O dia em que a casa foi expulsa de casa

A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal – e ainda impune – da redemocratização do Brasil

Lilo Clareto

Fotos: Lilo Clareto

Antonia Melo foi encurralada. Por seis meses o tempo da sua vida esteve marcado pelo som das máquinas botando abaixo a vizinhança da Sete de Setembro, o nome da rua só mais uma ironia. Ela estava ali, sitiada, testemunhando o mundo que ajudou a construir ser violado e convertido num cenário de Faixa de Gaza. Ela, seus filhos, seus netos. E o barulho da destruição avançando, cercando, soterrando também as conversas, fincando seus braços robóticos nas palavras, matando frases inteiras. Um dia chegou em casa e descobriu os escombros do muro dos fundos, derrubado junto com um pedaço da floresta que tinha como quintal. Num calor que pode beirar os 40 graus, já não havia energia elétrica suficiente para ligar a geladeira. Antonia foi sendo asfixiada aos poucos, menos ar a cada dia. Mas ainda assim o povo banido das ilhas da Volta Grande do Xingu, dos baixões de Altamira, continuava entrando pelo seu portão sempre aberto, desviando das crateras, saltando sobre os destroços com as havaianas que parecem ter nascido já gastas naqueles pés. “Dona Antonia, dona Antonia, como tiram da gente uma casa?”. Essas milhares de famílias cuspidas de seus lares pela hidrelétrica de Belo Monte fizeram de Antonia Melo o seu endereço. Lá, até o fim, encontravam uma cadeira, um copo de água entre árvores de sombra, e os ouvidos de Antonia, um par de orelhas que ela fez braços e abraço ao escutar os que ninguém mais escutava. Sem rumo, confinados em bairros longe de tudo que conheciam, em residências todas iguais, feitas para não durar, a maioria sem pouso algum, arrancados pela raiz e jogados fora, esses homens, mulheres e crianças esculpidos pelo sol amazônico tinham em Antonia Melo a sua casa. A maior liderança popular viva do Xingu tornara-se o único ponto de reconhecimento num mapa rasgado por uma guerra talvez pior, porque não nomeada. Na sexta-feira, 11 de Setembro de 2015, a casa foi expulsa de casa.

 

 

 

 

 

 

 

O que é uma casa, minha senhora?, repito a pergunta que tanto escuto pelas ruas de Altamira, no Pará, na boca de gente que já não encontra o destino dos pés.

O  rugido da demolição morde as palavras de Antonia Melo, mas não consegue silenciá-la:

– Dinheiro nenhum paga uma casa. Primeiro, porque eu não estava vendendo minha casa, não coloquei nela nenhuma placa de venda. Eu nunca pensei em sair daqui, de jeito nenhum. Aqui é o lugar que eu escolhi pra morar, criei os meus filhos. A maioria deles nasceu aqui, cresceu aqui. Hoje tenho os netos que nasceram aqui e já estão crescendo aqui. Então, indenização nenhuma paga a casa de uma pessoa. A casa que eu vou comprar com esse dinheiro nunca será a minha casa. Uma casa é como plantar uma árvore. As raízes vão profundamente embaixo da terra, lá embaixo elas se agarram, para que vento, vendaval, tempestade, e até mesmo uma alagação, não a derrubem. As raízes de uma casa são bem profundas. Os filhos e os netos vão embora, mas a casa fica. E a gente embeleza a casa com a natureza, com as árvores, com o que a gente gosta. E embeleza também com as árvores que dão alimento. Eu plantei com as minhas mãos todas as belezas que estão aqui e que hoje me dão frutos e me dão forças pra resistir ao barulho dos tratores derrubando tudo. Uma dessas árvores é o açaizeiro. Aprendi a amar o açaí, o vinho, o suco mais saboroso que já tomei dentro e fora do Brasil. Mas tem o cupuaçuzeiro, de cupuaçu, e a mangueira, que dava tantas mangas e tão saborosas que eu botava na calçada para os vizinhos e quem passasse pegar. Uma casa é isso, é onde a gente se sente feliz, mesmo sem ter dinheiro. Estar dentro da sua casa é ser grande.

O rosto de Antonia Melo é salgado por um choro lento. Ela tenta interrompê-lo, mas não foi feita para barrar rios.

– Mesmo que seja destruído aqui, como vai ser destruído, ninguém vai poder negar a minha casa. Eles tiraram parte dos meus sonhos. Há uma lacuna dentro de mim, eu nunca mais vou ser a mesma. Mas a casa, mesmo destruída, ela continua aqui. Mesmo que ninguém mais a enxergue, aqui continua sendo a minha casa.

Antonia Melo é atravessada por uma voz no portão. Um homem ignorou a vizinhança aos pedaços para oferecer seus serviços. “Bom dia, senhora. Tá precisando de dedetização?” Antonia precisa, mas não desse tipo. Agradece. E o homem vai embora, saltando pedaços de paredes com suas sandálias, habituado a um Brasil que para ele nunca foi plano.

– Eu estou perdendo a minha casa, estou perdendo o rio, perdendo tudo. Essa perda, assim, é de uma vida que era, que tinha um objetivo, que tinha um sonho, que tinha um projeto. Eu não me sinto bem quando eu vou ao rio, vejo o que está acontecendo, as ilhas derrubadas. Não. A minha casa é tudo isso. Era. O rio livre. As ilhas lindas, verdes. Pra mim, é tudo ligado. É uma tristeza só.casa antonia2

 

 

 

 

 

 

A casa, as ilhas, o rio, hoje são um pretérito. Um era. Antonia Melo volta a chorar, antes de agarrar-se mais uma vez ao fio das palavras. O que é uma casa senão o corpo inviolável de alguém, minha senhora? Me diga, como se faz para partir de si mesma?

– As coisas materiais são as que têm menos valor. Uma cadeira, uma cama, uma estante. O valor é insignificante pra mim. Porque o valor significante, que nunca vai se acabar, é esse sentimento… (ela silencia e por um tempo só se ouve o barulho das máquinas). O valor significante é essa certeza de que aqui eu era feliz. Porque eu ajudei a construir isso aqui. É diferente de sair daqui e comprar uma casa pronta, uma casa que você não fez parte da construção. Aqui eu construí, é uma pertença muito grande. As mãos, a cabeça… o pensamento está todo aqui. É a pertença. Por isso que é difícil e é doloroso as pessoas serem arrancadas da sua casa na beira do Xingu. Lá, pertencia. Então, é doloroso, é uma coisa que ninguém nunca esquece. Nunca esquece, pro resto da vida. Estão me arrancando daqui, tentando apagar a memória, a vida. Belo Monte é isso, é arrancar todas as formas de vida, até que mesmo a memória seja apagada para sempre, até que não exista nenhuma raiz. O governo é um mata-memórias.

No ano passado, Antonia Melo, a maior árvore do Xingu, quase perdeu o coração. Ela já havia visto companheiros de luta como Dema, Brasília e Dorothy Stang tombarem a tiros por sua luta pela floresta e pelo rio. Ela já entrou várias vezes na lista de ameaçados de morte por conflitos de terra na Amazônia, vivendo dia após dia sob a sombra da pistolagem. Um de seus melhores amigos, o bispo do Xingu, Dom Erwin Kräutler, vive há uma década com escolta policial para não ser assassinado. Mas talvez nada tenha violado tanto Antonia Melo quanto Belo Monte e o seu rastro de crimes, porque ao longo dos últimos anos ela testemunhou a violação recorrente da lei e a impunidade como um direito adquirido. Essa perversão provoca naquele que a experimenta uma sensação de impotência brutal. A violência parece ter ganhado uma dimensão tamanha dentro e fora de Antonia Melo que já não podia ser simbolizada. Virou uma literalidade que perfurou o coração de uma mulher que a tudo havia resistido. Ela precisou ser levada a São Paulo, onde foi submetida a uma cirurgia e a um prolongado tratamento, para que pudesse salvar a sua vida. Seu coração bate. Ela respira. Mas algo foi arrancado dela para sempre, e esse pedaço faltante é uma presença visível. Antonia carrega uma ausência que agora também é a da casa, onde já não existe mais porta para bater.

Depois de salvar seu coração, Antonia Melo empreendeu uma viagem em busca da memória. Partiu no encalço da casa e dos parentes do pai, Gentil, e da mãe, Elisa. Nordestinos, cearenses, primos, eles haviam se casado e sobreviviam na base da meia, dando metade do que colhiam para o dono da terra, no vizinho Piauí. Era muito suor para tão pouca chance de sonhar. E quando tinham oito dos 13 filhos, entre eles Antonia, uma menina de quatro anos, partiram para a nova terra prometida, a Amazônia. Como tantos brasileiros migrantes, antes e depois deles, a família de Antonia buscava uma fronteira em que houvesse terra para pobre. Antonia enraizou-se no Xingu, mas quando a floresta e o rio passaram a ser destruídos pra virar lago de Belo Monte, ela precisou escavar raízes mais antigas. Trouxe da casa da sua infância, no Piauí, uma pedra e sementes de buriti. E da casa onde a mãe nasceu, no Ceará, carregou sementes de manga. Essa viagem-travessia foi a terra onde plantou seu agora frágil coração.

casa antonia pedra– Até o final do ano começo a escrever a minha história. Dar vida à história, né? Não vão ser palavras que se falou e o vento levou e ninguém mais vai lembrar. Escrever é dar vida a uma história, a um personagem, a uma pessoa, a um lugar… a um espaço. É provar que existiu. E que essa vida não foi uma vida por acaso. Ela tem um significado. Ela tem um sentido.

casa antonia pedra1Um homem entra pelo portão. O peso da carga que carrega faz suas costas vergarem. “Quer uma rede boa e barata na promoção?” Não, meu senhor, já não haverá paredes nem árvores para uma rede. “É uma rede abençoada, senhora.” Já não há bênçãos na terra violada. Ele também parte desviando dos escombros, enredado num mundo em que as pontas já não se amarram.

O desencontro entre Brasis tornou-se trágico no processo de expulsão das famílias por Belo Monte. A empresa concessionária, a Norte Energia, e o governo federal preferem dar a essa ação o nome técnico de “remoção”, vocábulo neutro de onde o conteúdo violento é esvaziado. Para os prepostos da Norte Energia, casa era apenas o “seu” conceito de casa. Um deles chegou a afirmar, demonstrando uma ignorância –ou uma conveniência– quase do tamanho da usina: “Uma moradia é uma moradia. Todo mundo sabe o que é”. E, assim, muitos tiveram suas casas consideradas não casas, e portanto não indenizadas, porque não atendiam ao padrão de “moradia” do “empreendedor”, o termo com o qual o Brasil contemporâneo passou a blindar a palavra “colonizador”. Nas grandes obras do governo na Amazônia, recusar a lavagem das palavras é um ato de resistência. Antonia Melo sabe disso como poucos. Belo Monte arrancou a maior árvore do Xingu, mas ainda assim não conseguiu tombá-la.

casa antonia verde
– Cada vez que eu olho o que eles estão fazendo, destruindo as casas, destruindo o rio, destruindo as vidas, mais eu me fortaleço nessa resistência, mais eu crio coragem e forças pra dizer “não” e continuar resistindo. Para mim, Belo Monte não é fato consumado. Eu luto contra esse modelo de destruição e morte de gerar energia, luto contra esse modelo chamado desenvolvimento. Belo Monte é um crime contra a humanidade. Eu não posso voltar atrás. Não posso. Não devo, jamais, nenhuma vírgula. Nem que um dia chegue a ser só eu. Mas continuarei na resistência.

Só uma outra vez eu havia testemunhado Antonia Melo chorar. Ela narrava o dia, no início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em que se encontrou com Dilma Rousseff, então ministra de Minas e Energia. Parte dos movimentos sociais da região tinha acabado de descobrir que fora atraiçoada pelo Partido dos Trabalhadores. A tenebrosa usina do Xingu, que nem a ditadura civil-militar havia conseguido tirar do papel, por conta da enormidade da resistência dos povos indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores, tinha sido colocada de novo em pauta. Antonia estava no grupo de lideranças que viajou até Brasília para se encontrar com Dilma Rousseff. Quando ela começou a expor suas preocupações, Dilma interrompeu-a com um murro na mesa. E um berro: “Belo Monte vai sair”. A ministra, que depois seria presidente, levantou-se, deu as costas a todos e foi embora, deixando-os ali, atônitos. Era o primeiro sinal de que Belo Monte atropelaria todas as leis e marcaria a maior traição do PT à sua base social na Amazônia.

Mais de uma década depois, Belo Monte é um monstrengo alienígena esmagando o Xingu com suas patas de concreto, aniquilando milhares de vidas humanas, animais e vegetais. Belo Monte foi erguida no mítico Xingu violando a Constituição, apesar das mais de duas dezenas de ações movidas pelo Ministério Público Federal e ignoradas por parte do Judiciário. A arquitetura política e econômica da mega-hidrelétrica, uma obra que saltou de 19 bilhões de reais para um valor estimado em 33 bilhões de reais, hoje também investigada pela operação Lava Jato, da Polícia Federal, tem tentáculos que não se sabe o quão longe podem chegar.

Hoje, a Norte Energia espera apenas que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) dê a Licença de Operação da usina, mesmo sem que a empresa tenha cumprido as medidas obrigatórias de redução e de compensação do impacto, aquilo que na linguagem dos técnicos se chama de “condicionantes”. Se o IBAMA o fizer, violando a lei pela derradeira vez, em plena democracia, pode responder por isso na Justiça. Ou na História, nome por nome. Ainda assim, a Licença de Operação é dada como certa e até mesmo a data já circula de boca em boca nos bastidores. Esta é a questão a ser respondida: um governo cada vez mais fragilizado, a presidente ameaçada de impeachment, a maioria dos donos das construtoras na cadeia por corrupção e as violações da obra visíveis até mesmo para quem antes as negava – e ainda assim a Licença de Operação é dada como fato consumado. Qual é a lógica acima de todos os dados da realidade que faz Belo Monte seguir se movendo?

casa antonia orelhao
Depois deste (des)encontro com Dilma Rousseff, Antonia Melo fez ainda parte de um grupo que se reuniu com Lula, já no final do segundo mandato, em 2009. O então presidente prometeu que Belo Monte “não seria enfiada goela abaixo” do povo. Antonia Melo percebeu que era apenas Lula dedicando-se a uma de suas especialidades: fazer de conta que ouvia. O interlocutor se despede satisfeito, sentindo-se escutado e contemplado, e o governo ganha tempo enquanto a resistência se desmobiliza, ao acreditar que há uma negociação em curso. Antonia foi a única do grupo a recusar-se a tirar uma fotografia com o então presidente.

Quando anos mais tarde narrou esses dois confrontos com o PT no Planalto, Antonia Melo chorou pela traição. Ela tinha sido uma das fundadoras do partido em Altamira e acreditara que a chegada ao poder de Lula marcaria o fim do tratamento da Amazônia como colônia do centro-sul do país. A visão da região como corpo para violação e exploração tem sido a mesma tanto na ditadura quanto nos vários governos da redemocratização. Ao longo dos anos seguintes, Antonia viu deputados petistas e parte do movimento social serem cooptados pelo governo federal, esquecidos de todos os homens e mulheres que tombaram a tiros para manter a floresta em pé. Antonia Melo foi se tornando uma árvore cada vez mais solitária diante do desmatamento do caráter de quem costumava estar ao seu lado. Por essa ousadia, a de não se deixar cooptar, pagou um preço cada vez mais alto.

Antonia Melo
Hoje, sentada entre ruínas, as visíveis e as invisíveis, Antonia Melo resiste.

– Me expulsar daqui é mais uma tentativa deles de tentar me calar. Não vão conseguir. Eles vão me arrancar daqui, e destruir tudo aqui, mas jamais conseguirão me calar. Mesmo eles sorrindo e tendo a certeza de que me derrotaram, eu tenho pena deles. Porque são eles os derrotados. Porque eles nunca terão na vida deles a paz na consciência que eu tenho. A paz de quem não foi covarde, de quem não recuou. Eu continuo com a minha bandeira em punho. E sobre eles, sobre o governo, sobre essas empresas, pesa a responsabilidade de um crime monstruoso. Eu nunca vou perdoar. A natureza não vai perdoar. Este é um crime sem perdão. Lula e Dilma são criminosos, são traidores, são covardes. E eu não tenho nenhum receio de afirmar isso na frente deles. Quero encontrá-los ainda um dia para dizer isso.

Ela faz uma pausa após cada palavra lentamente pronunciada:

– Criminosos. Traidores. Covardes.

Pelo portão entra seu Otávio das Chagas, pescador arrancado da Ilha de Maria, uma das mais de 400 do Xingu. Vem acompanhado por seu filho Zé. Sem barco, sem rio, sem peixe, sem árvore, sem roça, sem geografia, seu Otávio teve as chagas do nome multiplicadas por Belo Monte. Está confinado numa das “moradias” padronizadas, e isso só depois de muita luta, porque dele haviam tirado tudo em troca de uma esmola de 12 mil reais por uma vida inteira, que logo foi consumida em aluguéis na periferia de Altamira. O pescador não se reconhece no mundo nem reconhece o mundo ao redor. Era rico e agora é pobre, miserável. E lá dentro da “moradia” do bairro com nome pomposo, “Reassentamento Urbano Coletivo (RUC)”, ouve inúmeras vezes ao dia o carro de som passar propagandeando as benesses de Belo Monte. Enquanto escuta que a hidrelétrica “é energia limpa e sustentável”, lá dentro sua família passa fome. Não como força de expressão, mas fome, aquela que dói. Em sua geladeira só há água, e eles esperam que um dos filhos volte no fim do dia em que alugou o corpo por 60 reais na construção civil, para alimentar nove pessoas. O filho mais novo completou 7 anos neste dia. Não há nem presente nem comida. Mas a energia, esta é “limpa e sustentável”, não é isso que o centro-sul acredita?

Todo dia seu Otávio entra pelo portão aberto de Antonia Melo, a única casa e o único endereço que reconhece. Seu Otávio pergunta se é longe o meu lar, eu que ainda o tenho. Ele conta então que nunca viu um mapa do Brasil. Desenho um mapa bem mal traçado no meu caderno, para mostrar o Norte e o Sul e o Centro, onde seu destino é decidido em território para ele desconhecido. Ele se assombra. Otávio das Chagas é um dos tantos sem mapa e sem país que buscavam a casa de Antonia Melo para se encontrar. E agora, arruinado, se perde em ruínas.

No dia da partida, Antonia Melo levou a pedra da casa da infância e as sementes do seu passado. Foi a última moradora a deixar o lugar. Do seu quintal-floresta, levou uma muda de açaí, “o mais importante que carrego daqui”. Com esses alicerces, aos 66 anos ela plantará um futuro no chão de ausências legado por Belo Monte.

Antonia Melo é uma mulher-casa. E por isso jamais se perderá.

(Publicado no El País em 14 de setembro de 2015)

O dia em que a casa foi expulsa de casa

Na sexta-feira (11/9), Antonia Melo foi expulsa de sua casa por Belo Monte. Foi a última a deixar as ruínas de sua rua. Para quem não a conhece, Antonia Melo está para o Xingu, no Pará, como Chico Mendes estava para Xapuri, no Acre. Mas Antonia Melo está viva. O Brasil tem a péssima tradição de “descobrir” seus grandes homens e mulheres depois de assassinados, quando já é tarde demais. Não precisamos de mártires, mas de lideranças vivas pensando o Brasil e, principalmente, a Amazônia. Escutar Antonia Melo e ampliar a sua voz é mantê-la viva.

Fotos: Lilo Clareto

Fotos: Lilo Clareto

Antonia Melo foi encurralada. Por seis meses o tempo da sua vida esteve marcado pelo som das máquinas botando abaixo a vizinhança da Sete de Setembro, o nome da rua só mais uma ironia. Ela estava ali, sitiada, testemunhando o mundo que ajudou a construir ser violado e convertido num cenário de Faixa de Gaza. Ela, seus filhos, seus netos. E o barulho da destruição avançando, cercando, soterrando também as conversas, fincando seus braços robóticos nas palavras, matando frases inteiras. Um dia chegou em casa e descobriu os escombros do muro dos fundos, derrubado junto com um pedaço da floresta que tinha como quintal. Num calor que pode beirar os 40 graus, já não havia energia elétrica suficiente para ligar a geladeira. Antonia foi sendo asfixiada aos poucos, menos ar a cada dia. Mas ainda assim o povo banido das ilhas da Volta Grande do Xingu, dos baixões de Altamira, continuava entrando pelo seu portão sempre aberto, desviando das crateras, saltando sobre os destroços com as havaianas que parecem ter nascido já gastas naqueles pés. “Dona Antonia, dona Antonia, como tiram da gente uma casa?”. Essas milhares de famílias cuspidas de seus lares pela hidrelétrica de Belo Monte fizeram de Antonia Melo o seu endereço. Lá, até o fim, encontravam uma cadeira, um copo de água entre árvores de sombra, e os ouvidos de Antonia, um par de orelhas que ela fez braços e abraço ao escutar os que ninguém mais escutava. Sem rumo, confinados em bairros longe de tudo que conheciam, em residências todas iguais, feitas para não durar, a maioria sem pouso algum, arrancados pela raiz e jogados fora, esses homens, mulheres e crianças esculpidos pelo sol amazônico tinham em Antonia Melo a sua casa. A maior liderança popular viva do Xingu tornara-se o único ponto de reconhecimento num mapa rasgado por uma guerra talvez pior, porque não nomeada. Na sexta-feira, 11 de Setembro de 2015, a casa foi expulsa de casa.

O que é uma casa, minha senhora?, repito a pergunta que tanto escuto pelas ruas de Altamira, no Pará, na boca de gente que já não encontra o destino dos pés.

O rugido da demolição morde as palavras de Antonia Melo, mas não consegue silenciá-la (Fotos: Lilo Clareto)

O rugido da demolição morde as palavras de Antonia Melo, mas não consegue silenciá-la

– Dinheiro nenhum paga uma casa. Primeiro, porque eu não estava vendendo minha casa, não coloquei nela nenhuma placa de venda. Eu nunca pensei em sair daqui, de jeito nenhum. Aqui é o lugar que eu escolhi pra morar, criei os meus filhos. A maioria deles nasceu aqui, cresceu aqui. Hoje tenho os netos que nasceram aqui e já estão crescendo aqui. Então, indenização nenhuma paga a casa de uma pessoa. A casa que eu vou comprar com esse dinheiro nunca será a minha casa. Uma casa é como plantar uma árvore. As raízes vão profundamente embaixo da terra, lá embaixo elas se agarram, para que vento, vendaval, tempestade, e até mesmo uma alagação, não a derrubem. As raízes de uma casa são bem profundas. Os filhos e os netos vão embora, mas a casa fica. E a gente embeleza a casa com a natureza, com as árvores, com o que a gente gosta. E embeleza também com as árvores que dão alimento. Eu plantei com as minhas mãos todas as belezas que estão aqui e que hoje me dão frutos e me dão forças pra resistir ao barulho dos tratores derrubando tudo. Uma dessas árvores é o açaizeiro. Aprendi a amar o açaí, o vinho, o suco mais saboroso que já tomei dentro e fora do Brasil. Mas tem o cupuaçuzeiro, de cupuaçu, e a mangueira, que dava tantas mangas e tão saborosas que eu botava na calçada para os vizinhos e quem passasse pegar. Uma casa é isso, é onde a gente se sente feliz, mesmo sem ter dinheiro. Estar dentro da sua casa é ser grande.

CASA

(…)

A casa, as ilhas, o rio, hoje são um pretérito. Um era. Antonia Melo volta a chorar, antes de agarrar-se mais uma vez ao fio das palavras. O que é uma casa senão o corpo inviolável de alguém, minha senhora? Me diga, como se faz para partir de si mesma?

 Leia mais na minha coluna no El País

ANTONIA MELO1

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Por quem rosna o Brasil

Diante da ruína da autoimagem no espelho, o país parece preferir máscaras autoritárias a enfrentar a brutalidade da sua nudez

 

O que é o Brasil, agora que não pode contar nem com os clichês? Como uma pessoa, que no território de turbulências que é uma vida vai construindo sentidos e ilusões sobre si mesma, um país também se sustenta a partir de imaginários sobre uma identidade nacional. Por aqui acreditamos por gerações que éramos o país do futebol e do samba, e que os brasileiros eram um povo cordial. Clichês, assim como imaginários, não são verdades, mas construções. Impõem-se como resultado de conflitos, hegemonias e apagamentos. E parece que estes, que por tanto tempo alimentaram essa ideia dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o Brasil, desmancharam-se. O Brasil hoje é uma criatura que não se reconhece no espelho de sua imagem simbólica.

Essa pode ser uma das explicações possíveis para compreender o esgarçamento das relações, a expressão sem pudor dos tantos ódios e, em especial, o atalho preferido tanto dos fracos quanto dos oportunistas: o autoritarismo. Esvaziado de ilusões e de formas, aquele que precisa construir um rosto tem medo. Em vez de disputar democraticamente, o que dá trabalho e envolve perdas, prefere o caminho preguiçoso da adesão. E adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo oportunismo com força, berro com verdade.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), relacionado na delação premiada da Operação Lava Jato ao recebimento de 5 milhões de dólares em propina, teria dito a aliados: “Vou explodir o governo”. Tanto ele quanto o apresentador de programa de TV que brada que tem de botar “menor” na cadeia, quando não no paredão, assim como o pastor que brada que homossexualidade é doença são partes do mesmo fenômeno. São muitos brados, mas nenhum deles retumba a não ser como flatulência.

Num momento de esfacelamento da imagem, o que vendem os falsos líderes, estes que, sem autoridade, só podem contar com o autoritarismo? Como os camelôs que aparecem com os guarda-chuvas tão logo cai o primeiro pingo de chuva, eles oferecem, aos gritos, máscaras ordinárias para encobrir o rosto perturbador. Máscaras que não servem a um projeto coletivo, mas ao projeto pessoal, de poder e de enriquecimento, de cada um dos vendilhões. Para quem tem medo, porém, qualquer máscara é melhor do que uma face nua. E hoje, no Brasil, somos todos reis bastante nus, dispostos a linchar o primeiro que nos der a notícia.

Ainda demoraremos a saber o quanto nos custou a perda tanto dos clichês quanto dos imaginários, mas não a lamento. Se os clichês nos sustentaram, também nos assombraram com suas simplificações ou mesmo falsificações. A ideia do brasileiro como um povo cordial nunca resistiu à realidade histórica de uma nação fundada na eliminação do outro, os indígenas e depois os negros, lógica que persiste até hoje. Me refiro não ao “homem cordial”, no sentido dado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu seminal Raízes do Brasil, mas no sentido que adquiriu no senso comum, o do povo afetuoso, informal e hospitaleiro que encantava os visitantes estrangeiros que por aqui aportavam. O Brasil que, diante da desigualdade brutal, supostamente respondia com uma alegria irredutível, ainda que bastasse prestar atenção na letra dos sambas para perceber que a nossa era uma alegria triste. Ou uma tristeza que ria de si mesma.

O futebol continua a falar de nós em profundezas, basta escutar a largura do silêncio das bolas dos alemães estourando na nossa rede nos 7X1 da Copa das Copas, assim como o discurso sem lastro, a não ser na corrupção, dos dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Mas, se já não somos o país do futebol, de que futebol somos o país?

Tampouco lamento o fato de que “mulata” finalmente começa a ser reconhecido como um termo racista e não mais como um “produto de exportação”. E lamento menos ainda que a suposta existência de uma “democracia racial” no Brasil só seja defendida ainda por gente sem nenhum senso. Os linchamentos dos corpos nas ruas do país e o strip-tease das almas nas redes sociais desmancharam a derradeira ilusão da imagem que importávamos para nosso espelho. Quando tudo o mais faltava, ainda restavam os clichês para grudar em nosso rosto. Acabou. Com tanto silicone nos peitos, nem o país da bunda somos mais.

Quando os clichês, depois de tanto girar em falso, tornam-se obsoletos, ainda se pode contar com o consumo de todas as outras mercadorias. Mas, quando o esfacelamento dos imaginários se soma ao esfacelamento das condições materiais da vida, o discurso autoritário e a adesão a ele tornam-se um atalho sedutor. É nisso que muitos apostam neste momento de esquina do Brasil.

É também isso que explica tanto um Eduardo Cunha na Câmara quanto pastores evangélicos que pregam o ódio para milhões de fiéis e apresentadores de TV que estimulam a violência enquanto fingem denunciá-la. Estes personagens paradigmáticos do Brasil atual formam as três faces de uma mesma mediocridade barulhenta e perigosa, que se expressa por bravatas diante das câmeras. Numa crise que é também de identidade, forjam realidades que possam servir ao seu projeto de poder e de enriquecimento para abastecer a manada. Esta, por sua vez, prefere qualquer falsificação ao vazio.

Para estes personagens tão em evidência, quanto mais medo, melhor. Inventar inimigos para a população culpar tem se mostrado um grande negócio nesse momento do país. Se as pessoas sentem-se acuadas por uma violência de causas complexas, por que não dar a elas um culpado fácil de odiar, como “menores” violentos, os pretos e pobres de sempre, e, assim, abrir espaço para a construção de presídios ou unidades de internação? Se os “empreendimentos” comprovadamente não representam redução de criminalidade, certamente rendem muito dinheiro para aqueles que vão construí-los e também para aqueles que vão fazer a engrenagem se mover para lugar nenhum. Depois, o passo seguinte pode ser aumentar a pressão sobre o debate da privatização do sistema prisional, que para ser lucrativo precisa do crescimento do número já apavorante de encarcerados.

Se há tantos que se sentem humilhados e diminuídos por uma vida de gado, porque não convencê-los de que são melhores que os outros pelo menos em algum quesito? Que tal dizer a eles que são superiores porque têm a família “certa”, aquela “formada por um homem e por uma mulher”? E então dar a esses fiéis seguidores pelo menos um motivo para pagar o dízimo alegremente, distraídos por um instante da degradação do seu cotidiano? Fabricar “cidadãos de bem” numa tábua de discriminações e preconceitos tem se mostrado uma fórmula de sucesso no mercado da fé.

A invenção de inimigos dá lucro e mantém tudo como está, porque, para os profetas do ódio, o Brasil está ótimo e rendendo dinheiro como nunca. Ou que emprego teriam estes apresentadores, se não tiverem mais corpos mortos para ofertar no altar da TV? Ou que lucro teria um certo tipo de “religioso” que criou seu próprio mandamento – “odeie o próximo para enriquecer o pastor”? Ou que voto teria um deputado da estirpe de Eduardo Cunha se os eleitores exigissem um projeto de fato, para o país e não para os seus pares? Para estes, que estimulam o ódio e comercializam o medo, o Brasil nunca esteve tão bem. E é preciso que continue exatamente assim.

Se o governo Lula, na história recente do país, fundou-se sobre um pacto de conciliações, para compreendê-lo é necessário também decodificá-lo como um conciliador de imaginários. Lula, o líder carismático, foi muito eficiente ao ser ao mesmo tempo o novo – “o operário que chegou ao poder” num país historicamente governado pelas elites – e o velho –, o governante “que cuida do povo como um pai”. A centralização na imagem do líder esvazia de força e de significados o coletivo. Do mesmo modo, a relação entre pais e filhos alçada à política atrasa a formação do cidadão autônomo, que fiscaliza o governo e concede ao governante, pelo voto, um poder temporário.

Mas a ideia mais sedutora do governo Lula, em especial no segundo mandato, era a possibilidade de incluir no mundo do consumo milhões de brasileiros e reduzir a miséria de outros milhões sem tocar no privilégio dos mais ricos. Este era um encantamento poderoso, que funcionou enquanto o Brasil cresceu, mas que, qualquer que fosse o desempenho da economia, só poderia funcionar por um tempo limitado num país com acertos históricos para fazer e uma desigualdade abissal. Enquanto o encanto não se quebrou, muitos acreditaram que o eterno país do futuro finalmente tinha chegado ao futuro. O Brasil, que valoriza tanto o olhar estrangeiro (do estrangeiro dos países ricos, bem entendido), leu-se como notícia boa lá fora. A Copa do Mundo aqui foi sonhada para ser a apoteose-síntese deste Brasil: enfim, o encontro entre identidade e destino.

Não foi. E não foi muito antes dos 7X1. Essa frágil construção simbólica, que desempenhou um papel muito maior do que pode parecer na autoimagem do Brasil e nas relações cotidianas da população na história recente, exibiu vários sinais de que se quebrava aqui e ali, vazando por muitos lados. Sua ruína se tornou explícita nas manifestações de junho de 2013, protestos identificados com a rebelião e com a esquerda, apesar da multiplicidade contraditória das bandeiras. Quem acha que 2013 foi apenas um soluço, não entendeu o impacto profundo sobre o país. A partir dali todos os imaginários sobre o Brasil perderam a validade. Assim como os clichês. E a imagem no espelho se revelou demasiado nua. E bastante crua.

O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o passado. Entre tantas realidades simultâneas, este é o país que lincha pessoas; que maltrata imigrantes africanos, haitianos e bolivianos; que assassina parte da juventude negra sem que a maioria se importe; que massacra povos indígenas para liberar suas terras, preferindo mantê-los como gravuras num livro de história a conviver com eles; em que as pessoas rosnam umas para as outras nas ruas, nos balcões das padarias, nas repartições públicas; em que os discursos de ódio se impõem nas redes sociais sobre todos os outros; em que proclamar a própria ignorância é motivo de orgulho na internet; em que a ausência de “catástrofes naturais”, sempre vista como uma espécie de “bênção divina” para um povo eleito, já deixou de ser um fato há muito; em que as paisagens “paradisíacas” são borradas pelo inferno da contaminação ambiental e a Amazônia, “pulmão do mundo”, vai virando soja, gado e favela – quando não hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio.

Este é também o país em que aqueles que bradam contra a corrupção dos escalões mais altos cometem cotidianamente seus pequenos atos de corrupção sempre que têm oportunidade. A ideia de que o Congresso democraticamente eleito, formado por um número considerável de oportunistas e corruptos, não corresponde ao conjunto da população brasileira é talvez a maior de todas as ilusões. É duro admitir, mas Eduardo Cunha é nosso.

Neste Brasil, a presidente Dilma Rousseff (PT), acuada por ameaças de impeachment mesmo quando (ainda) não há elementos para isso, é um personagem trágico. Vendida por Lula e pelos marqueteiros na primeira eleição, a de 2010, como “mãe dos pobres”, ela nunca foi capaz de vestir com desenvoltura esse figurino populista, até por sinceridade. Quando tenta invocar simbologias em seus discursos, torna-se motivo de piada. O slogan de seu segundo mandato – “Brasil, Pátria Educadora” – não encontra nenhum lastro na realidade, virando mais uma denúncia do colapso da educação pública do que o movimento para recuperá-la. Parece que os marqueteiros tampouco entendem o Brasil deste momento e seguem acreditando que basta criar imagens para que elas se tornem imaginários. O próprio Lula parece ter perdido sua famosa intuição sobre o Brasil e sobre os brasileiros. Em suas manifestações, Lula soa perdido, intérprete confuso de um Brasil que já não existe.

Agora que já não contamos com os velhos clichês e imaginários, a crueza de nossa imagem no espelho nos assusta. Diante dela e de uma presidente com a autoridade corroída, cresce a sedução dos autoritarismos. Nada mais fácil do que culpar o outro quando não gostamos do que vemos em nós. Em vez de encarar o próprio rosto, cobre-se a imagem perturbadora com alvos a serem destruídos. Aqueles que encontram nesta adesão aos discursos autoritários uma possibilidade de ascensão, esquecem-se da lição mais básica, a de que não há controle quando se aposta no pior. Só há chance se enfrentarmos conflitos e contradições com a cara que temos. É com esses Brasis que precisamos nos haver. É essa imagem múltipla que temos de encarar no espelho se quisermos construir uma outra, menos brutal.

O que o governo Lula adiou, ao escolher a conciliação em vez da ruptura com os setores conservadores, está na mesa. Há várias forças se movendo para encontrar uma nova acomodação, que evite o enfrentamento das contradições e das desigualdades. É pelas bandeiras da reacomodação que as ruas foram ocupadas em 2015 pelo que alguns têm chamado de “nova direita”. Esta, se adere à novidade da organização pelas redes sociais e aparentemente se coloca fora dos esquemas tradicionais da política e dos partidos, talvez seja menos “nova” do que possa parecer nas questões de fundo.

A próxima manifestação, marcada para 16 de agosto, é acompanhada com atenção pelos políticos e partidos tradicionais que conspiram pelo impeachment da presidente eleita. Os manifestantes de 2015 gritam contra a corrupção, mas basta escutá-los com atenção para compreender que gritam para deixar tudo como está. E, se possível, voltar inclusive atrás, já que uma parte significativa parece ter se sentido lesada por políticas como a das cotas raciais e outros tímidos avanços na direção da reparação e da equidade. A redução da maioridade penal, assim como outros projetos conservadores em curso, são também exemplos de uma resposta autoritária – e inócua – para o esgarçamento crescente das relações sociais e para a violência.

Há muito barulho sendo produzido hoje, como o próprio discurso de Eduardo Cunha em cadeia nacional (17/7), para desviar o foco do grande nó a ser desatado: não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios. Muita gente bacana ainda segue acreditando no conto de fadas de que é possível alcançar a paz sem perder nada. Não é. Quem quiser de fato reduzir a violência e a corrupção que atravessa o Brasil e os brasileiros vai ter de pensar sobre o quanto está disposto a perder para estar com o outro. É este o ponto de interrogação no espelho. É por isso que o som ameaçador dos dentes sendo afiados cresce. E cresce também onde menos se espera.

(Publicado no El País em 03/08/2015)

Por quem rosna o Brasil?

Diante da ruína da autoimagem no espelho, o país parece preferir máscaras autoritárias a enfrentar a brutalidade da sua nudez

 

O que é o Brasil, agora que não pode contar nem com os clichês? Como uma pessoa, que no território de turbulências que é uma vida vai construindo sentidos e ilusões sobre si mesma, um país também se sustenta a partir de imaginários sobre uma identidade nacional. Por aqui acreditamos por gerações que éramos o país do futebol e do samba, e que os brasileiros eram um povo cordial. Clichês, assim como imaginários, não são verdades, mas construções. Impõem-se como resultado de conflitos, hegemonias e apagamentos. E parece que estes, que por tanto tempo alimentaram essa ideia dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o Brasil, desmancharam-se. O Brasil hoje é uma criatura que não se reconhece no espelho de sua imagem simbólica.

Essa pode ser uma das explicações possíveis para compreender o esgarçamento das relações, a expressão sem pudor dos tantos ódios e, em especial, o atalho preferido tanto dos fracos quanto dos oportunistas: o autoritarismo. Esvaziado de ilusões e de formas, aquele que precisa construir um rosto tem medo. Em vez de disputar democraticamente, o que dá trabalho e envolve perdas, prefere o caminho preguiçoso da adesão. E adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo oportunismo com força, berro com verdade.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), relacionado na delação premiada da Operação Lava Jato ao recebimento de 5 milhões de dólares em propina, teria dito a aliados: “Vou explodir o governo”. Tanto ele quanto o apresentador de programa de TV que brada que tem de botar “menor” na cadeia, quando não no paredão, assim como o pastor que brada que homossexualidade é doença são partes do mesmo fenômeno. São muitos brados, mas nenhum deles retumba a não ser como flatulência.

Num momento de esfacelamento da imagem, o que vendem os falsos líderes, estes que, sem autoridade, só podem contar com o autoritarismo? Como os camelôs que aparecem com os guarda-chuvas tão logo cai o primeiro pingo de chuva, eles oferecem, aos gritos, máscaras ordinárias para encobrir o rosto perturbador. Máscaras que não servem a um projeto coletivo, mas ao projeto pessoal, de poder e de enriquecimento, de cada um dos vendilhões. Para quem tem medo, porém, qualquer máscara é melhor do que uma face nua. E hoje, no Brasil, somos todos reis bastante nus, dispostos a linchar o primeiro que nos der a notícia.

Ainda demoraremos a saber o quanto nos custou a perda tanto dos clichês quanto dos imaginários, mas não a lamento. Se os clichês nos sustentaram, também nos assombraram com suas simplificações ou mesmo falsificações. A ideia do brasileiro como um povo cordial nunca resistiu à realidade histórica de uma nação fundada na eliminação do outro, os indígenas e depois os negros, lógica que persiste até hoje. Me refiro não ao “homem cordial”, no sentido dado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu seminal Raízes do Brasil, mas no sentido que adquiriu no senso comum, o do povo afetuoso, informal e hospitaleiro que encantava os visitantes estrangeiros que por aqui aportavam. O Brasil que, diante da desigualdade brutal, supostamente respondia com uma alegria irredutível, ainda que bastasse prestar atenção na letra dos sambas para perceber que a nossa era uma alegria triste. Ou uma tristeza que ria de si mesma.

O futebol continua a falar de nós em profundezas, basta escutar a largura do silêncio das bolas dos alemães estourando na nossa rede nos 7X1 da Copa das Copas, assim como o discurso sem lastro, a não ser na corrupção, dos dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Mas, se já não somos o país do futebol, de que futebol somos o país?

Tampouco lamento o fato de que “mulata” finalmente começa a ser reconhecido como um termo racista e não mais como um “produto de exportação”. E lamento menos ainda que a suposta existência de uma “democracia racial” no Brasil só seja defendida ainda por gente sem nenhum senso. Os linchamentos dos corpos nas ruas do país e o strip-tease das almas nas redes sociais desmancharam a derradeira ilusão da imagem que importávamos para nosso espelho. Quando tudo o mais faltava, ainda restavam os clichês para grudar em nosso rosto. Acabou. Com tanto silicone nos peitos, nem o país da bunda somos mais.

Quando os clichês, depois de tanto girar em falso, tornam-se obsoletos, ainda se pode contar com o consumo de todas as outras mercadorias. Mas, quando o esfacelamento dos imaginários se soma ao esfacelamento das condições materiais da vida, o discurso autoritário e a adesão a ele tornam-se um atalho sedutor. É nisso que muitos apostam neste momento de esquina do Brasil.

É também isso que explica tanto um Eduardo Cunha na Câmara quanto pastores evangélicos que pregam o ódio para milhões de fiéis e apresentadores de TV que estimulam a violência enquanto fingem denunciá-la. Estes personagens paradigmáticos do Brasil atual formam as três faces de uma mesma mediocridade barulhenta e perigosa, que se expressa por bravatas diante das câmeras. Numa crise que é também de identidade, forjam realidades que possam servir ao seu projeto de poder e de enriquecimento para abastecer a manada. Esta, por sua vez, prefere qualquer falsificação ao vazio.

Para estes personagens tão em evidência, quanto mais medo, melhor. Inventar inimigos para a população culpar tem se mostrado um grande negócio nesse momento do país. Se as pessoas sentem-se acuadas por uma violência de causas complexas, por que não dar a elas um culpado fácil de odiar, como “menores” violentos, os pretos e pobres de sempre, e, assim, abrir espaço para a construção de presídios ou unidades de internação? Se os “empreendimentos” comprovadamente não representam redução de criminalidade, certamente rendem muito dinheiro para aqueles que vão construí-los e também para aqueles que vão fazer a engrenagem se mover para lugar nenhum. Depois, o passo seguinte pode ser aumentar a pressão sobre o debate da privatização do sistema prisional, que para ser lucrativo precisa do crescimento do número já apavorante de encarcerados.

Se há tantos que se sentem humilhados e diminuídos por uma vida de gado, porque não convencê-los de que são melhores que os outros pelo menos em algum quesito? Que tal dizer a eles que são superiores porque têm a família “certa”, aquela “formada por um homem e por uma mulher”? E então dar a esses fiéis seguidores pelo menos um motivo para pagar o dízimo alegremente, distraídos por um instante da degradação do seu cotidiano? Fabricar “cidadãos de bem” numa tábua de discriminações e preconceitos tem se mostrado uma fórmula de sucesso no mercado da fé.

A invenção de inimigos dá lucro e mantém tudo como está, porque, para os profetas do ódio, o Brasil está ótimo e rendendo dinheiro como nunca. Ou que emprego teriam estes apresentadores, se não tiverem mais corpos mortos para ofertar no altar da TV? Ou que lucro teria um certo tipo de “religioso” que criou seu próprio mandamento – “odeie o próximo para enriquecer o pastor”? Ou que voto teria um deputado da estirpe de Eduardo Cunha se os eleitores exigissem um projeto de fato, para o país e não para os seus pares? Para estes, que estimulam o ódio e comercializam o medo, o Brasil nunca esteve tão bem. E é preciso que continue exatamente assim.

Se o governo Lula, na história recente do país, fundou-se sobre um pacto de conciliações, para compreendê-lo é necessário também decodificá-lo como um conciliador de imaginários. Lula, o líder carismático, foi muito eficiente ao ser ao mesmo tempo o novo – “o operário que chegou ao poder” num país historicamente governado pelas elites – e o velho –, o governante “que cuida do povo como um pai”. A centralização na imagem do líder esvazia de força e de significados o coletivo. Do mesmo modo, a relação entre pais e filhos alçada à política atrasa a formação do cidadão autônomo, que fiscaliza o governo e concede ao governante, pelo voto, um poder temporário.

Mas a ideia mais sedutora do governo Lula, em especial no segundo mandato, era a possibilidade de incluir no mundo do consumo milhões de brasileiros e reduzir a miséria de outros milhões sem tocar no privilégio dos mais ricos. Este era um encantamento poderoso, que funcionou enquanto o Brasil cresceu, mas que, qualquer que fosse o desempenho da economia, só poderia funcionar por um tempo limitado num país com acertos históricos para fazer e uma desigualdade abissal. Enquanto o encanto não se quebrou, muitos acreditaram que o eterno país do futuro finalmente tinha chegado ao futuro. O Brasil, que valoriza tanto o olhar estrangeiro (do estrangeiro dos países ricos, bem entendido), leu-se como notícia boa lá fora. A Copa do Mundo aqui foi sonhada para ser a apoteose-síntese deste Brasil: enfim, o encontro entre identidade e destino.

Não foi. E não foi muito antes dos 7X1. Essa frágil construção simbólica, que desempenhou um papel muito maior do que pode parecer na autoimagem do Brasil e nas relações cotidianas da população na história recente, exibiu vários sinais de que se quebrava aqui e ali, vazando por muitos lados. Sua ruína se tornou explícita nas manifestações de junho de 2013, protestos identificados com a rebelião e com a esquerda, apesar da multiplicidade contraditória das bandeiras. Quem acha que 2013 foi apenas um soluço, não entendeu o impacto profundo sobre o país. A partir dali todos os imaginários sobre o Brasil perderam a validade. Assim como os clichês. E a imagem no espelho se revelou demasiado nua. E bastante crua.

O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o passado. Entre tantas realidades simultâneas, este é o país que lincha pessoas; que maltrata imigrantes africanos, haitianos e bolivianos; que assassina parte da juventude negra sem que a maioria se importe; que massacra povos indígenas para liberar suas terras, preferindo mantê-los como gravuras num livro de história a conviver com eles; em que as pessoas rosnam umas para as outras nas ruas, nos balcões das padarias, nas repartições públicas; em que os discursos de ódio se impõem nas redes sociais sobre todos os outros; em que proclamar a própria ignorância é motivo de orgulho na internet; em que a ausência de “catástrofes naturais”, sempre vista como uma espécie de “bênção divina” para um povo eleito, já deixou de ser um fato há muito; em que as paisagens “paradisíacas” são borradas pelo inferno da contaminação ambiental e a Amazônia, “pulmão do mundo”, vai virando soja, gado e favela – quando não hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio.

Este é também o país em que aqueles que bradam contra a corrupção dos escalões mais altos cometem cotidianamente seus pequenos atos de corrupção sempre que têm oportunidade. A ideia de que o Congresso democraticamente eleito, formado por um número considerável de oportunistas e corruptos, não corresponde ao conjunto da população brasileira é talvez a maior de todas as ilusões. É duro admitir, mas Eduardo Cunha é nosso.

Neste Brasil, a presidente Dilma Rousseff (PT), acuada por ameaças de impeachment mesmo quando (ainda) não há elementos para isso, é um personagem trágico. Vendida por Lula e pelos marqueteiros na primeira eleição, a de 2010, como “mãe dos pobres”, ela nunca foi capaz de vestir com desenvoltura esse figurino populista, até por sinceridade. Quando tenta invocar simbologias em seus discursos, torna-se motivo de piada. O slogan de seu segundo mandato – “Brasil, Pátria Educadora” – não encontra nenhum lastro na realidade, virando mais uma denúncia do colapso da educação pública do que o movimento para recuperá-la. Parece que os marqueteiros tampouco entendem o Brasil deste momento e seguem acreditando que basta criar imagens para que elas se tornem imaginários. O próprio Lula parece ter perdido sua famosa intuição sobre o Brasil e sobre os brasileiros. Em suas manifestações, Lula soa perdido, intérprete confuso de um Brasil que já não existe.

Agora que já não contamos com os velhos clichês e imaginários, a crueza de nossa imagem no espelho nos assusta. Diante dela e de uma presidente com a autoridade corroída, cresce a sedução dos autoritarismos. Nada mais fácil do que culpar o outro quando não gostamos do que vemos em nós. Em vez de encarar o próprio rosto, cobre-se a imagem perturbadora com alvos a serem destruídos. Aqueles que encontram nesta adesão aos discursos autoritários uma possibilidade de ascensão, esquecem-se da lição mais básica, a de que não há controle quando se aposta no pior. Só há chance se enfrentarmos conflitos e contradições com a cara que temos. É com esses Brasis que precisamos nos haver. É essa imagem múltipla que temos de encarar no espelho se quisermos construir uma outra, menos brutal.

O que o governo Lula adiou, ao escolher a conciliação em vez da ruptura com os setores conservadores, está na mesa. Há várias forças se movendo para encontrar uma nova acomodação, que evite o enfrentamento das contradições e das desigualdades. É pelas bandeiras da reacomodação que as ruas foram ocupadas em 2015 pelo que alguns têm chamado de “nova direita”. Esta, se adere à novidade da organização pelas redes sociais e aparentemente se coloca fora dos esquemas tradicionais da política e dos partidos, talvez seja menos “nova” do que possa parecer nas questões de fundo.

A próxima manifestação, marcada para 16 de agosto, é acompanhada com atenção pelos políticos e partidos tradicionais que conspiram pelo impeachment da presidente eleita. Os manifestantes de 2015 gritam contra a corrupção, mas basta escutá-los com atenção para compreender que gritam para deixar tudo como está. E, se possível, voltar inclusive atrás, já que uma parte significativa parece ter se sentido lesada por políticas como a das cotas raciais e outros tímidos avanços na direção da reparação e da equidade. A redução da maioridade penal, assim como outros projetos conservadores em curso, são também exemplos de uma resposta autoritária – e inócua – para o esgarçamento crescente das relações sociais e para a violência.

Há muito barulho sendo produzido hoje, como o próprio discurso de Eduardo Cunha em cadeia nacional (17/7), para desviar o foco do grande nó a ser desatado: não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios. Muita gente bacana ainda segue acreditando no conto de fadas de que é possível alcançar a paz sem perder nada. Não é. Quem quiser de fato reduzir a violência e a corrupção que atravessa o Brasil e os brasileiros vai ter de pensar sobre o quanto está disposto a perder para estar com o outro. É este o ponto de interrogação no espelho. É por isso que o som ameaçador dos dentes sendo afiados cresce. E cresce também onde menos se espera.

(Publicado no El País em 03/08/2015)

Por quem rosna o Brasil

Diante da ruína da autoimagem no espelho, o país parece preferir máscaras autoritárias a enfrentar a brutalidade da sua nudez.

Leia na coluna do El País:

O que é o Brasil, agora que não pode contar nem com os clichês? Como uma pessoa, que no território de turbulências que é uma vida vai construindo sentidos e ilusões sobre si mesma, um país também se sustenta a partir de imaginários sobre uma identidade nacional. Por aqui acreditamos por gerações que éramos o país do futebol e do samba, e que os brasileiros eram um povo cordial. Clichês, assim como imaginários, não são verdades, mas construções. Impõem-se como resultado de conflitos, hegemonias e apagamentos. E parece que estes, que por tanto tempo alimentaram essa ideia dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o Brasil, desmancharam-se. O Brasil hoje é uma criatura que não se reconhece no espelho de sua imagem simbólica.

Essa pode ser uma das explicações possíveis para compreender o esgarçamento das relações, a expressão sem pudor dos tantos ódios e, em especial, o atalho preferido tanto dos fracos quanto dos oportunistas: o autoritarismo. Esvaziado de ilusões e de formas, aquele que precisa construir um rosto tem medo. Em vez de disputar democraticamente, o que dá trabalho e envolve perdas, prefere o caminho preguiçoso da adesão. E adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo oportunismo com força, berro com verdade.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), relacionado na delação premiada da Operação Lava Jato ao recebimento de 5 milhões de dólares em propina, teria dito a aliados: “Vou explodir o governo”. Tanto ele quanto o apresentador de programa de TV que brada que tem de botar “menor” na cadeia, quando não no paredão, assim como o pastor que brada que homossexualidade é doença são partes do mesmo fenômeno. São muitos brados, mas nenhum deles retumba a não ser como flatulência.

Num momento de esfacelamento da imagem, o que vendem os falsos líderes, estes que, sem autoridade, só podem contar com o autoritarismo? Como os camelôs que aparecem com os guarda-chuvas tão logo cai o primeiro pingo de chuva, eles oferecem, aos gritos, máscaras ordinárias para encobrir o rosto perturbador. Máscaras que não servem a um projeto coletivo, mas ao projeto pessoal, de poder e de enriquecimento, de cada um dos vendilhões. Para quem tem medo, porém, qualquer máscara é melhor do que uma face nua. E hoje, no Brasil, somos todos reis bastante nus, dispostos a linchar o primeiro que nos der a notícia.

Ainda demoraremos a saber o quanto nos custou a perda tanto dos clichês quanto dos imaginários, mas não a lamento. Se os clichês nos sustentaram, também nos assombraram com suas simplificações ou mesmo falsificações. A ideia do brasileiro como um povo cordial nunca resistiu à realidade histórica de uma nação fundada na eliminação do outro, os indígenas e depois os negros, lógica que persiste até hoje. Me refiro não ao “homem cordial”, no sentido dado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu seminal Raízes do Brasil, mas no sentido que adquiriu no senso comum, o do povo afetuoso, informal e hospitaleiro que encantava os visitantes estrangeiros que por aqui aportavam. O Brasil que, diante da desigualdade brutal, supostamente respondia com uma alegria irredutível, ainda que bastasse prestar atenção na letra dos sambas para perceber que a nossa era uma alegria triste. Ou uma tristeza que ria de si mesma.

O futebol continua a falar de nós em profundezas, basta escutar a largura do silêncio das bolas dos alemães estourando na nossa rede nos 7X1 da Copa das Copas, assim como o discurso sem lastro, a não ser na corrupção, dos dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Mas, se já não somos o país do futebol, de que futebol somos o país?

Leia o texto inteiro aqui.

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