Reprodução assistida – ou desassistida?

O caso das trigêmeas e o lugar da maternidade em nosso tempo

No início deste ano, imprensa e público se chocaram com o caso de um casal paranaense que teve trigêmeas, depois de se submeter a técnicas de reprodução assistida, e quis dar uma delas para adoção. As meninas nasceram em janeiro de um parto prematuro e ficaram por quase um mês na UTI neonatal de uma maternidade de Curitiba. Os pais já haviam manifestado a intenção de entregar um dos bebês para ser adotado antes do nascimento. Mas, “denunciados” pelos funcionários do hospital ao Conselho Tutelar por “rejeitar” uma das filhas, supostamente a mais frágil, perderam a guarda das três. Em fevereiro, as meninas foram colocadas em um abrigo por intervenção judicial. Os bebês ficaram afastados dos pais por dois meses e meio, com visitas restritas a duas horas semanais. Em maio, a Justiça deu a guarda temporária a parentes e permitiu que os pais pudessem visitá-las diariamente. Desde o início, os pais declararam-se arrependidos de terem desejado dar uma das crianças para adoção e tentaram reaver a guarda das três filhas. O médico que acompanhou o casal em todo o processo da reprodução assistida, disse à imprensa: “Eu nunca vi um casal rejeitar os filhos após um tratamento para engravidar. Muito menos rejeitar um ou rejeitar dois. Isso realmente é uma novidade”.

Quando o caso tornou-se público, o casal virou uma espécie de monstro. A ideia, disseminada no senso comum, era: como pais, que desejaram tanto ter filhos, a ponto de se submeter a um procedimento caro e nem sempre bem sucedido, tiveram a coragem de “abandonar” a mais frágil das crianças? Danielle Breyton, Helena Albuquerque e Verônica Melo estavam entre as poucas vozes dissonantes. Psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, elas pesquisam as questões da reprodução assistida desde 1997, no grupo denominado “O feminino no imaginário cultural contemporâneo”.

Impressionadas com o linchamento dos pais pela sociedade, elas escreveram um texto para a imprensa intitulado “Responsabilidades no caso das trigêmeas”. Tiveram dificuldade para encontrar espaço para publicá-lo, apesar da qualidade do trabalho e da experiência de 14 anos de estudos da questão da reprodução assistida. Vale a pena pensar se a falta de espaço pode significar uma resistência a escutar algo que adicione maior complexidade ao debate e algo que nos implique a todos – em vez de apenas demonizar os pais.

No texto, que tive a oportunidade de ler, as psicanalistas fazem algumas perguntas incômodas: “De quem é a responsabilidade pela implantação de três ou quatro embriões no útero de uma jovem de 28 anos? A quem cabe a decisão que implica tamanhos riscos? Ao casal? À equipe médica? Ao Estado?”. Desde o início deste ano, uma norma do Conselho Federal de Medicina determina que, no caso de mulheres com até 35 anos, devem ser implantados no máximo dois embriões, já que uma gravidez múltipla traz riscos para a mãe e para os bebês, sem contar as demais sequelas físicas e psíquicas. Entre os 36 e os 39 anos recomenda-se implantar três embriões. E apenas mulheres com mais de 40 anos podem ter quatro embriões implantados.

As psicanalistas apontam que, no caso das trigêmeas, os pais incorporaram algo que faz parte do discurso hegemônico, plenamente assimilado pela sociedade e amplamente divulgado pela mídia em centenas de reportagens. Neste discurso, os termos “escolha, doação, descarte e redução” são corriqueiros na área da reprodução assistida. No texto, elas criticam a desimplicação de todos no caso, a começar pelo médico, e afirmam que as trigêmeas não são apenas filhas de seus pais – mas de uma cultura. Neste sentido, são filhas de todos nós.

Quando o caso tornou-se público, chamou a atenção a incapacidade da maioria das pessoas que se manifestaram de parar para pensar, ainda que por um instante: “Como deve se sentir uma mulher de 28 anos com três bebês prematuros ao mesmo tempo?”. Quem tem apenas um, saudável e nascido de nove meses, sabe que não é fácil, especialmente nos primeiros tempos. É possível para qualquer um imaginar como pode ser difícil e assustador cuidar de três prematuros. Reconhecer a dor do outro não significa tirar-lhe a responsabilidade, apenas admitir que é preciso ter mais cuidado antes de julgar. Por que a condenação dos pais pela sociedade foi imediata e massiva é algo que vale a pena pensar. E talvez as imagens estampadas em jornais e revistas, assim como nas telas da TV, de casais sorridentes com sua ninhada de filhos nascidos na mesma gestação, que todos nós já vimos alguma vez, possam ser uma pequena parte da explicação.

O caso provoca ainda uma série de questões. Que Justiça é esta que prefere colocar três recém-nascidas em um abrigo em vez de deixá-las com os pais, que se dizem arrependidos e dispostos a criar as três filhas? Por que, como disse a advogada do casal, não ajudá-los a lidar com as dificuldades em vez de puni-los? E que sociedade é esta que se apressa a linchar o casal, preferindo transformar os pais em monstros e assim se afastar por completo do que a horroriza, em vez de pensar se não tem nada a ver com isso? O debate vale a pena não para que possamos encontrar outro culpado, mas para compreender o que tudo isso diz da época em que vivemos.

Convidei Danielle, Helena e Verônica para uma conversa nesta coluna. Não apenas sobre o caso das trigêmeas, mas sobre a reprodução assistida e o lugar da maternidade no nosso tempo. Na entrevista a seguir, destaco três temas que considero mais instigantes. O primeiro é a percepção de um paralelo entre parto natural e cesárea/reprodução natural e reprodução assistida. As psicanalistas perceberam, ao acompanhar grupos de pais à espera do procedimento, que, se o parto natural tornou-se exceção no Brasil, com prevalência da cesariana na maioria dos nascimentos, o mesmo começa a acontecer com a reprodução: um número crescente de mulheres, cada vez mais jovens e cada vez mais cedo, se consideram inférteis e incapazes de engravidar naturalmente, em relações sexuais com seus parceiros.

Outro tema muito interessante é que a tecnologia é amplamente usada e festejada no processo da reprodução e do nascimento, mas assim que o filho nasce volta-se imediatamente ao mito do amor materno: todos aqueles que colaboraram e às vezes até decidiram os processos relativos à reprodução e ao parto saem de cena, e o filho volta a ser dos pais e principalmente da mãe, já que é ela que tem licença maternidade de quatro ou seis meses. E então a sociedade exige que esta mãe ame incondicionalmente e de imediato seu filho e dê conta de tudo, mesmo que sejam três prematuras, como no caso que gerou a polêmica. Esta mãe não pode ter conflitos, dúvidas ou medos. Qualquer sentimento menos nobre diante de um bebê que chora sem parar ou que ela teme perder é considerado “antinatural” e ameaçaria um determinado ideal de maternidade. Da mulher se espera que seja uma supermãe – ou então correrá o risco de a sociedade transformá-la numa bruxa a ser queimada na fogueira midiática.

Por fim, vale a pena pensar no que a tecnologia deu às mulheres. É importante sublinhar que a tecnologia deu muito. Mas o reconhecimento dos benefícios deve servir também para nos estimular a problematizar as questões. Na conversa a seguir, Danielle, Helena e Verônica mostram que, de certo modo, o controle de novo está fora das mulheres – e na mão do poder hegemônico sobre o corpo na nossa época, que é o da Medicina. Perguntar sempre vale a pena. E pode nos levar a respostas intrigantes. É isso que tento fazer na conversa a seguir.

– Como surgiu a ideia de pesquisar a reprodução assistida?

Helena Albuquerque –  A ideia do grupo era pesquisar o feminino na cultura e buscar respostas para uma série de perguntas. Mudou alguma coisa em relação à mulher? Os conflitos e as angústias das mulheres são os mesmos? A mulher lida melhor com a sexualidade do que já lidou numa época mais repressiva? O grupo intercalava o estudo de textos psicanalíticos sobre o feminino com as questões da cultura e da clínica. Estávamos às voltas com a questão da reprodução assistida no consultório, e o tema surgiu na discussão. Resolvemos montar, então, um pequeno grupo para estudar os efeitos da tecnologia da reprodução assistida no feminino: na mulher, no jeito de conceber de um casal, no jeito de conceber a gravidez, o parto, a criança; se estas coisas se mantinham no mesmo lugar, se mudavam de lugar. Depois de um tempo de estudo teórico, fomos fazer uma pesquisa de campo no Hospital Pérola Byington, onde há um Serviço de Reprodução Humana totalmente gratuito que atende mulheres do Brasil inteiro. O foco da nossa pesquisa era investigar como ficava a ideia da infertilidade uma vez dado o diagnóstico: como os casais processavam isso subjetivamente, o que para eles era infertilidade, o que o diagnóstico causava em suas vidas. Trabalhamos com dois grupos de casais que selecionamos na fila de espera do Serviço de Reprodução Humana.

– Por que vocês escolheram este tema e não outro?

Verônica Melo – Acho que partimos de situações que a gente vivia, ou na clínica, ou com pessoas próximas, amigos que estavam buscando a reprodução assistida.

A mulher começa a se atrapalhar com coisas que sempre foram sentidas como sendo dela, sobre as quais tinha uma maior apropriação: menstruação, gravidez, amamentação passam a ser tomadas por uma parte da Medicina e da Mídia quase como se fosse doenças, disfunções. Ou seja, ficam na fronteira da patologia. Aparecem situações como, por exemplo: se a menstruação atrapalha, uma injeção a elimina.

A Psicanálise nasce, como todo mundo sabe, a partir das mulheres histéricas. Na época de Freud, a mulher tinha como marco de valor a procriação. Era este o papel social dela. Então, vamos estudando o que foi se passando na história da cultura e que lugares a mulher foi percorrendo e foi assumindo. E aí chegamos hoje a uma mulher que pilota aviões, mas se atrapalha com a amamentação. Começamos a prestar atenção nas propagandas de laboratórios e de clínicas especializadas em reprodução assistida, chamando a mulher com um tipo de mensagem mais ou menos assim: “Você não precisa mais ter de decidir entre progredir na carreira e ter filhos. Não se incomode com isso, porque você pode congelar óvulos, você pode congelar os embriões e postergar. Você pode ter filho lá pra frente”.

Danielle Breyton – O que inclusive não é verdade, não é? É uma propaganda enganosa. Porque uma mulher, depois dos 40 anos, mesmo com reprodução assistida possivelmente vai ter dificuldades para engravidar.

– O que começa a chamar a atenção de vocês é uma espécie de ilusão de controle da mulher sobre o seu próprio corpo?

Verônica – Sim, é uma armadilha para a mulher. Como se ela tivesse o poder nas mãos dela de decidir: “Então eu posso parar a minha menstruação; então eu posso ter uma carreira brilhante e depois eu vou ser mãe”. E é uma mentira porque, na verdade, depois de tudo o que ela conquistou, vai acabar sucumbindo, de novo, a uma demanda da cultura. De certo modo, depois de tudo o que conquistou acaba virando um objeto da Medicina.

Danielle – De um lado, temos um discurso supostamente libertador, de autonomia sobre o próprio corpo. De outro, há um controle absoluto sobre os corpos e sobre o tempo.

Helena – E este é outro tema forte na nossa pesquisa. Como se dá o discurso médico, qual é a proposta da Medicina. Não é que todo médico seja assim, mas é o que prevalece. Percebemos que, desde que o parto foi transferido para a mão da Medicina, ele foi, de certa forma, patologizado. E o discurso feminista, de uma forma enviesada, acaba submetendo a mulher a um controle maior do corpo, via Medicina. Parece que antes havia mais espaços para a mulher ocupar por conta própria do que depois que a Medicina se impõe com um discurso muito hegemônico. Décadas atrás, o problema da mulher era a fertilidade e a tentativa de ter uma vida sexual sem engravidar. Isso dá uma virada muito impressionante. O filho não é mais algo que acontece um pouco imprevistamente, sem planejamento. Você decide ter um filho. Então, tem uma conta a fazer: é preciso saber se o filho cabe no orçamento. É muito comum ouvirmos: “Olha, a gente vai ter um filho só. Não vai ter o segundo filho porque não temos dinheiro”. Então, há uma contabilidade. Há a questão da carreira, do corpo, do tempo e do filho, entre outras. Há uma decisão que precisa ser ser tomada e que torna mais difícil ter um filho. Sem contar que agora seu filho tem de ser feliz. (Risos)

Danielle – E você tem de continuar com seu corpo incrível e trabalhando como você sempre trabalhou…

Helena – E seu filho tem de ter um carro, uma casa…

Verônica – Tem um custo que já é pré-avaliado do filho. Em reunião de escola, há pais falando: “Olha, com a mensalidade dava para comprar um carro por ano…”.

Helena – Com uma equação colocada desta maneira, ter um filho torna-se uma decisão difícil de ser tomada.

– Vocês acham que a mulher perdeu muito nessa mudança?

Helena – Ela ganhou muito também.

Danielle – Ganha e perde. Problematizar isso não é questionar todo o ganho que as mulheres tiveram, pelo contrário.

– Vocês mencionaram a questão do controle do corpo e do tempo. Como a questão do tempo entra na infertilidade e na reprodução assistida?

Verônica – Quando a gente entrou no tema da infertilidade, nos deparamos com trabalhos que apontavam para uma mudança. Se antes considerar que uma mulher tinha problemas de infertilidade se dava após um certo tempo de pesquisa, de estudo da própria mulher mesmo, da fisiologia dela e tal, este tempo foi sendo suprimido. Hoje, o diagnóstico é dado num tempo muito mais curto: “É infértil, vamos começar a fazer tratamento”.

– Mais ou menos quanto tempo?

Verônica – Na Europa, eram dois anos de espera. E nos Estados Unidos um ano. Aqui também, mas está diminuindo.

Danielle Três meses…

Helena – Três meses, elas estão ansiosas, e os médicos – alguns, outros não – as encaminham para começar uma reprodução assistida, que vai virando um pouco uma questão mercadológica, né? São procedimentos caros. Em nossa pesquisa, percebemos um paralelo com a questão do parto normal e da cesariana. A cesariana salva a vida de muitas mulheres que têm complicações no parto, assim como de bebês. Mas virou uma distorção, na medida em que hoje, no Brasil, 80% dos partos são cesarianas. Da mesma forma, há um paralelo entre engravidar com relações sexuais, do jeito natural, e ter filhos via reprodução assistida. É como se um deslocamento parecido começasse a ser feito. O francês Jacques Testart (responsável pelo nascimento do primeiro bebê de proveta na França, em 1982) disse que engravidar normalmente vai virar coisa de ecologista. E aí temos vários filmes sobre esse tema, como “Gattaca – A Experiência Genética” (Andrew Niccol, 1997).

Danielle – É como se a liberdade passasse pelo controle. É uma questão do controle esse deslocamento da cesariana. Se organiza, planeja e ponto. Já há muitos casais que resolvem partir para a reprodução assistida com esse intuito: controlar, já. De uma vez só tem dois filhos e já resolve o problema.

Verônica – E para os médicos também. No parto normal, por exemplo. Uma coisa é ficar ali, com um trabalho de parto que vai levar cinco, seis, sete horas. A outra é marcar horário e resolver. Na questão da reprodução há este mesmo paralelo. Como determinar se ali existe um caso de infertilidade, de esterilidade? Quanto tempo se espera a gravidez acontecer sem intervenção? O tempo está diminuindo, mesmo para casais muito jovens. Nos chamava muito a atenção os números do ESCA (Esterilidade Sem Causa Aparente). Essas estatísticas agora estão diminuindo, porque é necessário justificar o procedimento e acabam achando uma causa. Acham a causa, às vezes, e um mês depois a mulher engravida sem intervenção nenhuma.

– É como se o médico, simbolicamente, fosse para a cama com o casal, não?

Helena – Ele passa a fazer parte da cena…

– Vocês perceberam, ao longo da pesquisa, que alguns casais que se declaravam inférteis no consultório médico nem mesmo tinham relações sexuais. Precisavam de reprodução assistida porque não transavam…

Danielle – Há, inclusive, um livro sobre isso, (“Mal-Estar na Procriação – As mulheres e A Medicina da Reprodução”), de uma psicanalista francesa, Marie-Magdeleine Chatel. Ela percebeu que, nas entrevistas médicas, o médico não perguntava sobre as relações sexuais. Então, numa das consultas, das quais participava como observadora, ela pergunta sobre a frequência com que tinham relações sexuais, e o casal responde que não tinha. Mas não ocorria aos médicos fazer essa pergunta.

Verônica – Essa é outra escuta que tem de ser incluída na entrevista médica. Porque não existe um olhar para algo que possa também ser coadjuvante nessa infertilidade.

Helena – É como se não interessasse, não precisasse. A relação sexual fosse supérflua.

Verônica – Tanto é que os folhetinhos que a gente ia arrecadando nas clínicas de fertilização falavam para a mulher o seguinte: “Se distraia, não pense no assunto, vá ao shopping…”. (Risos)

– Vocês perceberam que, assim como as mulheres estão se sentindo incapazes de assumir seu próprio parto, de dar à luz naturalmente, elas também começam a se sentir incapazes de engravidar sem a ajuda do médico e da Medicina?

Helena – E isso é também efeito de um discurso que está na cultura. As razões são muitas. Acho que há o medo da responsabilidade, na medida em que vira uma decisão de tantas consequências econômicas e corporais. E há um certo distanciamento do próprio corpo, dos processos que acontecem no corpo e que assustam. Muitas mulheres empresárias, executivas não menstruam mais, por exemplo.

– O que vocês estão dizendo é que supostamente as mulheres teriam hoje um maior controle sobre o próprio corpo. Mas, de certo modo, as decisões estão sendo delegadas à Medicina?

Danielle Exatamente.

Verônica É interessante pensar que lá atrás havia uma leitura nas Ciências Sociais de que a mulher sofria mais repressão na cultura porque, por causa desses processos fisiológicos, a mulher tinha um pé mais dentro da natureza. A hipótese era de que, por isso ser ameaçador, então o homem/a cultura exercia um controle maior sobre a vida dela. Se a gente atualizar essa ideia, hoje, ao tentar reassumir o controle sobre o corpo, a mulher está sendo novamente controlada. Acho que é isso que a gente foi observando.

– Outra questão que vocês levantam na pesquisa é que, para ser mãe, é preciso deixar de ser filha. E parece que esta tem sido uma passagem difícil para muitas mulheres…

Verônica – Dentro dessa cultura que valoriza muito a imagem, essa coisa de não poder envelhecer, de não haver diferenças entre gerações, encontramos também isso. Para ser mãe, você tem que deixar de ser filha, você tem que deixar agora o seu filho acontecer. Então, passar para este lugar, o de deixar de ser filha para ser mãe, exige uma operação subjetiva muito grande. É muito difícil.

Helena – Justamente. E aí entra a questão de como se lida com as perdas atualmente. Os lutos e as perdas. Está mais difícil fazer luto hoje. E virar mãe implica em um luto. O luto da filha, o luto de uma posição. Isso também estaria dificultado, na cultura atual, onde não se pode perder nada.

Verônica – E nada pode deixar marcas. Nem marca da velhice, nem marca da gravidez. Então você pega os famosos, que são formadores de opinião/imagem: mulheres que têm filhos e já aparecem na sequência com um corpo sem marca nenhuma de uma gravidez. Nessa cultura, nada pode fazer marca, nada pode fazer ruga.

– E como entra esta questão, que também é muito presente na nossa cultura, de que não há limites, de que se pode tudo?

Verônica – Percebemos isso… Se eu tenho vontade, eu posso. Que vai até para a coisa da educação da criança, da falta de limites, de eu não poder lidar com o meu desejo. O meu desejo impera, é imperativo. Então, eu QUERO ter um filho, e a qualquer custo eu vou ter esse filho. Agora, esse filho, às vezes, muitas vezes até, não está no lugar de filho mesmo. Ele está mais como objeto de satisfação narcísica para esse casal, para essa mulher. A gente continua achando que existe uma tendência para isso: para não poder lidar com a perda, com a frustração, com o limite que às vezes o próprio corpo impõe. Só que a coisa se complica bastante porque às vezes, muitas vezes, essa limitação que o corpo mostra é um sintoma. É um sintoma dessas próprias dificuldades, da própria falta de condições de exercer a maternidade. A certa altura, propusemos, em nossa pesquisa, uma divisão entre vontade e desejo. Quando a mulher chega para o médico e fala “eu quero ter um filho”, seria importante se ele pudesse sugerir questões para essa mulher, levando-a a diferenciar entre vontade e desejo. Eu posso querer ter um filho, e te digo que quero, mas desejo mesmo? Inconscientemente talvez o desejo desta mulher não seja este. Se você percebe isso, você consegue trabalhar com essa pessoa, ajudando-a a desfazer esse conflito que está lá dentro, o de querer e não querer, e poder falar que quer e não quer. Porque fala muito que quer, mas onde há espaço para aparecer a parte que não quer? E o “não quer” também não é absoluto, né? Porque tem um lado que quer também.

Danielle –  É importante deixar claro que a questão não é com a técnica, ou com quem procura essa tecnologia. A questão é cultural. Diz respeito ao lugar que tem um filho hoje, ao lugar dos corpos, ao lugar do controle. A gente não está discutindo os casos de reprodução assistida, mas o que isso nos faz ver sobre os tempos em que vivemos.

Verônica – Quando a mulher chega ao consultório, a dor daquela mulher que quer ter um filho é verdadeira. Achamos que ela pode ter um filho, mas achamos também que é preciso tomar cuidado. Aquela mulher vive a deficiência como sendo dela, quando a gente acha que essa infertilidade diz respeito à forma como está sendo processada toda essa questão na cultura: da mulher, do lugar de mãe, do lugar da maternidade. Não se trata de ser contra a reprodução assistida, mas de questionar como estamos lidando com a tecnologia. E o que essa forma de lidar diz da nossa época.

– Uma das questões da reprodução assistida trazida por vocês é a de que, já que você pagou tão caro e se submeteu a tantos procedimentos para engravidar, então está provado que você deseja este filho e é certo que você vai amá-lo. A realidade tem mostrado que as relações humanas são mais complicadas que isso…

Helena –  Eu acho que uma coisa muito complicada em relação a isso é a questão da ambivalência. Porque toda grávida, toda mãe, é ambivalente em relação aos filhos. Quer, não quer; ama e odeia… Uma vez feita a reprodução assistida, o filho tem de ser amado. É como se a ambivalência pudesse ser eliminada da cena.

Danielle – É como se o fato de ter procurado a reprodução assistida eliminasse, automaticamente, qualquer ambivalência. Isso é uma loucura completa.

Helena – E isso penaliza as mães, porque, afinal, fizeram tanto esforço… Ou seja, a mulher usou essa tecnologia que custa tão caro, que no SUS não estão pagando, e depois fica em conflito com a gravidez, com a maternidade? Como assim? Parte-se da ideia de que a tecnologia pode tornar o processo da maternidade asséptico e sem conflitos. Só que, na realidade, não é assim que acontece. O conflito não some, a ambivalência não some porque usou tecnologia para engravidar.

– Pegando este gancho, me deparo hoje com um certo desamparo dos pais. Porque, para se tornar pai e mãe é preciso abrir um espaço interno. Não é só transformar uma parte da casa em quarto do bebê e chamar uma decoradora. Mas parece que esse processo de abrir um espaço interno e se preparar internamente para receber o filho não é vivido por muitos pais ao longo da gestação. E então, de repente, estão com um filho nos braços, mas sem espaço interno, porque os conflitos não foram vividos no seu tempo – e nem mesmo se admite que os conflitos existam. Então, esses pais ficam muito angustiados, às vezes desesperados… Faz sentido para vocês o que estou dizendo?

Helena –  Achamos que não ter espaço interno tem a ver com a efetividade atual. Por que a efetividade hoje em dia prevalece sobre a afetividade. Deu uma virada nisso. Por falta de espaço interno.

Verônica – Temos uma situação ocorrida no grupo que pode traduzir isso. O que a gente vai vendo com essas mulheres é que assumem muito cedo a questão da infertilidade. Elas assumem o discurso da infertilidade de uma forma intensa. E num desamparo muito grande. Tivemos um momento no grupo em que, depois de falar sobre a Medicina e a técnica, lá pelas tantas uma delas começou a lembrar que a mãe fazia um caldo de galinha, elas começaram a lembrar do resguardo, e que no tempo de suas avós ou mães não se podia lavar o cabelo durante a menstruação. E aí começa um movimento no grupo que foi muito interessante, o de resgatar algo do simbólico mesmo, algo de um corpo olhado pelo outro. Disso que a gente estava falando: de as mulheres trocarem informações sobre o que está acontecendo com o próprio corpo.

– De um saber que não é médico….

Helena – Sim, de um saber que era herdado das mães. Porque hoje você não pergunta mais para a mãe, para a avó: “Como é que faz isso?”. Antes, o pedido de como se faz isso ou aquilo era para as mulheres da família. Hoje, elas ligam para o pediatra. Acho que é importante pensar o quanto o processo de reprodução assistida, e todas essas questões, repercutem na forma como os pais se apropriam dos filhos.

– Eu escuto muito a seguinte frase dita por mulheres as mais diversas: “Acho que não vou conseguir engravidar…”. Assim, do nada. Ao longo da pesquisa, vocês chegaram a perceber se as mulheres já se consideravam inférteis antes dos exames e do diagnóstico? Se o médico apenas confirmava uma infertilidade em que elas já acreditavam mesmo antes de procurá-lo?

Danielle – Eu me lembro de exemplos do consultório. Acho que atualmente a questão da infertilidade está muito presente. As mulheres, realmente, de 25, 27, 28 anos, se perguntam se vão conseguir engravidar, se vão ter dificuldade… Faz parte, já, do discurso. E este discurso costuma ser confirmado muito facilmente. Bastam seis meses de tentativa e já partem para a tecnologia.

Helena – A forma como a idéia da reprodução aparece na mídia já traz embutida a ideia de que as mulheres são inférteis, que precisam de uma assistência para engravidar.

– Vocês acham que toda essa questão também se dá, em parte, por uma relação de consumo? Porque há um momento em que a maior parte dos casais se sente obrigada a ter um filho. Não parece só ser uma questão de desejo, para alguns, mas também de imagem. Aí tem o filho. Só que ter um filho não é como ter um carro. Não dá pra vender e comprar outro – ou devolver se não está satisfeito com o desempenho. Nem dá para escolher o modelo, o sexo ou a cor dos olhos. Há algo da ordem do incontrolável de ter um filho que parece estar surpreendendo alguns pais…

Danielle – Tive uma paciente que fez um lapso a respeito do filho. Ela o chamou de carro. E o trabalho foi entender que, naquele momento, o que ela queria era um carro – e não um filho. Um carro em que ela escolhia a cor, o tamanho, o preço… Naquele momento da análise, para ela, soltou alguma coisa. Ela investiu no carro, ela e o marido compraram um carro incrível. Porque o projeto era esse mesmo. Muito mais tarde, ela começou a se preparar para ter um filho, e daí toda a história já era outra: os sonhos, como fazer ninho etc. Porque daí a história passa por como é que você vai lidar com a situação da ordem do não-controle mesmo. Era importante distinguir estas duas coisas e ficar tranquila. No momento em que o projeto é carro, o projeto é carro. Mas carro e filho não vão coincidir, não são a mesma coisa. Não dá para comprar um filho. E aí você protege a mãe e protege o filho.

Verônica – Lembrei de uma psicanalista que fala dos efeitos da tecnologia sobre a subjetividade humana. Acho que isso também é uma das coisas que assusta no fato de ter filhos, isso de que supostamente a felicidade do filho teria de ser garantida pelo oferecimento de TUDO pelos pais. O filho tem de ser feliz e você tem de dar todas as respostas para ele, tem de supostamente atender todas as necessidades dele. Essa psicanalista fala que um dos efeitos da tecnologia, por exemplo, se dá sobre a experiência do tempo de espera. Antigamente, você ligava a televisão e esperava a válvula esquentar, a imagem demorava a aparecer. Depois, você passa a apertar o botão e a imagem imediatamente aparece. E ela começa a notar no consultório que antes os filhos chamavam a mãe puxando a saia, puxando a roupa. (Verônica mostra o movimento de puxar.) E que depois passou a ser apertando assim… (Ela simula o toque em um controle remoto). É uma imagem de como a resposta tem de ser imediata. Se aperta, tem de responder. Então, eu acho que tem isso, essa coisa do controle, de que eu posso programar ter um filho, faço as contas de quanto vai custar. E também parece que é necessário se antecipar a tudo. Não é algo que está dado, e vamos ver o que acontece. É como se você não contasse com a experiência vivida. Que a experiência, no processo de construção desta maternidade e desta paternidade, fosse abrindo caminhos e trazendo elementos para você construir uma resposta para a situação. Essa questão do tempo é fundamental. E ela aparece em todas as etapas do processo.

– Por que vocês se indignaram com o tratamento dado aos pais que manifestaram a intenção de entregar para adoção uma das trigêmeas?

Helena – A gente foi lendo na imprensa e se dando conta de que havia um linchamento moral daquele casal. Uma mulher de 28 anos teve três meninas. Desde o início o casal se angustiou e anunciou que queria dar uma das meninas para adoção. E, quando nasceram as três, eles reafirmaram esse desejo. Não dá para ter certeza, porque as informações dadas pela imprensa são desencontradas, mas é possível que tenham escolhido dar para adoção a mais frágil das três. E aí o hospital denuncia para o Conselho Tutelar que esses pais estão rejeitando uma das crianças e a medida da Justiça é separá-las dos pais. Mandaram as trigêmeas para um abrigo. E os pais só poderiam vê-las durante duas horas por semana. Achamos que toda essa história tem que ser contextualizada para que a responsabilidade não recaia apenas sobre o casal. Há outros atores e fatores em cena.

– Vocês acham que os pais foram abandonados?

Danielle – Foram.

Verônica – Mas acho que eles não foram abandonados neste momento. Porque não deveria ser assim: eu tenho três filhos e escolho um. Você já sabe disso antes, e o que vai fazer. Porque aí vem de novo essa coisa da vontade. Do controle. Dessa coisa de que eu posso tudo. Então, se eu engravidei de três eu posso querer só dois. Como é que você se implica naquilo que acontece na sua vida? Eu me desfaço disso? É que nem novela? Mata, porque aquele personagem está demais? Descarto? O que nos chama a atenção é o que a gente vinha falando: como uma questão que é montada culturalmente – faz parte do discurso da cultura – é jogada, e esse casal passa a ser o único representante da falha. Quando é muito claro que a falha está em todo o processo. A questão não passa por tirar a responsabilidade do casal, mas a falha começou muito antes e estamos todos implicados nela. Qual é o discurso da Medicina, amplamente divulgado pela mídia? Implanta, escolhe, descarta, reduz…

– Aí, de repente, fica todo mundo surpreendido, não é? Somos todos inocentes… Nunca ninguém tinha falado nisso…

Helena – Nos cabe perguntar sobre a responsabilidade pela implantação de três embriões no útero de uma jovem de 28 anos. De que forma essa decisão foi tomada? A decisão cabe ao casal ou à equipe médica responsável pelo procedimento da reprodução assistida? Os casais são suficientemente esclarecidos sobre todo o processo da fertilização in vitro e sobre o destino dado aos embriões que não forem utilizados? É certo que o procedimento de implantação de embriões numa mulher jovem tem mais chances de dar certo, de os embriões se fixarem e seguirem se desenvolvendo, do que numa mulher de mais idade.

Vale a pena lembrar também da existência da técnica de redução embrionária, muito discutida no âmbito da medicina reprodutiva e praticada, embora proibida, no Brasil. Trata-se da técnica que permite a eliminação de um ou mais embriões, ainda em fase celular, em pacientes que geraram mais de um. Também chamada de técnica de “descarte de embriões”, é defendida por uma parte dos médicos como sendo necessária em mulheres com gravidez de risco por se tratar de uma gestação múltipla.

É evidente que o dilema vivido pelo casal não é um dilema que só lhes diz respeito, pois é explicitamente trazido à cena e posto em prática pela Medicina, cujas tecnologias de reprodução assistida estão à disposição no mercado. Este casal está, então, inserido em uma cultura em que a opção de “descartar um dos fetos” está colocada.

Já vimos reportagens, antes deste caso, contra as quais ninguém se manifestou ou se indignou. O título de uma delas, manchete de uma revista, era o seguinte: “A escolha mais difícil. O aumento no numero de gestações múltiplas coloca o dilema: abortar ou não alguns dos fetos?”. Quer dizer, está na manchete de uma revista, mas, na hora em que isso se encarna em alguém, que eu posso escolher, que eu posso descartar, porque está na Mídia, está na Medicina… há toda essa reação. E, paradoxalmente, na hora em que a Justiça determina a separação entre as crianças e os pais, como uma medida supostamente protetora, a amamentação é interrompida e impõe-se o abandono das crianças.

Danielle – Fala-se, por exemplo, da gravidez de risco. Mas há outra questão, que é o risco subjetivo, que fica completamente anulada. A gravidez é de risco não apenas porque são três bebês. Mas também porque lidar com três crianças que nascem, em geral, superprematuras, em situações de uma fragilidade extrema e absoluta, é um risco gigantesco. Porque é complicado fazer laço com três filhos ao mesmo tempo; é complicado fazer laço com três bebês que nascem frágeis, perigando morrer, perigando ter mil sequelas. Todas essas questões ficam muito negligenciadas no processo da reprodução assistida.

Verônica – Assim como fica negligenciada a figura do médico, que surge numa fala totalmente impávida neste caso. Ele disse: “Nunca vi um caso desses acontecer antes, de uma mãe rejeitar o filho”.

Helena – Ele foi o médico da mulher, foi ele quem implantou os embriões. Ela era paciente dele, e em vez de defendê-la e dizer “Eu conheço esta pessoa…”, ele se desimplica de um jeito muito irresponsável.

– Por que vocês acham que este casal sofreu um linchamento moral?

Helena – No cenário da reprodução assistida se intensifica de novo a questão do mito do amor materno. É isso o que, afinal, o médico enfatiza no discurso dele: “Eu nunca vi pais que, depois de quererem engravidar, rejeitam um filho…” Parece que, no mundo da reprodução assistida, não pode existir dor, perda, luto, conflito, ambivalência. Fica uma coisa chapada, onde só cabe sucesso, sentimentos positivos, potência, amor. Há um nível de negação muito intenso neste mundo. Há uma negação intensa de todo o lado do sombrio, digamos assim. E a positivação e a intensificação muito hipócrita, inclusive, de que não há conflito, não há ambivalência.

Danielle – Neste mundo obviamente todos querem ter um filho, obviamente todos querem ter muitos filhos e obviamente todos vão amá-los. De repente, há um encontro com o avesso disso. Então, é o seguinte: eu não tenho nada a ver com isso. Isso é ela – não eu. Jogam o conflito para cima do mais frágil.

Helena – Quando surge algo assim, como neste caso das trigêmeas, vira um escândalo. O médico diz: “Bom, nunca vi isso”. É hipócrita, é cruel, é uma negação. Há uma coisa muito negadora, em vários campos, como o menino lá do Realengo que matou todo mundo. A sociedade, a escola, não tem nada a ver com isso. Ele é um monstro que fez isso. Então, acho que há um certo parentesco de colocar a monstruosidade no indivíduo e, assim, a sociedade pode negar ter qualquer relação com essa violência, ambivalência, rejeição. O problema está no indivíduo. Há várias situações em que todo mundo se exime da responsabilidade. Nós não somos violentos – o violento é o outro. Não só violento, como um monstro. Como neste caso das trigêmeas. Ninguém diz: “Não cuidamos direito desta menina, que engravidou de três bebês”. É melhor negar e simplificar. Agora, você imagina o estrago que foi feito nesse começo de família, nestes pais e nestas filhas…

– Ao analisar o caso das trigêmeas, vocês afirmam o seguinte: “Tomemos, que o filho é nosso!”. O que significa isso?

Helena – Acho que “o filho é nosso” neste sentido, de que a gente precisa se comprometer com aquilo que está em jogo.

Danielle – E que a gente, como cultura, está veiculando e fazendo aparecer. Então acho que a ideia do “nosso” é: precisamos nos implicar e nos responsabilizar por aquilo que estamos fazendo acontecer.

Verônica – O que este casal está explicitando da nossa cultura? Por que causaram tanta indignação? São questões que precisamos nos colocar. Há uma banalização do processo todo, doação e descarte de óvulos, há uma banalização do que é ter três filhos ao mesmo tempo. Pensar sobre isso é responsabilidade de todo mundo. Esta, afinal, é uma produção da nossa cultura. Neste sentido é que “o filho é nosso”. É preciso também olhar para a idealização desse controle. Porque, de fato, não existe controle nesse nível. Implantam-se cinco embriões para tentar que dois deem certo. Então, os médicos jogam com isso. Só que o problema de jogar com isso é que no final da linha há um bebê. Ele está ali. E, agora, faz o que com ele?

Helena – Estamos todos implicados. Mas, em vez de problematizar, acusamos. E nos retiramos da cena. A ideia do “Tomemos, que o filho é nosso!” é reconhecer que estamos todos dentro da cena. O casal também tem de se responsabilizar. O problema foi responsabilizar a eles, exclusivamente, deixando-os sós. Eu acho que o “Tomemos que o filho é nosso!” é assim: este é um fruto da nossa cultura. É filho da cultura, não só deste casal.

– O que eu acho muito curioso é que existe essa tecnologia toda, nada precisa ser natural, nem o parto nem a reprodução, que pode ser feita num tubo de ensaio e não na cama, e no fim disso tudo a sociedade abre uns olhos espantados e exige a sacralidade do amor materno. “Como assim, essa mãe não acha maravilhosos ter três bebês ao mesmo tempo? Ah, nunca se viu uma coisa dessas…” Voltamos ao mito, como vocês disseram.

Helena – Eu acho que a mãe volta ao lugar idealizado via tecnologia. Ela foi destituída desse lugar tão idealizado, e ela volta a ser restituída a esse lugar com a tecnologia da reprodução assistida. O que volta com a reprodução assistida é justamente o mito do amor materno.

– Como assim?

Helena – Desse jeito. Se ser mãe passa a não ser mais tão valorizado – ser executiva talvez tenha mais valor, ou ser uma grande esportista, ou ter dinheiro, ou ter um carro bacana… As tecnologias de reprodução assistida possibilitam que as mulheres voltem a ser mães. Essa mãe que eles fabricam, que eles possibilitam/produzem, tem de ser uma mãe com letra maiúscula: uma mãe sem conflito com a maternidade, que nunca vai rejeitar o filho. De certo modo, a tecnologia possibilita a volta de “A Mãe”. E esta mãe não tem sombra, não tem marca. É a mãe com o letreiro e as luzes piscando. Ela retorna, e tem de refazer o mito do amor materno, porque também isso justifica a existência das tecnologias, da pesquisa, das ampliações dessas fronteiras tecnológicas. Então, é como o médico das trigêmeas falou: “Nossa, toda essa tecnologia, todo esse empenho, e eu nunca vi uma mãe depois de tudo isso não querer um filho”.

– O médico parece ter se sentido traído, né?

Verônica – Nesta pesquisa, a gente participou de algumas reuniões dos médicos do setor de reprodução. Em uma das discussões, eles debatiam a taxa de fertilidade. Um dos participantes disse: “Bom, a inseminação artificial bovina é perfeita, ela tem resultados ótimos, porque você usa o melhor reprodutor com aquela que tem mais condições de reproduzir. Nossos pacientes aqui são os piores reprodutores. As matrizes que a gente tem são falhas”. O que pensamos é que essa idéia remete ao biológico, ao corpo como uma máquina de procriação.

Helena – A gente fala muito que a Medicina retira o sujeito de cena, né? Acho que tem um pouco a ver com isso. O sujeito é aquele que é dividido, que tem conflitos. Sem conflitos não há sujeito.

(Publicado na Revista Época em 25/07/2011)

A vida aos espasmos

Os crimes brutais cumprem a função – pouco admitida – de apaziguar nossas consciências

Existem várias maneiras de contar um determinado período histórico. Diferentes, mas com sua porção de verdade. No Brasil, poderíamos contar os primeiros anos do século XXI assim: Sandro do Nascimento, sobrevivente do massacre da Candelária, sequestra o ônibus 174 e, ao levar a professora Geisa Firmo Gonçalves como refém, ela é morta (o primeiro tiro partiu do revólver de um policial) e Sandro é executado em seguida, no carro de polícia; o jornalista Pimenta Neves mata a ex-namorada Sandra Gomide e, depois de um breve tempo preso, é solto e permanece livre até hoje; Suzane Von Richthofen, estudante de classe média-alta, é presa como mentora e cúmplice do assassinato dos pais; os adolescentes Liana Friedenbach e Felipe Caffé são mortos (e ela também torturada e violentada) por “Pernambuco” e “Champinha”; Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, pai e madrasta, são condenados por jogar a menina Isabella, de cinco anos, pela janela do prédio em que moravam; depois de mais de 100 horas em cárcere privado, Eloá Cristina é assassinada pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves; o goleiro Bruno Fernandes, então do Flamengo, é preso como suspeito pelo desaparecimento de sua ex-namorada e mãe de seu filho Eliza Samudio. E Wellington Menezes de Oliveira assassinou 12 adolescentes, dez meninas e dois meninos, na escola municipal Tasso da Silveira, no Realengo, antes de se suicidar.

São casos muito diferentes. Em comum, a brutalidade e a repercussão midiática. Me restringi aos crimes com autoria conhecida e vítimas fatais – e possivelmente esqueci algum. Todos eles ocorreram no Rio e em São Paulo ou pelo menos nas regiões metropolitanas dessas duas capitais. E aqui cabe uma pergunta interessante: o número de casos escabrosos se deve à população maior dessas duas cidades ou apenas ao poder de amplificação da mídia do centro do país? É improvável que inexistam casos semelhantes em outras regiões do Brasil. Talvez eles apenas não se tornem uma comoção nacional por falta de vitrine geograficamente abrangente.

Meu interesse, porém, não é discutir o tratamento dado pela imprensa a esse tipo de caso ou mesmo o seu papel – talvez menor do que a maioria de nós costuma supor. Para isso indico o excelente artigo de Eugênio Bucci no Observatório da Imprensa: “Deixar a vida para entrar no espetáculo”.

O que gostaria aqui é de chamar a atenção para essa vida de espasmos. De tempos em tempos, somos assaltados por um barbarismo sangrento cometido por alguém contra um outro – ou outros. E, por alguns dias, semanas, as imagens, detalhes e especulações tomam conta da nossa rotina. Nos assombramos, choramos, passamos mal, alguns de nós clamam por pena de morte (no caso de o algoz não ter se matado ou sido morto), outros por linchamento. Soluções imediatas e oportunistas aparecem misturadas a propostas sérias, sem que saibamos no clamor da hora separar uma da outra. Especialistas de todo o tipo são chamados a nos explicar os fatos no mesmo palco midiático em que as imagens são repassadas inúmeras vezes até a banalidade.

E depois, com o passar dos dias, vamos esquecendo. Até sermos tomados mais uma vez por um crime hediondo diferente, mas pela mesma revolta e por uma vontade sanguinária de matar com requintes de crueldade (aqui o clichê é necessário) o monstro assassino – e, se já estiver morto, a vontade de matá-lo quantas vezes for necessária, de preferência com mais violência do que a usada por ele.

E assim a vida segue. E esse é também um jeito de contar a vida de cada um – não só a de uma época. É natural – e mesmo desejável – que nos choquemos com a violência. Seria preocupante se achássemos corriqueiros acontecimentos como o de Realengo – e se não nos comovêssemos com as vítimas (e alguns, como eu, também com a solidão, o desamparo e a dor do assassino). Mas há certa dose de banalidade na forma como choramos cada tragédia – em geral sem tentarmos compreender as diferenças essenciais de cada uma delas. Que é, afinal, o que nos levaria um pouco mais adiante na compreensão do nosso mundo. E nos arrancaria de uma espécie de anestesia enraivecida – ainda que o termo pareça contraditório.

Crimes bárbaros e espetaculosos chocam, causam sofrimento – mas também dão algo a cada um de nós. Algo de que gostamos e que nos é conveniente, mesmo que jamais admitido. A começar pela reafirmação da certeza de que a loucura está sempre no outro. A violência pertence ao outro. Como parte da mídia prefere simplificar e tachar o assassino de monstro, melhor ainda. O desejo de matar ou/e de violar, o desespero extremo ou a indiferença pelo destino alheio, tudo isso pertence a alguém que não é como nós. É um monstro – e nós somos gente.

Se nós, como cidadãos do bem, temos ganas de estripar, arrancar os olhos, torturar, apedrejar, queimar e finalmente matar o tal do monstro, isso não nos aproxima dele – porque então nós temos outro nome plenamente aceito pelo senso comum: “justiça”. É apenas uma questão de justiça, olho por olho, dente por dente. Talvez desejemos um pouco mais de olho e de dente que o próprio assassino ao cometer seu crime, porque estamos com muita raiva e somos melhores do que ele. Somos humanos, afinal.

Supostamente há uma linha eletrificada e de arame farpado entre o monstro e o resto de nós. Infelizmente essa linha é muito mais tênue – e no fundo de nós sabemos disso. Ou pelo menos desconfiamos. Mesmo quando negamos isso – e especialmente quando negamos com veemência.

Nada mais difícil do que aceitar os próprios demônios – e lidar com eles. E nada mais fácil do que acreditar que só os outros os possuem. O assassino de Realengo que o diga. E aqui não estou me referindo ao conceito religioso de demônio, mas aos sentimentos bem humanos que convivem em nós – e mesmo nos mais santos entre nós – apesar de nossas melhores intenções.

Quem olha para dentro de si com alguma honestidade sabe que é menos limpinho do que gostaria. E lida com isso – em vez de reprimir ou transferir ao outro. Demônios internos, infelizmente, não são transferíveis. Mesmo quando, diante de crimes bárbaros, temos a oportunidade de nos iludir por algum tempo que o autor pertence à outra espécie – uma radicalmente diferente e, portanto, distante. Se fosse possível, de outro planeta.

Crimes bárbaros também nos dão a chance de, de tempos em tempos, extravasar a nossa indignação acumulada. Pela rotina que nos esmaga; pelo chefe que nos humilha; pelo salário que não alcança o fim do mês; pelo companheiro ou companheira que não realiza nossos sonhos (nenhum jamais vai poder realizar, mesmo que queira); pelos filhos que eu amo, mas dos quais gostaria de tirar umas férias; pelo colega de trabalho que se dá melhor e a quem invejo sem confessar; pelos ônibus lotados, o trânsito parado, o síndico chato. Enfim, pelo comezinho da vida cotidiana que, a cada manhã, reafirma a nossa (suposta) impotência.

E então algo terrível acontece – com outros, claro – e nós discursamos, berramos, choramos e levantamos os punhos diante da TV. E nos sentimos mais potentes. O reflexo devolvido pelo espelho nos é mais favorável porque nele não vemos um monstro (nem alguém mais acabado ou menos bonito do que gostaríamos), mas um cidadão de bem. E passamos alguns dias, talvez até semanas, apaziguados com uma existência que até há pouco nos parecia ordinária. E com a ilusão de que, por extravasarmos a nossa indignação e gastarmos uma enorme energia nisso, fizemos alguma coisa. Nós, que nos sentimos tão impotentes, de repente temos a fantasia de sermos potentes, ativos. Nós, que desconfiamos que nossa vida não está fazendo sentido, por um momento ganhamos sentido.

Enquanto isso, há muito que está ao nosso alcance. Há sempre muito para mudar na nossa relação dentro e fora de casa na vida miúda e nem por isso destituída de extraordinários do dia a dia. E também no que se relaciona à violência.

Há sempre muito a fazer – e a maioria de nós pouco ou nada faz. Enquanto isso, as escolas públicas caem aos pedaços todos os dias; adolescentes pobres chegam a níveis avançados sem ler nem escrever ano após ano; há mais gente morrendo por falta de atendimento no SUS do que em qualquer chacina; há gente nem um pouco monstruosa perdendo a vida a cada chuvarada por causa de obras públicas que deixaram de ser feitas; há ainda gente passando aquela fome persistente que não mata, mas aniquila; os impostos que nos custam seguem descendo pelo ralo da corrupção e do desperdício; parte de nós nem lembra em que deputado e vereador votou para representá-lo, muito menos cobra uma atuação responsável; e às vezes os que clamam por linchamento são os mesmos que maltratam a companheira e humilham os filhos ou os que tratam seus empregados aos gritos, pagam salários indignos e descumprem as mais básicas leis trabalhistas.

Há desrespeitos e desamparos de todos os formatos ao nosso redor e ao alcance de nossa ação dia após dia. E isso parece não mover a indignação da maioria. E não me refiro à indignação palavrosa, fácil, mas àquela que leva à ação e à transformação, a começar pela transformação de si mesmo. Das suas relações com os seus e com o mundo em que atua. E por que não move?

Porque dá trabalho. E a maioria de nós não quer ter trabalho algum. Porque esse esforço na maioria das vezes é invisível – e o que todos querem é ser herói, ainda que por um dia. E se os heróis das histórias em quadrinhos tinham identidade secreta, na vida real em geral só vale a pena ser herói se tiver alguma câmera de TV por perto.

É muito mais fácil gastar toda essa indignação travando o maxilar diante da TV, batendo o punho na mesa do bar, discursando na parada de ônibus. E, infelizmente, também por causa de nossa inação, não faltarão crimes bárbaros para continuar nos assegurando de nossa normalidade e de que somos cidadãos de bem.

Construir sentido para a vida não é fácil. Com certeza é bem mais difícil do que vociferar contra os “monstros” que se alternam diante de nossa moral cada vez mais indefinida – em imagens com ótima definição.

(Publicado na Revista Época em 18/04/2011)

Crime sem sangue

O desabafo de um professor sobre a violência cotidiana da escola pública – onde parte dos adolescentes não sabe ler nem escrever

Rodrigo Ciríaco é professor da rede pública de São Paulo. Não custa lembrar, o estado mais rico do país. Os pais de Rodrigo, que completa 30 anos em maio, tinham uma lanchonete na Vila Rui Barbosa, na Zona Leste de São Paulo. Ciríaco cursou a escola pública, parte dela no período da noite para trabalhar durante o dia. Dos 14 anos em diante foi office-boy, mensageiro, auxiliar de escritório, operador de telemarketing, agitador de festas com videokê, vendedor de livros, estagiário em bibliotecas e educador social de rua. Contrariou as estatísticas ao conseguir entrar em uma das melhores universidades públicas do país: é formado em História pela Universidade de São Paulo (USP). Contrariou também as estatísticas familiares, ao se tornar o primeiro a cursar o ensino superior. Decidiu ser professor da escola pública por acreditar que deveria retribuir o investimento do Estado na sua educação. E também, mas principalmente, por desejar ser um instrumento de transformação de vidas. Tem pagado um custo alto por manter esta convicção.

Parte de sua experiência como professor de escola pública foi transformada em literatura no livro de contos Te pego lá fora (Edições Toró). É lá que está a incrível história da aluna que virou placa – tão incrível quanto invisível, como são as placas humanas da cidade, sobre as quais ele nos contará mais adiante. Educador, escritor, ativista cultural, Ciríaco passou as últimas férias em Berlim, a convite da pesquisadora Ingrid Hapke, da Universidade de Hamburgo, para fazer o lançamento do seu livro em “A Livraria”, casa especializada em literatura luso-afro-brasileira.

Seu livro foi assim apresentado aos alemães: “Escritos de vingança, dor e justiça de um professor que não aceita perder alunos para o tráfico e para a miséria, ver o preconceito camuflado para baixo de carteiras e nem abaixa a cabeça para diretores incompetentes e sistemas educacionais falidos. Contra tudo isto, usa a sua principal arma: a caneta”. Neste ano, Ciríaco integrou o grupo de autores da antologia de contos brasileiros, publicada na França e lançada em Paris no último 14 de março pela editora Paula Anacaona, com o sugestivo nome de Je suis Favela (Eu sou favela).

Ao voltar ao Brasil e às atividades na Escola Estadual Jornalista Francisco Mesquita, no Jardim Verônia, na região de Ermelino Matarazzo, na Zona Leste da capital paulista, Ciríaco voltou a lutar contra uma combinação sempre muito difícil de lidar: indignação e impotência. Com base no IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo), sua escola foi considerada uma das piores no nono ano do ensino fundamental: é a segunda pior entre as unidades de ensino da capital e a oitava pior entre os 3.695 colégios da rede estadual. Ciríaco, que realiza várias atividades educacionais extraclasse por sua conta e risco, tampouco foi contemplado no programa de bônus do governo.

Para dar 21 horas-aula semanais, ele ganha em torno de R$ 1.400 brutos. No dia em que soube que seus esforços não tiveram nenhum reconhecimento, faltou. Prejudicou apenas os alunos, sempre a parte mais fraca. Ciríaco admite a falha, mas afirma ter se sentido incapaz de enfrentar a sala de aula. Estava tomado pela solidão de quem escolhe o caminho mais difícil.

Na semana passada ele escreveu um texto intitulado “Desabafo” em seu blog (www.efeito-colateral.blogspot.com). Ao ler o relato, decidi procurá-lo para propor uma entrevista. Eu já o conhecia de encontros esporádicos em saraus de poesias e outros eventos da periferia de São Paulo. Também já conhecia seu livro. Ciríaco aceitou, mesmo correndo o risco de sofrer represálias. Professores podem ter problemas ao falar sobre sua vivência nas escolas paulistas – falar nem sempre é permitido.

Esta é uma conversa sobre educação e escola pública, em minha opinião o assunto mais relevante deste momento histórico vivido pelo Brasil. É também uma conversa sobre ideais e sobre perdas, sobre fraqueza e força, sobre cair e levantar para tentar mais uma vez. E sobre as contradições vividas por um professor às voltas com sua própria humanidade. É, principalmente, um debate sobre desigualdade e sobre a violência que mata sem sangue.

Esta entrevista já estava em curso quando Wellington Menezes de Oliveira matou 12 crianças numa escola em Realengo, no Rio. Optamos por não abordar o tema em nossa conversa. Sem informações suficientes, correríamos o risco de fazer inferências apressadas num momento em que o respeito à complexidade dos fatos é fundamental. Preferimos manter nosso foco na violência cotidiana e invisível, que, como professor, Rodrigo Ciríaco conhece bem. A única relação que eu me atreveria a fazer, diante de um caso tão terrível quanto singular como foi o do Realengo, é de que foi na escola que Wellington decidiu cometer seu massacre – assim como é a escola o palco de muitas das infelizmente tradicionais chacinas americanas. Já li muitas análises sobre o porquê da escolha da escola como lugar de assassinatos em massa. Mas acho que por aí há mais para pensarmos.

Se você não tem filhos na escola pública, não dê um suspiro aliviado e passe adiante. O tema desta entrevista tem tudo a ver com você, comigo. Se você não tem filhos, também tem tudo a ver com você, comigo. Pensar a escola pública, para além dos muros que para alguns são instransponíveis – e para outros um conforto – é uma tarefa de todos nós. Pelo menos de todos que têm vergonha. E que conseguem alcançar, ainda que de longe, a humilhação que um adolescente sente por estar no final do ensino fundamental sem saber ler nem escrever. É desde tipo de crime, comum e jamais punido, que falamos aqui.

Por que você escolheu ser professor da escola pública?
Rodrigo Ciríaco – A minha opção em ser professor de escola pública veio desde o momento em que escolhi ser professor. Por ter estudado toda a minha vida em uma escola estadual, por ter feito uma universidade pública, acreditava que tinha uma certa “obrigação” de devolver à sociedade tudo o que eu havia recebido, o investimento que havia sido feito em mim. Este foi um dos motivos. O outro é por acreditar que a escola pública gratuita é um verdadeiro espaço de transformação possível da sociedade em que vivemos. Um dos espaços. Não acontecem mudanças apenas pela escola, como sabemos. É preciso políticas públicas e eficazes de emprego, saúde, segurança, moradia e distribuição de renda. Deixar toda essa responsabilidade para a escola seria demais. E o abandono, as políticas públicas ineficazes, sempre me incomodaram, e muito. Me tornei professor porque tinha vontade de contribuir para que esse quadro fosse alterado.

Como são a sua escola e seus alunos?
Ciríaco – Desde que fui efetivado estou trabalhando na mesma escola. Hoje, ainda é difícil trabalhar por lá, mas já foi ainda mais. No começo, nos anos de 2006 e 2007, além dos problemas pedagógicos e administrativos, tínhamos sérios problemas de infra-estrutura. Das 18 salas de aula, nove delas alagavam, enchiam de água todo início do ano. Muitas outras tinham infiltrações, buracos na parede e no teto. Lousas aos pedaços. Além disso, o sistema de eletricidade era obsoleto – e ainda é. Vivia sobrecarregado, queimando computadores e lâmpadas. Houve alguns momentos em que tivemos problemas de curto-circuito. Não possuíamos uma diversidade de recursos pedagógicos, como sala de informática ou multimídia e laboratório. E a diretora era extremamente ausente, não cumprindo com suas obrigações profissionais.

Acredito que estudar e dar aulas em uma escola fisicamente aos pedaços é um tipo de violência contra professores, funcionários e alunos. Como isso é percebido dentro da escola e de que maneira afeta a comunidade?
Ciríaco – Eu acho que o estigma de a “escola pública ser ruim” já colou de uma maneira tão impregnada na sociedade e, principalmente, nas pessoas que vivem nas comunidades periféricas, que ficou banalizado. As pessoas muitas vezes não se dão conta de que aquilo é uma violência. Ou mesmo se sujeitam muitas vezes, sem acreditar na força da mobilização política e popular para transformar esse quadro. Isso tem um efeito muito negativo para os alunos, ainda que inconscientemente. Gosto muito de uma frase do Paulo Freire que dizia que o “ético tem muito a ver com o estético”. Quando se estuda numa escola caindo aos pedaços, é difícil ter ânimo, acreditar até que aquilo ali pode lhe propiciar algo de bom. Isso pensando nos alunos.

No caso dos professores, esse sentimento de indignação fica muito claro. Mas eu acho que não somos uma classe muito unida, principalmente em tornos dos problemas centrais da educação – e não apenas da corporação. Há uma indignação, crescente, visível, principalmente nas salas dos professores, nas reuniões pedagógicas, mas é uma revolta que não encontra uma válvula de escape política, que não se transforma em mobilização e em uma luta forte por mudanças.

E claro que isso não é desculpa, não justifica, mas influencia sim diretamente na qualidade de ensino. Na motivação. Até porque, muitas vezes, o professor não consegue se ocupar apenas das questões pedagógicas que lhe são pertinentes. Tem de dar conta de resolver problemas de falta de materiais, de estruturas precárias, de ausência de apoio e suporte pedagógico. O educador, na rede pública, não consegue ser apenas professor. Tem que ser uma espécie de faz-tudo, disponibilizar até recursos próprios para suprir deficiências que o Estado deveria resolver.

Nunca houve uma proposta de mutirão, por parte da comunidade, para melhorar a escola?
Ciríaco – Algumas vezes foram propostos, mas nunca deu muito certo, não vingou. Eu já cheguei a ir à escola, aos finais de semana, com alguns professores e pais, para fazer a instalação de ventiladores e outros pequenos consertos para melhorar o nosso dia a dia, mas foram coisas pontuais. A apropriação da comunidade, pela escola, na minha região e na minha unidade escolar especificamente é um projeto que está ainda distante. Tem ainda de ser construído. E tem de ser um projeto bancado pela escola como um todo: profissionais, diretores, funcionários. Daí, entra um outro problema: em geral, há muita rotatividade destes profissionais. Nos anos em que estou na escola, já tivemos três diretores diferentes e mais de oito vice-diretores distintos. O corpo de professores e funcionários efetivos é pequeno, acaba sendo muito rotativo. Fica difícil estabelecer grandes vínculos e perpetuá-los.

“Na escola privada, como cliente/consumidor, o aluno tem mais direitos do que na pública, em que é ‘apenas’ cidadão”

A escola pública foi abandonada pela classe média. E isso não deixa de ser uma violência. Por que você acha que isso aconteceu? E como esta violência é sentida, na medida em que os alunos sabem que sua escola é pior do que aquela frequentada por quem tem mais dinheiro?
Ciríaco – Acredito que o abandono da escola pública pelas elites e pela classe média tenha acontecido por conta de uma visão individualista que as pessoas têm sobre a vida em sociedade. Nesta visão o que se ignora é justamente a responsabilidade de viver em sociedade. O que vale é o “salve-se quem puder”. Aos poucos, deixa-se de considerar o outro em suas decisões. Então, se a qualidade de ensino da escola do meu filho está caindo e parece muito complicado reunir os outros pais para discutir sobre essas questões, acionar os órgãos democráticos de reflexão como o Conselho de Escola, a APM (Associação de Pais e Mestres), entre outras medidas, e eu tenho condições financeiras, o que eu faço? Eu retiro o meu filho da escola pública e coloco-o em uma instituição particular de ensino. Ao estabelecer uma relação de cliente/consumidor eu tenho mais “direitos” e respostas do que naquela em que eu era “apenas” cidadão.

Não é curioso que as pessoas tenham mais condições de reivindicar como consumidores, no que se refere à educação, do que como cidadãos que trabalham e pagam seus impostos? Como você vê esta distorção?
Ciríaco – É uma distorção cruel e violenta típica da sociedade capitalista em que vivemos e, como dizem os Racionais, “você vale o que tem”. E é bem isso. Há tempos que o Ter é mais importante, mais valorizado do que o Ser, apesar do discurso, da Constituição dizer o contrário. Em tese, somos todos “iguais perante a lei”, mas sabemos que na prática dinheiro é sinônimo de poder. E quem tem, pode mais. Não é algo que eu acredito, mas é como eu vejo. E no caso do “aluno/consumidor/cliente”, é mais fácil para ele reivindicar coisas, pois entra numa simples questão: ele têm escolha. O dinheiro lhe abre essa possibilidade. Se a escola particular não está atendendo às necessidades do educando, às reclamações dos pais, eles simplesmente vão lá, tiram o filho daquele colégio e matriculam em outro. No caso do cidadão que depende do Estado para ter minimamente os seus direitos sociais garantidos, essa lógica não entra. Não existe. É a lógica do “pegar ou pegar”. Não se pode nem pensar em largar, afinal é difícil muitas vezes conseguir vagas em escolas públicas. E quando existem reclamações por parte dos pais, nas Diretorias de Ensino, na Secretaria de Educação, entram no bolo das reclamações que existem contra instituições do Estado. Parece que acabam caindo em um limbo, num buraco negro do esquecimento. Principalmente se não houver uma mobilização, se for uma reclamação individual. É como se aqueles que dependem do Estado não tivessem o direito de reclamar. É aceitar o que está lá e pronto. Os direitos sociais no Brasil não são vistos como direitos, e sim como favores. E se eu faço um favor, você tem de aceitar. De bom grado e pronto.

Se existe um projeto político de educação no Brasil, e ele existe, apenas não é admitido, é o de fazer a escola pública não funcionar”

Como você vê a violência velada da escola privada, que me parece permear a relação entre alunos, pais e professores? Acho que se discute muito pouco sobre a violência da escola privada. No máximo, se fala sobre os sofrimentos infligidos aos alunos mais frágeis, o tal do bullying.
Ciríaco – A violência da escola particular não é muito debatida ou sentida, acredito, entre os alunos. Não é algo que está em pauta, em discussão, cotidianamente. Essa violência aparece, muitas vezes, quando é trazida por professores que trabalham em ambos os lugares, e que, em casos de indisciplina ou outros problemas, fazem comparações entre a instituição particular e a escola pública, colocando a privada – e seus respectivos alunos – como melhores, mais preparados do que os da escola pública. Esta comparação, feita muitas vezes por um profissional de educação, costuma ser recorrente, e de extrema agressividade moral.

O que me incomoda muito é ver políticos, empresários, banqueiros construindo ONGs e dizendo que são “todos pela educação”. E, quando você vai ver, seus filhos estudam em colégios particulares caríssimos. E a mensalidade de um deles é, muitas vezes, um valor maior que o salário de um professor de escola pública. Acho de um cinismo, de uma hipocrisia e de uma crueldade muito grande. Eu, particularmente, vou acreditar que somos, realmente, “todos pela educação”, quando eu ver os filhos destes que têm uma condição financeira extremamente favorável se sentarem no mesmo banco, junto à mesma carteira, que o dos filhos de trabalhadores e trabalhadoras das comunidades e periferias do país. Quando juntos enfrentarem as mesmas questões, as mesmas dificuldades de falta de professores e de material didático adequado. “Ser solidário é correr o mesmo risco”. A frase é de Che Guevara e eu gosto muito. Porque é fácil ser solidário dizendo: “Vá lá fazer, eu te apoio”. Se apoia mesmo, entra junto na luta. De cabeça, de verdade, não apenas com palavras, com projetos que fazem intervenções pontuais, que não questionam a raiz, a base do problema, que são as políticas públicas de educação. Porque se existe um projeto político de educação no Brasil, e ele existe, apenas não é admitido, é aquele de fazer a escola pública não funcionar. Deixá-la abandonada, aos prantos, como uma criança assustada, sem amparo, atenção e carinho.

A diversidade de experiências deveria ser um dos instrumentos mais importantes da educação. No Brasil, a desigualdade reproduzida e multiplicada pelo sistema de ensino, que oferece uma escola ruim para os mais pobres e uma escola um pouco melhor para a classe média e os mais ricos, eliminou este instrumento pedagógico. E acho que até hoje não há nenhuma avaliação das consequências deste apartheid educacional em todas as outras relações sociais. Você, que testemunha o apartheid de dentro da escola pública, como vê este fenômeno?
Ciríaco – Acho que para os alunos das classes populares, isso gera muitas vezes uma falta de perspectivas, de olhar e enxergar outras possibilidades, novos horizontes. Tempos atrás, eu estava falando sobre Iluminismo, Montesquieu, “O espírito das leis”, e perguntei para os alunos quem ali pretendia fazer Direito. Em três salas, apenas um aluno levantou a mão. Perguntei ainda quem queria fazer as profissões mais “reconhecidas”, socialmente falando, como Medicina, Engenharia… Mais um ou outro levantou a mão. E não é por não conhecerem essas profissões, é por não acreditar que é possível. Por não terem referências próximas, em seu bairro ou escola mesmo, de alunos ou pais de alunos que chegaram lá, estudaram, fizeram esses cursos. A desigualdade nas relações mina a diversidade. Até de sonhos, de possibilidades.

Sempre se enxerga a escola pública como um espaço violento. Como você classificaria os diversos tipos de violência? E como você os enxerga?
Ciríaco – Sim, a escola pública é um local violento. Principalmente quando se fala de uma violência institucional, que atinge todos os profissionais envolvidos na educação – e não apenas os estudantes. Os profissionais pelos baixíssimos salários, a falta de reajustes, planos de carreira, valorização profissional, o não reconhecimento de algumas doenças adquiridas por conta do trabalho, o acúmulo de funções. Fatores que, aos poucos, vão desmotivando e minando os sonhos, vontades, desejos de transformação através da educação dos mais esperançosos educadores. Pois é muito difícil permanecer no front se você não tem reconhecimento, apoio, incentivo e, principalmente, se você não consegue observar avanços, resultados positivos de seu trabalho. É muita energia gasta, aparentemente, para nada.

Mas você parece resistir… Como você faz para resistir e continuar tentando ser um bom professor contra todas as adversidades e um sistema que praticamente lhe empurra para o mau desempenho?
Ciríaco – De verdade, eu não sei o que faço para resistir. No fundo, acredito que sou um sobrevivente e que não entrego os pontos, não desisto das coisas facilmente. Mas, o que eu procuro fazer é tentar, no meio de isso tudo, descobrir o que me promove alegria, o que me traz sorrisos, o que me faz ter um friozinho no estômago, esse brilho nos olhos, ainda que seja de vez em quando. E isso eu descobri com “Os Mesquiteiros” (grupo de teatro que criou na escola, com os alunos, aos sábados). Lá, eu consegui chegar a um estágio, uma proximidade, uma cumplicidade com aqueles jovens e adolescentes que eu não encontro na sala de aula. Fazemos, criamos, estudamos, vamos juntos a outros lugares além da escola, como saraus, teatros, centros culturais. Protegemos e acolhemos uns aos outros. Brigamos e sofremos juntos. Ali foi o primeiro espaço que encontrei, dentro da escola, em que eu pude perceber que não estava sozinho, que eu podia contar com alguém para compartilhar dores, sonhos, esperanças. Encontrei pessoas dispostas a brigar comigo, e não me senti mais tão sozinho. Ainda que, todos os dias, quando estou dentro da sala de aula, eu esteja sozinho. E, muitas vezes, tenha de lidar sozinho com várias questões. Mas, quando estou com eles, trabalhando com eles, eu não me sinto sozinho. É por isso talvez que eu resista. Por eles. Por eles terem acreditado em mim e, quando eu fraquejo, me dou quase por vencido, penso que não posso decepcioná-los. Que tenho de ser grato e retribuir aquele favor, que é um gesto de amor, mesmo. É por este grupo, por estes alunos, principalmente, que eu ainda resisto. Se eu não tivesse esse apoio, esse aconchego, já teria feito as minhas malas e partido.

“Violência é ter alunos nas séries avançadas do ensino fundamental e mesmo no médio que são analfabetos funcionais. Isto é um crime”

Você fala de uma relação que é amorosa, mesmo. E é de respeito. De respeito próprio – e pelo outro. O oposto do que estávamos falando antes, sobre a imagem de violência colada na escola pública – e também na sua escola. Como a violência é sentida e decodificada pelos seus alunos?
Ciríaco – Quando os estudantes me falam sobre violência sempre me vem a imagem de alguns alunos, que estão em séries avançadas do ensino fundamental, algumas vezes até do ensino médio, e não aprenderam a ler e a escrever corretamente. Isto é um crime. Muitos já passaram – e continuam passando – pelas minhas mãos e é uma sensação desesperadora. Primeiro, porque não tive em minha formação o papel de “alfabetizador”, então sinto imensas dificuldades para trabalhar com isso. E, segundo, porque quando você se dispõe a enfrentar esse problema, precisa deixar de lado um pouco os outros trinta e poucos alunos que estão ali na sala, contando com você. Então, a existência de estudantes analfabetos – funcionais ou não – em séries avançadas do ensino, é uma das violências mais gritantes e cruéis que existe dentro da escola pública. E, infelizmente, há muitos.

Como esses alunos analfabetos, mas em séries avançadas, se sentem? Deve ser terrível…
Ciríaco – Normalmente os alunos ou “explodem” ou “implodem”. No caso de “implodirem”, muitas vezes ficam quietos, fechados, numa postura difícil de estabelecer vínculo, contato. Tentam camuflar aquela situação, sentem-se humilhados: imagine, trabalhar questões que envolvem alfabetização em quintas ou sextas-séries, ao lado de alunos que já têm autonomia, que conseguem fazer sozinhos muitas atividades. É uma situação constrangedora até mesmo para os colegas. Quando eu sento ao lado de um destes alunos, tentando ajudá-lo, sempre vem algum outro que quer perguntar alguma coisa, tirar uma dúvida, e fica ali, perplexo diante do colega, tentando entender ou questionar: “Como assim, então é verdade? Você não sabe ler e escrever mesmo!”. É um constrangimento muito grande.

E existem os que “explodem”. São aqueles alunos que acabam tendo vários problemas de indisciplina. Ou por não verem sentido nenhum naquele trabalho, naquela atividade na qual ele não se reconhece, da qual não faz parte, ou por ter que se “garantir”, brilhar, ser destaque, ter atenção de alguma maneira. Ainda que seja de uma maneira provocativa, tumultuando a sala, prejudicando a si e aos demais colegas.

Lembro da história de um destes alunos que explodiram. Está até retratada em um poema que escrevi. O aluno era extremamente indisciplinado, não ficava sentado em sua cadeira, circulava em demasia pela sala, era de certa forma agressivo com os colegas. Tinha uma dificuldade de concentração, de ficar parado para desenvolver atividades. Depois de muito conversar e ter paciência e esperar, consegui quebrar um pouco esse “espírito de rebeldia”.

Mas, no dia de uma prova, em que ele não conseguia desenvolver algumas questões mais básicas, ele chorou. Amassou a prova. Desamassou. Entregou, pediu de volta. Por fim, rasgou e saiu, derrubando os materiais, empurrando as carteiras dos colegas. Pouco tempo depois, teve um problema de indisciplina, no qual xingou a responsável pela cantina, “passou” as mãos em uma menina. Foi feito um Conselho de Escola e, devido ao histórico, o aluno foi convidado a se retirar daquela escola. E aquele Conselho em especial foi terrível, malharam feio a mãe e o menino. Eu mesmo tive de me posicionar, no sentido de relatar o que houve, em algumas das minhas aulas, o que o prejudicou ainda mais.

Para mim, foi muito angustiante porque quando coloquei em pauta o fato de ele não saber ler nem escrever, isso não foi seriamente considerado. Levado em conta como um dos motivos para tamanha revolta. E o menino foi transferido. Ou melhor, o “problema” foi empurrado para outro lugar. Porque, infelizmente, na maior parte das vezes o que se faz é isso: não se encara o problema, se joga para outro. Nem que seja para debaixo do tapete do outro.

E o pior é que ninguém responde por este crime. Quantas vezes a gente escuta em tom pejorativo sobre um adolescente: “Ele sempre foi indisciplinado, tanto que foi expulso da escola. Esse aí não tem jeito”. Mas, em algum momento, este aluno e sua mãe, cuja história você relatou, apostaram na escola, apostaram no Estado. Fizeram o melhor que puderam e foram traídos. E como a maioria dos alunos, mesmo os que conseguem acompanhar as aulas, percebe a violência?
Ciríaco – A escola possui problemas que vão de uma conduta excessivamente agressiva por parte de alguns alunos – e de alguns professores também, é importante frisar – a questões como a inserção de drogas lícitas e ilícitas. Mas, sinceramente, não vejo a questão das drogas como um grande problema. Pode se tornar um grande problema na medida em que a unidade escolar não possui uma organização e administração eficientes, num contexto em que há falta de funcionários, que abre espaço para uma sensação de permissividade excessiva que transforma a escola quase que em “terra de ninguém”. Acredito que ainda exista sim uma tolerância para muitas coisas que acontecem dentro do espaço escolar. Ou existia, até este fato que aconteceu no Realengo, no Rio.

Mas, tendo em vista a violência explosiva e muitas vezes descontrolada da sociedade em que vivemos, as escolas ainda são lugares relativamente seguros. O que é importante é que haja regras claras de funcionamento deste espaço, organização e fiscalização. Por exemplo: ter um controle de quem entra e sai da escola. Os alunos não podem ficar circulando em grupos pelos corredores, sem acompanhamento, na hora que quiserem, por quanto tempo quiserem, como muitas vezes acontece. Não podem ocupar espaços ociosos da escola sozinhos, sem o acompanhamento de um educador. Não podem eles ditar as regras de como funciona, do que se faz na escola. Se eles percebem que têm essa liberdade, que para mim é excessiva, abusos vão ocorrer. Alguns vão passar dos limites. E daí a responsabilidade é apenas deles?

“Muitas vezes o professor é criminalizado por questionar o que está errado. Esta foi talvez a maior violência que sofri na escola”

Quais foram as situações mais difíceis que você, como professor, enfrentou em sala de aula? Qual foi a maior violência que sofreu?
Ciríaco – Um dos problemas mais difíceis, como eu já disse, é a questão da existência de alunos não alfabetizados ou com uma alfabetização precária, deficiente, limitados à escrita do nome e de pequenas palavras, os chamados “analfabetos-funcionais”. Ter alunos com essas limitações em sala é quase que desesperador. Primeiro por ter dificuldades em ajudá-los. Segundo, que pela maneira como estão organizadas as salas, em média com 35 alunos ou mais, dificulta e praticamente impossibilita um trabalho individualizado. Daí, entramos em outra situação que nos traz muitos problemas: o grande número de alunos em sala. A grande dificuldade é como fazer para dar atenção, colaborar com esses alunos, quando metade deles – ou até mais – não possui autonomia para realizar muitas das atividades propostas, por uma formação deficitária. Simplesmente não dão conta de fazerem sozinhos. Eles necessitam de uma atenção particular, muitas vezes individualizada. O problema é que, quando se está com um, todos os outros ficam à deriva.

Agora, a violência maior que eu já sofri não foi em sala de aula, mas decorrente dela. Tem a ver com a falta de apoio, de amparo mesmo ao professor em suas questões pedagógicas e profissionais. O fato de muitas vezes você não ter para quem expor, falar sobre os problemas, ou quando tem e você fala, questiona, problematiza, não encontra respaldo, resposta para as questões apontadas. Ou pior: você é de certa forma criminalizado pelas questões apontadas.

Como assim, “criminalizado”?
Ciríaco – Uso o termo “criminalizado” porque quando o Educador, o Funcionário Público procura relatar, expor a situação em que se encontra, muitas vezes pode ser acusado de estar violando o Estatuto do Funcionalismo Público. E, assim, pode sofrer uma sanção, um processo administrativo. Para mim, isso é uma forma de criminalizar um direito legítimo, garantido em Constituição: a liberdade de expressão. Mas parece que, em alguns casos, o Estatuto, que é uma Lei redigida em 1968, no auge do período militar, tem mais valor do que a própria Constituição.

Então, essa indiferença para com os problemas da escola – que muitas vezes não é apenas do Estado, mas da sociedade ou ainda da repressão que te impele a não falar, não questionar – está entre as maiores violências que sofri como professor.

Você poderia dar um exemplo?
Ciríaco – Muitas vezes vivi situações insuportáveis, como certa vez em que a escola estava com várias salas deterioradas, infiltrações, paredes esburacadas, lousas emboloradas, risco de o teto cair, risco de pane no sistema elétrico. Enfim, uma ausência de direção, abandono total e, quando buscamos a Diretoria de Ensino, o que escutamos foi: “Providências foram tomadas, tem de esperar”. Quando buscamos a imprensa, o que ouvimos foi: “Mas isso é normal, muitas escolas são assim”. Quer dizer, o extraordinário torna-se ordinário, comum, e você não tem para quem falar, pois quem poderia fazer algo não te escuta, nada faz. É como dar murro em ponta de faca: uma hora cansa.

“Quando há uma situação de descontrole, respondo com meu silêncio. Fico ali parado, meio pateta, apenas observando os alunos”

Você poderia contar uma história que o transformou?
Ciríaco – São muitas. Boas e ruins. Uma delas aconteceu há quatro anos, com uma quinta-série que era muito difícil de trabalhar, tinha problemas muito grandes de indisciplina, principalmente porque havia muitos alunos não alfabetizados e outro grande número de analfabetos-funcionais. Eles não conseguiam acompanhar a maneira pela qual eu preparava minhas aulas e, por outro lado, eu não conseguia elaborar atividades que atendesse a toda aquela diversidade de alunos que havia em sala, em níveis diferentes de aprendizagem.

Outro problema era que os alunos tinham uma conduta muito agressiva entre si, muitas vezes se batiam, se socavam por pequenas discussões, quase não havia o diálogo. E num momento de descontrole, de indisciplina generalizada, quando eu já havia pedido várias vezes para alunos diferentes ficarem em silêncio, eu gritei enfaticamente com um deles para “calar a boca”. E o menino não arredou pé. Respondeu à altura. Gritou comigo também, dizendo que ele não tinha pai para gritar com ele e nem mandá-lo calar a boca e “quem eu estava pensando que era” para fazer isso.

Foi uma situação inusitada, pois em seguida a sala ficou em silêncio. Na hora eu fiquei com muita raiva, mas depois percebi que não foi legal o que eu fiz. Até porque naquele momento eu perdi esse aluno, e só consegui resgatar uma relação de diálogo com ele três anos depois. Mas o que percebi realmente é que não se combate uma “agressão” com mais agressividade. Não se pode querer apagar o fogo com gasolina.

Isso ficou marcado em mim. Hoje em dia, quando há uma situação de descontrole, indisciplina em sala, eu procuro responder com o meu silêncio. Fico ali, meio pateta, parado, em frente à sala, apenas observando os alunos. Algumas vezes demora dois, três, cinco minutos, mas eu consigo o meu silêncio. Problematizo sobre aquela situação. E além de eu não me desgastar tanto, acho que eu tenho mais respeito dos alunos por isso. É muito difícil, algumas vezes a indisciplina pode chegar a um nível agressivo, desrespeitoso com o educador. Ele se sente tentado a responder na mesma moeda, mas eu procuro evitar esse tipo de reação. A experiência me mostrou que não é o melhor caminho.

Você denunciou em seu blog que foi perseguido em sua escola no ano passado e que chegou a sofrer assédio moral. Como foi isso?
Ciríaco – Bom, tudo começou quando, em 27 de agosto de 2010, escrevi em meu blog um texto intitulado “Mente em Ebulição”, na qual fiz a exposição de algumas questões que estavam acontecendo em minha escola. Questões que não sentia espaço para dialogar, discutir dentro do ambiente escolar. Questões que julguei pertinente que as pessoas conhecessem, tivessem acesso. Então, coloquei no blog. Isso foi numa sexta-feira. Na semana seguinte, quando fui trabalhar, percebi os olhares atravessados de alguns professores, pessoas que demonstraram estar magoadas com o que eu disse. Quando entrei em uma sala, fui interpelado por uma aluna que me questionou porque eu havia chamado os alunos da escola de “nóias, vagabundos, drogados”. Respondi que nunca havia falado isso. Ela disse que era o comentário que estava rolando “boca-solta” em toda a escola. Lembrei do meu blog. Expus o que havia escrito: que estava cansado da imagem que tínhamos, pela qual éramos conhecidos até então, cansado de sermos vistos daquela maneira. Cansado de não termos uma escola reconhecidamente com qualidade. De estarmos no IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo) entre as 10 piores da Diretoria de Ensino. E de vários outros pontos. Pois bem. Tive que me justificar em várias salas. Explicar a minha versão dos fatos. Inclusive para a mãe de uma aluna que apareceu na escola, aos gritos, me questionando por que eu havia dito tudo isso. Que era uma falta de respeito com sua filha, com os alunos, com os professores daquela escola.

Depois eu fiquei sabendo que um professor da escola havia lido o texto no meu blog, imprimido e, não sei se por maldade ou por outros motivos, espalhou a notícia pelos quatro cantos da escola. Mas dizendo que eu havia xingado, falado mal dos alunos. Ou seja, além de mentir, ele estava desviando o foco dos principais assuntos abordados em meu texto.

O texto chegou até a Diretoria de Ensino. E a supervisora, responsável pela minha escola, foi até lá conversar comigo. Chamou-me na sala da direção, junto com o vice-diretor. Estava com o texto impresso. Não perguntou os motivos pelos quais eu havia escrito. Já foi direto perguntando: “Por que eu havia chamado os alunos de nóias, vagabundos e…”. Aproveitei que ela estava com o texto em mãos e afirmei, novamente, que nunca havia escrito aquilo. Mostrei para ela, textualmente o que havia dito. Que aquela afirmação que ela havia feito estava errada.

Ela não se mostrou satisfeita com a minha explicação, apesar de ter o texto em mãos. Questionou por que eu havia colocado no blog a informação de que a direção anterior da escola havia deixado um rombo de R$ 16.000, assunto discutido em reunião do Conselho da Escola na semana anterior. Perguntei se era mentira, ela confirmou que não. Então eu disse que não via nenhum problema em divulgar essa informação. O problema não era divulgar, mas sim o desvio de recursos públicos ter acontecido. Falar sobre o acontecido é muito menos grave do que o acontecido propriamente dito.

Ela me informou sobre o Estatuto do Funcionalismo Público, de 1968, período da ditadura militar, que inibe funcionários de expor, falar sobre alguns assuntos. Informei que conhecia o Estatuto, mas que não concordava com ele, que as pessoas tinham o direito de ter acesso a esta informação. Enfim, o objetivo dela não era dialogar sobre todos os problemas que eu havia levantado no texto do blog, não era tentar entender o que acontecia, mas sim questionar o porquê da minha exposição dos fatos. Em resumo, ela foi ali para colocar panos quentes na situação, afirmar que eu não poderia ter tido aquela conduta, principalmente com algumas palavras que usei no blog – e nisso eu concordo, usei palavras duras, escritas no calor da hora. Em nenhum momento houve qualquer espécie de diálogo sobre os problemas citados.

Nos dias que se seguiram, havia um mal-estar muito grande entre mim e os professores, assim como com alguns alunos. A minha reputação estava manchada. Eu havia sido o professor que tinha “xingado os alunos da escola”. Essa difamação colou, e foram poucos os que me defenderam. De todas as coisas citadas – denúncia de desvio de dinheiro, problemas no projeto pedagógico da escola, questões administrativas – nada disso foi discutido. A questão era apenas a suposta “agressão” verbal feita via blog contra os alunos.

Depois deste episódio, fui retirado da sala de aula em outros três momentos para comparecer à direção para conversar sobre o assunto. Estava se tornando uma situação constrangedora: eu lá dando aula, vinha a inspetora me informar que a diretora estava me aguardando para conversar comigo. Eu tinha de sair de sala para dar explicações. Novamente, expliquei o que estava claramente escrito. A direção expôs a sua opinião, questionando a minha conduta no blog e na escola. Falou-se novamente sobre o Estatuto do Funcionalismo Público, e até mesmo sobre o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), já que eu publicara no blog fotos de alunos em atividades como o Sarau (de poesias, realizado uma vez por mês e aberto à comunidade) – que em nenhum momento expõe depreciativamente as crianças e adolescentes. Mesmo assim, foi dito que eu poderia ser inclusive penalizado pelo ECA. Explicou também que havia a possibilidade de abertura de um processo administrativo, o que acabou não acontecendo. Foi sugerido também, por integrantes da Diretoria de Ensino, que eu tirasse uma licença “extra-ofício”, tendo em vista que os motivos para tal manifestação e descontentamento com a situação da escola se deviam ao fato de eu estar estressado – ou com problemas emocionais e psicológicos.

Não tirei a referida licença, continuei trabalhando, mas foram dias muito difíceis. Sentia-me isolado, rejeitado por colegas, desprezado por alguns alunos, humilhado. Como se não houvesse espaço ali para mim. Como se eu fosse o único a estar descontente com uma escola que tinha um perfeito controle e funcionamento. E que não havia razões para questionamento. Bem, o resultado do IDESP demonstrou que eu, com toda a minha indignação e descontentamento, não estava tão errado. E eles, não tão certos.

“Como professor eu me sinto um lixo ao ver minha escola entre as piores”

O IDESP de 2010, divulgado há pouco, mostrou que sua escola está entre as piores da rede pública estadual de São Paulo. O que você sente como professor? E como isso repercute entre os alunos?
Ciríaco – Como professor eu me sinto um lixo. Principalmente por estar há cinco anos na mesma unidade escolar e não ter conseguido colaborar efetivamente para a alteração desse quadro, que não é de hoje. Esse é um sentimento muito claro. O que me consola é saber que procuro fazer o melhor, coloco à prova minha capacidade intelectual, física e mental, chegando em alguns momentos ao esgotamento. E que não compartilho dessa responsabilidade sozinho. Ela se relaciona a diversos outros fatores.
Conversei com os alunos de algumas salas sobre esses números. Houve surpresa, risada, espanto e indignação. Tentei tirar uma postura positiva do episódio, dizendo que eu não os vejo entre os piores alunos da cidade. Do estado. E que tínhamos plena capacidade e condições de superar aqueles números. E isso foi acordado entre todos. Fizemos um novo contrato pedagógico entre nós no sentido de haver um esforço e atenção maior para que esse quadro seja revertido, esse número superado, o que não é algo muito difícil.

A minha revolta com a divulgação desses dados é que são apenas números, sem uma análise profunda de todo o contexto que os envolvem. Alunos e professores são responsabilizados, de uma maneira muito agressiva, cruel, como se fôssemos incompetentes, incapazes. Mas ninguém discute, por exemplo, que no mesmo ano avaliado, nessa minha escola, ficamos sem o suporte pedagógico de um Coordenador por oito meses. Que durante quase o mesmo período não tivemos reuniões de HTPC (Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo) por conta da ausência deste Coordenador. Que a Direção não realizou – ou não pôde fazer – este trabalho, pois estava colocando em ordem as contas não pagas da escola para voltar a receber recursos do Estado. O que foi um problema, pois se cobriu um buraco destapando outro. Que os professores não tinham suporte, espaço, apoio para discutir seus problemas. E isso tudo por oito meses. Qual escola consegue um bom desempenho se não há um acompanhamento, um respaldo pedagógico ao seu grupo de professores? Mas os números não contabilizam isso. São apenas números. Ignora-se a história, o contexto escolar. O conteúdo por trás dos números não interessa.

Os pais de seus alunos se envolvem de alguma forma na educação dos filhos? Eles conseguem participar e fazer reivindicações? Como você os percebe?
Ciríaco – Infelizmente, vejo que apenas uma pequena parte se envolve na educação formal dos filhos. O que é um problema, já que os pais, a comunidade, são parceiros importantes para o bom funcionamento da escola, para sua imagem e desenvolvimento educacional. Eu acho que isso acontece por um lado pela dificuldade em entender como funciona a escola, os meios de participação. Outro problema é a questão “tempo”. Muitos possuem trabalhos que dificultam ou impossibilitam essa presença mais marcante na escola. Por outro lado, penso que precisamos ter mecanismos mais eficazes de expor não apenas a importância da participação dos pais, da família na escola, mas também estratégias para trazê-los até a escola, com informações mais claras, criando uma forma de divulgação mais eficiente que realmente os alcance.

O fato de as famílias serem pobres, com pais que muito possivelmente estudaram pouco, sendo analfabetos ou pelo menos analfabetos funcionais, colabora para esta falta de participação? Ainda existe aquela história de que diretor e professores são autoridades inquestionáveis para estas famílias, como se acreditava no passado? Pergunto isso para tentar compreender se existe uma percepção consciente ou inconsciente, como pais, de que não teriam o direito de questionar a qualidade da escola, já que sempre viveram à margem da educação… E o quanto isso pesa…
Ciríaco – Sim, existe isso. É verdade que há muitos pais esclarecidos, que quando não têm suas reivindicações atendidas tentam procurar outras instâncias, como a Diretoria de Ensino. Mas estes são minoria. A maior parte acaba aceitando a autoridade da Escola/Estado como indiscutível. E mesmo aqueles que furam esse bloqueio, esse sistema, muitas vezes agem individualmente. Isso facilita para que o Estado ignore, passe por cima dessas questões.

Por que a escola pública é tão ruim? Não só a sua, mas a educação pública no geral. E, no seu caso, estamos falando da cidade e do estado mais rico do país…
Ciríaco – A escola pública não é ruim, ela está ruim. Pensando somente no Estado de São Paulo é uma questão que merece uma atenção muito profunda, tendo em vista que temos no governo, há 17 anos, o mesmo partido político. Ou seja, houve tempo suficiente para ter sido realizada uma grande transformação na educação pública estadual. Mas o problema já parte daí: nunca houve, e isso afirmo com total convicção, uma política de Estado, uma política pública deste atual partido para a educação. O que houve, sempre, foram políticas de “mandato”, pensadas de quatro em quatro anos. Muitas vezes mal planejadas e que historicamente não contaram com a participação de profissionais da educação que convivem com a realidade do dia a dia das escolas. Esse é um dos principais problemas.

Apesar de ser o mesmo partido, a cada mandato, a cada governo, muda-se o Secretário de Educação e juntamente com ele todas as diretrizes, a linha adotada. Quer dizer, cada um procura fazer à sua maneira. Não existe um projeto a médio e longo prazo que reflita sobre a educação. Além disso, não se pode falar em educação sem falar em valorização dos profissionais envolvidos, investimento e, principalmente, planejamento, organização e fiscalização desses investimentos. Aliás, este último é tão ou mais importante do que os outros. Muitas vezes eu me questiono se não há dinheiro suficiente para a educação ou se o dinheiro não chega: vai para o ralo ou para o bolso de algumas pessoas.

“Eu aprendi que todo estudante é possível. Que talvez não seja possível mudar o mundo, mas é possível mudar a minha escola”

Apesar de todas as dificuldades, você realiza projetos literários e artísticos, dentro e fora de sua escola, que só existem por sua própria iniciativa. Conte um pouco sobre eles…
Ciríaco – Neste ano estou trabalhando com alunos das sétimas e oitavas séries (oitavo e nono ano) do ensino fundamental II. Tenho uma carga de 21 horas/aula por semana, que me paga em torno de R$ 1.400 bruto por mês. Trabalho de terça a sexta, no período da manhã. Às quartas e sextas, das 13h às 16h, desenvolvo uma oficina de literatura e fotografia, junto com uma amiga, Mônica Cardim, no SESC Santo André. Deixei a segunda-feira em aberto para dedicar-me apenas à preparação das aulas, correção de provas, trabalhos, enfim, atividades não remuneradas pelo Estado, mas necessárias ao ofício da educação. Trabalho entre seis e oito horas na segunda-feira, desenvolvendo essas atividades.

O projeto “Literatura (é) Possível” existe há cinco anos. Veio de um desejo de compartilhar a paixão pelos livros, pela literatura, com os meus alunos. A idéia é muito simples: aproximar jovens e adolescentes da literatura de uma maneira lúdica, prazerosa, divertida e crítica. A maneira que encontrei de fazer isso foi realizando saraus mensais, dentro da sala de aula, em que convidava escritores para irem até a escola desenvolverem uma atividade, um bate-papo com os alunos. Afinal de contas, a minha paixão pela literatura veio principalmente desse contato mais próximo com os poetas e escritores, principalmente os da Literatura Periférica. Em cinco anos de projeto, fiz mais de 12 encontros literários, levando até a minha unidade escolar nomes como Sérgio Vaz, Sacolinha, Alessandro Buzo, Marcelino Freire, Akins Kinte, Elizandra Souza, Allan da Rosa, Carlos Galdino, entre outros.

O projeto sempre foi desenvolvido com recursos próprios. Nos saraus muitas vezes levava meus livros. Nos Encontros Literários sempre fiz questão de dar uma colaboração mínima – quase simbólica – aos meus convidados, tirando dinheiro do meu bolso. Em 2009, para ampliar o alcance do projeto, comecei a desenvolver uma oficina de teatro, junto com a de literatura. E deu muito certo. Consegui formar um grupo, um coletivo, chamado de “Os Mesquiteiros”, que está há dois anos comigo. Trabalhamos aos sábados, na escola, das 10h às 14h30. Já realizamos a apresentação de dois espetáculos lítero-teatrais – adaptação de contos e poemas para os palcos – em 2009 e 2010.

Em 2010, por conta da dificuldade de continuar bancando o projeto sem apoio ou financiamento, o inscrevi no Programa VAI da prefeitura e fomos contemplados. Com os recursos, conseguimos remunerar o meu trabalho e o de três alunas – R$ 420 para mim, por 40 horas mensais, e R$ 200 para casa uma delas, por 20 horas mensais. Além disso, compramos equipamentos, materiais cênicos e pedagógicos, produzimos um fanzine, a oficina de literatura e teatro e saraus mensais, agora abertos à comunidade do Jardim Verônia, no Ermelino Matarazzo, realizados dentro da escola todo último sábado de cada mês. O único, dos vários saraus realizados em São Paulo, que é feito regularmente dentro de uma escola. Neste mês de maio vamos completar um ano de sarau e fomos novamente contemplados pelo Programa VAI. Com exceção de mim, todos os integrantes que organizam o Sarau são jovens e adolescentes da escola e da comunidade. Eu sou praticamente o único adulto entre a rapa toda.

O que você aprendeu sendo professor de escola pública?
Ciríaco – Eu aprendi que todos aqueles estudantes que ali estão são capazes. São possíveis. Eu aprendi que talvez eu não consiga mudar o mundo. Mas que é possível mudar a minha escola. E que em primeiro lugar, eu preciso sempre mudar a mim mesmo. Procurar melhorar. Eu aprendi também que apenas a escola não é capaz de promover a transformação da sociedade, principalmente se não houver ações políticas que encarem de frente problemas como a desigualdade social, a má distribuição de renda de nosso país. Considerar que apenas a educação é a salvação de todos os problemas é simplificar uma questão que é muito mais complexa. E colocar uma pressão, uma responsabilidade sobre a escola pública que ela não pode atender, não pode cumprir.

Eu aprendi que são poucas as pessoas que realmente valorizam o papel do professor. Há uma admiração romântica sobre o “professor de escola pública”: “Nossa, parabéns, sei que é muito difícil o trabalho. Parabéns, você é guerreiro”. Mas há um trabalho muito pouco eficaz, tanto por parte da sociedade quanto por parte do governo que demonstre, na prática, o reconhecimento e o valor que este professor tem.

Por que você continua sendo professor?
Ciríaco – Porque eu gosto do que faço. Eu faço por mim, principalmente. Porque eu gosto de estar com essa molecada. Compartilhar seus sonhos, angústias, medos. Dividir os meus também. Acreditar neles. Porque quando eu acredito neles, eles acreditam em mim também. E simplesmente porque deixar de ser professor significaria abandoná-los. E, para mim, é muito difícil pensar nisso. Porque eu sei o que é esse abandono. Eu sei o que é você gritar e não ter quem o escute, ou pior: ter pessoas ouvindo e ignorando o que você diz. Eu conheço a dor da indiferença, do esquecimento. E eu sei que é algo muito doloroso, difícil de conviver, de superar.

Qual é a sua experiência com o abandono, com a falta de escuta e o desamparo? Esta que o leva a não abandonar seus alunos.
Ciríaco – Já passei muitas dificuldades por conta da escola. Muitas vezes, quando tinha alguns problemas relacionados principalmente à dificuldade de aprendizagem dos alunos, não conseguia ir para casa e simplesmente desligar. Apertar o botãozinho do “off” e esquecer. Eu lido com pessoas, eu lido diariamente com vidas, não funciona assim. Então, ficava digerindo aquele assunto no meu estômago e na minha cabeça por horas e horas, apesar de estar esgotado. Chegava a ficar pregado, de madrugada, com os olhos abertos, sem conseguir dormir. Até duas, três da manhã, tendo de acordar logo em seguida e voltar à escola.

Já tive vários problemas físicos por questões emocionais relacionadas à escola, aqueles que são chamados de psicossomáticos: dores de estômago, dores nos ombros, dores na nuca e de cabeça. Em muitas situações, tive abalos emocionais diante de situações em que eu não conseguia visualizar soluções, não via nenhuma luz no túnel. O que acontecia eram crises de angústia, de desespero, principalmente em tardes de domingo, quando pensava que na segunda-feira tinha de trabalhar. E eu queria ir trabalhar, eu precisava ir trabalhar, mas simplesmente não conseguia, por não saber o que fazer. Como agir. Por não ter para onde e para quem correr.

Nestes momentos, eu ficava trancado, dentro do quarto, angustiado. Não conseguia simplesmente me levantar e ir. Já aconteceu várias vezes de eu fazer um esforço, às vezes sobre-humano e sair de casa, ir em direção à escola e, quando estava quase chegando à porta, passar batido. Ir embora. Não entrar. Outras vezes coloquei em dúvida a minha capacidade intelectual, profissional e pedagógica. Faltei, não fui à escola por considerar que não era um bom profissional, que talvez fosse melhor outro assumir minhas aulas, ele faria melhor do que eu.

E ainda em outros momentos a indignação, a revolta era tamanha que eu simplesmente não ia por pensar em abandoná-la. Por entrar em crise sobre se era aquilo mesmo que eu queria continuar a fazer. Tive uma destas crises recentemente. No dia 29 de março, o Estado divulgou os “premiados” com o Bônus. E eu fui um dos milhares de professores que não recebeu nada, nenhum incentivo. Nem mesmo um obrigado. Pelo contrário. Fui, de certa maneira, “punido” pelo fato de que a minha escola estava em uma situação tão gritante na Avaliação.

Acontece que a política de “Bônus” é uma falácia, ela quer premiar os “avanços” conseguidos na educação, mas não valoriza individualmente o trabalho, o empenho do professor. Ela estimula um sentimento quase de competição entre a rede, estilo “vamos ver quem é melhor”, e tira do foco as questões urgentes e gritantes envolvidas no tema Educação. Sem contar que há muitos casos de fraudes nas provas, manipulação, divulgados na mídia. E foi muito revoltante ver profissionais que trabalham na mesma escola que eu, que dão aulas para turmas semelhantes, ganhar valores que vão a duas, quase três vezes o seu salário. E eu nada. Tendo o mesmo empenho – ou ainda maior – que o de muitos colegas. É como você trabalhar numa empresa, realizar a mesma função que todos, mas, no final do ano, a chefia “parabeniza” apenas alguns pelos resultados. Não questiono o mérito desses profissionais que ganharam o Bônus. Mas me sinto no mesmo direito de ter uma remuneração justa e digna pelo trabalho que faço.

Diante disso, não consegui trabalhar no dia seguinte, 30 de março, nem em 1º de abril. Simplesmente fiquei em casa, estudando, organizando projetos pessoais, indignado e humilhado. Refletindo sobre como deveria me posicionar diante disso. Faltei, prejudiquei meus alunos e terei estes dias descontados na folha de pagamento. Mas ok, eu precisava fazer isso, este “ato de protesto”. Ainda que quase mudo, pateta e ridículo.

Hoje em dia faço acompanhamento terapêutico, para tentar lidar um pouco melhor com essas questões. É complicado, primeiro porque é caro: o valor da hora terapêutica é mais de dez vezes o valor que ganho por hora-aula. E segundo, porque não há terapia que resolva a sua cabeça se você quer transformar a situação escolar em que você vive, mas não encontra caminhos, soluções viáveis para isso.

Uma coisa que me ajudou muito a lidar com essas questões no início da carreira foi a produção do meu livro, Te pego lá fora (Edições Toró). É um livro muito duro, expõe a escola através de uma visão crua, nua. Não há muito espaço para romantismo no livro, na visão sobre a escola. Mas ele é resultado de um processo violento que vivo lá dentro. A idéia do livro era um pouco a de chocar as pessoas. Até porque eu sou colocado diariamente em choque com essa violência: de não ver as coisas caminharem, de não ver os caminhos brilharem. De não encontrar alternativas. Faz tempo que a escola deixou de ser o lugar dos sonhos, da esperança, do futuro. Hoje ela é o lugar muitas vezes do abandono. Um verdadeiro depósito de gente. Uma terra de ninguém.

“Como a menina-placa, muitos adolescentes das periferias abandonam a escola por não verem perspectiva atrativa no futuro”

Lembro de um texto que você publicou no seu livro sobre uma “menina-placa”. Me impressionou muito. Você poderia contar esta história? O que ela diz sobre o nosso tema?
Ciríaco – A história da menina-placa foi inspirada em uma aluna que deixou a escola para trabalhar – como placa. Ela tinha por volta de 13 anos, estava na sexta-série, tinha muitas dificuldades de aprendizagem, era indisciplinada, mas eu conseguia dialogar, estabelecer uma boa relação com ela. Até que um dia ela sumiu da escola. Ninguém mais sabia dela.

Cerca de um mês depois, quando eu estava na escola, a vi andando pelas redondezas durante o período da noite. Parei, fui até ela para conversar. A menina disse que havia conseguido o emprego, estava trabalhando como “placa” – estas garotas que divulgam condomínios de luxo segurando placas por horas e horas na rua – e que não dava mais para estudar. Tentei problematizar a questão, falar sobre os problemas de abandonar a escola, mas ela disse que a escolha já estava feita. Era aquilo.

Acho que esta história tem a ver com o nosso tema para refletirmos que a escola, apesar de ser extremamente importante para as transformações, as mudanças que a nossa sociedade precisa, não será a única a fazer isso se agir sozinha. É preciso atacar o problema em várias frentes, principalmente no que se refere à questão da distribuição da renda, de garantir possibilidades mínimas e dignas para as pessoas viverem, poderem estudar e por aí vai. Porque ainda é muito recorrente, nas periferias, meninos e meninas adolescentes que abandonam a escola ou fazem apenas uma parte dela porque têm de trabalhar para ajudar em casa, cuidar dos irmãos. E a situação é ainda pior quando muitos alunos deixam a escola para entrar na vida do crime, são cooptados pelo tráfico de drogas. E isso acontece por não verem nenhuma perspectiva atrativa distante, no futuro, e por verem a possibilidade de ganho real imediato.

Infelizmente, depois de cinco anos em que estou na escola, conheço muitos casos de alunos que abandonaram os estudos e foram para o mundão: estão aí, nas ruas, nas esquinas, portas das escolas e biqueiras, fazendo o comércio ilegal, ganhando mais do que seus pais e responsáveis, mas colocando em risco algo muito precioso: o seu futuro. A história da menina-placa foi uma das histórias deste tipo. Há muitas outras. Em sua maioria sem finais felizes.

(Publicado na Revista Época em 11/04/2011)

A burca, a França e todos nós

O debate francês nos leva a questões cruciais de nossa época

A França está muito perto de proibir o uso da burca (vestimenta em que os olhos são visíveis apenas através de uma tela) e do niqab (véu integral que cobre tudo, menos os olhos das mulheres) nos espaços públicos. O tema é fascinante porque não há respostas fáceis. Em busca delas, temos de enfrentar algumas das principais questões contemporâneas. Quais são os limites do Estado? Onde acaba a liberdade de expressão religiosa? Em que momento o relativismo cultural flerta com o totalitarismo? Proibir a burca vai ajudar as mulheres muçulmanas em sua suposta libertação ou vai marginalizá-las ainda mais? Será um golpe no fundamentalismo islâmico ou estimulará ainda mais o radicalismo? Questões sobre as quais vale a pena pensar porque permeiam a nossa vida cotidiana, para além das burcas reais (poucas, por aqui) e simbólicas (muitas) de nosso mundo.

Para quem não acompanhou, o parlamento francês discute a criação de uma lei banindo as burcas e niqabs de espaços como hospitais, escolas, repartições e transporte públicos. Os argumentos: o Estado francês é laico; a burca e o niqab não seriam expressões religiosas, mas uma violação dos direitos humanos da mulher; é preciso defender os valores basilares da França, aqueles que fazem os franceses serem aquilo que são.

Em meus primeiros contatos com o tema, me parecia razoavelmente claro que: 1) o Estado não tem de se meter com a vestimenta ou a expressão religiosa de ninguém; 2) proibir a burca e o niqab colocaria material inflamável nas mãos dos fundamentalistas islâmicos em sua crescente busca por adeptos, o que só agravaria uma situação que já é tensa e não precisa de mais munição para piorar; 3) a lei marginalizaria ainda mais a já sofrida população de imigrantes muçulmanos, a maior parte deles injustamente identificados com o fundamentalismo; 4) a liberdade só é possível na convivência com as diferenças.

Aqui no Brasil, por exemplo, acho absurda a existência de crucifixos nos espaços públicos. Eles deveriam ter desaparecido das paredes oficiais quando a Constituição de 1891 determinou a separação Estado-Igreja. Sempre que vejo o crucifixo acima da cabeça do presidente do Supremo Tribunal Federal no plenário, sinto engulhos. Parece-me claro – e até hoje nenhum argumento contrário me fez mudar de ideia, mas estou sempre disposta a ouvi-los – que um estado laico não pode estar identificado com nenhum símbolo religioso, seja ele um crucifixo, uma imagem de Oxum ou de Buda ou um retrato de Alan Kardec. Sou de família católica do tipo praticante, mas não sigo a religião, e me sinto violada em meus direitos de cidadã ao ver um crucifixo na parede do Supremo e em outros órgãos públicos.

Por outro lado, não vejo nenhum problema se um cidadão assistir a uma sessão do Supremo com um crucifixo no pescoço. Ou com adereços do candomblé. Ou vestido como um monge budista. Desde que não seja um funcionário público, claro, que naquele momento está representando não a si mesmo, mas a todos os cidadãos em seu pluralismo religioso garantido pela Constituição.

Digo isto porque me parecia que o tema das burcas era semelhante. Eu jamais usaria uma burca e veria o mundo por meio de furinhos de uma tela, mas não me cabe dizer o que faz sentido para outra mulher usar nem que ela deveria ver o mundo sem barreiras sintéticas. Se não admito que tentem me dizer como me vestir ou me obrigar a professar esta ou aquela religião, tampouco me sinto no direito de impor minhas verdades a ninguém. Cada um na sua, convivendo em respeito e harmonia com as diferenças. E, no caso da burca, eu não pisaria em um país que me obrigasse a contrariar minhas convicções me obrigando a vestir uma. Por que, então, seria legítimo o estado francês obrigar as muçulmanas a tirar a sua?

Estas foram minhas primeiras reflexões a respeito da França e da burca. Comecei então a ler mais, a pensar mais, e as questões se multiplicaram. Aqui, um parênteses: gosto bastante das dúvidas. São elas – e não as certezas – que fazem bem à construção do pensamento. Sempre fico embasbacada com aquelas pessoas que já saem brandindo suas verdades absolutas sobre tudo, sempre com uma ótima opinião sobre suas conclusões e nenhum respeito pelas dos outros. O instigante é justamente pensar, debater e aprender – o que pressupõe estar disposto a ouvir o argumento do outro e não enfiar o seu goela abaixo.

Neste caminho, primeiro é preciso entender que este debate é travado na França não por acaso. Não sei bem o que significa ser francês hoje em dia, nem acho que a resposta seja tão fácil como muitos franceses acham que é, mas é preciso reconhecer que a França tem uma história profunda de laicidade que fez muito bem ao mundo. Em 1880, mais de um século atrás, o Estado retirou os crucifixos e símbolos religiosos dos tribunais, escolas e repartições públicas. Nesta época, o ensino religioso foi eliminado do currículo escolar, e magistrados e militares foram proibidos de participar de festas católicas em caráter oficial. Em 1905, a lei da laicidade rompeu unilateralmente a concordata entre a França e o Vaticano, confiscando os bens da Igreja e suprimindo todas as subvenções. Desde então, a França se manteve fiel à separação Estado-Igreja.

No ano passado, o presidente Nicolas Sarkozy fez um discurso contundente, com grande repercussão no mundo muçulmano, classificando a burca como “um sinal de servidão da mulher”. Sarkozy disse: “A burca não é um símbolo religioso, mas de subjugação das mulheres. E não será bem-vindo no território da República francesa”. Jean-Marie Fardeau, diretor do escritório de Paris da Human Rights Watch, uma das mais respeitadas organizações internacionais de direitos humanos, rebateu dizendo que a eventual proibição era uma violação de direitos. Fardeau afirmou: “Proibir a burca não fará mais do que estigmatizar e marginalizar as mulheres que a utilizarem. A liberdade de expressar a religião e a liberdade de consciência são direitos fundamentais”. E acrescentou: “uma proibição que restrinja unicamente a expressão da religião muçulmana enviará um novo sinal a muitos muçulmanos franceses, o de que não são bem-vindos em seu próprio país”.

Quem está certo? Ou qual posição está mais próxima da verdade? Ou da Justiça? Os argumentos de ambos os lados são bons, por isso o debate é interessante.

A França é o país europeu com o maior número de imigrantes muçulmanos, em torno de 5 milhões. Mas apenas 2 mil mulheres usam a burca ou o niqab. Ou seja, esta polêmica toda seria, num olhar simplista, por causa de uma minoria mesmo entre as mulheres islâmicas.

O que está em jogo, porém, é bem mais do que isso. Parece claro que o parlamento francês está dando um recado: se os imigrantes muçulmanos querem desfrutar das benesses do estado francês, precisam assumir os valores da república francesa, entre eles os princípios da laicidade do Estado e da igualdade de direitos entre os gêneros. Não basta estar na França, é preciso “ser” francês – ou pelo menos desejar ser –, no que isto significa de mais profundo.

Mas o que é ser francês hoje em dia? Não acho que exista uma resposta simples para esta pergunta. Nem me parece que, no século 21, exista uma França que não seja multicultural. De qualquer modo, estaria essa suposta “identidade francesa” tão ameaçada que seja preciso brandi-la numa guerra contra as burcas?

De certa forma, fica claro que no “território da república francesa” existem os franceses mais franceses que os outros. Há os franceses mais livres, iguais e fraternos que os outros. E, pelo visto, os imigrantes e seus descendentes, mesmo nascidos na França, não se incluiriam nesta categoria dos bons franceses. Os fundamentalistas, especialmente, seriam hóspedes não “bem-vindos”, que desrespeitariam a casa que os recebe, pátria de algumas intelectuais feministas das mais brilhantes, ao cobrirem o rosto de suas mulheres.

Quando Sarkozy diz que a burca é um “sinal de servidão das mulheres”, à primeira vista parece óbvio que tem razão. Afinal, que mulher emancipada aceitaria ver o mundo exterior por uma tela a vida toda? Mas, e se fosse uma escolha, o modo como determinada mulher escolheu viver sua fé, teria o Estado direito de proibi-la por considerar sua escolha indigna?

Parte-se sempre da certeza de que as mulheres islâmicas usam o véu integral porque não têm escolha. Mas tenho certeza que esta não é toda a verdade. Embora acredite que boa parte não tenha mesmo, existem aquelas que acham que esta é uma boa maneira de viver a sua religião. Já conheci algumas delas. Como o estado francês vai saber quais são obrigadas a usar o véu e quais escolheram usar o véu? Não saberão, a não ser que coloquem câmeras dentro dos lares das famílias que professam a religião islâmica. Nem mesmo em defesa dos “valores da república francesa” seria possível ir tão longe.

Por outro lado, se olharmos para o senso comum das mulheres ocidentais, para o que é aceito como “normal”, poderemos encontrar alguns paralelos interessantes. Como classificar as modelos esquálidas, adolescentes abaixo de qualquer peso considerado remotamente saudável, como vimos mais uma vez na última São Paulo Fashion Week? Desta vez não para obedecer aos princípios de uma religião tradicional, mas para obedecer a outro tipo de religião, possivelmente bastante fundamentalista: os rígidos padrões do mercado da moda. Muitas vezes também elas pressionadas a subir nas passarelas por pais que as veem como um atalho para a ascensão econômica. Não seria esta também uma violação dos direitos humanos das mulheres?

Ou como encarar a morte de mulheres em procedimentos cirúrgicos estéticos, como foi o caso da jornalista da TV Justiça Lanusse Martins, de 27 anos, morta quando se submetia a uma lipoaspiração na semana passada? Ou as cirurgias em que parte do estômago é retirada não por exigência da saúde, mas por vaidade, porque é mais fácil arrancar um pedaço do estômago que emagrecer? Mulheres bem longe da obesidade que arriscam a vida para eliminar quilos, celulites e se adequar aos padrões de beleza. Isto é menos opressor? É melhor porque são valores do nosso mundo – e não do mundo do outro? Pode se argumentar que, pelo menos, é por escolha própria. Será? Para mim, se arriscar aos riscos de um procedimento cirúrgico apenas por questões estéticas é tão absurdo como ver o mundo através de uma burca. Nem por isso acho que o Estado deve criar uma lei proibindo a cirurgia plástica por razões estéticas.

Um amigo parisiense, diante das minhas dúvidas, diz o seguinte: “eu não quero andar na rua do meu país e ver uma mulher de burca”. E se os cidadãos começarem a ficar ofendidos com piercings, tatuagens tribais, cabelos de várias cores, bombachas de gaúchos ou minissaias como a de Geysa Arruda, a garota que quase foi linchada pelos alunos da Uniban e hoje virou subcelebridade? Ou vestimentas de freiras, túnicas de hare krishnas ou quipás de judeus? O Estado deve banir tudo e determinar um uniforme que esteja adequado aos valores da república?

Proibir expressões individuais, seja pelo motivo que for, é comportamento de países fundamentalistas e/ou totalitários. Defender que determinada expressão individual, seja ela religiosa ou não, contraria os princípios do Estado e, portanto, deve ser banida, pode se tornar um escorregão para coisas muito perigosas. Valores são terrenos pantanosos. Se decidir proibir as burcas e os niqabs, a França pode estar se aproximando daquilo que tenta se afastar.

Por outro lado, quais são os limites dos direitos individuais e da expressão religiosa? Haveria, por exemplo, o direito de ser oprimido? Ao defendermos a necessidade de respeitar as diferentes culturas e a complexidade do outro, estaríamos incorrendo num relativismo cultural que só serve ao opressor? A mutilação genital, com a extirpação do clitóris, deve ser permitida porque é parte de uma determinada cultura? Ou o apedrejamento das adúlteras? Quais são os limites? E quem decide?

Neste caso, poderia se argumentar que a burca não fere a integridade física de ninguém. Mas e a integridade psicológica, a saúde de uma mulher obrigada a ver o mundo por uma tela, teria menos valor? Não interferir não seria omissão em vez de respeito? E, como toda omissão, uma forma de apoio àquilo que degrada a dignidade humana?

É complexo. Chego até aqui ainda com muitas perguntas. Tenho, porém, umas poucas convicções. Acredito que, se for aprovada, uma lei banindo burcas e niqabs vai servir para marginalizar ainda mais as mulheres islâmicas que usam os véus integrais, seja por imposição dos pais e maridos, seja por vontade própria. Acredito que vá acirrar ainda mais o sentimento de rejeição vivido por parte dos imigrantes muçulmanos. E não tenho dúvida de que será amplamente propagandeado pelos recrutadores do fundamentalismo, ao dizerem com a boca cheia: viram como eles não respeitam os sagrados ensinamentos do profeta, como riem de nossas crenças, como nos odeiam?

É possível até que mulheres que rejeitavam secreta e silenciosamente seus véus passem a defendê-los, como forma de assegurar a única identidade que conhecem. Nada pior do que uma causa comum para aumentar o radicalismo e o número de adeptos. Nada pior para a construção de uma sociedade tolerante com as diferenças que tratar o outro como bizarro – e seu estar no mundo como bizarrice.

Acredito que o melhor caminho para manter vivos os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade é sempre incluir – e não excluir. Não acho que a primeira estratégia do Estado deve ser criar mais uma lei. Nem me parece o modo mais inteligente de enfrentar a questão. Se o parlamento francês gastasse esse tempo e essa energia para assegurar educação e oportunidade para estas mulheres, para ampliar seu acesso à democracia, elas se sentiriam parte. E talvez, um dia, aquelas que não vestem as burcas e niqabs por vontade própria, conseguissem se sentir seguras e amparadas para tirar os véus por si mesmas.

(Publicado na Revista Época em 01/02/2010)

Elas não são gays

Michele e Carla são casadas, têm filhos, mas afirmam não ser homossexuais

Quando conhecem alguém, Michele Kamers e Carla Cumiotto fazem questão de se apresentar sem deixar nada por dizer: “Somos casadas, fizemos inseminação artificial em São Paulo e temos dois filhos”. Elas preocupam-se em deixar tudo claro por acreditar que são as dúvidas e sombras que alimentam maledicências e preconceitos. E, como formaram uma família diferente do padrão convencional, querem que seu casal de filhos cresça numa sociedade preparada para recebê-los. Conheci essas mulheres extraordinárias dias atrás, quando as procurei com a proposta de contar sua história. O resultado desse encontro é a reportagem “A primeira nova família brasileira“, publicada na atual edição de ÉPOCA.

Michele e Carla conquistaram na Justiça o direito de registrar seus gêmeos, de 2 anos, no nome de ambas. Até agora só tinham o sobrenome de Carla, a mãe biológica. Michele não aceitava a ideia de ter de entrar com um pedido de adoção. Ela desejou esses filhos, acompanhou o processo de inseminação, via banco de esperma, esteve ao lado de Carla durante toda a gestação e no parto por cesariana, e cria junto com Carla os dois filhos na casa que ambas compraram. “Eu não poderia adotar meus próprios filhos”, diz. “Eles nasceram do meu desejo, tanto quanto do de Carla.”

É a primeira vez que a Justiça brasileira reconhece um vínculo exclusivamente afetivo, simbólico, como parental. Não há nenhum traço biológico ligando os gêmeos a Michele. Mas ninguém que conhece a família, assim como o juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família de Porto Alegre, tem qualquer dúvida sobre o fato de eles serem tão filhos de Michele quanto são de Carla. A surpresa é que uma das maiores vitórias na área dos direitos dos LGBTTTS é de um casal de mulheres que afirma não ser homossexual – não por preconceito, mas porque acreditam que a questão é mais complexa do que parece. A sigla, cada vez maior porque há sempre uma nova diferenciação a incluir, significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Trangêneros e Simpatizantes.

Quando Carla e Michele disseram-me que não se identificavam como homossexuais, meu primeiro sentimento foi de estranhamento. Até então eu me considerava heterossexual – uma definição que identifica pessoas que costumam viver suas histórias de amor com o sexo oposto, mas que raramente é usada porque ninguém precisa ficar afirmando algo que é o convencional – e, principalmente, que é aceito. E homossexual era todo aquele que vivia relações afetivas e sexuais com o mesmo sexo. Simples assim.

Pelos amigos gays e por algumas reportagens que gostaria de ter feito, sempre soube que os arranjos eram muito mais complexos e interessantes do que isso. E que, ao reduzir a diferença a uma palavra ou mais palavras fechadas em seu significado, perde-se de vista um universo pleno de nuances. E nós, ditos heterossexuais, também somos reduzidos a algo que parece muito óbvio – e que de fato não é, ou pelo menos espera-se que não seja. Mas nunca fui provocada a pensar tanto assim no assunto.

Ao entrevistar o casal em sua casa, em Blumenau (SC), seus argumentos me levaram a uma série de novas questões. Ao final do primeiro dia, eu e o fotógrafo Marcelo Min pedimos uma garrafa de vinho, no hotel, e ficamos conversando sobre as tantas perguntas inusitadas que a reportagem nos provocava. Esse é sempre o melhor cenário para um repórter e para um fotógrafo que amam o que fazem: quando a pauta se mostra muito mais complexa do que parecia e nos desafia, também do ponto de vista pessoal, a indagações inéditas. Acredito que uma reportagem só acontece quando repórteres e personagens se transformam nesse encontro. E espero ter colocado nelas quase tantas pulgas quanto elas me colocaram.

Carla e Michele são psicanalistas, professoras universitárias, que pensam bem e têm um ótimo senso de humor. Formam um casal mais tradicional do que a maioria dos casais convencionais que eu conheço. Cada uma delas tem uma papel bem definido na relação: Michele ocupa a posição masculina e Carla a feminina – entendendo tanto o feminino quanto o masculino nas definições tradicionais inscritas na cultura. Carla sempre namorou homens – masculinos – e Michele é a primeira mulher de sua vida. “Não posso me identificar como homossexual porque sou atraída pela posição oposta”, diz Carla. “Gosto de homens e mulheres masculinos. Jamais beijaria uma mulher ou um homem feminino.” Na rua, Carla segue olhando para homens e, em geral, observa uma mulher quando se interessa por seus sapatos, bolsas ou roupas.

Michele namorou gente de ambos os sexos durante a adolescência, mas acabou fixando-se em mulheres femininas na vida adulta. Quando viu Carla, sua professora no curso de Psicologia, encantou-se pelo vestido justo, de um ombro só, e pelas unhas vermelhas. Ela mesma está bem longe do que seria o esterótipo de uma mulher masculina. Michele é bonita, veste-se com estilo, inclusive usando vestidos justos nas festas, usa brincos, colares e maquiagem, tem luzes no cabelo pelos ombros. Mas, por um sentimento intangível, qualquer um que se aproxima dela sabe que ela é masculina, mas não no sentido de se parecer a um homem, mas masculina como só uma mulher pode ser.

E, para ciúmes de Carla, que descobriu-se com a novidade de um marido circulando predominantemente entre mulheres, Michele mesmo sem querer desperta paixonites entre garotas homo ou heterossexuais. Mas também não consegue ver-se como homossexual. “Hoje existem diversos modos de ser mulher, inclusive ser mulher e ter uma posição masculina. Do mesmo modo que é possível ser um homem na posição feminina. Não é preciso cortar o pênis para ter um lugar social. Muita gente, ao mudar de sexo, está resolvendo na anatomia uma questão psíquica, uma questão de reconhecer-se no corpo que se tem”, diz. “Acho que uma mulher precisa ser muito mulher no sentido de não ter medo de ser confundida com um homem. Me vejo como uma mulher masculina que gosta de mulheres femininas.”

Carla e Michele não frequentam guetos gays, como bares, restaurantes e danceterias. A maioria de seus amigos poderia ser identificada como heterossexual. “Todo o gueto – e não apenas o homossexual – visa excluir a diferença. Seja ele ideológico, religioso, racial ou sexual”, diz Michele. “E nós acreditamos que é o confronto com as diferenças que nos faz avançar, que nos apresenta novas possibilidades de existir, que nos permite a invenção de uma vida melhor. Nas ocasiões em que tentaram eliminar as diferenças, determinar que só existia uma forma de viver, foi muito triste, como no nazismo e no fascismo.”

Como a questão de ser ou não homossexual tangenciou as cinco horas de entrevista, Carla e Michele ainda me enviaram um email, com o objetivo de clarear sua posição. É Carla que escreve primeiro: “Não nos reconhecemos como homossexual justamente por que, ao se apresentar como ‘homossexual’ nos parece que o sujeito reduz e condensa o conjunto de traços identificatórios que o define a apenas um: ‘o homossexual’. Ou seja, como se a partir desse momento deixasse de ter nome próprio, de ser filho, de ter uma profissão, de ter uma identidade de homem ou mulher. Somos mulheres e entendemos que, na vida, se é homem ou mulher. Para depois, a partir das determinações discursivas da época em que se vive, assim como a partir das marcas infantis, e assim como dos ‘bons encontros’ na vida, cada um vai se referenciando a partir do masculino ou do feminino enquanto posição psíquica. E isso vai determinar seu jeito de amar, de namorar, de fazer laço, etc. Por exemplo: No primeiro dia em que ficamos, quando fui tocar o corpo da Michele, me surpreendi que não tinha um pênis. Isso é só para te inspirar e te dar um exemplo de que o quanto o conhecimento da anatomia e da realidade é menos determinante que a dimensão do simbólico enquanto representação. Isso é para brincar um pouco do quanto existem mil e um ordenadores e arranjos possíveis no campo da sexualidade e, principalmente, uma infinidade de arranjos possíveis para um casal”.

O texto continua, desta vez escrito por Michele. “Gostaríamos de deixar uma interrogação: o que é apresentar alguém como homossexual, na medida em que nunca vimos alguém se apresentar como heterossexual? Ou ainda, como poderíamos aceitar essa representação se a idéia do homossexual faz alusão à atração pelo mesmo sexo, se o encontro entre mim e Carla diz justamente da atração pela diferença de posição? Ou seria o estereótipo ‘homossexual’ uma forma de anular a reflexão e de manter a ilusão de que não temos ‘nada’ comum para fazer laço?”.

Considerei as questões colocadas por elas tão interessantes que quis trazê-las para essa coluna. Tudo o que nos provoca a pensar sempre nos faz avançar. Concordar ou discordar não é o mais importante. Acho que as pessoas dão valor demais ao “concordo” ou “discordo” – e assim perdem ótimas oportunidades de aprimorar sua reflexão porque sentem-se ameaçadas quando algo abala suas convicções. Provocações intelectuais valem a pena porque nos fazem refletir para além do que pensávamos antes – e tornam possível chegar a questões que também superam as iniciais. Valem a pena porque nos fazem duvidar de nossas certezas. E esse é um excelente exercício para nos tornarmos pessoas melhores, que pensam mais e melhor e conjugam a tolerância. Se o método servir para alguém, sempre que algo me parece muito novo ou mesmo absurdo, eu faço um exercício que começa por um silencioso, mas nem por isso menos sonoro: “Será?”.

É necessário ressaltar que a denominação homossexual e seus derivativos foram usadas por muito tempo para discriminar. Até pouco tempo o “homossexualismo” era considerado uma patologia, um desvio. E há quem ainda defenda essa teoria. Por outro lado, com imensa coragem e obstinação, o movimento gay conseguiu transformar uma definição que era pejorativa em ação afirmativa, fundamental para a conquista de direitos. Foi preciso afirmar a diferença para conquistar o direito de existir. Fechar-se em guetos se impôs como um espaço de proteção diante de uma sociedade preconceituosa – e uma estratégia para encaminhar as questões legais com maior poder de pressão. Hoje, o próprio desdobramento da sigla LGBTTTS, que não para de aumentar em função de novas definições, mostra um caminho de abertura. O trinômio GLS (gay, lésbicas e simpatizantes) não abarca mais todas as diferenças. E possivelmente teremos uma sociedade melhor quando as diferenças não precisarem mais ser explicitadas numa sigla.

É por esse caminho que me parecem ir Carla e Michele. Elas não ocultam nenhum elemento de sua condição. Pelo contrário, apresentam-se com uma transparência pouco vista, mesmo em militantes da causa. É preciso observar ainda que elas não circulam por guetos, mas na universidade, na escola dos filhos, nos restaurantes da cidade, no clube, nos próprios consultórios. E não em São Paulo, uma cidade que pelo tamanho permite a vivência de todos os arranjos – mas em Blumenau, uma cidade de porte médio, conservadora, com população predominantemente de origem alemã.

Ao escutar a argumentação de Carla e Michele, fiz várias indagações sobre minha vida e analisei meus arranjos amorosos em retrospectiva. Provavelmente eu nunca lidaria bem com um parceiro com uma posição masculina tão determinada. Percebo que tenho muito forte em mim as duas posições – e as alterno nos jogos amorosos e sexuais. Homens muito masculinos ou femininos demais acabam por me desinteressar. Sou atraída por gente que mistura, me fascino pelas nuances. E provavelmente por isso meu casamento tenha sobrevivido não às pequenas, mas a pelo menos uma grande crise.

Gosto, numa história de amor, da liberdade de ser uma coisa e outra. E, embora já tenha me sentido atraída por mulheres – femininas e masculinas –, nunca aconteceu. O que não significa que não acontecerá. E me exponho aqui em reciprocidade à exposição dessas duas mulheres, que entenderam que tinham a responsabilidade ética de se mostrar, para que outros brasileiros pudessem refletir sobre uma questão tão importante. Não acho que meu jeito é melhor que o de ninguém – nem que o de Michele e Carla sejam melhores ou piores que todos os outros possíveis. Acredito apenas, por tudo que vi, ouvi e senti, que elas formam um casal interessante e criaram uma família bonita.

Saí dessa experiência de reportagem com apenas uma convicção pessoal. Não sou heterossexual. Não porque pretenda começar a namorar mulheres, mas porque cheguei a conclusão de que essa definição diz muito pouco sobre a complexidade do que somos. Está na hora de criar nomes mais fluidos, acho eu. Se alguém me perguntar se sou homo ou hetero, vou dizer: “Sou uma mulher às vezes masculina, às vezes feminina, que gosta de homens às vezes femininos, às vezes masculinos”. É mais complicado, sem dúvida. Mas é bem mais estimulante. E libertador.

(Publicado na Revista Época em 01/06/2009)

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