenção do plenário na terça-feira, 11 de maio, para reclamar do roteiro do filme. Eu poderia enumerar dezenas de motivos vitais para o país que deveriam ser capazes de motivar a indignação do deputado Fraga. Mas não, sua preocupação era com o roteiro do filme. Ele queria que Temer enviasse o roteiro do filme para análise da procuradoria da Câmara. (!!!!!!!!!!)

Acompanhem o raciocínio do Fraga real: “Sou o artista desse filme, mas, o pior, o cidadão coloca que o deputado Fraga será o antagonista, ou seja, o bandido do filme, que vai lutar contra o Capitão Nascimento, contra as milícias assassinas”. E, mais adiante: “Ele poderia escolher qualquer nome: João, José, mas deputado Fraga nesta Casa só tem eu. E eu, numa campanha majoritária, no Distrito Federal, já imaginou o que vai acontecer comigo, o bandido na história do filme?”.

Recebeu de imediato o apoio do colega José Genoino (PT-SP). “Estão tentando colocar o parlamento como piada. A defesa do parlamento está em jogo, não podemos achar que isso é normal. Se a moda pega, a Câmara será colocada como uma instituição que não tem poder nenhum”, disse Genoino.

E, acreditem, Michel Temer afirmou que enviaria o caso para a procuradoria da Câmara.

Dá para acreditar?

A rigor, não dá para acreditar. Mas é preciso. Na “Casa” que vive uma crise moral de autoridade foi preciso apelar para o autoritarismo.

A Câmara que, junto com o Senado, vem protagonizando uma série interminável de escândalos de corrupção e impunidade acusa o cineasta José Padilha de tentar transformá-la em “piada”. Faça um rápido teste. Quantos escândalos você lembra nestes últimos quatro anos? E quantos projetos importantes para o destino do país debatidos e votados pela Câmara você recorda de imediato?

Eu sei. É triste.

A resposta do cineasta José Padilha, publicada na Folha de S. Paulo, lança alguns litros de lucidez no deserto de inteligência do episódio: “O filme Tropa de Elite 2 não tem nenhum deputado corrupto chamado Fraga. Existe, sim, um personagem com esse nome, mas ele não é um deputado corrupto. O deputado corrupto de ‘Tropa de Elite 2‘, totalmente fictício, diga-se de passagem, chama-se Guaracy. (Espero que não exista algum deputado corrupto com esse nome. Se existe, vou logo avisando que é coincidência!) Confesso que, até ler a matéria da Folha, eu nunca havia ouvido falar na existência de um deputado com o nome Fraga. Hoje, depois de uma rápida pesquisa na internet, aprendi que ele existe. É um deputado do DEM, considerado por parte da imprensa como membro da base parlamentar do ex-governador Arruda. Longe de mim querer denegrir a sua imagem. Deputado Fraga, pode ter certeza: você não tem nada a ver com o Fraga do meu filme! Também não posso deixar de comentar a declaração do deputado José Genoino, que, apesar de nunca ter visto o filme ‘Tropa de Elite 2‘, afirmou que o filme está ‘tentando colocar o Parlamento como piada (…)’. Ao nobre deputado quero dizer que, em uma democracia, tem que haver liberdade de expressão. Em uma democracia, se um artista quiser fazer piada com o Parlamento, ele deve ter liberdade para tal. De minha parte, não fiz piada alguma com a Câmara em ‘Tropa de Elite 2‘. Para mim, o Parlamento brasileiro e os inúmeros casos de corrupção que a imprensa associa a ele são um assunto sério demais para piadas. Finalmente, a ameaça que o presidente Michel Temer fez à liberdade de expressão, ao afirmar que ‘vai encaminhar para análise da procuradoria o fato de o filme ‘Tropa de Elite 2‘ ter cenas inspiradas na rotina da Casa e nos próprios deputados’, me fez pensar na época da ditadura. Será que a procuradoria da Câmara vai virar um órgão de censura cuja função é tentar proibir que artistas se inspirem na Câmara e em seus membros para fazer filmes? Espero que não!”.

Quando soube da polêmica, fiquei buscando mentalmente informações sobre o Fraga do espetáculo da vida real, não o do filme do Padilha: “Fraga, Fraga, Fraga….”. Me veio à cabeça uma vaga notícia de um deputado, coronel da Polícia Militar, membro da chamada “bancada da bala”, que atuou contra a aprovação do Estatuto do Desarmamento e, em 2006, teve parte da campanha financiada por fabricantes de armas. Também tinha lembrança de uma denúncia relacionada a uma empregada doméstica paga com dinheiro público. Fui checar. Sim, era este o Fraga. Que também foi secretário de Transportes do Distrito Federal na gestão do governador José Roberto Arruda, aquele que foi preso e cassado por acusações de corrupção. Durante o período em que foi secretário, o Correio Braziliense denunciou que Fraga empregou no governo a mulher, um filho, dois sobrinhos, um cunhado, uma cunhada e o namorado da filha.

Sim, sim, este é o mesmo Fraga da vida real que acredita que o filme pode manchar sua imagem e prejudicá-lo nas próximas eleições. O mesmo que disse em uma entrevista, para explicar sua preocupação com o xará de Tropa de Elite 2: “O que mais prezo em minha vida pública é meu nome”.

A vida real, no que já virou um clichê, é mesmo insuperável. Nem inventando muito um ficcionista consegue alcançar esse nível de licença poética.

Não, deputado José Genoino, cujas credenciais vêm rapidamente à memória, não é o cineasta que quer transformar a Câmara em piada.

Não vou nem falar da percepção do “povo brasileiro” sobre o Congresso. Mas dos próprios congressistas, deputados e senadores, numa pesquisa feita em 2009 pelo Instituto FSB, a pedido de ÉPOCA. Nela, quase 70% dos 247 entrevistados afirmam que a corrupção tem presença marcante no Congresso. Apenas 35% estão convencidos de que o Legislativo faz leis claras, concisas e inteligentes. E, claro, metade reclama que o salário é baixo.

O próprio Congresso, portanto, reprova a si mesmo. Este mesmo Congresso gasta, segundo pesquisa da organização Transparência Brasil realizada em 2007, R$ 11.545,04 por minuto. Comparado ao parlamento de 11 países (Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, México e Portugal), só perde para os Estados Unidos. O mandato de cada um dos 513 deputados federais custa R$ 6,6 milhões por ano. E o de cada um dos 81 senadores, R$ 33,1 milhões por ano. Nesse cálculo estão computados apenas os custos dentro da lei, não os gerados pela corrupção promovida por alguns membros do Congresso.

Os integrantes deste mesmo Congresso que reprova a si mesmo e é um dos mais caros entre as democracias do mundo apresentam um patrimônio com enorme disparidade na comparação com o do cidadão comum, segundo outra pesquisa da Transparência Brasil. Os números mostram a grande concentração de renda na classe política, mostrando o quão distante da realidade dos eleitores vivem seus representantes. No Ceará, uma pessoa comum precisaria trabalhar durante 1770 anos, sem gastar um centavo, para gerar o equivalente ao patrimônio de seus senadores. Em Alagoas, esse período seria um pouco menor: 1603 anos. No Maranhão, 751 anos. Cada paranaense teria de trabalhar durante 669 anos para gerar riqueza equivalente à média do patrimônio de seus deputados federais. Apenas em 11 Estados é preciso trabalhar menos de cem anos, sem nenhum gasto, para atingir patrimônio semelhante ao de seus representantes na Câmara dos Deputados. No Rio de Janeiro, Estado que apresenta a menor disparidade, são 31 anos.

Se o Congresso reprova a si mesmo, a nós cabe reprovar deputados e senadores que desrespeitaram nosso voto – ou aprová-los reelegendo-os no próximo pleito, daqui a alguns meses. E este é o ponto mais importante.

É muito fácil xingar deputados e senadores, falar mal de todos os políticos, afirmar que são todos da mesma laia. Primeiro, não são. Toda generalização é burra, como sabemos. E, sim, há políticos honestos e que pensam no bem público. Cabe a nós descobrir quem são e dar a eles o nosso voto. Cabe a nós dar mais valor ao nosso voto, não o dando a qualquer um. E valorizar um Congresso que não é deles – mas nosso.

Este Congresso que aí está não apareceu do nada. É o que é porque nós escolhemos esses indivíduos – e não outros. Fomos nós que colocamos essas pessoas em Brasília para nos representar. Pode xingar à vontade, mas esse Congresso é nosso espelho. Quando olhamos para ele, olhamos para nós. Gostando ou não, o Congresso é a nossa cara.

É duro se olhar no espelho sem autoindulgência. Você pode dizer: “ah, mas eu não votei nesses sujeitos. Os que eu votei…” Com toda honestidade, quantos de nós sabem o que o senador, o deputado federal e o deputado estadual que elegeu estão fazendo, se é que estão fazendo alguma coisa? Quantos de nós acompanham e fiscalizam aqueles que legitimaram com seu voto? Se não começarmos a fazer isso não amanhã, mas já, continuaremos cúmplices desses parlamentares que transformam a Câmara e o Senado em piada.

E a democracia não é piada. Um Congresso atuante é vital para o país. Quem torce para que vire piada, para alegar que a democracia não vale a pena, é irresponsável ou mal-intencionado. O que nós precisamos é aprender a votar, um direito fundamental que nos foi sequestrado durante anos pela ditadura militar. E que enxovalhamos sempre que votamos mal. Teremos uma chance daqui a pouco de eleger um Congresso do qual possamos nos orgulhar. E mandar todos aqueles que o transformam em piada e em caso de polícia para casa.

É fácil repetir que são os mais pobres e com menos acesso à educação dos rincões esquecidos que votam mal. Se perguntar a um cidadão urbano e com curso superior – ou a si próprio – o que seu deputado ou senador anda fazendo, que projetos propôs, como votou nas questões importantes, que empresas financiaram a sua campanha, será que a resposta é de um eleitor esclarecido? Você tem estas respostas?

Acho que somos muito complacentes com nós mesmos. Achamos que não precisamos acompanhar e participar da educação escolar dos filhos (até a educação dentro de casa muitos delegam com as mais variadas justificativas), que não temos de nos organizar para reclamar por melhorias no nosso bairro, que não cabe a nós reivindicar um transporte decente ou um sistema de saúde que não deixe pessoas com câncer esperando um exame por meses. Há quem discurse sobre o aquecimento global, mas acha que pode continuar com a torneira aberta, deixar a TV ligada enquanto vai fazer outra coisa e não reciclar lixo por preguiça. E, óbvio, se votou acredita que já fez toda a obrigação: não vai perder tempo fiscalizando seu candidato e cobrando o que ele deixou de fazer ou fez errado.

Boa parte das informações que precisamos para votar com consciência está nos sites oficiais, como os do TSE, Câmara e Senado. Outra fonte é o site da Transparência Brasil, que concentra vários indicadores em um banco de dados. Com alguns cliques, agora mesmo você descobre o que andaram fazendo aqueles que se elegeram com a ajuda do seu voto. Basta entrar em www.transparencia.org.br e clicar no ícone “Excelências: como se comportam os nossos parlamentares”. Você digita o nome do seu deputado ou senador e pronto, fica sabendo como ele vem se comportando, o que fez, como votou, se foi processado na Justiça, o que a imprensa publicou sobre ele, quem financiou sua campanha, qual é seu patrimônio declarado, se é assíduo ou um campeão de faltas. Alguns minutos do seu tempo e você pode avaliar se votou bem e se preparar para votar melhor nas próximas eleições.

A desfaçatez de parte dos parlamentares atingiu índices tão absurdos que já passou da hora de darmos uma resposta que seja mais do que falar mal dos políticos na mesa do boteco. Se parte dos parlamentares não se dá o respeito, nós que os elegemos precisamos ter vergonha na cara. Quero muito ver o filme do José Padilha. Mas não quero mais ter de assistir a cenas patéticas do Congresso real. Passou da hora de votar direito. E fiscalizarmos o que foi – e será – feito do nosso voto.

(Publicado na Revista Época em 17/05/2010)

Socorro! Tem alguém aí?

Desventuras no admirável mundo novo

Não conheço uma única pessoa que tenha pronunciado alguma vez na vida: “Oba, o telemarketing da empresa tal me ligou oferecendo uma oportunidade maravilhosa!”. Ninguém.

Talvez exista, mas nunca testemunhei. Quase todos que conheço têm estratégias para não ser alcançado por ações desse tipo. E a maioria, quando capturado, é grosseiro com a voz do outro lado. Toda vez que um operador me liga, tento conter minha irritação e lembrar que há um ser humano ali, em algum lugar, ainda que seja num call center em Bangladesh. Esta pessoa possivelmente gostaria de estar fazendo outra coisa, quase certamente ganha muito mal e, mesmo que tenha sido treinada para agir como um robô, deve sofrer com as grosserias como qualquer humano.

Às vezes não consigo fazer esse exercício mental a tempo, sou ríspida e, assim que desligo, fico arrasada. Mas, em geral, consigo. E, já que fui pega de surpresa e não costumo desligar o telefone na cara de ninguém, tento conversar. Mas minha tentativa esbarra na impossibilidade de meu interlocutor entabular qualquer diálogo cujas perguntas e respostas não estejam no manual. Afinal, “para sua segurança, esta ligação está sendo gravada”.

Se, ao contrário, você precisa falar com alguém para reclamar de um serviço ou produto que não funciona ou funciona mal, a dificuldade é a mesma. Primeiro que, para chegar a um alguém, você aperta vários números antes. Você só vai falar “com um de nossos atendentes” se nenhuma das gravações anteriores conseguir resolver seu caso. Tudo desestimula você a isso. Os muitos números do menu principal levam a infindáveis menus secundários. Quando você chega àquele que o leva ao contato com alguém, o alguém demora uma eternidade para atender a ligação. E, quando atende, é como se você falasse com uma máquina.

Por tudo isso, fico pensando: como isso dá certo? De um jeito ou outro, deve funcionar. E ser lucrativo. Já que emprega milhares de jovens pobres que mal estrearam na vida e são treinados a anular sua singularidade para decorar um programa robótico de saudações, perguntas e respostas. Ainda vamos precisar responder pelo aniquilamento de uma geração nesses serviços de desumanização.

O mundo bem estranho em que vivemos nos coloca esta questão ética: como lidar no cotidiano com humanos que são treinados para se parecer com máquinas? Como é ser um humano que, para atingir a perfeição profissional, precisa se tornar o mais parecido possível com uma máquina? E, em seguida, se tornar obsoleto?

Vivemos (ainda) uma fase de transição entre as relações pessoais e as impessoais. Quando nos acostumarmos por completo a sermos atendidos por máquinas humanas, ninguém vai precisar de gente nesse tipo de serviço. Gente, por mais barata que seja, ainda é mais cara que qualquer sistema robótico. E se não faz diferença…

Vivemos uma espécie de versão pós-moderna do Tempos Modernos de Charles Chaplin. Não mais meros apertadores de parafusos de uma engrenagem, mas os próprios parafusos.

A tendência é que tudo se torne ainda mais desencarnado. Vivi um dia no admirável mundo novo neste início de mês, às voltas com o formato mais inovador de companhia aérea. Uma que você não vê, não toca, não alcança. Mas confia sua vida a ela. É considerada um dos maiores “cases” de sucesso da história da aviação europeia.

Foi assustador.

Eu estava em Madri, por razões profissionais, e queria conhecer Londres. Amigos disseram: “Aproveita, é barato viajar de avião dentro da Europa”. Eu pensei: “hum, boa ideia”. Entrei na internet e, especialmente para a volta, achei uma passagem muito barata. Voltar de Londres a Madri, onde pegaria o vôo de retorno para São Paulo, custaria quase o mesmo que viajar de ônibus de São Paulo à minha cidade natal, no Rio Grande do Sul. É supostamente barato porque todo o contato, exceto o avião e a tripulação, é virtual. Eu acabava de embarcar no sistema low cost (custo baixo).

Na véspera de pegar o avião, a bordo dessa novíssima configuração empresarial, li as instruções que recebi por email. Eu deveria fazer o check-in pela internet. Se só pudesse fazer no aeroporto, pagaria 40 libras esterlinas (111 reais). Teria também de pagar pela bagagem, que não poderia passar dos 15 quilos. Se passasse, mais taxa extra.

Entre uma lembrancinha e outra para a família e meia dúzia de livros, eu precisaria despachar uma mala. Fiz as contas. Sim, ainda valia a pena. Entrei numa lan house, para resolver tudo isso com alguns cliques no computador. Nada. Havia três maneiras de fazer o check-in. Tentei todas elas. Em todas aparecia uma mensagem na tela. Em resumo, ela dizia: “Seus dados não foram encontrados”. Eu não existia no sistema, ao que parece, embora o desconto no meu cartão de crédito fosse bem real.

Procurei um telefone de contato. Havia dois. Um deles para prioridades. Se for prioritário, é mais caro. A chamada era tarifada em 1 libra por minuto. Entrei na cabine. Disquei. Tu-tu-tu. Nada. Nem mesmo uma gravação do tipo: “por favor, espere um minuto”. Depois de muitos tututus, desisti.

Mais tarde, tentei de novo. Tudo igual. O sistema não encontrava meus dados e o telefone não atendia. Eu não conseguia encontrar ninguém, nem mesmo uma voz, que me ajudasse a resolver o problema. Nesse momento, eu implorava pela voz impessoal do telemarketing. Nada. Eu estava entregue à virtualidade. Se o sistema online não funcionasse – como não funcionou – eu virava refém. Virei.

A única alternativa era perder o último dia em Londres e chegar bem mais cedo ao aeroporto para resolver tudo isso direto no balcão da companhia. Quando cheguei, procurei o nome da empresa. Não havia nenhum balcão. Só uma moça no check-in, o nome da companhia atrás. Expliquei o caso. Ela disse: “Sinto muito, não posso fazer nada. Eu aqui só faço o check-in”.

Me despachou para outro setor, responsável por cobrar os valores de check-in e bagagem. Expliquei tudo de novo. A moça afirmou: “Sinto muito, aqui só somos intermediários”. Eu insisti: “Mas eu não consigo fazer o check-in. Passei o dia de ontem inteiro tentando fazer o check-in”. Ela: “Ainda dá tempo de a senhora fazer o check-in pela internet”. Eu: “Mas eu já tentei mil vezes fazer o check-in pela internet”.

Ela devia ser nova no setor, porque exibiu reações humanas e fez o impensável: tentou ela mesma fazer o check-in no computador. Não conseguiu. Disse à colega: “Eu mesma não consegui fazer o check-in. O que a gente faz?”. A colega: “Nós somos apenas intermediários. Não temos nada a ver com isso. Se não fizer o check-in pela internet, tem de pagar”.

Constrangida, a moça pegou um pedaço de papel com o telefone da companhia aérea: “Liga para este número”. Eu: “Mas ninguém atende!”. Neste momento, o colega da moça gritou. Outra reação humana. Ele estava furioso porque a colega tinha saído do manual e uma fila atenta se formava atrás de mim. Quando disse a ele que não havia necessidade de ser rude, ele voltou a se tornar um robô. Do gênero “robô intermediário”.

Voltei para a moça do check-in, só para constatar que ela também era intermediária. “Sinto muito, mas não posso fazer nada”. Ok, mas eu quero falar com alguém que possa encontrar uma solução! Não tem ninguém neste aeroporto inteiro que responda pela companhia? A moça voltou ao modo hibernação.

Eu havia deparado dezenas de vezes com esse comportamento pelos telemarketings da vida. Mas nunca tinha conversado com robôs humanos ao vivo. É chocante perceber que a pessoa olha para você com um olhar vazio. É a alienação do trabalho levada ao seu apogeu. Não há ninguém ali.

Ela só sabe repetir frases e não tem respostas que não estejam armazenadas no seu chip. Não tem autonomia para nada. Quando algo fora do roteiro acontece, ela fica repetindo a sua alienação como se esta fosse uma resposta. E parece não perceber o que faz consigo mesma. “Sinto muito, eu não posso fazer nada. Sinto muito, eu só sou uma intermediária. Sinto muito, eu não estou autorizada”. Sinto muito, eu não pertenço à companhia. Não pertence sequer a si mesma.

Todo o raciocínio humano, a capacidade de criar alternativas e resolver questões, todo o capital intelectual e simbólico que nos tornou o que somos de melhor é anulado. Nesse lugar de máquina humana, a pessoa competente é aquela que não faz nenhuma diferença. Será que, quando ela for definitivamente anulada, ou seja, substituída por uma máquina que não seja de carne e osso, mas de silício, vai se espantar?

É o único emprego que ela conseguiu, só está fazendo o que lhe mandaram fazer, não é responsável pelo modo como as coisas funcionam, alguém poderia ponderar. É verdade. Mas arrancar de uma pessoa a capacidade de resistir e criar alternativas para sua vida, ainda que seja difícil, é anulá-la por completo em tudo que é humano. É destituí-la de qualquer potência, é fazer a mesma sacanagem.

Se realizamos um trabalho pelo qual não nos responsabilizamos, aceitamos que nos reduzam a parafusos. E isso vale para qualquer trabalho. Talvez a grande diferença entre um humano e uma máquina seja a capacidade de fazer escolhas. Quando alguém abdica deste bem imaterial – ou reduz suas escolhas a qual marca de sopa industrializada vai comprar para o jantar – está abdicando de ser.

Segui minha desventura pela companhia virtual. Procurei um computador, tentei tudo de novo. Nada. Voltei ao check-in. Outra moça. Diante do meu relato, ela afirmou (adivinha!): “Sinto muito, não posso fazer nada”. Decidi pesar minha mala. Descobri que ultrapassava os 15 quilos. Como não pude pagar pela internet, fui informada de que despachar uma mala me custaria o equivalente a 35 libras (97 reais). Para cada quilo que passasse dos 15, cobrariam 20 libras (55 reais). Por sorte, eu não tinha uma segunda mala. Do contrário, teria de pagar mais 70 libras (194 reais): a segunda é o dobro do preço.

Pagar este valor pela bagagem me parecia absurdo, mesmo que eu tivesse conseguido pagar a taxa mais baixa, pela internet. Mas sobre isso eu havia perdido o direito de reclamar quando dei um clique com o mouse do computador. Quem mandou não ler as letras miúdas? Fiquei pensando em todos os “I accept” (eu aceito) que clicamos na internet, a cada programa baixado ou a cada compra consumada. O que será que eu já aceitei ou com quais absurdos concordei somente neste ano?

“Declaro que estou de ciente que o produto é cancerígeno e a empresa X não tem nenhuma responsabilidade sobre o melanoma que eventualmente desenvolverei no futuro”. Ou: “Declaro que estou ciente de que ao final do programa vou ser esquartejada e ter meus órgãos comercializados sem que meus familiares tenham qualquer direito a uma parte dos lucros obtidos com a transação”. Ou: “Declaro que tenho um desvio patológico de conduta e sou incapaz de gerir meus bens, que devem portanto ser transferidos para a empresa tal”.

Medo.

Paguei. Como eu continuava reclamando, a “intermediária” disse algo que, imagino, não estivesse no manual: “When you choose this company, you sign your life away”. O sentido, em português claro, é: “Quando você escolhe esta companhia, você vende sua alma”. Eu tinha assinado uma versão contemporânea de pacto com o diabo. E era assim que eu me sentia. A empresa era descarnada. Eu tentava alcançá-la, mas só agarrava fumaça.

Tive uma profunda sensação de irrealidade. E se o avião não existisse? E se não tivesse piloto? E se a manutenção da aeronave também fosse virtual? Eu não queria apertar cinto nenhum!

Passou. Apresentei no check-in o recibo da minha impotência. A fila tinha mais de cem pessoas. Quando chegou minha vez, o moço do check-in (outro intermediário) achou minha reserva no computador no primeiro clique. Sim, eu estava lá. Em algum lugar daquele mundo volátil havia um lugar para mim no avião.

Sentei-me aniquilada na sala de embarque. O que eu poderia fazer diante dessa criatura imaterial, mas que tinha ganhos bem concretos? A companhia não tem o menor interesse em resolver as panes eventuais de sistema em casos como o meu. Nem sequer me vêem como uma pessoa. Eu não sou um ser humano com nome, história, desejos. Sou apenas um número de cartão de crédito.

O cálculo é pragmático. Contratar funcionários capazes de resolver problemas numa estrutura própria é muito mais caro que acertar com uma empresa terceirizada, que faz serviços para ela e outras dez, e que se limita a faturar taxas e seguir o manual padrão de perguntas e respostas. Sem contar que qualquer prejuízo não será da companhia, mas do passageiro. Se X pessoas deixarem de viajar porque foram lesadas e não puderam sequer reclamar, tanto faz. Sempre haverá gente precisando viajar barato. Na ponta da calculadora virtual: custa menos dinheiro perder um número X de clientes do que estabelecer um escritório próprio. Pronto. A escolha está feita. Se tudo é fumaça, alguém espera que exista ética?

A companhia trabalha assim porque é má? Não. É a lógica do mercado. E o mercado, dirão os gurus de plantão, não é bom nem mau. Estes são atributos humanos. A longo prazo, o número de descontentes poderia colocar a companhia em risco? Esta é a parte que o marketing tem a missão de resolver.

A ausência física, com todas as violações aos direitos básicos do consumidor que acarreta, é transformada em “diferencial”. O que era ônus, em termos de imagem, vira bônus. Transforma-se num valor. “Usamos a internet para que você possa viajar pelo mundo pagando menos. Nós estamos pensando em você, que antes não podia viajar e, graças a nós, agora pode.” No final desse raciocínio, você quase agradece.

Mas por que tem de pagar pela bagagem? Também há uma sacada de marketing logo ali. É preciso fazer com que você não se sinta apenas um cidadão de terceira classe, viajando barato numa companhia que não responde pelos seus atos e que cobra até pela mala que você carrega. A médio prazo isso poderia trazer prejuízos significativos. Afinal, não se pode esperar fidelidade de clientes sem autoestima.

De fato, você está ali porque não consegue pagar a passagem de uma empresa com reputação, escritórios estabelecidos, onde você é atendido por pessoas que o ajudam a resolver eventuais problemas e viaja numa aeronave com o mínimo de conforto. O que você não sabia é que, ao escolher este inovador sistema de voar, abriu mão dos direitos mais básicos do consumidor.

De novo, é preciso transformar isso em atributo. Em vez de cidadão de terceira classe, você tem de ser convencido que é um cidadão do mundo. Com a ajuda do marketing publicitário, você finalmente compreende que viajar por esta companhia não é apenas pegar um avião, é embarcar num estilo de vida, um jeito despojado de estar no mundo. Se você for um de nós, você sabe que a principal bagagem que carrega está no seu cérebro. Ou no seu coração, para os mais românticos. Portanto, viaje leve. Você não é pobre, você é cool.

Estava neste ponto do raciocínio quando chamaram para o embarque. Chequei se o avião tinha o nome da companhia. Tinha. Achei melhor não investigar se o piloto era “intermediário”. Não tinha assento marcado, então era só dar cotoveladas, correr, saltar alguns obstáculos e sentar onde conseguisse. Se você quiser ser um dos primeiros a embarcar, precisa pagar uma taxa a mais. Claro. Os bancos não reclinavam, para que coubessem mais poltronas. Desconforto? Ganância à custa da sua coluna vertebral? Não. Estilo, claro. Banco reclinável é coisa de gente velha ou fora de forma.

Esta mesma companhia, em mais um lance inovador, vem estudando a implantação de um modelo em que os passageiros viajariam em pé, agarrados a barras de ferro e presos por cintos de segurança. Parece piada, mas não é. O termo usado para anunciar a possível “nova classe” ao público é primoroso: “sentados na vertical”. Numa enquete virtual, a opção foi aprovada por 60% dos participantes (!). A mesma companhia já estudou cobrar pelo uso do banheiro.

No início do vôo, recebi – de graça! – uma revista com os produtos em oferta, com a comodidade de poder comprar ali mesmo. Mais uma prova de que a companhia continuava pensando no meu bem-estar. Vi então a foto do big boss no editorial. Quase duvidei que existisse. Era a primeira imagem humana que eu tinha. Mesmo se fosse falsa, parecia uma pessoa, o que não deixava de ser um upgrade.

Estudei com atenção. A foto vendia o conceito. Nada de terno e gravata ou ambiente corporativo. Nosso “fellow” era um homem com o sorriso confiante do jovem empreendedor arrojado, exibia um bronzeado de surfista e parecia se divertir muito enquanto trabalhava e revolucionava o mundo com a ousadia de suas ideias. Afinal, não é qualquer feito. Ele havia inventado o primeiro pau-de-arara com asas da história da aviação.

Continuei lendo. Descobri que eu era muito importante para eles e que todos os clientes eram tratados como VIPs – very important persons. Os comissários de bordo eram todos jovens, descolados. Cantaram parabéns para um passageiro de aniversário. Xavecaram as meninas que viajavam sozinhas. Passaram o vôo inteirinho tentando vender produtos variados, na maior empolgação, como se fosse um programa de auditório. Parei de escutar quando anunciaram um cigarro que não fazia fumaça nem precisava acender, mas que podia me dar a dose de nicotina necessária para viver, ali mesmo no avião.

Os passageiros aplaudiam. Pareciam muito felizes viajando no desconforto. Porque, afinal, ao contrário de mim, eles sabiam que não era uma simples viagem. Estavam compartilhando e propagando um estilo de vida, um jeito despojado de voar. Tinham, visivelmente, uma sensação de pertencimento a uma tribo privilegiada (?!) de cidadãos do mundo.

Eu queria de verdade que o admirável mundo novo parasse para eu descer e embarcar no velho. Mas, pelo menos naquele momento, a sensação de estar no ar era bem real.

(Publicado na Revista Época em 10/05/2010)

A perfeita família Jones

Temos escolha ou apenas ilusões?

Steve e Kate são bonitos, ricos e charmosos. Tem um casal de filhos adolescentes bonitos, ricos e charmosos. Acabaram de se mudar para um daqueles opulentos subúrbios americanos, com ruas arborizadas e casas enormes, onde temos a impressão que nunca faz mau tempo. Desembarcam em sua nova vizinhança a bordo de um carro bonito, caro e recém-saído da concessionária. Quando os vizinhos tocam a campainha para dar-lhes as boas vindas, a imagem atrás da porta que se abre é o clichê da família perfeita.

Só que essa família não existe. Os quatro são funcionários de uma poderosa empresa de marketing que cria famílias perfeitas em diferentes partes do mundo para vender os mais variados produtos, de carros a lingerie. A missão da equipe é tornar-se um modelo a ser admirado, em seguida invejado, finalmente seguido. De tempos em tempos, eles recebem os informes de quanto as vendas de produtos aumentaram com a sua atuação – e são avaliados pelos resultados. Uma sacada genial de marketing – digamos que um passo além dos comerciais e merchandisings a que já nos acostumamos.

Este é o enredo de The Joneses, filme de Derrick Borte, que deverá estrear no Brasil em breve. Demi Moore é Kate, mãe de família e chefe da equipe. David Duchovny, que se tornou conhecido pelo seriado Arquivo-X, é Steve. Jones é um sobrenome quase tão comum quanto Silva ou Souza nos Estados Unidos. Mas “The Joneses” foi escolhido a partir de uma expressão da língua inglesa: “Keeping up with the Joneses”. Significa algo como comprar aquilo que the Joneses compram, fazer aquilo que fazem — manter o mesmo padrão. O filme, claro, é uma sátira à sociedade de consumo. Em pouco tempo, os Jones-pais são um sucesso na vizinhança e os Jones-filhos arrasam na escola. As vendas de tudo o que usam disparam. O capitalismo triunfa.

Depois desse ótimo início, o filme desanda. Poderia ter trilhado muitos caminhos, escolheu o mais pueril deles. Mas a premissa de partida é instigante. The Joneses realiza a teoria da conspiração que nos transforma em marionetes sem almas do mercado. Tudo que desejamos pode ser comprado. Nos escravizamos para ter dinheiro para consumir os objetos de nosso suposto desejo. E, claro, nosso desejo jamais será satisfeito plenamente.

Por que somos seres existencialmente incompletos, a quem sempre faltará algo? Não! Porque não somos capazes de obter o sucesso necessário para comprar TUDO. E, ainda que conseguíssemos comprar tudo, haveria sempre mais para desejar e para consumir. Na lógica capitalista, o que nos falta não é um sentido para a vida, mas um sapato de sola vermelha ou uma TV de última geração para assistir à copa do mundo. Nunca seremos como os Jones, mas eles nos mostram quem deveríamos ser. E teremos alguns momentos de euforia se pudermos pelo menos usar o mesmo jeans ou o mesmo relógio que eles.

Esta é a questão óbvia trazida pelo filme. E que vem sendo dita de várias maneiras – e com muito mais propriedade – pelo menos desde Karl Marx. A denúncia do que nos escraviza tornou-se, há muito, ela mesma um objeto a ser consumido, como esse filme de Hollywood. A própria denúncia é mercadoria do sistema que denuncia. A ponto de se tornar um clichê, que nada mais é do que a mercadoria que se banalizou e vai perdendo valor de mercado.

Clichês podem se tornar armadilhas. Quando ouvimos tanto alguma coisa, deixamos de ouvir. Ela se esvazia de conteúdo e a verdade que dizia não é mais escutada. Porque este também um mundo que consome idéias. Exige novidades o tempo todo, ainda que novidades velhas em roupas novas. E a verdade é que as questões essenciais sobre as quais nos debruçamos na curta história de nossa espécie são poucas – e sempre as mesmas. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos, qual é o sentido de nossa vida. E o sentido de nossa vida tem sido consumir – mercadorias cada vez mais voláteis.

Como diz a big boss da corporação a Steve Jones: “Você não vende produtos, mas atitude. Um estilo de vida”. Para cada tribo há uma família perfeita em quem podemos nos espelhar. Ainda que, em determinada comunidade, a família perfeita possa ser um casal gay com um bebê adotado no Sudão, que veste a moda das roupas recicladas, usa bicicletas como meio de transporte e se alimenta de produtos orgânicos.

Se os Jones do filme influenciassem seus vizinhos para consumir valores/produtos “do bem”, ecológica e socialmente sustentáveis, o marketing invisível estaria justificado? The Joneses seriam eticamente defensáveis se falseassem em nome de valores ligados à sustentabilidade ambiental e aos direitos humanos? É o que sempre me pergunto quando vejo o marketing do bem ampliar sua ação simulando uma oposição a um sistema do qual é também produto.

Desde o final dos anos 90, Hollywood tem lançado no mercado alguns filmes inquietantes sobre o sistema do qual é um dos braços mais poderosos e bem-sucedidos. O Show de Truman (Peter Weir, 1998) e Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) são dois imperdíveis exemplos. Filmes como Matrix (Andy e Larry Wachowski, 1999) nos confrontam com a questão crucial de um mundo com fronteiras cada vez mais tênues entre o real e a ilusão.

Neo, o personagem principal, vivido por Keanu Reeves, é um dos poucos que tem escolha: ele pode escolher entre tomar a pílula vermelha ou a azul. Se eleger a vermelha, ele verá o mundo como de fato é. Se escolher a azul, seguirá na mesma, vivendo com a ilusão de ver o mundo como ele é. Mas, ainda que escolha a pílula vermelha, como de fato escolheu, como saber que aquele mundo é o real ou apenas mais uma simulação do real? O que é real, afinal?

The Joneses traz essa questão de uma forma mais tosca, mas ainda assim suscita perguntas interessantes. Se a família falsamente perfeita não tivesse aparecido na vizinhança para ditar um estilo a ser consumido, seus vizinhos seriam mais livres? Suas escolhas eram mais amplas antes de serem influenciados por esse poderoso marketing invisível? Ou apenas trocaram de marcas?

Ou ainda: se os Jones se apresentam e são decodificados como uma família perfeita, onde está a verdade e a mentira? Se a família perfeita só pode existir como ilusão, ao apresentarem-se como uma eles estão mentindo? Ou só podem ser verdadeiros mentindo? O quanto eles iludem e o quanto a vizinhança quer ser iludida?

Há muitos Jones na nossa vida, o tempo todo, travestidos das formas mais diversas – travestidos até como anticonsumo ou como reação ao consumo. Se pensarmos em cada objeto que compramos – e este é um exercício sempre interessante –, sabemos dizer de onde veio a vontade, o gosto, a preferência, a necessidade? Tente. Sua última compra. Como chegou a essa escolha? É possível saber o quanto lhe pertence esse ato? Existe, afinal, o desejo de cada um? Ou essa é a grande quimera contemporânea?

O produto mais cobiçado do mercado é justamente aquele que o mercado não tem para oferecer: escolha. E o melhor marqueteiro, publicitário ou vendedor é aquele que nos faz acreditar que temos opção diante de prateleiras e mais prateleiras de ilusões. A garantia de escolha é a grande farsa.

Em Guerra ao terror (Kathryn Bigelow, 2009), Oscar de melhor filme na última premiação, é forte a cena em que o soldado volta do Iraque e tudo o que tem diante de si é uma longa prateleira de supermercado. Em casa, no mundo livre, suas escolhas limitam-se à opção entre dezenas de marcas de cereais. Ele, que na radicalidade da guerra estava encarnado, se desencarna diante da volatilidade desse mundo de mercadorias que defende com o risco de perder a própria vida – e assassinando outras tantas.

Acho que viver nesse mundo de consumo é o tempo todo pensar sobre o auto-engano. Viajei pela Europa por três semanas. Como sigo trabalhando enquanto viajo, fiz meu escritório em uma rede internacional de cafés. É a forma mais prática para quem não tem dinheiro para pagar bons hotéis e precisa estar conectado em algum lugar onde não chove nem faz frio. Sempre que eu precisava, havia um por perto. Eu entrava, procurava uma mesinha com tomada para não precisar gastar a bateria do netbook que andava o tempo todo comigo, na mochila. Me conectava e, pronto, estava trabalhando. E, claro, consumindo café.

Quando entrava num dos cafés da rede, eu ficava contente. Era como chegar em casa. Os atendentes eram jovens, sorridentes, sempre dispostos a ajudar. Estrangeiros, a maioria. No segundo dia já conheciam meu gosto, sabiam se meu café era com ou sem leite sem que eu precisasse dizer. Ao meu redor havia pessoas como eu, mergulhadas no universo privado de seus laptops. Quando chegava a hora de fechar, meus sorridentes novos amigos me pediam gentilmente para cair fora, mesmo que lá fora desandasse uma tempestade. Só então eu lembrava que, afinal, não era minha casinha, mas business.

Logo percebi que eu não estava apenas trabalhando num café wi-fi. Eu “estava entre os meus”. Fazia parte de uma rede, compartilhava e reproduzia “um estilo de vida, uma atitude”. Era, de certo modo, a minha família Jones. Enquanto isso, eu, que nunca gostei muito de café, estava consumindo litros. E bem feliz.

Nessa viagem, não adquiri nada novo. Comprei confecções de uma marca que recicla tecidos e roupas usadas, doadas para este fim. Desse modo, o que eu visto não custa quase nada para o meio ambiente. E o preço que pago, bem menor do que o custo de qualquer confecção nova, é investido em programas de educação e direitos humanos em países pobres. Pode ter algo mais politicamente correto, mais ambientalmente sustentável?

Achei que não. E sigo acreditando que é uma boa opção. Mas não deixei de me sentir parte de uma família Jones, ainda que mais descolada e com valores mais “adequados” às necessidades do planeta. Ainda na ratoeira. Com a velha sensação de claustrofobia. O tempo todo entre as pílulas azuis e vermelhas, com a diferença de que não tenho a ilusão de que a pílula vermelha me ofereça algo que também não desmanche no ar.

Há como viver sem fazer a roda do consumo girar? Há como consumir sem ser consumido?

Acho que, neste mundo, a única pergunta que pode nos devolver a nós mesmos é aquela que nos lança no vazio: Qual é o meu desejo?

Não acho que vá encontrar a resposta. Mas não tenho escolha melhor do que a de seguir buscando.

(Publicado na Revista Época em 03/05/2010)

O insustentável peso do ser

Quando emagrecer é perder mais do que quilos

Volto ao tema do que é ser gordo neste mundo porque tenho cada vez mais convicção de que compreendê-lo é chave para acessar nossa época. Somos aturdidos, invadidos e bombardeados por reportagens sobre dietas, conversas sobre dietas, receitas de dietas, livros de dietas, profissionais especializados em dietas e, agora, reality shows com gente tentando emagrecer e eventualmente fracassando. Quando olhamos para alguém, comece a reparar, nosso primeiro ou no máximo segundo olhar avalia se a pessoa é gorda ou magra. Quando descrevemos alguém – e também quando criticamos ou xingamos –, a gordura é um dos primeiros tópicos. Se tivéssemos acesso às promessas feitas hoje a santos ou outras entidades místicas, eu apostaria que a maioria está com a agenda lotada de pedidos de devotos implorando pelos milagres dos quilos a menos.

Pense por um segundo: o quanto estar ou não acima do peso ocupa suas conversas com amigos e familiares, as preocupações do seu cotidiano, o tempo da sua vida?

Queremos acreditar que é uma obviedade desejar ser magro. Que não há outro jeito de ser na vida. E que é “natural” nossa preocupação com o peso e com as dietas. Será? Desde que nos tornamos uma espécie inscrita na cultura, não há nada de natural em nós, exceto o funcionamento biológico do nosso corpo – pelo menos até onde a ciência ainda não conseguiu interferir. Se assim é, o que o valor da magreza, que vai muito além de um padrão de beleza, diz sobre nós? Ou, visto pelo avesso, o que a rejeição à gordura significa?

É muito menos óbvio do que parece. O argumento da saúde é sempre o primeiro a surgir, por ser supostamente indiscutível e vir embalado nas melhores intenções. Mas, acredite, nem todos os gordos são doentes. Ou obesos. Alguns exibem ótimos exames de colesterol e triglicérides, tem pressão normal e bom funcionamento do coração. Nem toda gordura é doença. E, mesmo quando se torna doença, a saúde não é a única medida para avaliar a qualidade de uma vida humana.

Para ampliar nossa compreensão sobre algo que perpassa nossa vida, entrevistei uma mulher vista como “gorda”. Há algumas semanas, ela iniciou uma dieta. Neste momento, emagrecer é um projeto em curso em sua vida. Ela tem 37 anos, 1m69 de altura e pesava 84,5 quilos quando iniciou o regime. É bem sucedida no que faz e tem amplo reconhecimento profissional. Exames médicos mostraram que não tem nenhum problema de saúde ligado ao peso. Quis entrevistá-la porque ela ousa ir além do lugar comum e faz uma reflexão profunda sobre as implicações de sua decisão de emagrecer.

Para esta mulher, fazer dieta é uma forma de violência. Mesmo assim, procurou uma nutricionista e seguiu em frente. Com generosidade, ela nos explica suas razões. E o que nos diz fala não só dela, mas de todos. Fala não apenas de gordura e de dieta, mas de aceitação. Do lugar do outro na nossa vida – e da complexidade do olhar que nos reflete, mesmo quando não nos enxerga ou só enxerga uma parte de nós.

Esta é uma conversa sobre escolhas. E um convite para aumentar o número de pontos de interrogação no nosso jeito de ver o mundo.

Eu: Quando começamos a conversar, você falou que acha assustador ser tratada como obesa mórbida – e isso usando uma calça 44. Como é isso?
Ela: O nível de magreza esperado hoje é tão elevado que, por vezes, sou cobrada como se meu peso ultrapassasse os 100 quilos e eu sequer conseguisse comprar roupas em lojas não especializadas, o que está bem longe de ser verdade. Outro dia estava no telefone com uma prima que comemorava a minha iniciativa de fazer dieta e exercícios físicos. De repente, no meio da conversa, ela diz: “Ainda bem que agora você resolveu emagrecer num projeto de longo prazo. Porque, se você chegasse aos 40 anos desse jeito, estaria fodida! Fo-di-da, entendeu?”.Fiquei pensando que estaria fodida se não soubesse quem eu sou e qual o meu eixo nessa existência. Estaria fodida se não tivesse uma profissão que adoro, que ajuda a mudar o mundo – para melhor – e que me permite sustento próprio e alheio desde os 21 anos. Estaria fodida se não tivesse pais amorosos e amigos tão queridos para partilhar a vida. Estaria fodida se vivesse na miséria, em condições indignas, sem acesso à educação e à saúde, como boa parte da população brasileira. Estaria fodida se não tivesse experimentado um casamento bacana ou se, depois de divorciada, tivesse me metido em relações de afeto abusivas, como não é raro acontecer com mulheres carentes. Estaria fodida se não tivesse equilíbrio emocional ou se passasse fome ou se tivesse sido vítima de violência física ou se fosse alguém sem um pingo de caráter. Por qualquer dessas coisas eu realmente estaria fodida. Agora, fo-di-da por pesar 80 quilos? Como assim, gente?

Eu: Você se descobriu gorda na universidade. Como foi lidar com o sofrimento das primeiras rejeições?
Ela: Foi ruim, como não é difícil imaginar. Quando você ainda é insegura sobre “o que é” ou sobre “quem está se tornando”, e alguém a rejeita pelo fato de ser gorda, a sensação é de que você toda não tem valor algum. É quase impossível entender o quanto de dificuldade do outro tem ali, o quanto não é possível dar ao outro o poder de definir quem você é e outras coisas que na vida adulta tornam-se claras. Quando se é jovem, um minuto de rejeição reduz você a um monte de massa gordurosa amorfa… A grande dificuldade é construir uma identidade sobre a tal massa. O sofrimento pode até não ser enorme, nem destruidor para algumas pessoas – meu caso. Mas um tanto dele é inevitável.

Eu: Qual foi a primeira humilhação por causa do peso?
Ela: Lembro especificamente de uma. Considero que, na época, não estava realmente obesa. Devia pesar uns 70 quilos. Viajei para a praia, com duas amigas. Um dia, saímos de carro para dar uma volta, era eu quem dirigia. Chegaram dois rapazes próximos da janela, e começamos a conversar. De repente, um deles olha pra mim, aponta e diz: “E essa barriguinha sobrando aí?”. Os dois deram uma bela gargalhada, com um prazer irônico e meio sádico. Não deixei ninguém perceber, mas me senti um lixo.

Eu: Como é ser olhada como se tudo o que há em você fosse excesso de peso, como se gorda fosse tudo o que você é?
Ela: A minha sensação é de estranheza total, de não entendimento real desse modus vivendi. Não há empatia que eu tente que me faça absorver o peso como critério de exclusão de pessoas. É tão absurdo quanto a discriminação por raça, dinheiro ou religião. Não consigo aceitar. No caso do peso, posso até me render aos efeitos da discriminação e emagrecer, mas dentro de mim não consigo aceitar esse critério de exclusão. Lembro de uma história que foi muito marcante. Um tempo depois de me divorciar, cheguei ao trabalho e ouvi dois colegas conversando sobre mim, sem que se dessem conta da minha presença. Um deles disse: “Se ela emagrecesse uns dez quilos, não ficaria nem um segundo solteira no mercado…” Fiquei arrasada. Saí de fininho, com um nó na garganta e pensando: “Que desgraça de mundo é esse em que vivo?”

Eu: E como é não ser olhada com desejo por um homem?
Ela: Recentemente um cara, inteligente e muito divertido, depois de algumas cervejas soltou esta: “De onde saiu uma mulher como você, criatura? Meu Deus…” (com ar de interesse e até meio embasbacado). E, em seguida: “Agora, me diz por que a gente não consegue tudo em uma mulher só? No fundo, eu sonho com uma mistura de Catherine Deneuve e Simone de Beauvoir…” Bem. Não preciso dizer que eu era a Simone de Beauvoir da história, certo?

Eu: Aconteceu de você desejar muito um homem e claramente ele não conseguir ficar com você porque você é gorda?
Ela: Já aconteceu de reencontrar uma antiga paixão, com quem havia retomado contato por MSN, telefone e email. Ficou claro que queríamos nos encontrar pessoalmente, com os típicos e deliciosos jogos de sedução em andamento. Ele resolveu ir até a minha cidade, com a desculpa de visitar um amigo. Menos de três horas depois que havia chegado, já estávamos almoçando juntos. E esta foi a última vez em que nos encontramos durante os dias em que permaneceu aqui. Ele é um cara muito bonito. A última vez que havia me visto eu estava com uns 10 quilos a menos e, não tenho a menor dúvida, me dispensou por estar acima do peso. Estar gorda destruiu as chances de reaproximação, não importa o quanto tenha sido boa, sedutora e divertida a conversa pessoal. O sentimento é de raiva. E de indignação. Que culminam numa grande “menos valia”. Uma mulher pode até ser forte. Mas não é deus.

Eu: Você fala neste primeiro olhar, que acontece numa festa, na boate, em algum lugar público. O olhar do desejo, antes de saber se a pessoa é legal ou não, inteligente ou não. Como é para você? Você tem desejo por um homem acima do peso estabelecido como normal? Ou, parodiando seu exemplo, você também quer uma mistura de Jean-Paul Sartre com Alain Delon? Você se sentiria atraída por Sartre antes da primeira palavra trocada?
Ela: Meu último namorado era mais gordo do que eu e tinha uma respeitável barriguinha. Meu ex-marido era magro. Já fiquei com gordos, obesos, magros, magérrimos. Não tenho preconceito quanto a isso. Tenho cá meu fraco por sedutores (e não é exatamente o peso que importa nesse caso), o que venho mantendo sob estrito controle racional. Numa boate, o tipo que primeiro chama minha atenção, antes de conversar, é, em geral, um homem moreno ou negro, com traços fortes e não perfeitos. O que é capaz de definir campeonato é o fato de ele ser espirituoso e com alguma “pegada”. Não é um Sartre que procuro. Ele não foi nada bacana com a Simone… Quanto a Alain Delon, confesso meus pré(e pós)-conceitos: homem muito bonito, em regra, tem de se esforçar pouco e, com isso, não desenvolve ao longo da vida habilidades importantes. As eventuais exceções só justificam a regra.

Eu: Como é estar comendo um doce e sentir o olhar repressor do outro?
Ela: Já experimentei de tudo, desde o olhar materno até o do vizinho de mesa no shopping… Os olhares desconhecidos não têm importância. Mas a reprovação de alguém querido é sofrida.

Eu: Por que você acha que a sociedade tem tanta dificuldade com as pessoas acima do peso estabelecido como normal?
Ela: Acho que todas as sociedades sempre tiveram um padrão de beleza estabelecido e sempre foram cruéis com quem não atende a este padrão. A exclusão com o diferente-marginal não é algo privativo do mundo contemporâneo. A questão é que, hoje, na classe média e alta da maioria dos países ocidentais, o belo equivale essencialmente à magreza. Ser gordo significa se tornar alvo da exclusão do diferente, que é própria das organizações sociais. Algo cultural e praticamente inevitável. Em regra, o ser humano, quando se depara com a diferença, se sente ameaçado. “Se ele está certo e é diferente de mim, isso significa que estou errado?”. Esta é a pergunta que o consciente ou o inconsciente das pessoas faz. E é isso que as impulsiona a tentar mudar ou até destruir o diferente. É muito difícil que lidem bem com a possibilidade de vários certos, a partir de várias escolhas, próprias de diversas realidades. São estas dificuldades individuais com a diferença que, reunidas, formam um coletivo de exclusão, em determinados extratos sociais. Neste espaço, o coletivo excludente recai, também, sobre os obesos.

Eu: Você já se sentiu menor por ser grande?
Ela: Já me senti uma mulher invisível. Grande, gorda e invisível…

Eu: Como é isso? Me fala um pouco mais como é ser grande, gorda e invisível…
Ela: Você está com mais três amigas em uma boate. Duas delas são magras. Você e a outra amiga não são obesas, mas estão claramente acima do peso. Os homens passam e só olham, conversam ou coisa que o valha, espontaneamente, com as mulheres magras. Para você e a outra amiga conseguirem contato é preciso que uma conversa entre todos se dê ou alguma coisa semelhante. Aí pode vir à tona algum tipo de qualidade sua que chame a atenção. Bom humor, inteligência, simpatia… Caso contrário, é como se nós, as mulheres gordas, não existíssemos. Os homens não olham, nem falam, nem se interessam por sua existência terrena. Eles, nos próximos dias, podem até passar horas falando para os próprios amigos ou familiares que não se importam se uma mulher é gorda ou não, que querem uma mulher “real” e gente boa, que paqueram todo tipo feminino em bares e boates, mas a verdade é que, se você é gorda, o universo masculino de classe média/alta não percebe sua existência. Como eu disse: grande, gorda e invisível.

Eu: Como você sente o olhar do outro sobre você, no cotidiano?
Ela: Especificamente sobre o olhar masculino, é ruim não senti-lo sobre o meu corpo com desejo.

Eu: Como é não sentir este olhar de desejo? Tente me contar, descrever isso…
Ela: A sensação é de não existir. Não é que você não seja aceita, nem amada o suficiente. Você não é sequer vista como mulher. Não há um olhar masculino que a espelhe. Sem alteridade, como é possível ter o mínimo de certeza de que uma parte do feminino realmente permanece ali, onde você sente estar?

Eu: Qual é a sua relação com o espelho?
Ela: Gosto de me olhar no espelho. Porque, sem meias palavras ou falsa modéstia, me considero realmente uma mulher bonita. Não maravilhosa ou estonteante. Mas bonita. Não é isso o principal que me define enquanto mulher. Mas faz parte do meu feminino ser bela. E gosto dessa parte. Gosto até quando estou com um vestido velhinho, meio mal arrumada… Mesmo quando estou assim, meio enfraquecida, ainda vejo algo bacana espelhado. O que me assombra é a incapacidade de as pessoas verem. Mesmo porque eu consigo ver isso nos outros, nas circunstâncias as mais variadas possíveis.

Eu: Você acha que é mais difícil para você tirar a roupa quando transa com alguém? O que passa na sua cabeça nesses momentos?
Ela: Curiosamente, não tenho a menor dificuldade com esse momento. O que é ruim é quando o homem desaparece depois. Tenho a impressão que foi insatisfação com o meu corpo. Aí é duro de aguentar. A reação imediata é subir os muros de proteção. Haja apoio de amigos e terapia para lembrar que sair do mundo não é a melhor solução.

Eu: Se você fosse definir como, em geral, as pessoas a enxergam, que olhar seria este?
Ela: Como pessoa, o mundo me enxerga com admiração e carinho. Mas, insisto em dizer que os homens, em regra, não me enxergam como mulher desejável. Sempre que emagreço isso muda. Por mais que me esforce, não consigo realmente entender o porquê.

Eu: Como você reage ao sentir este não-olhar de desejo masculino?
Ela: Eu passei a fazer dieta e atividade física regular para sentir o olhar de desejo.

Eu: Você já consegue sentir a mudança de olhar e de postura com relação a você desde que começou a emagrecer?
Ela: Bem aos poucos. Emagreci apenas quatro quilos e meio, estando acima do peso ainda. De todo modo, olhares começaram a mudar. O interessante é que a minha postura não mudou em nada. Está aqui a mesma mulher que tenta equilibrar delicadeza e força, que aprendeu a seduzir com inteligência, que é bem humorada e, para os próprios padrões de julgamento, bonita. A diferença é que, agora, até na balada tem gente cogitando dar uma chance a ela. Há tempos eu sabia que seria assim. Sempre soube que era balela aquela história que “a obesidade está na sua cabeça e quando você emagrece fica mais autoconfiante e é por isso que os homens te olham mais”. Balela. A autoconfiança sempre esteve no mesmo lugar: no próprio eixo, nos valores, na certeza interna de que 15 quilos a mais não mudam quem você é ou o quanto você se sente feminina. Muda, sim, o olhar do mundo. Só quem se sabia antes mulher e ainda se sabe depois é que pode afirmar isso. São tão poucas assim, que a teoria do “tudo está na sua cabeça” acaba prevalecendo. Mas eu sabia que não era coisa da minha cabeça, mas do espaço em que vivo. Exatamente por ter certeza disso e pelas facilidades que me render a isso traz, estou indo em frente.

Eu: A saúde é uma preocupação sua, com relação à gordura, ou não?
Ela: Ainda não tive problemas de saúde em razão da gordura. Devo me preocupar, por fazer parte de uma família de cardiopatas, com pressão alta. A questão é que, apesar da gordura, decorrente mais da quantidade do que como e menos da qualidade dos alimentos escolhidos, estou com a saúde, do ponto de vista médico, em dia. Então, não posso fingir que estou emagrecendo por “uma questão de saúde” ou que seja realmente “por mim”. Seria mais fácil e legítimo. Mas não é verdade. (A verdade) é muito menos nobre. Eu emagreço para atender a uma exigência externa, social, de um padrão de magreza. Consciente que não é um desejo próprio genuíno, nem uma prioridade interna, nem qualquer demanda de saúde. Foi uma vontade que surgiu para atender a algo que me é totalmente externo e um tanto frívolo. Repetir isso não é fácil. Mas é honesto.

Eu: Na sua decisão de emagrecer é possível saber o quanto é desejo seu e o quanto é necessidade de ser aceita?
Ela: Estou realmente cansada da rejeição, principalmente a masculina, por não ter o peso que se considera adequado. Correndo o risco da generalização, acho que, se um homem estiver diante de uma mulher bacana e gorda e de uma mulher com mais dificuldades emocionais e magra, ele escolherá a segunda. Também estou cansada da reprovação familiar e social por estar gorda. Eu quase posso ler nos olhares amigos: “Mas como alguém como você, disciplinada e dedicada, não emagrece logo e se mantém magra?”. Gordura tornou-se sinônimo de indolência, preguiça, pouca confiabilidade e quase falta de caráter, em determinadas esferas sociais. Neste contexto, minha escolha é 100% decorrente da necessidade de ser aceita. Na verdade, eu escolho dar este poder ao mundo em que vivo e atendê-lo. Não é um desejo meu, desejo aqui entendido como algo que vem dos próprios valores, do inconsciente, do centro. É uma escolha para facilitar a aceitação externa.

Eu: O que você perde por ser gorda?
Ela: Perco, principalmente, o olhar de desejo masculino. E “ganho” o olhar de reprovação familiar, dos amigos, conhecidos…

Eu: E o que você perde, ao tentar emagrecer, além de quilos?
Ela: Poderia dizer que perco algumas coisas como: 1) a maior disponibilidade de tempo que tinha para minha família (agora que priorizei fazer atividade física frequente, os horários ficaram mais apertados); 2) os convites para tomar cerveja (não consigo tomar refrigerante zero, então prefiro não aceitá-los para evitar a tentação “que desce redondo”); 3) os jantares mensais realizados em casa para os amigos, verdadeiros encontros gastronômicos; 4) a leveza com que sentava a qualquer mesa para comer (agora passo os dias contando calorias e concentrada em evitar excessos). Mas não é isso o principal. Eu perco principalmente a sensação de que guio a minha vida pelos meus valores. Perco uma das coisas que me é mais cara: a fidelidade àquilo em que acredito. E eu acredito que magreza é uma das características mais irrelevantes de uma pessoa. Acredito que usar meu precioso tempo para investir em algo tão irrelevante é um verdadeiro absurdo, com tantas outras prioridades e demandas mais importantes na vida. Acredito que a sociedade atual perdeu a noção do que é básico indispensável e do que é absolutamente supérfluo nos seres humanos. Apesar de pensar todas essas coisas, eu traio aquilo em que acredito. Torno-me parte de um conjunto burguês, oco, superficial, vazio e – por que não dizer? – até medíocre. E finjo que estou extremamente feliz, e só feliz, por emagrecer. Afinal de contas, quem é que vai acreditar na maluquice de uma mulher se sentir mal pelo simples fato de se render à pressão externa, se ela está mais magra e, teoricamente, “mais bonita”, com todos os ganhos que isso implica? Ninguém acreditaria que, no lugar de uma felicidade plena pela “beleza-magra adquirida”, eu esteja sentindo que perder a mim mesma não é nada fácil.

Eu: Se há tantas perdas, por que emagrecer? Você me escreveu que algo de você “já começou a morrer”. O que? Que luto é este?
Ela: É o luto de quem entrou para a manada. De quem perdeu a própria individualidade, que não está na gordura, mas na capacidade de ser fiel aos próprios valores e prioridades. O luto de quem desistiu de defender a multiplicidade pós-moderna – onde haveria espaço inclusive para os obesos, ou seja, para existências e escolhas as mais diferentes possíveis – e se rendeu à verdade única moderna: a magreza. É o luto de me ver misturada a valores que sempre considerei de segunda linha, como a valorização excessiva da imagem – o que parecemos – em vez daquilo que de fato somos. Há algo da minha alegria genuína que vai se perdendo nesse processo. É como se eu pensasse: “Tudo bem, pessoal, vamos lá. Serei uma de vocês. Dá mesmo muito trabalho sustentar ser eu mesma nesse mundo”. Há algo de muito triste nessa experiência que, aliás, tem muito de desistência. E não adianta dividir essa tristeza, porque todos julgam esse sentimento como uma “defesa inconsciente típica do gordo” que, com base nela, vai acabar achando um jeito de “boicotar o emagrecimento e voltar ao lugar triste da obesidade”. Na verdade, não vou boicotar, não. Dá vontade de dizer: “Respirem aliviados e não gastem saliva. Serei magra e farei tudo para me manter assim. Estará tudo bem em algum tempo. Estaremos do mesmo lado”. Já entendi que, no meio social em que vivo, é o único jeito de não sofrer significativas sanções de exclusão.

Eu: Mas, vou insistir. Se é um processo tão violento para você, por que emagrecer?
Ela: É verdade que dieta é uma violência com relação a tudo o que eu acredito. Talvez soe até bobo e infantil reclamar da escolha de emagrecer. É provável até que não faça sentido e que o sentido aparente termine sendo o amoroso-sexual. Sem dúvida, este ganho está presente. Mas há outros. E não é que eu não consiga viver sem estes outros ganhos. Consigo, tanto que vivi, e bem, até aqui. A questão é que estou exausta do esforço que é preciso para isso. Eu não quero ouvir dicas sobre a importância de emagrecer, correr, fazer dieta, a cada telefonema, a cada encontro, a cada email. Diante do meu pedido expresso para que isso não ocorra, não quero ver o melhor amigo passar os meses se segurando, com grande esforço, para não terminar cutucando o assunto de forma impiedosa. Não quero ouvir alguém que pesa mais de 120 quilos gritar que “não há ninguém no mundo que seja feliz sendo gordo!”, me acusando de mentir para mim mesma, quando afirmo que magreza não é exatamente um valor próprio. Não quero ser ignorada na boate porque estou gorda, nem ouvir que estou solteira porque estou gorda, nem perceber os colegas fiscalizando o tamanho do meu prato, nem ver condenação estampada nos olhares que me rodeiam. Este massacre pelo emagrecimento me encheu tanto que prefiro virar uma “paty-tamanho-40”, com um sorriso no rosto sujo por uma folha de rúcula e por um tanto de covardia. Eu realmente estou cansada de, tendo de lidar com tantas coisas difíceis no cotidiano, ainda aguentar os olhares que me dizem o quão imperdoável é estar acima do peso. Veja bem: Não é que seria impossível aguentá-los. Mas é preciso esforço demais… E a vida já anda com desafios significativos. Declino da batalha e entrego os pontos.

Eu: Você me disse que emagrecer é uma espécie de “se perder e se prostituir”. Por quê?
Ela: Como eu disse, emagrecer foi uma escolha para atender algo que não é fruto do meu próprio desejo. Eu, que me considero tão centrada, tornei-me refém de valores que jamais serão meus, não importa o quanto os siga, por fraqueza ou por covardia. Especificamente sobre a sensação de estar me “prostituindo”, é como se o pagamento pelo esforço em emagrecer se desse em olhares de admiração e de tesão. Às vezes parece um preço alto e absurdo demais para este estranho sexo social. Quando penso que estou usando uma parcela da minha vida para lidar com isso e, no mesmo instante, no mesmo país, há alguém faminto, me sinto uma verdadeira aberração. Tenho receio de terminar esse caminho meio perdida, sem saber direito aquilo em que acredito, nem muito bem o que desejo. Tenho receio de uma nostalgia saudosa do gozo assumido e inteiro, muito mais suave, a que estava acostumada. Porque podia até não ser perfeito, mas eram escolhas inteiras. Sempre achei que estar íntegro no erro é melhor do que alienada em eventuais acertos exógenos. Por outro lado, atendendo a essa exigência social, a vida no meio em que me relaciono pode se tornar mais fácil. Estar acima do peso dificulta bastante os dias numa terra de mulheres deslumbrantes, bem cuidadas e magras. E há um momento da vida em que você descobre que, se já superou tempos difíceis, tem direito à sua cota mínima de covardia e futilidade nessa existência. Estou exercendo minha cota. Covarde demais para me manter quem eu era, me rendi ao mundo e estou fazendo sacrifícios para emagrecer. Não falo isso como uma grande vítima. Mas como uma mulher adulta, como um sujeito de escolhas conscientes e incoerentes.

Eu: É uma escolha sua ou do mundo?
Ela: A escolha, eu acho, é minha. Porque é lógico que eu poderia continuar gorda. Dentre as mulheres gordas que conheço, talvez eu fosse daquelas que realmente sustentaria, razoavelmente feliz, ser quem é. Quer saber a razão de eu não fazer isso? É lógico que quero, e muito, como todo ser humano, ser aceita e amada. Mas, mais do que isso e principalmente: eu quero uma vida mais fácil. Simples e fútil assim. Estou cansada de batalhar por valores que as pessoas, inclusive as muito queridas, sequer entendem. Juntar-me ao todo dá uma sensação de alívio coletivo e este alívio faz com que me deixem em paz, que é exatamente o que eu desejo e preciso agora. Então eu tomo só um chope pequeno, num dia de calor insuportável, em que não haveria nada demais tomar os três habituais. E volto caminhando para casa para queimar as calorias. No dia seguinte, não como duas fatias de pão integral light, mas só uma. Por fim, confesso o pecado para a nutricionista, que me absolve, com um ato de contrição que exclui queijo amarelo por dois meses. Saí mais cedo do bar e perdi as últimas gargalhadas para não correr o risco de tomar mais um chope. Fiquei com fome durante toda a manhã e sonho, há dias, com requeijão derretido no micro-ondas. Mas tudo bem.

(Publicado na Revista Época em 26/04/2010)

Memento mori

O rei, os sapatos de salto e as meninas de Velázquez

Na Roma antiga, quando um comandante ganhava uma batalha importante, percorria a cidade num ritual que historiadores chamam de “triunfo romano”. Era um momento de glória suprema, talvez próximo à reconstituição dos filmes feitos por Hollywood. Atrás dele, para que não esquecesse que toda ascensão contém uma queda, um escravo sussurrava no ouvido do vitorioso: “Memento mori”. Em tradução do latim: “Lembra-te de que és mortal”.

O memento mori é citado por alguns historiadores, mas sempre com a ressalva de que não há comprovação documental de que isso realmente tenha ocorrido e que esta tenha sido a frase exata. De qualquer modo, me parece brilhante. E deveria ser reeditado com os poderosos de todas as épocas, seja da política ou do show business. Não mais por um escravo, claro, mas alguém bem pago para trazê-los à terra quando a tentação humana da divindade comichasse a ponto de se tornar irresistível.

Se na Roma clássica o fato realmente ocorria da maneira sugerida, penso que o comandante ficava com muita vontade de dar um peteleco no escravo que o lembrava de sua morte no ápice de sua vida. Ou quem sabe enfiar sua honrada espada bem no coração do sujeito, para que ele não ousasse mais lembrar a morte alheia. Sendo ou não factual, o conceito memento mori contém uma verdade profunda. E serve para todos nós.

Enxergar alguém como se o pedestal fizesse parte do corpo é a melhor maneira de não enxergar coisa alguma. Pior ainda quando escorregamos na tentação de enxergar a nós mesmos dessa maneira. Acho que a vida de todos, tenha maior ou menor quantidade de glória, se beneficia muito quando mantemos o memento mori vivo dentro de nós.

Pensei muito nisso nos últimos dias. Fui a Madri receber um prêmio de jornalismo chamado “Rey de España”. O prêmio é entregue pelo próprio rei Juan Carlos, durante uma cerimônia em que comparece gente de todas as áreas da sociedade madrileña, da política às artes. Toda viagem, seja curta ou longa, para perto ou para longe, é sempre para dentro da gente. Abre uma possibilidade única de nos enxergarmos – e aos outros – com olhos novos. Esta viagem, tão singular, me deu a chance de viver muitos memento mori. A maioria deles bem prosaicos.

Eu nunca tinha conhecido um rei. E estava muito excitada com a possibilidade. A ideia de um rei é um tanto estranha para a maioria de nós, brasileiros. Eu conhecia a história do rei Juan Carlos, que desempenhou um papel decisivo na democratização da Espanha, depois da sangrenta ditadura de Franco. Conhecia também aquela parte da vida contada pela “prensa del corazón” (como os espanhóis chamam o jornalismo de celebridades). Mas eu queria saber como é ser rei mesmo – ter nascido com um destino mais traçado que o da maioria de nós.

Quando participo desse tipo de cerimônia, que envolve uma programação de vários dias, em que você e outros estão no centro das atenções, fico exausta. Acho muito difícil representar a mim mesma. No final do dia, estou uma uva passa. Fico então bem quieta por algumas horas, sem falar nada, para me rearranjar. Era o que me chamava atenção na história do rei. Como deve ser difícil representar o tempo inteiro. Não só a si mesmo, mas todo o delicado equilíbrio de um país como a Espanha.

Se já é difícil representar a nós mesmos, em nossos diferentes papeis – e quantas vezes ficamos sem dormir porque achamos que na hora mais importante vamos falhar –, dá para imaginar o que é representar um rei. Sim, porque Juan Carlos, como todos nós, ao mesmo tempo é e representa ser.

Na véspera de receber o prêmio das mãos desse rei que me deixava tão curiosa, tive pesadelos a noite inteira. Acho que minha expectativa era tão grande que tinha medo que não acontecesse. Meus pesadelos têm mania de grandeza. Nunca é algo simples, do tipo estava andando na Calle Mayor e torci o pé. Nada. Minha noite foi uma série de catástrofes que envolviam a humanidade inteira.

Lembro de duas. Uma avalanche de neve parava a cidade de Madri em plena primavera. A outra era ainda mais acachapante. Uma hecatombe nuclear acabava com o mundo inteiro. Em vez de receber o prêmio no Palácio de Linares, lá estava eu, me decompondo numa versão chinfrim dos filmes-catástrofes de Hollywood.

Acho que meus sapatos tinham a ver com isso. Eu estava ali, prestes a receber um prêmio importante, mas só pensava nos meus sapatos. Cometi uma extravagância e comprei o sapato mais bonito da minha vida para a cerimônia. Só que eles tinham 15 centímetros de salto. E eu nunca fui capaz de andar de salto alto sem parecer uma garça. Com este, era pior. Ele era tão alto que eu só conseguia andar aos pulinhos. Não caminhava, saltitava. Por mais que me esforçasse, eu estava a anos-luz do andar estiloso da Gisele Bündchen.

E se eu caísse na frente do rei? E se eu, já mais pesada por causa dos tantos jamóns e Riojas, desabasse em cima de sua majestade e a matasse? Pensariam que sou do ETA e me colocariam numa prisão espanhola para sempre. Meu sapato lindo de morrer poderia transformar um minuto de glória numa desgraça que duraria a vida inteira. Foi, na minha opinião, um memento mori. Quando despertei da hecatombe nuclear que havia reduzido a humanidade a pó, eu sabia o que tinha de fazer: aceitar o meu real tamanho e enfiar minhas velhas sapatilhas.

Foi o que fiz. Quando o rei chegou, levei um susto. Ao vivo, ele era a cara do meu tio Tarquínio, já falecido. A semelhança me deixou mais sossegada, já que este tio era o mais querido dos irmãos do meu avô. Juan Carlos, agora quase da família, estava também com a barba por fazer, possivelmente deixando crescer como vi em algumas fotos. Portanto, era um rei quase demasiado humano.

Interrompi esse curso de pensamentos tranquilizadores ao lembrar que eu apertaria a mão do rei e da rainha. Isso poderia resultar em uma pequena catástrofe. Como gaúcha eu aprendi que o aperto de mão revela o caráter da pessoa. Se alguém oferece uma mão mole, não confie nele. Se der uma mão suada, é possivelmente egoísta, porque não pensou em você. Enfim, fui educada para dar um aperto de mão bem forte, seco e agradável.

Quando me mudei para São Paulo, percebi que a cultura dos paulistanos era um pouco diferente. Mais de uma vez captei, com o canto do olho, a pobre pessoa que havia acabado de apertar a minha mão massageando-a com uma expressão que misturava dor e revolta contida. Compreendi que, para os padrões paulistanos, eu esmagava os ossos do interlocutor. Comecei a mentalizar um aperto de mão nem mole nem triturador nos soberanos dedos. Mas tinha certeza de que na hora esqueceria por causa do nervosismo.

Estava nesse ponto quando outro pensamento terrorífico cruzou meu cérebro. Minhas mãos estavam geladas. Não por causa do frio, mas do nervoso. Eu não queria oferecer uma mão em temperatura de freezer às figuras mais próximas de um conto de fadas que eu tive a chance de conhecer. Mesmo no verão, minhas mãos podem ser usadas para gelar cerveja. Se mais gente tivesse mãos na temperatura das minhas, o aquecimento global poderia ser revertido.

Comecei a esfregar furiosamente as mãos na pashmina que eu tinha achado no fundo do armário lá de casa e só trazido para uma emergência, no caso de ter de tirar meu estupendo casaco. Era preta. E, descobri naquele momento, de qualidade duvidosa. As palmas das minhas mãos estavam agora mornas. Porém negras como as asas da graúna.

Então anunciaram meu nome. E lá fui eu, toda feliz. Esquecida dos mais recentes tormentos. É possível que, de volta ao palácio real, suas majestades tenham se perguntado sobre aquela mancha preta nas mãos. Posso até imaginar doña Sofia comentando com o marido: “Juanito, cariño, siento un dolor extraño en los dedos de la mano derecha…”. E Juan Carlos: “Curioso, guapa, siento lo mismo en estos dedos… Y mira esta mancha: que raro, verdad?”

Espero que não relacionem os sintomas à única brasileira entre os premiados. Agradeci em espanhol, e Juan Carlos me deu os parabéns em português. A vida seguiu. E com ela a cerimônia. Quando vi, já estávamos tirando fotos com o rei. Duas colegas argentinas imediatamente se postaram, uma de cada lado do corpo real. Por supuesto, minha porção zagueira de futebol de várzea achou difícil resistir em dar uma cotovelada nas chicas. Mas eu estava no meu dia de princesa.

De repente, o rei começou a hablar comigo. Não me ocorreu nada inteligente para dizer. Eu queria muito perguntar como era ser rei, como era ter vontade de fazer xixi e não poder sair correndo para o banheiro mais próximo, se ele tinha algum complexo por ter falhas na barba. Juro, só me ocorriam coisas assim. E se ele dissesse: “Por qué no te callas?”. O rei já estava hablando em outro lugar antes que eu conseguisse fazer uma pergunta que coubesse no protocolo.

Pronto. Tudo terminado. À noite, eu já estava num boteco espanhol, diante de um chorizo e uma taça de vinho, dizendo com os olhos marejados: “Este é o meu Prado!” . Comer, para mim – seja um prato de feijão com arroz, um chorizo ou um dos banquetes da programação – é sempre uma experiência artística. Como ao fruir uma grande pintura, depois de um chorizo perfeito sempre me torno uma pessoa melhor.

No dia seguinte, no próprio Museu do Prado, eu tive meu memento mori máximo. E foi uma experiência que me marcará para sempre. Me postei diante de “As meninas”, a obra-prima de Diego Velázquez (1599-1660). As meninas estão para o Prado como a Mona Lisa para o Louvre. Quando estive diante da Mona Lisa, me faltou conhecimento – ou coração – para compreender por que aquela era a mais famosa pintura do mundo. Preferi outras, mais obscuras.

Diante das meninas de Velázquez, porém, tive uma epifania. Para quem não conhece a obra, vale a pena buscá-la na internet. A cena mostra a infanta Margarita, da Áustria, com suas damas de companhia, um cachorro, uma criança e uma anã, figura corriqueira na corte da época. Ao lado da menina, o próprio Velázquez aparece pintando uma cena que está fora do quadro. Lá atrás, na parede da sala, há um espelho onde vemos refletido o casal real. Pelo reflexo, portanto, descobrimos que é o casal que está sendo retratado pelo pintor da tela. Atrás da parede do espelho, há um empregado abrindo uma porta. Ou seja: Velázquez conseguiu fazer uma pintura que, por ser aberta, é um mundo fechado. Há alguém, o empregado, que entra no quadro, para onde não mais enxergamos. E há o casal retratado, fora do quadro, que só vemos pelo reflexo no espelho.

Parte da genialidade da obra está no fato de que ela nos inclui. Quando nos postamos diante do quadro para admirá-lo, nos colocamos na exata posição do casal retratado. De dentro do quadro, Velázquez olha para nós. Ele nos pinta. Quando compreendemos nossa posição, o espelho não é mais um espelho, mas um retrato do casal real congelado no passado. Nós, os espectadores, temos nossa posição invertida: é o quadro que nos pinta. E nos observa.

Neste lugar, percebi que o quadro formado por mim e pela pintura nunca mais se repetiria. Aquela cena era efêmera e, de certo modo, já estava morta. Nos tantos séculos que se passaram, milhões de pessoas formaram um novo quadro com a obra pintada por Velázquez. Da forma que só a arte permite, ele criou uma obra que para sempre seguirá pintando.

A cada espectador que se coloca no lugar de retratado, Velázquez inverte sua posição. Naquele instante em que o quadro se completa, é ele que está vivo. Ao pintar-se, Velázquez imortalizou-se. E nós, os vivos pintados por ele, estamos a um minuto de sair do quadro, desse pequeno pedaço de eternidade. E seguir pelo corredor do museu, rumo ao resto de nossas vidas.

Tive de me sentar num banco próximo para chorar pela cena que havia acabado de morrer. Depois, lembrei da minha vida breve e – mais viva do que antes de conhecer Diego Velázquez – fui tomar una copa de vino con jamón.

(Publicado na Revista Época em 19/04/2010)

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