Escrivaninha Xerife

Minha nova vida precisa de gavetas e da coragem de assumir as cicatrizes

Esta coluna é inteiramente sobre mim. Aviso na primeira linha, que é para nenhum leitor reclamar que estava desavisado. Se achar que não vale a pena, pode parar por aqui e pular para outra.

Desde pequena, eu sonho com uma escrivaninha Xerife. Não sabia que se chamava xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri agora. Esta escrivaninha de madeira é cheia de gavetinhas e escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que há lá dentro. Não tenho a menor ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul. O fato é que eu sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da tampa.

É mágico. Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios ficam lá dentro, sem risco de se dependurarem no lustre, esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo assombrar o resto da família.

Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. No sábado, comprei minha última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.

Decidi que vou me enforcar nas cordas da liberdade. Para isso, precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar este ato, queria transformar algo da matéria volátil dos sonhos em existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando nos arriscamos a desentocar os sonhos – com uma vara que é sempre meio curta – e os expomos às intempéries do real.

Foi um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de passagem. Um dia antes da compra, na sexta-feira, deixei a redação da revista ÉPOCA, depois de dez anos. Poderia continuar ali por mais 20 (se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de inventar uma nova vida para mim. Deixei Porto Alegre e a redação do jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de 2000, para vir para São Paulo e para a ÉPOCA. Estava bem confortável lá. Mas há um momento que, pelo menos para mim, o conforto vira desconforto.

Na ocasião, me perguntavam por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade maluca. Eu estava em um ótimo momento. Tinha acabado de ganhar um prêmio Esso (que para os jornalistas é muito importante), tinha uma coluna de reportagem (A Vida Que Ninguém Vê) que eu amava, adorava a cidade, tinha mais amigos do que conseguia dar conta, meu próprio apartamento quitado etc etc. Eu gostava de tudo, mas estava curiosa com a possibilidade de criar uma nova história para mim. Respondia: estou indo porque não quero saber como será a minha vida daqui a cinco anos. E fui.

Agora, completei dez anos incríveis na ÉPOCA. Fiz reportagens que transformaram a minha vida (e, espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes (elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias de São Paulo e testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada pelos personagens extraordinários com quem cruzei nesta última década. Sou uma Eliane muito mais rica agora do que quando cheguei. E tudo o que vivi dará sentido à nova Eliane que virá.

Não foi uma decisão intempestiva. Ela vem acontecendo dentro – e fora de mim – há um bom tempo. Há cinco anos tenho trabalhado nas férias e finais de semana em projetos paralelos, como documentários, livros, oficinas e palestras. Queria experimentar coisas novas e abrir outros caminhos para fora de mim. Outras maneiras de estar no mundo. Tenho uma convicção comigo: temos uma vida só, mas dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.

Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. Desde pequena, eu tenho esta característica. Quando tenho medo de alguma coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo por causa disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim mesma.

Ao fazer a principal reportagem desta série, quando acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. Mas, um dos meus muitos apelidos é “Tixa”, de “lagartixa”. Há quem faça fantasias sobre a origem dele. Mas é bem menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo. Todos somos lagartixas em alguma medida, apenas que eu abuso um pouco dessa vantagem evolutiva.

Minhas incursões no universo da morte deram-me maior clareza sobre a natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum problema para ser tão mórbida. Bobagem. Morbidez é outra coisa. Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida. Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia, mais cedo ou mais tarde, é fundamental para viver melhor. E para compreender a natureza fugaz e preciosa da vida.

A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. A última delas, que encerra um ciclo, sairá em breve na revista. Faço 44 anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro – e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.

Vou continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro tempo. Sou repórter até os confins da minha alma – e um pouco além. Se conseguir escrever ficção, como também sonho, só será possível pelo tanto de vida real e personagens de carne e osso que conheci nestes últimos 21 anos de reportagem. Só o real é absurdo. A ficção é sempre possível.

Estou com medo, muito medo. Volta e meia choro com saudade de uma vida que já não há. Mas eu não tenho medo de ter medo. Deixo um emprego seguro, numa revista onde respeitam o que sou e o que faço, com um bom salário e todos os benefícios, para me entregar ao vazio. Sei que tudo pode dar errado, sempre pode. Mas se der, eu invento outro jeito de seguir adiante. Esta é outra convicção que tenho: prefiro fazer as coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os acertos, os erros também devem nos pertencer.

Esta nova vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no final do ano passado descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem se houve um momento exato. Lembro de dois pequenos episódios, apenas. Num deles eu corria para algum lugar com o João, meu marido, quando ele interrompeu meu passo marcial e disse: “olha”. Eu olhei para todos os lados e nada vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma florzinha diminuta no meio do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando o tanto de detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. Aprendi isso com o João, que se esquece de tudo para passar intermináveis minutos vendo a forma de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de bolo de chocolate. Nunca vi ninguém enxergar tanta beleza no mundo quanto ele. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas que amamos exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João tem este efeito sobre mim, de me tornar o melhor do que sou.

Naquele instante, percebi que corria tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha reportagem, à minha vida: estava esquecendo de olhar de verdade.

O outro episódio aconteceu no final do ano. Eu estava com os meus pais na casa de praia que eles alugam a cada verão. E ficava olhando para eles. Me dava enorme prazer ver os dois se mexendo. Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois de 56 anos de casados e o pai dá flores pra mãe no aniversário de “conhecimento”). Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo da mãe, o cabelo do pai, o jeito que o vento batia neles. E descobri que não podia mais continuar numa vida que eu não tivesse tempo para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.

Quando voltei para São Paulo e para a ÉPOCA, soube que tinha chegado a hora de partir. E agora lá vou eu. Não sei bem para onde, mas sei que é para mais perto de mim mesma.

Comecei então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site da internet que vende tudo, e coloquei na busca: “escrivaninha antiga”. E aí veio de todo o jeito e de toda época, com pés palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente de duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela antes de comprar. E lá fui eu na quinta-feira com o João num galpão da Barra Funda.

Ela era uma escrivaninha viva. Olhei para ela, ela olhou para mim, e eu soube que era a “minha”. Como na história do Harry Potter, em que é a varinha mágica que escolhe o bruxo – e só há uma varinha, única e singular, para cada bruxo –, a minha escrivaninha era assim, minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos porque precisava me esperar.

Examinamos, eu e o João, ela inteira. E descobrimos que ela tinha mais cicatrizes do que nos prometeram. E alguns moradores indesejados. Numa das gavetinhas, havia um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa negociante. As coisas práticas não têm muito efeito sobre mim. A escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem. Ambas queríamos – e precisávamos – nascer de novo.

Aceitei as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa comigo já, eu senti isso. E o João também. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um exterminador de cupins. Ao contar para a Maíra, minha filha, sobre a escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: “ela tem cupins, mas também tem uma alma dentro dela!”. Com seu senso de humor peculiar, Maíra comentou: “Se tem alma, não traz para casa!”.

O problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior sem-cerimônia. Dava até pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos pelo assoalho, era despachado pela sua viúva: “Vai-te embora, Graúna, já disse que não te quero aqui!”. Para ele, a morte não mudou nada. A mulher continuava mandando em seu melancólico espectro.

Hoje é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida de funcionária. Não sigo mais uma lógica de segunda a sexta. Posso escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo. Minha semana não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva batendo no telhado. Posso permanecer olhando para o teto por horas a fio.

O tempo é meu. Esta é a grande mudança. Vou perder dinheiro, segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas, décimo-terceiro. Em troca, retomo a propriedade do meu tempo. Me preparei para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não tenho um real de dívida. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E ele é bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo feliz.

Mantenho esta coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu continuasse. A ÉPOCA e a Editora Globo quiseram. Sou grata por isso. Assim como pela forma extremamente respeitosa com que a ÉPOCA e a Editora Globo trataram minha saída e meu desejo de reinventar minha vida.

Eu adoro escrever para vocês. E amo a internet. Então, toda segunda-feira estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos sobre essa confusão que é a vida do mundo e a de todos nós.

Agora, vou abrir minha escrivaninha Xerife. Estaremos, eu e ela, com todas as gavetas de nossas almas escancaradas. De peito aberto, no vazio. Vamos ver o que conseguimos fazer juntas.

Torçam por mim! (Por nós!)

(Publicado na Revista Época em 01/03/2010)

O perigo da história única

Contar uma única versão sobre nós mesmos pode significar abrir mão de viver

Desde muito cedo percebi que a trajetória de uma vida continha bem mais do que os conflitos visíveis. Em parte, me transformei numa contadora de histórias ao intuir que a forma como é contada uma vida pode significar a possibilidade desta vida. Assim como pode determinar sua morte. O mundo é um palco onde se digladiam as versões – e o poder é usado para impor a história única como se fosse toda a verdade. Não só entre os países, mas na vida social e também dentro de casa. Compreender o poder da narrativa é o primeiro passo para construir uma vida que vale a pena. É também a chave para alcançar a complexidade – ou as várias versões – da vida do outro.

Na semana passada, duas experiências me fizeram voltar a refletir sobre o poder das histórias, um tema recorrente nesta coluna e no meu trabalho. A primeira foi o filme Preciosa, já lindamente comentado neste site na coluna de Cristiane Segatto. A outra foi uma palestra de uma escritora nigeriana chamada Chimamanda Adichie.

Em Preciosa, filme de Lee Daniels em cartaz nos cinemas, concorrente ao Oscar, a personagem é uma negra gorda e enorme, abusada sexualmente pelo pai e de várias outras maneiras pela mãe, que frequenta há anos a escola sem que ninguém perceba que não sabe ler. Preciosa, este também é o nome enormemente simbólico da personagem, é um nada para muitos – e também para si mesma. Um nada difícil de olhar. Ela mesma, quando se olha no espelho, não se reconhece.

Desde que assisti ao filme, na sexta-feira de Carnaval, o recomendo com veemência aos meus amigos. Mas, assim como as pessoas ao redor de Preciosa, no filme, tinham dificuldade de olhar para ela, alguns amigos têm resistência em ir ao cinema “assistir àquela desgraceira”. Ou acompanhar uma personagem que contém em seu corpo todas as características relacionadas aos perdedores. Alguns amigos viram o trailer e decidiram fugir de Preciosa.

É uma pena. E é o que tenho tentado mostrar a eles – e agora a vocês. Não ver Preciosa é não permitir que ela seja vista de outra maneira. E perder uma oportunidade rara de descobrir que a vida – não apenas a dela, mas também a nossa – pode ser decodificada de uma forma mais generosa se nos reconhecermos em olhos dispostos a enxergar além dos estereótipos. Neste sentido, ao decidir assistir a este filme – tão diferente do que se costuma produzir em Hollywood – o espectador está se tornando parte da transformação de Preciosa. E isso é genial como proposta cinematográfica.

Na capa do livro de Sapphire, uma professora do Harlem em cuja obra se baseou o filme, há uma frase perfeita: “Você testemunha o nascimento de uma alma”. É exatamente isso. O filme é o caminho de Preciosa a partir do momento em que se vê refletida nos olhos da professora que a ensina a ler. Olhos dispostos a enxergar uma alma onde a maioria só via banha, violência e miséria.

Ao percorrermos com ela esse percurso, vivemos momentos muito duros. Mas é também imensamente redentor. No momento em que Preciosa descobre que há outras versões possíveis para a sua vida – e que ela mesma pode construir narrativas melhores – o mundo que é ela se amplia. E com essa experiência, também o mundo que somos nós é ampliado. Pelo menos foi o que eu senti. Saí do cinema mais larga. E amando a humanidade inteira. (Sem contar que a interpretação da atriz que faz o papel de sua mãe já faz parte da história do cinema. Se Mo’Nique não ganhar o Oscar de atriz coadjuvante vou jogar tomates na televisão lá de casa.)

Preciosa nos evoca o perigo da história única. Até não encontrar um olhar acolhedor onde se reconhecer, ela só se reconhecia no não-olhar de sua mãe. A escola que frequentara até então continuava olhando para ela sem ver, o que a manteve analfabeta por anos. Só quando encontrou uma narrativa alternativa para si mesma, Preciosa teve alguma chance de ter não só uma vida, mas também uma alma.

E este é o tema da palestra de Chimamanda Adichie, autora de Meio Sol Amarelo (Cia das Letras, 2008). Esta escritora de 32 anos pertencia a uma espécie de classe média da Nigéria, filha de um professor universitário e de uma secretária. Em sua palestra no TED (Ideas Worth Spreading), ela conta uma história feita de embates narrativos para mostrar como a história única aniquila a vida.

Linda e bem-humorada, Chimamanda mostra como a redução das histórias fez mal a sua maneira de olhar a vida de outros em seu próprio país. E fez mal à forma como outros olharam para a sua vida quando se mudou para os Estados Unidos – e sua colega de quarto só conseguia enxergá-la a partir dos estereótipos ligados a um “país” chamado África. Nesta narrativa, Chimamanda percorre as várias crenças sobre a África – e não deixa de mostrar como ela mesma embarcou na tentação das versões hegemônicas, como quando fez uma viagem ao México e incorporou o preconceito contra “os imigrantes”.

É pela intuição do enorme poder de transformação das histórias contadas que Chimamanda se transforma numa escritora. E também Preciosa. A professora faz mais do que ensiná-la a ler. Todos os dias, Preciosa precisa escrever um diário. Ao contar sua vida, literalmente nas páginas do caderno, ela descobre que é mais do que lhe haviam contado até então. Mais complexa e multidimensional.

Ao escrever sobre sua vida com papel e caneta, Preciosa descobre que pode reescrever sua vida na concretude das ruas. E é o que faz. Agora, ela pode se reconhecer nos olhos de outros. Ela gosta da imagem que vê. E nós, na poltrona do cinema, incomodados no início com toda a coleção de estereótipos que ela representa, também gostamos do que passamos a enxergar.

Numa reportagem que fiz em 2007, sobre a primeira geração de escritores das periferias do Brasil, especialmente de São Paulo, mostro os dados de uma pesquisa de Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB). Ao analisar os romances brasileiros entre 1990 e 2004, ela revela que 94% dos autores e 84% dos protagonistas são brancos – e apenas 24% dos personagens são pobres. Ou seja, a história contada pela nossa literatura mostra um mundo de gente branca e de classe média.

É ruim? Não exatamente. É pobre. Não há nenhum problema em escrever e ler livros com protagonistas brancos e de classe média. Brancos de classe média fazem parte da sociedade brasileira. E era só o que nos faltava ter de fazer uma literatura politicamente correta. O problema não é o que existe, mas o que não existe, o que não está lá. O perigoso é não existir livros com outras cores e realidades, com diferentes autores e personagens.

A grande novidade também no Brasil, que é a razão da reportagem citada, é que hoje vem se ampliando também a pluralidade das vozes na literatura. Com a entrada de novos protagonistas no cenário das letras, nós, leitores, temos acesso a novas maneiras de ver o mundo e de estar no mundo. E a diversidade sempre faz bem para a vida, tanto a subjetiva quanto a concreta.

Chimamanda conta como fazia mal a ela não fazer parte da literatura, como personagem, já que os livros disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos colonizadores britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam boa parte dos dias falando sobre o tempo: “Será que vai fazer sol amanhã?”. Fazia todo o sentido para um britânico, mas era estranhíssimo para uma menina nigeriana, na medida em que não era apenas um dos mundos ao qual tinha acesso através dos livros, mas toda a literatura disponível.

Ao mesmo tempo, quando ela se torna escritora, é cobrada que seus romances não são suficientemente “africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de uma determinada maneira, como se só pudesse contar uma única história. Como se um escritor do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, por exemplo, só pudesse escrever sobre a violência e só pudesse escrever usando gírias. A arte é o território da liberdade. E da reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até sermos nós mesmos.

Quando Preciosa, no filme, escapa de sua vida impossível para divagações em que é glamourosa, desejada e talentosa, descobrimos porque ela ainda está viva. É pela fantasia que ela mantém a salvo a melhor parte de si mesma. A parte incorruptível de si mesma. Como faz a maioria de nós, mesmo sem ter uma realidade tão perversa como Preciosa.

Lembro que só suportei minha inadequação, na infância, porque ficava inventando enredos na minha cabeça em que era a protagonista. Quando era obrigada a interagir com as crianças da minha idade, só suportava ouvir aquelas conversas em que não encontrava pontos de conexão porque podia escapar pela fantasia. Me sentia um ET no mundo real, mas era uma heroína em meu próprio mundo. Ter a possibilidade de “me contar” em minha literatura íntima, assim como para Preciosa, em outras proporções, me assegurou a sanidade. Até hoje, quando a vida fica muito difícil e nem consigo entender o que falam ao meu redor, mergulho em narrativas inventadas – e nem por isso menos verdadeiras.

O perigo da história única, mais fácil de analisar na geopolítica do mundo, começa dentro de casa, na família. Como no caso de Preciosa. Quando nascemos, é o olhar da mãe o primeiro a nos constituir. Só nos reconhecemos como um ser para além da mãe a partir deste primeiro olhar fundador. Na infância, é no primeiro mundo privado que habitamos, o de dentro de casa, que iniciamos nosso embate com as histórias únicas. Quando os pais determinam que este filho é inteligente, aquele é preguiçoso e um terceiro é malvado, o mais provável é que aqueles filhos assim rotulados cumpram a profecia dos pais. Por isso, é comum ouvirmos: “fulano desde pequeno já era assim…”. Claro, como poderia ser diferente?

A versão dos pais sobre nós é a primeira versão narrativa da vida de cada um. E ela nos marca para sempre. Para o bem – e para o mal. Seja pela displicência, seja pela opressão. Quando é para o mal, se torna uma prisão. Não somos o que podemos vir a ser, mas um estereótipo fechado, vendido como a única verdade sobre nós mesmos. Este é o olhar que nos transforma em pedra. Afinal, as ovelhas negras de cada família são ou tornaram-se?

Se não encontramos alguém que rompa as grades deste olhar na escola, nosso primeiro mundo público, temos poucas chances na vida. Se, ao contrário de ampliar as versões narrativas, o professor cimentar ainda mais os rótulos familiares ou criar outros tão perniciosos quanto – com sentenças como “este é inteligente”, “aquele é burro”, “o outro violento”, “aquele não tem jeito”, “este é um caso perdido” – as chances minguam.

A história única na família e na escola é o ato mais covarde cometido por pais e professores que não sabem o que fazem – ou sabem, mas não conseguem ou não querem fazer diferente. Educar é ampliar as possibilidades narrativas da vida de cada um – e da vida dos outros.

De certo modo, crescer é tornar-se capaz de quebrar a sucessão de histórias únicas sobre a nossa existência. Foi o que aconteceu com Preciosa, a partir do olhar libertador da professora.

Se você estiver atolado na vida porque lhe fizeram acreditar em uma única versão, reaja. Não acredite. Exercite a dúvida sobre si mesmo – e sobre o outro. Será que é assim mesmo? Será que isso é tudo o que sou? Será que é só isso que posso ser? Tornar-se adulto é ter a coragem de se contar como alguém múltiplo e contraditório, um habitante do território das possibilidades.

No filme, Preciosa diz uma frase maravilhosa, num dia especialmente tenebroso. Algo assim: “Que bom que Deus ou não sei quem inventou os novos dias”. É isso. Há sempre um novo dia para todos nós. Um em que podemos nos reinventar.

P.S. – Você pode assistir à Preciosa no cinema ou, se sua cidade não tiver nenhuma sala, esperar o DVD. A palestra de Chimamanda Adichie é bem mais fácil e não custa nada. Basta acessar o seguinte endereço. Ela fala um inglês pausado e claríssimo, mas há também legendas em português. Imperdível. Aliás, vale a pena frequentar o www.ted.com, onde você pode assistir a palestras de algumas das pessoas mais interessantes do mundo. (Se não entender inglês, não se encolha. Depois de entrar no site, clique em “translations”. Centenas já têm legendas em português.) Se quiser saber mais sobre os novos atores da literatura brasileira, pode ler minha reportagem Os novos antropófagos.

(Publicado na Revista Época em 22/02/2010)

O mito da fertilidade

Na reprodução, estamos mais próximos dos pandas que dos coelhos

Dias atrás, numa reunião de pauta da Época, minha colega Cristiane Segatto, em minha opinião a melhor jornalista de saúde do país, comentou: as chances de uma mulher jovem engravidar naturalmente, sem nenhum problema de fertilidade com ela e com o parceiro e transando no período fértil, é de apenas 25% a cada mês. Dito de outra maneira: se está tudo certo, certíssimo, e você acertou a data da ovulação, tem 75% de possibilidade de NÃO engravidar. E, claro, quanto mais idade, menor a probabilidade estatística. No meu caso, com 43 anos, descobri que, depois de um ano de tentativas, é quase mais fácil eu acertar na mega-sena, o que está nos meus planos (a mega-sena, não o bebê).

Pode ser ignorância minha, mas eu achava que era muito mais fácil. Acreditava que, se tudo estivesse certo com o casal, bastava acertar o período de ovulação e, pronto: baby a caminho. Pelo que tenho conversado por aí, a ignorância não é só minha. Entre minhas amigas, parte delas naquela fase em que enxergam bebês por todo canto, acordadas ou dormindo, o mito da fertilidade segue forte. E fazendo vítimas.

Tenho observado o comportamento feminino. Vejo mulheres bonitas, saudáveis, que têm o privilégio de trabalhar no que gostam, são donas do próprio dinheiro, do nariz e de todo o resto, discorrem sobre temas complexos com inteligência e até mesmo sensatez e…. na hora de engravidar, piram. Alucinam totalmente. Acham que precisam se tornar uma versão sarada da Vênus de Willendorf, aquela figura gordinha, toda protuberante, esculpida mais de 20 mil anos atrás. Quando não conseguem engravidar, se deixam reduzir a um “útero defeituoso”. Sim, já ouvi o termo várias vezes, boquiaberta. Não são mais mulheres, nas várias dimensões da vida, mas úteros. E úteros com problemas. Se pudessem, cobrariam da natureza ou de Deus um recall.

Percebo também que há uma divisão não declarada, mas vivida como verdade: existiriam as mais mulheres que as outras. As mais mulheres, as superfêmeas, são as que engravidam na primeira tentativa ou até sem tentar. Depois, têm parto natural. Sou uma crítica contumaz da indústria das cesarianas, responsável em parte pelo vergonhoso índice de mortalidade materna do Brasil. E uma defensora do parto natural sempre que é possível. Sou contra, porém, um comportamento que começa a se difundir entre as mulheres da classe média urbana e intelectualizada: quem não pôde ter parto natural e fez cesariana é vista como se fosse menos mãe e mulher que as outras. Como se não tivesse “conseguido”.

Devagar. Os extremos nunca fazem bem ao bom senso. Mas este é um tema para outra coluna. O que nos interessa aqui: é maior do que pensamos o número de mulheres esclarecidas que não admitem ter feito tratamento para engravidar porque se sentiriam menos femininas e, depois, menos mães que as outras. Sentem-se mulheres imperfeitas, com defeitos. E escondem esta “mácula” na sua biografia pública.

O que acontece? Acho que estamos muito confusas com a maternidade e todas as suas implicações. Apesar da overdose de informações médicas, ao alcance de todos no Google, há muito que não sabemos. E sobre muitos aspectos do feminino, do sexo e da maternidade, calamos. Como confessar que não somos atletas sexuais em busca de orgasmos múltiplos com as capas de revistas femininas nos transformando em Messalinas do século 21? Ou, o assunto desta coluna, como dizer que temos dificuldade de engravidar, que não somos uma vênus da fertilidade, e que toda essa pressão não nos deixa nem com vontade de transar, o que torna tudo ainda mais difícil? Afinal, boa parte da informação e da publicidade – sempre com amplo uso de termos médicos para dar ares científicos ao que é pura especulação – tenta nos convencer que, para sermos completas, precisamos nos tornar ao mesmo tempo tecnológicas como uma personagem de animação futurista e “naturais” como nossa ancestral Lucy, a australopithecus afarensis de mais de 3 milhões de anos.

Tenha a santa paciência. Dizem que as mulheres falam muito – até demais. Sobre isso, acho que as mulheres falam pouco – de menos. Para quebrar um pouco esse silêncio envergonhado, procurei uma das minhas amigas grávidas. Eu sabia que ela tentara engravidar por muito tempo, mais de um ano. Também sabia que sua vida havia se complicado muito naquilo que ela encarava como “fracasso”. Nesse período, ela se afastou. Quando nos encontrávamos, evitava falar sobre o assunto. E quando me contava sobre seus problemas, descubro agora, eu errava feio. Em vez de escutar de verdade, eu dava conselhos ao estilo de Zeca Pagodinho: “deixa a vida te levar”. Dizia mais. Que conhecia muitas mulheres que fizeram tratamento para engravidar e, depois desse primeiro filho tão difícil, relaxavam e engravidavam sem planejamento. Que ficar tão obcecada só atrapalhava. Que devia esquecer o assunto por uns tempos.

Claro, ela não falava mais. Quando a procurei, me perdoou pela minha estupidez. E me deu a entrevista a seguir, por acreditar que pode ajudar mulheres que sofrem tanto quanto ela. Ou, pelo menos, ajudar a sofrer um pouco menos. Esta é a experiência da minha amiga, com toda a história que é só dela. Com suas neuroses, seus traumas, seus medos, suas expectativas e suas atrapalhações. Há muitas outras. Esta coluna é só um jeito de começar a falar.

Espero que não seja lida só por mulheres. Imagino que não seja fácil para um homem viver todo esse processo ao lado da mulher com quem divide a vida – e o sonho de ter um filho. E um dia gostaria de ouvir um deles. A entrevista pode ajudar a entender um pouco melhor a tão complexa intimidade feminina. E se os dois tiverem a coragem de falar honestamente de seus medos e dificuldades, talvez esse momento possa ser mais leve. E até bem interessante.

Minha amiga está mais perto dos 40 anos que dos 30. E hoje está grávida, mas ainda não contou para a maioria das pessoas. Tentou vários métodos e conseguiu engravidar por fertilização in vitro. Mas decidiu não revelar para os amigos e conhecidos que precisou de tratamento. Ela sabe que é uma bobagem, mas continua se sentindo menos mulher por ter precisado da ajuda da tecnologia para engravidar. Não temos o direito de julgá-la. Só de ouvi-la. Para nos contar sua história, ela precisou de muita coragem para revirar segredos bem doloridos.

Eu: Por que você quer ser mãe?
Ela: Não sei direito. Um pouco porque parece ser uma consequência natural da vida, um pouco pela vaidade da continuidade de mim mesma, da sensação ilusória, mas inevitável, de ter algo verdadeiramente “meu”. Ou que dependa, ao menos por um tempo, exclusivamente de mim. Soa horrível, mas é o que sinto. Às vezes por fatalismo, às vezes por puro egoísmo, não sei. Não é uma escolha racional. É um desejo, quase um capricho.

Eu: Em que medida ser mãe é desejo seu e em que medida é pressão familiar e social?
Ela: Não sei avaliar. Com certeza há uma pressão familiar tácita e social também. Mas é algo meio de bicho ou de obrigação social muito arraigada, a ponto de eu não conseguir identificar. Eu não paro para pensar. Está lá, simplesmente. E há muito tempo.

Eu: Quando você começou a sentir que queria ser mãe? E como este sentimento influenciou sua vida?
Ela: Desde a adolescência a maternidade está presente na minha vida, mesmo que como negação. Sempre levei esse desejo muito a sério. Era como se fosse um desdobramento natural da vida tornar-se mãe, uma questão de tempo para toda mulher, e uma questão com um algo da ordem do sagrado, algo de muito importante. Mas eu queria experimentar isso de uma maneira supostamente responsável, sem grandes atropelos – ao menos assim eu idealizava. Então adiei por muitos anos o plano e sempre me precavi neuroticamente para evitar ficar grávida fora de hora, ou do que eu considerava fora de hora, como vi acontecer com outras amigas e me assustou muito. Mesmo assim, desde os 20 e bem poucos anos tenho os exames pré-natais em dia, porque, por mais que a gente se previna, não temos o controle de tudo. Então ao menos eu estaria pronta fisicamente.

Eu: Isso determinou a escolha dos homens com quem namorou, casou?
Ela: Casei com um homem que tinha alguns impedimentos para ter filhos. Ele topou ter um filho comigo, mas minha impressão era de que era mais por amor a mim do que por um desejo dele. Com o tempo, essa diferença de vontade me pegou. Logo que começamos a namorar, consultamos um especialista e soubemos que teríamos de fazer tratamento. Mesmo eu não querendo engravidar naquela hora, fui ao médico porque queria me sentir segura de que estava preparando o terreno para o futuro da melhor forma possível. Me separei dele dez anos depois por iniciativa minha e por motivos que até hoje não são claros para mim. Na época, ele cogitou que uma das razões fosse a pouca vontade dele de ter um filho ou a dificuldade que teríamos. Não sei. Mas, curiosamente, na sequência me apaixonei por um homem, meu atual marido, muito fértil, que já tinha filhos e é um excelente pai, dedicadíssimo. Desde as primeiras saídas deixei claro que eu queria ser mãe um dia. Se isto não estivesse nos planos dele, então o relacionamento não iria muito longe. Ele topou. Às vezes me pergunto se minhas escolhas não foram influenciadas inconscientemente pelo instinto de ser mãe – se é que ele existe mesmo.

Eu: Quando você decidiu que era hora de engravidar, o que fez? Essa ideia de engravidar não atrapalha na hora de transar? Dá para gozar querendo tanto que um filho seja concebido?
Ela: Quando decidimos que era hora, falei com minha médica, fiz novos exames e tomei novas vacinas. Parei com a pílula. Não mudou exatamente o jeito de transar, de viver, mas, para nós, criou-se uma ansiedade crescente, uma expectativa que virava uma tristeza a cada menstruação. Meu marido era excessivamente otimista e achava que eu ia engravidar no primeiro ciclo. Eu sabia que já era um pouco velha biologicamente, que tinha adiado demais os planos de maternidade e que talvez a coisa demorasse. Os exames estavam todos muito bons, mas a gravidez não acontecia e isso trazia tensão. Por que não acontecia? Eu ficava com raiva dele quando a gente brigava perto dos períodos férteis, porque seria uma oportunidade a menos. Meu foco na transa mudou um pouco, sim. Pareciam aquelas transas sagradas, meio ritualísticas das tradições antigas, com uma finalidade por trás…

Eu: Vocês conversavam sobre isso?
Ela: Nunca falei isso pra ele, até para não comprometer o sexo, que sempre foi uma coisa muito boa nossa. Sinto que ele também ficava ansioso para a gravidez rolar toda vez que transávamos. Acho que eu fiquei menos preocupada em gozar nessa época. O foco era outro. Mas não atrapalhava, não impedia. Ao contrário, parecia que enobrecia. Eu queria muito que meu filho fosse concebido numa transa muito boa, com um belo orgasmo. Mas infelizmente a ansiedade começou a perturbar. Em alguns momentos, ficou um pouco mecânico pra mim.

Eu: Em que momento começou a dar medo de não conseguir? E o que este medo fez com você? E com a sua vida?
Ela: Como eu sou muito ansiosa, o medo veio logo. Meu marido era otimista demais. Isso acabava sendo uma pressão indireta. Ele teve filhos muito facilmente. Por isso, eu comecei a me sentir “defeituosa”, inferior a outras mulheres. Em alguns momentos, tive raiva e inveja de mulheres que engravidavam, mesmo de amigas muito queridas. Ficava puta quando alguém que eu julgava irresponsável, não merecedora daquela “graça”, engravidava. Como se fosse uma questão de mérito, sabe? Por que eu, que tinha feito tudo “direito”, planejado, escolhido um momento de relacionamento tranquilo, de segurança financeira, porque eu, que era uma ótima tia e madrasta, não conseguia, e tanta mulher sacana conseguia? Tive sentimentos muito ruins. Eles me puxavam mais pra baixo ainda. Me sentia muito injustiçada pela natureza. E diminuída, que é o pior dos sentimentos. É como se não ser fértil, ao menos naquele momento, me diminuísse. Mudei de emprego. Não exatamente por causa da gravidez, mas isso pesou. Decidi trabalhar em algo mais tranquilo, com menos horas, pensando no projeto de ser mãe. Mas o trabalho não me satisfazia e, ao mesmo tempo, eu não engravidava. Fiquei meio amarga, meio ranheta, ranzinza, pouco generosa. Estou grávida, mas ainda me sinto um pouco assim. Não sei se os outros se dão conta disso, mas eu me sinto assim.

Eu: A partir de um determinado momento, você teve de enfrentar a questão de que não seria fácil gerar um filho. Tive a impressão de que você ficou meio obsessiva… Como lidou com isso na família, na vida social?
Ela: Eu não falava para as pessoas que estava tentando porque tinha um pouco de vergonha e incômodo de elas saberem que eu não estava conseguindo. Então desconversava sobre esse assunto, fingia desinteresse. Comecei a ler mil sites e porcarias sobre gravidez. Descobri sites horrorosos, com fóruns deprimentes de mulheres inférteis. O que eu chamava de “gineco” ou de “minha médica”, para elas era GO. Estas mulheres tinham abreviações e códigos próprios. Muitas iam a dois médicos ao mesmo tempo, de tão neuróticas. O contato com esse universo me deprimiu, porque pelo menos em um ponto eu me identificava com elas: não conseguia engravidar. Ficava lendo estatísticas para me sentir mais confortada. Descobri, para meu alívio, que mulheres na minha idade tinham 12% de chance de engravidar naturalmente depois de um ano. Parece idiotice, mas este tipo de informação me consolava. Comecei a fazer continhas horríveis de período fértil para transar. Na neura de engravidar, meu marido e eu compramos um produto que mede o dia da ovulação pela quantidade de sal na saliva. Usei três meses esse medidor e me senti meio ridícula e enganada, até que joguei num canto do armário. Não teria coragem de contar a ninguém que fiz isso. E fiquei aliviada quando um amigo do meu marido disse a ele que estava usando um também com a mulher. Não éramos os únicos ETs.

Eu: Você se sentia um ET por não engravidar?
Ela: Me incomodava que meu marido dissesse não conhecer ninguém com dificuldade de engravidar. Eu me sentia pior. Até que fui mostrando a ele casos próximos. Eu precisava provar a ele que não era a única mulher que não engravidava fácil. Amigos passaram a desabafar com ele, e ele percebeu que isso acontecia, mas as pessoas não contavam. As pessoas não gostam de falar de fracassos. Quando viajávamos, meu marido queria comprar coisas para o bebê que não existia. No começo, eu topava, meio a contragosto. Mas isso começou a me incomodar. Era como montar um enxoval para um fantasma. Da última vez que viajamos, eu me neguei, categoricamente. Fui dura. Não queria aquele sofrimento. Quando estivesse grávida mesmo, compraria. Não queria me sentir mais iludida nem patética.

Eu: Em que momento você decidiu que era hora de tentar inseminação artificial?
Ela: Depois de quase um ano tentando, minha médica achou que, pela minha idade, era melhor tentar alguma coisa mais radical. Ela propôs inseminação artificial. Era feita no consultório mesmo. Era importante para mim saber que tudo era simples, que eu não era um alien num laboratório. Meu marido foi bem parceiro nessa hora, com muito bom humor, e isso me ajudou muito. Mas eu me sentia constrangida de estar fazendo um tratamento desses. Eu concordei, mas dentro de mim eu resisti e fiquei triste, tensa. Meu marido me encorajou, a médica falou que era normal, que a Medicina está a nosso serviço. Mas eu torcia para que rolasse naturalmente, nos intervalos do tratamento. Não deu certo e foi uma bomba. No mês seguinte a médica quis esperar, mas não aguentamos. Tentamos algo chamado “coito programado”, em que você é estimulada com hormônios e transa num dia e horário específicos. Péssimo. Foram dias HORRÍVEIS. Deu muito errado, produzi mil cistos, meus ovários ficaram gigantes. Foi o pior momento de todos. Nessa época, eu tinha comprado na rua, por pena da vendedora, três assinaturas de revista. Só queria ajudar a moça e acabei escolhendo uma revista de bebês. Meu marido ficou super entusiasmado. Veio o primeiro número e eu não tinha engravidado. Odiei tanto aquele exemplar… Me senti tão humilhada, com tanta raiva, que liguei suspendendo a assinatura por seis meses. O curioso é que a revista voltou a chegar no primeiro mês da minha gravidez. Foi uma gentileza do destino.

Eu: Nessa época, como era para você se encontrar com bebês e mulheres grávidas? Você chorava?
Ela: Chorar, não. Fiquei mais amarga, tentando me manter “realista”, prática. Houve um tempo em que eu fiquei com um pouco de raiva de bebês. Não fazia questão de pegar nem de chegar perto deles. Nunca fiz muita questão, mesmo, sempre fui arredia, porque eles pareciam e me parecem até hoje assustadores. Mas, nesta fase, eu queria menos ainda. Tinha ainda mais raiva das mães deles. Ainda tenho um resquício disso: inveja de barriga. Espero que passe, porque ainda me culpo por sentir coisas ruins pelas pessoas.

Eu: Você disse que as pessoas silenciam sobre a dificuldade de engravidar. Por isso, quem não consegue se sente um ET. Por que você acha que é tão difícil admitir e lidar com tranquilidade com a dificuldade de engravidar? Por que para você é tão difícil falar sobre isso, mesmo agora, que já engravidou?
Ela: Acho que sou como as outras pessoas. Eu tenho certo constrangimento de dizer que fiz tratamento. Só contei para pessoas muito, muito chegadas, umas cinco. Eu e meu marido pensamos em não falar para ninguém e mentir para quem perguntar. Me sinto mal por mentir. Mas me sinto mal também de achar que podem me olhar diferente, como se meu filho fosse menos, e minha gravidez, artificial. É estranho. Não foi numa transa natural, com orgasmo, secreções e suor. Foi num laboratório. É como se eu fosse menos que as outras, que conseguiram tão naturalmente. Conheço pessoas que engravidaram numa única transa. Meu marido é uma delas – o que já fez e às vezes ainda faz com que eu me sinta uma droga de mulher. Como engravidar era algo muito desejado por mim, essas pessoas me pareciam “superiores”, férteis, mais capazes que eu. Admitir a dificuldade de engravidar é admitir que eu sou “menor”. Sei que soa neurótico, mas não tenho controle sobre isso. Ao longo desse tempo descobri amigas próximas que também tinham feito tratamento, mas nunca me contaram. Falam só em conversas íntimas. Talvez seja uma neura minha. Todo mundo fala que, para ter filhos, basta relaxar e transar. Então, se a regra é essa, quem não consegue tem um problema. É um extraterrestre. Parece que vão te olhar com cara de piedade: “coitada, ela não consegue engravidar”. Foi muito importante pra mim, quando eu estava me sentindo muito mal e insegura, ter encontrado minha dermatologista. Na primeira consulta, eu falei que estava tentando engravidar, pra ela saber que remédios podia me dar. Ela então falou, com cara de felicidade e como se fosse a coisa mais normal do mundo, que tinha feito tratamento. Me desconcertou. Era uma mulher linda, de 32 anos, alegre, poderosa, bem vestida, bem sucedida, num consultório chiquérrimo, falando com a convicção daqueles depoimentos de propaganda na TV.

Eu: Foi nesse momento que você teve coragem de tentar outro tratamento?
Ela: Sim, ela tratava de um jeito natural. Era como eu queria ser e me sentir. Ao longo das consultas, ela intercalava as intervenções com papos de muita leveza sobre a dificuldade dela, a tristeza, as crises de choro a cada mês, durante o que ela batizou de “enterro do modess”, quando a menstruação vinha. Falou das tentativas frustradas e de como ela não quis esperar, apesar de ser nova. Pensou que estava no melhor momento da carreira, da vida pessoal, e que não ia seguir os conselhos dos antigos de esperar que a gravidez viesse na hora que tivesse de vir. Ela me pareceu livre, sabe? Livre para achar que aquela era a hora e dane-se se não fosse a forma ideal. Dane-se o tempo da natureza. Não quero mais sofrer. Ela fez fertilização in vitro e engravidou de gêmeos na primeira. Um casal lindo que eu via nas fotos do consultório. Foi ela quem me indicou a especialista que fez meu tratamento. Primeiro, eu guardei o nome e o telefone da médica e não usei. Dois meses depois, quando a inseminação feita pela minha médica de sempre deu errado, marquei uma consulta. Mas cancelei. Mais dois meses e voltei à dermato. Ela, muito delicadamente, perguntou se eu não tinha ido à especialista. Aquilo me pegou. Foi um incentivo. Marquei nova consulta, mas, dessa vez, fui. A médica era sóbria e delicada, bonita, na dela. Eu tinha horror das clínicas de fertilização dos medalhões, com médicos soberbos falando de bebês como quem fala de reprodução de vacas, de manadas inteiras produzidas no laboratório, que se envaidecem dos muitos bebês que já fizeram na “fábrica” particular deles, de como tudo é muito fácil. Então fui nessa médica que nem eu tinha ouvido falar. Só peguei referências na internet. Deu tudo certo na primeira vez. Sou muito grata à dermatologista linda e assumida que me indicou essa clínica. Grata pelo alto astral e, principalmente, pela naturalidade com o tema que eu não consigo ter, mas que me conforta.

Eu: Como foi isso tudo para o seu marido?
Ela: Para ele, era uma incômoda novidade. Ele teve filhos muito facilmente com a primeira mulher, até quando não quis. Por isso tinha dificuldade de entender que podia demorar, que uma coisa era minha aparência jovem, outra a idade dos meus ovários. Parece que homens falam pouco sobre isso entre si, confundem fertilidade com potência, não têm paciência para assuntos biológicos. Então ele não tinha muito recurso pra lidar com isso. Dei a ele mil “palestras” de reprodução, falava da comprovada baixa competência da espécie humana para a procriação – estamos mais para os pandas do que para coelhos e insetos, na escala de eficiência reprodutiva… Mas ele só absorveu isso com o tempo e com as conversas com os médicos. O excesso de confiança e otimismo dele me incomodavam, mas eu não achava justo desanimá-lo. Alguém tinha de acreditar que daria certo e puxar a gente pra cima. Ele topava tudo, era participativo, ia onde precisasse ir, fazia piada dos detalhes insólitos do tratamento – como as diferentes comodidades de cada “sala de punheta” das diferentes clínicas, a necessidade de colocar um tubo de ensaio com esperma preso no sutiã para “que não esfriasse” (!!!) no caminho entre o laboratório e o médico que faria a inseminação… É todo um universo diferente, maluco. Felizmente, com atendentes e médicos bem-humorados para quebrar o gelo.

Eu: Você fez muitos testes de farmácia? Aquela sensação de querer muito estar grávida, mas no fundo saber que não está? De ficar com medo de ver?
Ela: Aconteceu muito isso e foi horrível. Eu fazia exercícios comigo mesma para não acreditar que eram sintomas de gravidez, para não sofrer. Me dizia: “Você não está grávida. Esta cólica parece de menstruação, este inchaço pode ser qualquer outra coisa”. Claro que não funciona tão bem. Fazer um teste de farmácia que dá errado é uma das coisas mais deprimentes e humilhantes que existem nessa fase.

Eu: Para mim, que acompanhava um pouco de longe, me parecia mesmo uma espécie de obsessão. É assim que você vê?
Ela: Não. Não chegou a parar minha vida no cotidiano. Mas ficava algo suspenso de fundo, uma vida expectante, sei lá. O dia a dia corre normal. Mas parece que o cenário está parado, esperando a grande cena. Meio confuso isso, mas é como eu sentia.

Eu: Você gastou muito dinheiro?
Ela: Sempre me preocupei em guardar grana pra isso, caso precisasse. Hoje, felizmente, há opções acessíveis de tratamento, até para quem não tem dinheiro. Quase fui fazer numa universidade que só cobra os remédios, para apoiar a iniciativa. Mas não tive paciência com os horários e restrições. Hoje há muitas clínicas boas e alternativas para quem não pode pagar. O difícil é a pessoa ter acesso à informação, não ao tratamento. Eu gastei uns 13 mil reais, fora as consultas. Esta área é muito profissionalizada. Se você acha uma clínica séria, como eu achei, eles otimizam seus gastos, ajudam você a planejar, a montar esquemas para gastar menos. É surpreendente como são organizados. Você é assessorado por uma enfermeira que ensina exatamente como aplicar os remédios, que fica disponível 24 horas. Tudo é superexplicado. Eles te dão a opção de comprar os remédios com eles ou indicam revendedores, porque tudo é importado. O tratamento mesmo custou 8 mil reais. O resto foi gasto em remédios e no congelamento dos embriões restantes, porque eu produzi muitos.

Eu: É uma enorme dose de hormônios e medicamentos, imagino… Não é meio assustador?
Ela: Você tem de tomar antibiótico antes de começar e pílula anticoncepcional por um mês. Quando você menstrua, injeção diária de hormônios nos horários exatos, que você aplica em casa. A partir do dia “x”, já é outra injeção. Você bota um adesivo de hormônios no quadril, também. Daí, no dia “y”, você toma uma terceira injeção. Nesse momento, vai lá aspirar os óvulos, sedada. Neste dia eu passei bem mal. Em seguida, você volta depois de três dias para injetar os embriões selecionados – durante três dias eles botam numa cultura para ver quantos e quais vingam, para escolher os melhores. Esta parte do processo foi boa porque eu estava bem orientada. Na inseminação e no tal coito, acho que faltou melhor acompanhamento. Na clínica boa que eu fui eles medem seu fluxo sanguíneo e calculam exatamente quanto de hormônio você vai precisar. Com isso, você sofre menos fisicamente. Eu não senti grandes coisas, só inchaço e cólica durante algumas semanas. Foi bem mais tranquilo do que eu pensava que fosse. Como me estimularam direito, eu produzi muitos óvulos bons. (E isso para mim é uma vitorinha, um alívio sentir que finalmente produzi muito e bem.) Como o sêmen do meu marido era excepcional, como tudo corria muito bem, esta fase foi mais animada. E deu certo. Da melhor maneira, que é um embrião só. Pensei que seria mais fácil não tocar no assunto do tratamento se fosse um só e não gêmeos, como é comum. Olha, quando me senti segura e bem orientada, numa clínica boa, fiquei mais tranquila, acolhida. Eles sorriem e te tratam bem. Foi bem mais fácil, leve e cômodo do que eu pensava. Depois, durante dois meses você tem de tomar progesterona e colocar o tal adesivo de estradiol para ajudar a prevenir abortos.

Eu: Fico observando as palavras que você usa e me vem um estranhamento. Esta história de “o esperma do meu marido era excepcional”, o embrião “ser dos bons”, não é esquisito tratar dessa maneira tão técnica? O que é um esperma “excepcional”? Não é por isso que, por conclusão lógica, você seria uma mãe “defeituosa”, como você diz? E não é meio maluco olhar por esse ângulo? Este não é um jeito de olhar tão mecânico e técnico, mas que, como vemos pelo seu relato, causa um sofrimento, digamos, tão carnal e intenso?
Ela: Eu uso estes termos porque são os que eu ouvi. Ou concluí depois de analisar resultados, comparando com as médias. Há parâmetros para ver a qualidade e é inevitável você xeretar essas coisas. Assim como é inevitável você ficar intrigado ou animado quando recebe seus exames. É como quem olha seu colesterol ou hemograma e fica feliz ou desanimado. Há espermogramas horríveis, existem óvulos ruins. E você vai descobrindo isso naturalmente ao longo do tratamento. Eu não vejo problema em encarar assim. Apesar do envolvimento emocional, sempre me detive nesses aspectos objetivos para pisar na realidade, saber exatamente o que tenho pela frente. Quando um familiar teve câncer, eu sabia tudo “tecnicamente”. Para quem perguntava especificamente, eu respondia assim também: o nome do tumor, o tamanho do risco, o número das vértebras atingidas etc. Para alguns parecia frio quando eu falava em prazos, perspectivas. E aquele era um caso bem pessimista. Minha família às vezes se chocava, mas era a minha maneira de lidar com a realidade, me preparar, saber que atitudes tomar, o que esperar, onde insistir, onde recuar. Eu falo assim das coisas de saúde, sempre. No meu caso, é a minha maneira de lidar com a realidade. Você tem de tomar decisões, avaliar se está tomando o caminho certo, então não adianta apenas ficar triste e emocional. É preciso saber exatamente quais são as suas chances, qual é o seu problema ou do seu parceiro. Se eu tivesse um prognóstico ruim, por exemplo, óvulos ruins, eu teria corrido para esse tratamento muito antes. Se o espermograma do meu marido tivesse acusado problemas, também teria corrido atrás antes, sem tentar outras coisas inócuas. Sinceramente, não faço tempestade com isso, não. Eu pergunto TUDO para saber onde estou pisando. Falar objetivamente não quer dizer que não há ansiedade ou tensão ou sentimento, mas que eu estou tentando me conscientizar dos meus limites e possibilidades, só isso. Eu falo das coisas boas, mas também falo das ruins. Para você pode soar como uma neura ir atrás das estatísticas – e talvez seja mesmo. Mas, para mim, é uma maneira de me situar para o próximo passo. É um pragmatismo necessário, para eu me organizar. Tipo… ponto ruim: sou velha; ponto ruim: não consigo engravidar facilmente; ponto bom: sou saudável; ponto bom: meu companheiro é saudável e fértil. Eu funciono assim com saúde e com grana. Você arranca os cabelos, mas depois senta e fala: “Bem, o que temos aqui? O que dá para fazer? O que é real e o que não vai acontecer mesmo?”. Pode parecer tecnicismo para quem está de fora. Para quem está dentro, é a medida da sua esperança.

Eu: Avaliando hoje, você acha que não conseguia engravidar porque tinha algum problema ou porque a tensão era tanta que se tornava impossível? Ou uma mistura dos dois?
Ela: Sinceramente, acho que não conseguia engravidar pela tensão e ansiedade de ter um filho logo. Se eu tivesse esperado o tal “tempo da natureza”, teria conseguido. Não me culpo por não ter esperado. É curioso que a especialista que me atendeu passou pela mesma coisa: engravidou com tratamento aos 36 anos. Menos de um ano depois, estava grávida naturalmente. Esperar dá medo. Prefiro me precipitar, mas agir.

Eu: Como foi saber que havia conseguido, que está grávida?
Ela: Foi estranho. Acho que eu estava tão prevenida e calejada, por esta frustração e outras tantas que se acumularam, por outras razões, que não fiquei feliz na hora. Não fiquei nada. Sentamos diante do computador, eu e o meu marido, e conferimos o resultado do exame de sangue. Olhamos várias vezes, para ter certeza. Meu marido ficou bem feliz. Eu fiquei estranha, quieta, desconfiada por vários dias, semanas. Sem acreditar que dava para ser feliz. Tinha medo de abortar, de ser um engano. Fiz o beta hcg (exame de sangue) duas vezes, para ter certeza. Só depois do terceiro ultrassom – quando “dois terços do risco do primeiro semestre” haviam passado, e não havia “sinais de descolamento”, e o batimento cardíaco do bebê era ótimo, e seu tamanho “de três dias além da idade gestacional, o que é um excelente sinal”… – consegui ficar feliz. Chorei no ultrassom. A médica disse: “este é dos bons”. Aí comecei a relaxar.

Eu: Como é estar grávida?
Ela: Começa a ser gostoso. Hoje me achei linda no espelho. Comecei a achar a barriga disforme, bonita. Mas a ficha ainda não caiu inteiramente. Ainda não “publiquei” para todo mundo. Estou sendo xiita e aguardando a 12ª semana, por precaução e pele calejada.

Eu: Você está com medo?
Ela: Sempre. Agora é medo do ultrassom morfológico. De meu filho ter síndrome de down, o maior de todos os medos. Também tenho medo de ele ser feio ou burro. Bem, no momento, acho que ele até pode ser horrível e fraco de ideias. Só penso em doenças que não quero que tenha. O conhecimento em excesso traz mais angústias.

Eu: O que você diria hoje para mulheres que querem engravidar e não conseguem?
Ela: Diria para procurarem uma boa clínica, discreta, não de medalhões. Estas pessoas estão acostumadas a lidar com isso e assim você se sente mais “normal”. Existem coisas muito simples que impedem as pessoas de engravidar, mas, em geral, só quando você busca um especialista é que descobre. Não foi meu caso, mas o de outras amigas. O meu era inexplicável. Ansiedade pura, talvez. O que eu NÃO diria é: “tenha paciência, sua hora vai chegar”, “confia na natureza ou em Deus”, “o que tem de ser, será”, “você precisa desencanar que vem”. É muito chato escutar isso quando a única coisa que você aceita esperar é um bebê.

(Publicado na Revista Época em 15/02/2010)

O bebê alien

A maternidade não é algo simples como o senso comum insiste em afirmar que é

Uma mulher, qualquer mulher, passa boa parte da vida ouvindo – e muitas delas repetindo – que uma mulher só se torna completa depois de ser mãe. A maternidade é linda e, até quando padecem, as mães estão no paraíso. Aquelas que não quiseram ou não puderam ser mães são olhadas com condescendência pelas mães do ano. Sempre com aquele olhar pleno – e superior – de mulher completa. Bem, sou mãe. E concordo que a maternidade seja uma experiência extraordinária. Nunca soube que era possível amar tanto alguém quanto amo minha filha. Mas não acho que todas as mulheres devam ter filhos nem acho que são menos mulheres aquelas que escolhem não tê-los. Todas as experiências são insubstituíveis e únicas. E a maternidade é tão insubstituível como qualquer outra experiência intensa de vida. Passamos do tempo da imposição reprodutiva. Ser mãe é uma escolha.

Dito isso, queria abordar aqui algo sobre o qual pouca gente fala, já que a maternidade ainda é um dos últimos conceitos a resistir na esfera do sagrado. Se você for uma boa mulher, só pode ter belos sentimentos pelo bebê na sua barriga. E vai achar até as dores do parto algo do âmbito do sublime. Mas a realidade não é bem assim. Mesmo que muitas mulheres não ousem confessar por medo de serem apedrejadas.

Posso afirmar que achei a gravidez uma experiência assustadora. Por muitos anos, pensei que se devia ao fato de ter sido uma mãe adolescente: engravidei aos 15 anos. Nos últimos tempos, porém, muitas amigas na faixa dos 30 e poucos anos começaram a engravidar. E, nestas conversas muito além da escolha dos nomes e da lista do chá de bebê, descobri que a gravidez era difícil para algumas delas. Mesmo desejando muito aquele filho ou filha, a gestação mexia com medos profundos.

As experiências humanas são todas contraditórias. Nunca sentimos uma coisa só. Amamos profundamente o homem ou a mulher ao nosso lado, mas desejamos o George Clooney ou o cara sensível que conhecemos na fila de autógrafos de um autor bacana. Adoramos nosso chefe quando ele se mostra acolhedor e sensível, mas gostaríamos de vê-lo ardendo no mármore do inferno quando ele é ríspido ou mesquinho. E assim por diante. Por que só a maternidade seria um caminho linear e sem conflitos rumo ao paraíso da realização plena?

É claro que cada história é uma história, cada mulher é uma mulher e cada gravidez é uma gravidez. Também imagino que devem existir mulheres que (quase) só têm alegrias na gestação. Mas acho que a maioria sente um pouco de tudo. E é importante ter espaço para falar desses sentimentos aparentemente contraditórios sem se sentir anormal ou má.

Em nome da profana missão de arrancar a maternidade do panteão dos deuses e devolvê-la ao rés do chão da humanidade, vou dar a minha cara para bater ao falar de minha experiência pessoal. Ou, visto de outra forma, vou deslocar um pouco a maternidade da santidade da Virgem Maria – uma mãe tão vocacionada que conseguiu engravidar sem conhecer um homem – e transferi-la para o panteão das deusas da mitologia greco-romana – algumas delas capazes de devorar os próprios filhos se eles enchessem o saco.

Eu, por exemplo, até o fim da gravidez não sabia se dentro de mim havia um bebê ou um alien. Era uma adolescente daquelas bem magras. E o bebê foi crescendo dentro da minha barriga. Eu sabia que era um bebê, óbvio, toda a cidade sabia. E o fato de saber não eliminava o estranhamento de ter algo vivo crescendo no meu útero. Afinal, até ontem não havia nada ali. E, agora, minha pele espichava, estrias apareciam. Tudo no mais absoluto silêncio.

Um belo dia, eu fui ao consultório e o médico colocou um aparelho na minha barriga. Todo animado, amplificou o som do coração do bebê. Achei emocionante. Mas fiquei pensando: como assim? Tem outro coração batendo dentro de mim além do meu? É lindo, claro. Mas, com um pouco de boa vontade, dá para compreender que também é assustador.

Mais um tempo e o bebê começou a se mexer dentro de mim. No início, era algo imperceptível. Eu achava que estava apenas passando mal do estômago. O bebê começou a chutar com mais força. Chamei toda a família porque sabia que era um grande momento. A partir desse dia, minha barriga virou uma parada de mão pública. Ela não era mais minha. Era dele, do ser dentro de mim, e de todas as pessoas que achavam aqueles chutes a coisa mais fofa do mundo. Virei uma mesa onde todos descansavam a mão e diziam: “ohhhhh”.

À noite, ficava pensando que aquele pequeno alien dentro de mim estava se alimentando de mim. Era impressionante. E também um terror. E ele continuava crescendo. E espichando a minha barriga até proporções inimagináveis. Onde estava escondida toda aquela pele?

Numa dessas noites, tive um insight. Aquele ser não mais tão pequeno teria de sair de mim. De uma maneira ou outra. Tirei meus neurônios de todos os projetos paralelos e, histérica, concentrei-os na tarefa principal: descobrir um jeito de o pequeno pimpolho sair de onde estava sem que fosse pelo parto ou por uma cirurgia. Nada.

A partir daquele momento, eu não queria mais que o bebê saísse de dentro de mim. Que ficasse ali pelo resto da vida. Eu já tinha me acostumado com aquelas calças largas. Poderia viver com elas por mais cem anos. E já tinha esquecido como era bom dormir de bruços. Mas o ultra-som não mentia. A coisinha agora era uma coisona. E crescendo. Dava até para saber se era menino ou menina. Mas eu não queria saber. Que fosse uma surpresa. Internamente, ainda não tinha sido abandonada pela ideia de que, no final das contas, era um alien que morava ali.

E então, lá estava eu, ao final de uma manhã de domingo, estudando para uma prova de química inorgânica do segundo ano do ensino médio, quando senti uma dor esquisita. Até hoje cumprimento a Maíra pelo oportuno da hora. Nunca mais precisei fazer aquela prova. As dores foram aumentando e não pararam mais. Até hoje não entendo aquela história dos intervalos que iam encurtando progressivamente. Para mim, foi uma contração atrás da outra, até às 11h43min do dia seguinte. Minha sensação era de que alguém enfiava a mão dentro de mim e abria meus ossos. E eu era obtusa demais para aprender a fazer respiração de cachorro. Não esbocei um gemido. Tinha decidido há muito tempo não dar o gosto de me ver sofrendo para ninguém. Só fechava os olhos quando a dor se tornava impossível.

Quando chegou a hora, o médico, que também era professor da faculdade de enfermagem, trouxe uns dez de seus alunos para assistir ao espetáculo do parto natural. Sem me perguntar, óbvio. Para quê? Eu era só uma paciente. Foi bastante tranquilizador estar com as pernas abertas, na missão – que ainda naquela hora me parecia impossível – de ajudar uma criança a sair de dentro das minhas entranhas, diante de uma plateia de estudantes universitários com alguns poucos anos mais do que eu. Em seguida, o pediatra, que depois virou deputado, tropeçou no soro e quase levou meu braço junto.

Mesmo que o mundo exterior fosse inóspito, o pequeno alien nasceu. Era uma menina. Com uma cabeça em formato de ovo, toda vermelha, e ainda assim linda. Neste momento, me senti uma deusa.

Depois, de novo bem humana, nós duas fomos para casa. Eu olhava para ela. Ela olhava para mim. E nós duas chorávamos. Era um bebê lindo, que eu começava a amar. Ao mesmo tempo, ainda era uma espécie de alien. Dentro do meu cérebro – e do meu coração – eu me perguntava: “Quem é esta?”. E depois: “O que eu faço agora?”.

Algo profundo de mim não entendia quem era aquele ser que até ontem estava dentro e de repente estava fora, cheio de exigências. Então, fomos nos conhecendo, nos amando, e aí começou uma outra história.

Parir outro ser é um ato de vida. Sempre ouvimos e acreditamos nisso. E é verdade. Mas também é um ato de morte. Quando damos à luz um filho, nunca mais seremos as mesmas. Ter espaço para pensar, falar e lidar com esta morte simbólica é importante para seguir a vida. E fazer dela algo que valha a pena.

(Na próxima segunda-feira, 15/2, continuarei a escrever sobre o tema da maternidade.)

(Publicado na Revista Época em 08/02/2010)

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