O que Belo Monte delata sobre todos os lados

Posicionar-se, neste momento do Brasil, é uma cadeira de pregos. Belo Monte é uma estaca. Sem enfrentar as contradições, não dá.

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTOS DE LILO CLARETO)

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (Foto: Lilo Clareto)

Quando a narrativa da propina se impõe sobre a da violação de direitos humanos, as contradições em jogo neste momento histórico são denunciadas

 

E Belo Monte finalmente chegou às manchetes da grande imprensa – e aos corações e mentes dos “cidadãos de bem” deste Brasil – como denúncia. Segundo a Folha de S. Paulo, Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, uma das maiores empreiteiras do país, revelou à Operação Lava Jato um esquema de propinas no valor de 150 milhões de reais envolvendo a hidrelétrica. O dinheiro seria dividido em partes iguais entre PT e PMDB e teria sido entregue pelas construtoras envolvidas na obra da hidrelétrica na forma de doações legais às campanhas eleitorais de 2010, 2012 e 2014. Basicamente, lavagem de dinheiro de propina via financiamento de campanha. Se o esquema exposto em delação premiada for comprovado – e só depois disso – Belo Monte poderá alcançar a presidente Dilma Rousseff.

Há algo, porém, que a relação entre as delações premiadas da Operação Lava Jato sobre Belo Monte já expõe de forma explícita. Onde está o valor – ou onde estão as prioridades. A hidrelétrica só se torna objeto de denúncia quando a ela é relacionado um esquema de propinas que ainda precisa ser comprovado. Em seguida, setores que sempre defenderam a construção de Belo Monte e a enalteceram como uma “magistral obra de engenharia”, como se fosse a parte boa do governo de Dilma Rousseff, passam a denunciar a usina na expectativa de que, desta vez, a presidente seja alcançada.

Acontece com Belo Monte o que aconteceu com o tema da corrupção: ele passa a ser apropriado pela direita. Ou, dito de outro modo: as denúncias envolvendo a construção da hidrelétrica são sequestradas para dentro do amplo guarda-chuva da corrupção. Com mais entusiasmo, porque, se comprovadas, Belo Monte pode levar ao que faltava, uma ligação com a campanha de 2014. Diante das denúncias, Dilma Rousseff e a Norte Energia, empresa concessionária, negaram irregularidades.

Essa apropriação é particularmente interessante porque aponta as dificuldades de parte da esquerda neste momento. Se o esquema de propinas ainda precisa ser comprovado, as violações de direitos humanos e a destruição ambiental produzidas pela hidrelétrica estão fartamente documentadas. Mas a esquerda ligada ao PT silenciou sobre essa violência todos esses anos. E silenciou mais uma vez quando a licença de operação foi dada à hidrelétrica sem que a empresa tivesse cumprido a totalidade das condicionantes que, como o nome diz, eram as condições para que pudesse funcionar. Se o tema dos direitos humanos não é exclusivo de um campo ideológico, é certo que sempre foi um tema caro à esquerda. Por ter silenciado, esta esquerda se deslegitima. E já não sabe o que é num momento em que precisa desesperadamente provar sua diferença com relação aos que lhe apontam um dedo acusatório.

Belo Monte torna-se, assim, um problema também para todos aqueles que, de forma suprapartidária, apresentam-se “contra o golpe” e “em defesa da democracia”. O ponto defendido é claro: ao posicionar-se contra o impeachment de Dilma Rousseff porque não há base legal para ele, defende-se a escolha das urnas, o voto, a democracia. Mas, ainda assim, a maioria dos participantes destes atos e manifestos precisam repetir o tempo todo que a defesa da democracia não se confunde com a defesa do governo, na medida em que vários aspectos deste governo são indefensáveis. É tudo menos fácil se manifestar pela democracia e o cumprimento integral do mandato de Dilma Rousseff enquanto, ao mesmo tempo, a presidente sanciona a lei antiterrorismo que, conforme a interpretação de quem aplica a lei, pode criminalizar justamente manifestações e movimentos sociais.

Essa dificuldade aumenta quando Belo Monte desponta no noticiário e no discurso do oponente como uma denúncia de corrupção. É fácil afirmar que este governo está sendo atacado, e com ele a democracia, porque “defendeu os direitos dos mais pobres”, como foi repetido em todos os atos e manifestações que acompanhei. Esta é uma parte da verdade, mas bem longe de ser o todo. É muito mais difícil dizer algo como “este governo violou os direitos dos mais desamparados para construir a hidrelétrica de Belo Monte” ou “a hidrelétrica de Belo Monte, uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), produziu o etnocídio de povos indígenas”. E concluir: “Mas ainda assim é preciso defender a democracia e a escolha das urnas”. É possível afirmar isso, mas complica-se. É preciso enfrentar a complicação – e pronunciar todas as palavras, abandonando de uma vez as mistificações que facilitam o discurso.

Belo Monte torna-se o incontornável neste momento. Quando o processo de implantação da hidrelétrica entra na pauta da direita, abrigado no guarda-chuva da corrupção, o que setores da esquerda vão fazer? Há duas alternativas: recolocar as prioridades, o que significa incluir o possível esquema de corrupção no campo dos direitos humanos e ambientais, ou silenciar mais uma vez.

É pela sequência de silêncios constrangedores, quando não covardes, das contradições não enfrentadas, dos enfrentamentos adiados porque havia uma eleição a ganhar, uma disputa a vencer, uma guinada à esquerda para fazer ou ainda o “menos pior” a ser defendido, que tudo o que de melhor os que se posicionam “em defesa da democracia” podem dizer hoje é que defender a democracia não significa defender o governo. É isso – ou assumir-se a serviço do apagamento.

Mas, é preciso alertar mais uma vez, Belo Monte é o incontornável. O processo histórico já provou que silenciar sobre as verdades que não convêm para vencer uma disputa no campo da política é uma escolha perigosa. Só me parece possível defender a democracia, sem defender o governo, enfrentando as contradições deste ato. No caso de Belo Monte, isso significa enfrentar as violações de direitos consumadas antes, durante e depois da obra. Enfrentar as violações de direitos humanos e a destruição ambiental que acontecem agora, neste momento, no Xingu. E que não podem, mais uma vez, ser invisibilizadas em nome das conveniências – ou ser reduzidas a um esquema de propinas ainda por ser comprovado.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Para quem quiser compreender a atual conjuntura de Belo Monte e da Amazônia, mais artigos, entrevistas e reportagens, aqui:

 

2011

Belo Monte (Foto: Lilo Clareto)

Belo Monte (Foto: Lilo Clareto)

31/10/2011
Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney
Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

17/10/2011
A pequenez do Brasil Grande
A ditadura acabou, mas a palavra “desenvolvimento” continua sendo torturada para confessar o que o governo deseja que o povo acredite

26/09/2011
Devemos ter medo de Dilma Dinamite?
As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

05/09/2011
Um procurador contra Belo Monte
Conheça o homem que se tornou o flagelo do governo ao lutar contra a maior e mais polêmica obra do PAC

06/06/2011
Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela?
Para boa parte dos brasileiros, a floresta não passa de uma abstração

2012

28/01/2012
A Amazônia, segundo um morto e um fugitivo

Dois homens denunciaram a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa que rouba ipê de dentro de áreas de preservação da floresta amazônica, no Pará. Depois da denúncia, um foi assassinado – e o outro foge pelo Brasil com a família, sem nenhuma proteção do governo. A partir do relato desses dois homens, é possível unir a Amazônia dos bárbaros à floresta dos nobres

04/06/2012
Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia”
O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

Dom Erwin (Foto: Lilo Clareto)

Dom Erwin (Foto: Lilo Clareto)

2013

08/04/2013
À margem do pai
Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

2014

31/03/2014
A ditadura que não diz seu nome
O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

15/09/2014
A não gente que não vive no Tapajós
A extraordinária saga de Montanha e Mangabal, da escravidão nos seringais à propaganda do governo que pretende botar uma hidrelétrica na terra que habitam há quase 150 anos

As crianças de Montanha e Mangabal (Foto: Lilo Clareto)

As crianças de Montanha e Mangabal (Foto: Lilo Clareto)

29/9/2014
Diálogos sobre o fim do mundo
Do Antropoceno à Idade da Terra, de Dilma Rousseff a Marina Silva, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Danowski pensam o planeta e o Brasil a partir da degradação da vida causada pela mudança climática

01/12/2014
Belo Monte: a anatomia de um etnocídio

A procuradora da República Thais Santi conta como a terceira maior hidrelétrica do mundo vai se tornando fato consumado numa operação de suspensão da ordem jurídica, misturando o público e o privado e causando uma catástrofe indígena e ambiental de proporções amazônicas

2015

16/02/2015
O pescador sem rio e sem letras
À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

07/07/2015
Belo Monte, empreiteiras e espelhinhos
Como a mistura explosiva entre o público e o privado, entre o Estado brasileiro e as grandes construtoras, ergueu um monumento à violência, à beira do Xingu, na Amazônia

14/09/2015
O dia em que a casa foi expulsa de casa
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil

Antonia Melo (Foto: Lilo Clareto)

Antonia Melo (Foto: Lilo Clareto)

22/09/2015
Vítimas de uma guerra amazônica
Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

 

 

 

Todo inocente é um fdp?

(Divulgação)

(Cena do filme Matrix)

Como se mover num mundo em que se tornou impossível não enxergar o mal que se pratica

Lembro uma cena do primeiro filme da trilogia Matrix, ícone do final do século 20. Os membros da resistência eram aqueles que, em algum momento, enxergaram que a vida cotidiana era só uma trama, um programa de computador, uma ilusão. A realidade era um deserto em que os rebeldes lutavam contra “as máquinas” num mundo sem beleza ou gosto. Fazia-se ali uma escolha: tomar a pílula azul ou a vermelha. Quem escolhesse a vermelha, deixaria de acreditar no mundo como nos é dado para ver e passaria a ser confrontado com a verdade da condição humana.

Na cena que aqui me interessa recordar, um traidor da resistência negocia os termos de sua rendição enquanto se delicia com um suculento filé. Ele sabe que o filé não existe de fato, que é um programa de computador que o faz ver, sentir o cheiro e o gosto da carne, mas se esbalda. Entregaria sua alma às máquinas em troca de voltar na melhor posição – rico e famoso – ao mundo das ilusões. Delataria os companheiros se a ele fosse devolvida a inocência sobre a realidade do real. Sacrifica a luta, os amigos e a ética em troca de um desejo: voltar a ser cego. Ou voltar a acreditar no filé.

A frase exata, pronunciada enquanto olha para um naco da carne espetada no garfo, é: “Eu sei que esse filé não existe. Sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso”. Faz uma pausa: “Depois de nove anos, sabe o que percebi? A ignorância é maravilhosa”.

Naquela época, véspera da virada do milênio, o filme deu ao público uma porta para o debate filosófico sobre o real. Tomar a pílula vermelha logo tornou-se uma metáfora para quem escolhe enxergar a Matrix – ou enxergar para além das aparências. Desde então, nestes últimos anos de corrosão acelerada das ilusões, penso que a escolha se tornou bem mais complicada.

Talvez o mal-estar do nosso tempo seja o de que já não é possível escolher entre a pílula azul e a vermelha – ou entre continuar cego ou começar a enxergar o que está por trás da trama dos dias. O mal-estar se deve ao fato de que talvez já não exista a pílula azul – ou já não seja mais possível a ilusão, esta que desempenhou um papel estrutural na constituição subjetiva da nossa espécie ao longo dos milênios.

Se fosse um de nós o membro da resistência disposto a trair os companheiros, a negociar a rendição com as máquinas diante de um suculento filé num restaurante, aqui, agora, e não mais no final dos anos 90, o dilema poderia sofrer um deslocamento. O drama não seria enxergar o filé como filé, no sentido de poder acreditar que ele existe, assim como acreditar que o restaurante existe e que o cenário a que chamamos de mundo existe tal qual está diante dos nossos olhos.

Não. O dilema atual pode ser também este, mas só na medida em que também é outro. O drama é que acreditamos no filé, sabemos que ele existe e sabemos que é gostoso. Desejamos o filé, nos lambuzamos dele e temos prazer com ele. Ao olhar para ele, porém, não enxergamos apenas “o deserto do real”, mas algo muito mais encarnado e cada vez mais inescapável: enxergamos o boi.

(…)

O tempo das ilusões acabou. Nenhum ato do nosso cotidiano é inocente. Ao pedir um café e um pão com manteiga na padaria, nos implicamos numa cadeia de horrores causados a animais e a humanos envolvidos na produção. Cada ato banal implica uma escolha ética – e também uma escolha política.

(…)

Leia o texto completo na minha coluna no El País

 

Todo inocente é um fdp?

Como se mover num mundo em que se tornou impossível não enxergar o mal que se pratica

O golfinho que pode ter morrido por desidratação tirando selfie com turistas na Argentina (Reprodução do El País)

O golfinho que pode ter morrido por desidratação tirando selfie com turistas na Argentina (Reprodução do El País)

Lembro uma cena do primeiro filme da trilogia Matrix, ícone do final do século 20. Os membros da resistência eram aqueles que, em algum momento, enxergaram que a vida cotidiana era só uma trama, um programa de computador, uma ilusão. A realidade era um deserto em que os rebeldes lutavam contra “as máquinas” num mundo sem beleza ou gosto. Fazia-se ali uma escolha: tomar a pílula azul ou a vermelha. Quem escolhesse a vermelha, deixaria de acreditar no mundo como nos é dado para ver e passaria a ser confrontado com a verdade da condição humana.

Na cena que aqui me interessa recordar, um traidor da resistência negocia os termos de sua rendição enquanto se delicia com um suculento filé. Ele sabe que o filé não existe de fato, que é um programa de computador que o faz ver, sentir o cheiro e o gosto da carne, mas se esbalda. Entregaria sua alma às máquinas em troca de voltar na melhor posição – rico e famoso – ao mundo das ilusões. Delataria os companheiros se a ele fosse devolvida a inocência sobre a realidade do real. Sacrifica a luta, os amigos e a ética em troca de um desejo: voltar a ser cego. Ou voltar a acreditar no filé.

A frase exata, pronunciada enquanto olha para um naco da carne espetada no garfo, é: “Eu sei que esse filé não existe. Sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso”. Faz uma pausa: “Depois de nove anos, sabe o que percebi? A ignorância é maravilhosa”.

Naquela época, véspera da virada do milênio, o filme deu ao público uma porta para o debate filosófico sobre o real. Tomar a pílula vermelha logo tornou-se uma metáfora para quem escolhe enxergar a Matrix – ou enxergar para além das aparências. Desde então, nestes últimos anos de corrosão acelerada das ilusões, penso que a escolha se tornou bem mais complicada.

Talvez o mal-estar do nosso tempo seja o de que já não é possível escolher entre a pílula azul e a vermelha – ou entre continuar cego ou começar a enxergar o que está por trás da trama dos dias. O mal-estar se deve ao fato de que talvez já não exista a pílula azul – ou já não seja mais possível a ilusão, esta que desempenhou um papel estrutural na constituição subjetiva da nossa espécie ao longo dos milênios.

Se fosse um de nós o membro da resistência disposto a trair os companheiros, a negociar a rendição com as máquinas diante de um suculento filé num restaurante, aqui, agora, e não mais no final dos anos 90, o dilema poderia sofrer um deslocamento. O drama não seria enxergar o filé como filé, no sentido de poder acreditar que ele existe, assim como acreditar que o restaurante existe e que o cenário a que chamamos de mundo existe tal qual está diante dos nossos olhos.

Não. O dilema atual pode ser também este, mas só na medida em que também é outro. O drama é que acreditamos no filé, sabemos que ele existe e sabemos que é gostoso. Desejamos o filé, nos lambuzamos dele e temos prazer com ele. Ao olhar para ele, porém, não enxergamos apenas “o deserto do real”, mas algo muito mais encarnado e cada vez mais inescapável: enxergamos o boi.

É terrível enxergar o boi. E, como os mais sensíveis já descobriram, é impossível deixar de enxergá-lo. Nossa superpopulação de humanos extrapolou a lógica dos vivos, matar para comer. E impôs a escravização e a tortura cotidiana de outras espécies. Milhões de bois, galinhas e porcos nascem apenas para nos alimentar em campos de concentração aos quais damos nomes mais palatáveis. São sacrificados em holocaustos diários sem que nem mesmo tenham tido uma vida.

Animais confinados, presos, às vezes sem sequer poder se mover por uma existência inteira. Criamos profissões capazes de reconhecer em segundos se um pinto é macho ou fêmea para separar as fêmeas que viverão espremidas, muitas vezes sem conseguir sequer abrir as asas, botando ovos e depois virando bandejas no supermercado e jogar os machos para serem moídos ainda vivos no triturador de lixo. Escravidão e tortura/sacrifício e lixo, estes são os destinos que determinamos aos frangos.

Somos os nazistas das outras espécies. E, se antes era possível ignorar, desqualificando a questão como algo menor ou coisa de “adoradores de alface”, a internet e a disseminação de informações tornaram impossível não enxergar o olho do boi. Ao olhar para o filé, o olho do boi nos olha de volta. O olho vidrado de quem está aterrorizado porque pressente que caminha no corredor da morte, o boi que se caga de medo enquanto é obrigado a dar o passo para o sacrifício, o boi que tenta escapar, mas não encontra saída. O olho do boi alcança até gente como eu, que pode ser colocada na categoria “adoradores de churrasco”.

A publicidade do século 20 perdeu a ressonância em tempos de internet. Porque a ilusão já não é possível. Nada era mais puro do que o leite branco tirado de uma vaquinha no pasto. Era fácil acreditar na imagem bucólica do alimento saudável. Nosso leite vinha do paraíso, de nosso passado rural perdido, da vida nos bosques de Walden. Assim como a longa série de produtos dele originados, como queijo, iogurte e manteiga.

Mas a vaca da imagem não existe. A real é a vaca que nasce em cativeiro, filha de outra escrava. A vaca que quase não se move, cuja existência consiste numa longa série de estupros por instrumentos que se enfiam pelo seu corpo para fecundá-la com o sêmen de outro escravo. Então ela engravida e engravida e engravida de bezerros que dela serão sequestrados para virar filés, para que suas tetas sigam dando leite delas tirados por outras máquinas. E, como sabemos disso, o leite que chega à nossa mesa já não pode mais ser branco, mas vermelho do horror da vaca cujo corpo virou um objeto, a vaca para quem cada dia é tortura, estupro e escravidão.

Para não beber sangue procuramos nas prateleiras leites à base de vegetais. Vegetais não gritam. Soja, apenas um dos tantos exemplos. Bifes de soja, hambúrgueres de soja, linguiças de soja, leite de soja. Mas como ignorar o desmatamento, a destruição de ecossistemas inteiros e com eles toda a vida que lá havia? Como ignorar que a soja pode ter sido plantada em terra indígena e que, enquanto ela vira mercadoria no supermercado, jovens Guarani Kaiowá se enforcam porque já não sabem como viver? Já não é possível fingir que não enxergamos isso. Assim, nem os veganos mais radicais podem se salvar do pecado original.

Olhamos para nossas roupas e horrorizados sabemos que em algum lugar da linha globalizada de produção há nelas o sangue de crianças, homens e mulheres em regime de trabalho análogo à escravidão. Como o casal que morreu abraçado na fábrica de Bangladesh, gerando a fotografia que comoveu o mundo mas não eliminou o horror que seguiu em escala industrial. Ou mesmo de um imigrante boliviano enfiado num quarto insalubre trabalhando horas e horas por quase nada bem aqui ao lado. Mas os mais sensíveis sentem a textura de suas roupas e sabem que são costuradas com carne humana. E já não sabem como vesti-las. Nem sabem como dar brinquedos para seus filhos porque sabem que os bonecos, os carrinhos, os castelos e os dinossauros contêm neles o sangue das crianças sem infância, ou o de suas mães e pais.

Já não é possível levar crianças a zoológicos ou aquários porque sabemos que a única educação próxima da verdade que receberiam ali é a do horror a que os animais são submetidos para serem exibidos, por melhor que seja a imitação de seu habitat. Lembro uma reportagem que fui fazer num zoológico, planejada para ser divertida, e só pude contar, entre outros horrores, que o babuíno chamado Beto era mantido à custa de Valium, para evitar que arrancasse pedaços do próprio corpo. Mesmo dopado jogava-se contra as grades, atirava fezes nos visitantes e espancava a companheira. Pinky, a elefanta, vivia só. Seus dois companheiros tinham morrido ao cair no fosso tentando escapar do cativeiro. Sabemos hoje que os golfinhos e as baleias dos shows acrobáticos são escravos brutalizados para servir de entretenimento a humanos. E, desde que sabemos, aqueles que gozam com esses espetáculos de morte podem se descobrir não mais como famílias felizes num momento de lazer, como nas imagens dos folhetos publicitários, mas como hordas de sádicos.

No simples ato de acender a luz já existe a consciência de que estamos destruindo o mundo de alguém e de que nada mais será simples. Neste momento, para ficar apenas num exemplo, dezenas de milhares já perderam suas casas no rio Xingu, na Amazônia, para a operação da Hidrelétrica de Belo Monte. Povos indígenas que vivem na região atingida já não conseguem suportar o aumento exponencial de mosquitos desde que o lago da usina começou a encher, alterando o ecossistema e dizimando culturas, no que já foi denunciado pelo Ministério Público Federal como etnocídio. Os impactos mal começaram e, em menos de três meses, mais de 16 toneladas de peixes morreram. E talvez também esteja chegando ao fim o tempo em que ainda é aceitável contar vidas por toneladas, mesmo que seja a vida de peixes. Ou a morte de peixes. Um dedo no interruptor e uma cadeia de mortes. E agora também já sabemos disso.

O tempo das ilusões acabou. Nenhum ato do nosso cotidiano é inocente. Ao pedir um café e um pão com manteiga na padaria, nos implicamos numa cadeia de horrores causados a animais e a humanos envolvidos na produção. Cada ato banal implica uma escolha ética – e também uma escolha política.

A descrição das atrocidades que cometemos rotineiramente pode aqui seguir por milhares de caracteres. Comemos, vestimos, nos entretemos, transportamos e nos transportamos à custa da escravidão, da tortura e do sacrifício de outras espécies e também dos mais frágeis da nossa própria espécie. Somos o que de pior aconteceu ao planeta e a todos que o habitam. A mudança climática já anuncia que não apenas tememos a catástrofe, mas nos tornamos a catástrofe. Desta vez, não só para todos os outros, mas também para nós mesmos.

Já não é possível a pílula azul – ou já não é possível à adesão às ilusões. Há várias implicações profundas numa época em que o conhecimento não liberta, mas condena. A começar, talvez, pela pergunta: quem é o inocente num mundo em que a inocência já não é possível? Seria o inocente o pior humano de todos? Seria o inocente um psicopata?

O que seremos nós, subjetivamente, agora que estamos condenados a enxergar? As redes sociais têm nos dado algumas pistas. O que a internet fez foi arrancar da humanidade as ilusões sobre si mesma. O cotidiano nas redes sociais nos mostrou a verdade que sempre esteve lá, mas era protegida – ou mediada – pelo mundo das aparências. Sobre isso já escrevi um artigo, chamado A boçalidade do mal, que pode ser lido aqui. As implicações de perder este véu tão arduamente tecido são profundas e recém começam a ser investigadas. O impacto sobre a subjetividade estrutural de nossa espécie é tremendo, exatamente porque é estrutural e desabou num espaço de tempo muito curto, quase num soluço.

O que faremos diante da impossibilidade da pílula azul, a que garantia as ilusões? A ridicularização daqueles que levantam esse tema ainda é um caminho, mas convencem menos que no passado. Também a piada se torna anacrônica. As interrogações vêm mudando, e já não é possível afirmar, sem revelar considerável ignorância, inclusive sobre a ciência produzida, que os animais não têm vida mental nem emocional, são “irracionais”. Ou, lembrando um argumento religioso, “que não têm alma”. Toda a ideologia que um dia justificou a escravidão de humanos, até que foi questionada, derrubada e transformada numa mancha de crime e vergonha na história da humanidade, passou a ser confrontada também com relação aos animais.

Cada vez mais as outras espécies começam a ser vistas como diferentes – e não mais como inferiores. Assim, o que se coloca no campo da ética são questões fascinantes e muito mais espinhosas. Mesmo o termo “direitos humanos” passa a ser questionável, porque pensar apenas em “humanos” já não é mais possível. No momento em que nos tornamos a própria definição de catástrofe, o conceito de “espécie”, em sua expressão cultural, se desloca. Outras formas de compreender e nomear o lugar dos humanos ganham espaço no horizonte filosófico e no exercício da política.

Resta o cinismo, sempre o último reduto. Dizer que, diante de mais de 7 bilhões de seres humanos ocupando o planeta e crescendo, não há outra maneira a não ser comer e vestir exploração, escravidão e tortura é a afirmação mais óbvia. É a afirmação expandida usada para todas as desigualdades de direitos. Desde que não seja eu – ou os meus – os sacrificados, tudo bem.

Vale a pena dedicar um parágrafo aos cínicos, essa categoria que prolifera com o ímpeto de um Aedes aegypti no Brasil e no mundo. O cínico é aquele que olha com calculado enfado para todos os outros, porque ele acredita que entende o mundo como ele de fato é. Ele é o que sabe das coisas, o único esperto. Todos os outros são tolinhos com ideias irreais. O cínico é aquele que deixa o mundo como está. Mas talvez, neste momento, o cínico seja justamente o inocente. Sua inocência consiste em acreditar que a pílula azul ainda está disponível.

Há um preço para enxergar e, mesmo assim, assumir o extermínio cotidiano como dado, como parte intrínseca da condição de ser um humano. Nem toda a crescente gourmetização da comida, nem todas as narrativas ficcionais que contam uma história idílica sobre a origem daquele produto, nada ocultará esse preço. E nada reduzirá seu impacto subjetivo. Não é fácil viver na pele do algoz. Não é simples viver sabendo-se. Aquele que se olha no espelho e se enxerga carregará essa autoimagem consigo. E se tornará algo que já não é mais o mesmo.

Há uma imagem recente que pode dar algumas pistas sobre esse caminho. Numa praia da Argentina, um golfinho foi carregado por turistas. Alguns dizem que ainda estava vivo, outros que já estava morto. Vivo ou morto, os turistas preocuparam-se apenas com tirar selfies para postar nas redes sociais. O site de humor Sensacionalista postou: “Golfinho morre ao ser retirado do mar para turistas fazerem selfie e Deus anuncia recall do ser humano”.

Ainda assim, quem se horrorizou com a falta de horror alheia, à noite seguiu diante do olho do boi. O que fazer diante do olho do boi? Como ser ético num mundo sem ilusões, em que cada ato implica na tortura e no sacrifício de um outro, humano e não humano? Se somos os nazistas das outras espécies, quando não da mesma, aceitar que assim é não seria se tornar um Eichmann, o nazista julgado em Jerusalém que alegou apenas cumprir ordens, o homem tão banalmente ordinário que inspirou a filósofa Hannah Arendt a criar o conceito da “banalidade do mal”? Não seríamos, aos olhos do boi, todos Eichmann, justificando-nos pelo senso comum de que assim é e se faz o que é preciso para sobreviver? Se sim, o que implica viver assumidamente nesta pele?

Talvez estejamos, como espécie que se pensa, diante de um dos maiores dilemas éticos da nossa história. Sem poder optar pela pílula azul, a das ilusões, condenados à pílula vermelha, a que nos obriga a enxergar, como construir uma escolha que volte a incluir a ética? Como não paralisar diante do espelho, reduzidos ou ao horror ou ao cinismo, eliminando a possibilidade de transformação? Como nos mover?

Diante do filé que desejamos e do olho boi que nos interroga, há pelo menos uma hipótese cada vez mais forte: o inocente é um assassino.

(Publicado no El País em 29 de fevereiro de 2016)

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