A primeira família de duas mulheres

As psicanalistas Michele Kamers e Carla Cumiotto conquistaram na Justiça o direito de registrar seus filhos gêmeos no nome de ambas

primeira nova familia

RETRATO DE FAMÍLIA De pé, Michele Kamers, de 31 anos, e Maria Clara. Sentados, Carla Cumiotto, de 38, e Joaquim Amandio. Eles posam diante de sua casa, em Blumenau, Santa Catarina, dias depois de receber autorização judicial para o registro dos gêmeos em nome das duas mulheres

Eliane Brum e Marcelo Min (fotos), de Blumenau (SC)

O primeiro foi Joaquim Amandio, com 2,8 quilos. Dois minutos depois chegou Maria Clara, só alguns gramas mais pesada. Michele estendeu a mão para Carla, deitada na mesa cirúrgica onde fez cesariana. Às 9h55 de 8 de fevereiro de 2007, as palavras faltaram. Com olhos castanhos boiando em lágrimas, Michele acolheu os bebês: “Filhos, a pami está aqui”. Sabia que reconheceriam sua voz porque havia contado a eles muitas histórias ao longo dos nove meses de gestação em que habitaram o ventre de Carla. A enfermeira olhou para Michele: “A Maria Clara é a sua cara”. Michele exultou. Até hoje conta essa história muitas e muitas vezes. Disparou então para o corredor do Hospital Santa Catarina, em Blumenau, gritando: “Meus filhos nasceram, meus filhos nasceram”. Na sala de espera, as pessoas a olhavam com susto. Afinal, como ela acabou de dar à luz e está gritando e correndo feito doida? Nascia ali uma nova família. Diferente, sem dúvida. Mas uma família.

Sem dúvida.

Um mês mais tarde, Carla e Michele anunciaram à escrivã do cartório de registro civil, em Blumenau: “Somos casadas, nossos filhos foram gerados por inseminação artificial e queremos registrá-los no nosso nome”. A mulher perguntou quem era o pai. Michele respondeu: “Eles não têm pai. Têm a mim”. A escrivã afirmou que só poderia registrar em nome da mãe biológica. “Nós vamos tentar na Justiça, então”, disse Carla. A escrivã retrucou: “Podem tentar, o máximo que vão conseguir é um não”.

Em 12 de dezembro de 2008, o juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, disse “sim”. Em 14 de maio, foi determinada a alteração da certidão de nascimento dos gêmeos. Joaquim Amandio e Maria Clara Cumiotto Kamers são agora filhos de Carla Cumiotto e Michele Kamers e seus avós são Alcides e Clara Cumiotto e Jaime e Maria Kamers.

A sentença é histórica. Pela primeira vez é reconhecido na Justiça o direito de uma mulher, sem nenhum vínculo biológico com seus filhos, ocupar um lugar parental. A Justiça gaúcha, conhecida por decisões de vanguarda, reconheceu e legitimou um vínculo afetivo, amparado por uma história de amor de 11 anos entre duas mulheres, comprovada por vídeos, fotos, documentos e testemunhas. “Algumas pessoas pensam que os novos arranjos estão destruindo as famílias”, diz Michele. “Não é verdade. Eu não poderia adotar filhos que sempre foram meus, que nasceram não apenas do desejo da Carla, mas do meu também. Quem critica não pensa no direito dos meus filhos a ter meu nome, minha herança, o meu amparo legal. Lutamos tanto pelo reconhecimento desse vínculo justamente porque acreditamos na importância da família. Tanto que nos autorizamos a reinventá-la. Pode parecer paradoxal, mas somos tradicionais.”

Ao dar a notícia, a advogada Ana Rita do Nascimento Jerusalinsky desandou a chorar. “Essa sentença mostra que a família não morre nunca. Vai viver para sempre, se a sociedade não for preconceituosa”, afirma. “As novas famílias agregam novos membros, alguns que ainda não sabemos como nominar. É uma grande inclusão. E é esse processo social que está nos levando não ao fim, mas à revalorização da família.”
E como nasce uma família? A de Carla e Michele começou numa troca de olhares numa aula de história da psicologia, nocampus do pequeno município de Biguaçu, da Universidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Michele, 19 anos, era a aluna. Carla, 27, a professora. Ao ver Carla metida em um vestido justo, verde-claro, de um ombro só, as unhas vermelhas, Michele achou que ela era linda. Carla sentiu, como sente até hoje, 11 anos depois, “como se fosse um homem me tirando a roupa com o olhar”.

Quem eram elas até aqui? Michele é filha de comerciantes bem-sucedidos de Florianópolis, descendentes de alemães. Única menina dos três filhos, “era mais menino que os meninos”. Eram garotas os objetos de seus amores de infância. Mas sofria na escola quando a chamavam de “machorra”. Aos 11 anos, tentou resolver a questão da identidade sexual com uma mudança radical. Michele assumiu o estereótipo da garota feminina. Tornou-se modelo. Tão profundamente que sofreu de anorexia e bulimia até os 17 anos. As fotos do book mostram uma loira muito magra, de cabelos longos, encaracolados, olhar profundo. Michele debutou, namorou muitos garotos, foi capa de jornal.

Num evento, ao pegar uma bebida, outra modelo a beijou na boca. Michele descobriu que adorava. Passou a namorar garotos e garotas, sem nada esconder da família. Aos 18 anos, conseguiu conciliar pela primeira vez a mulher que era à posição masculina com que se identificava. Matriculou-se num colégio de padres, tornou- -se ótima aluna e ingressou na psicologia. Quando perfurou Carla com seu olhar na aula da faculdade, era uma mulher bonita, bem cuidada, mas dotada de uma postura e um magnetismo inscritos nas referências culturais como masculinos.

Carla era a caçula de uma numerosa família de imigrantes italianos de Santa Rosa, interior do Rio Grande do Sul. Loira de olhos azuis e traços delicados, sua feminilidade não era apontada numa família de homens com sexualidade explícita. A Carla era destinado o lugar de “intelectual”. Não era feita para namorar, mas para cuidar dos livros. Mesmo assim, namorou por três anos um colega de psicologia. E depois, quando terminou, teve muitos casos de uma noite só. A Carla nunca havia aparecido a possibilidade de amar outra mulher.

Quando Michele, dona de um olhar mais masculino que muitos homens, a encarou, Carla sentiu-se atraída e confusa. Numa noite, as duas encontraram-se num bar e, quando o bar fechou, transferiram-se para um café. Discutiam algo só verossímil no encontro de uma psicanalista e de uma estudante de psicologia: o que sentiam era “querer ou desejo”?

De repente, Carla perguntou: “Para você, é querer ou desejo?”. Michele respondeu bem rápido: “Desejo”. E já pegou a chave do carro e um par de balas de manga. Quando Carla aceitou a bala, ela veio junto com o primeiro beijo. Passaram a noite dentro do carro, na Praia de Jurerê, em Florianópolis. Até hoje guardam o papel da bala e uma foto das roupas do primeiro encontro.

Carla passou alguns anos tentando entender esse amor tão surpreendente em sua trajetória de vida. A liberação erótica só veio no dia em que ela, muito tímida, sussurrou a Michele: “Eu gosto quando você usa camisa”. Funcionou como uma espécie de senha não só para as fantasias sexuais, como para a libertação das palavras usadas na intimidade. “Até hoje eu continuo gostando de homens, olhando para homens. Só olho para as botas ou os cintos das mulheres, não para elas”, diz Carla. “Descobri que gosto de homens masculinos, de mulheres masculinas. Não conseguiria beijar ou transar com um homem feminino ou uma mulher feminina. Por isso, não consigo me apresentar como homossexual. Não por preconceito, mas porque não me interesso por iguais. Pelo contrário, o que me atrai é a diferença de posição, seja em homens ou mulheres.”

Carla e Michele escolheram a cidade de Blumenau para morar. A princípio, uma cidade com fama de conservadora, povoada por descendentes de alemães, poderia parecer uma má escolha. Mas, depois de alguns risos nervosos nos primeiros tempos, as duas tornaram-se respeitadas na comunidade como psicanalistas e professoras universitárias, autoridades em sua área.

Quando o pai de Carla adoeceu, cuidaram juntas dele até quase a morte. Michele, porém, tinha uma queixa. Enquanto participavam com desenvoltura da vida na família de Michele, como casal, a de Carla ignorava a relação. No enterro, a família agradeceu a todos os que ajudaram a cuidar dele na doença, não sobrou nenhuma palavra para Michele. Ela então exigiu ser assumida. Carla não se sentia capaz desse ato, confusa com a novidade do que sentia. Antes de se separar, Michele lhe entregou uma rosa vermelha e dois cálices de champanhe: “Se nunca te casares, saiba que um dia alguém te pediu em casamento”.

Carla namorou “um homem bacana, numa relação muito interessante”. Michele teve casos com várias mulheres, alguns deles ao mesmo tempo. Um dia Carla descobriu que, mesmo vivendo uma relação com um homem que valia a pena, ela gostava mesmo era de Michele. “Acho isso muito importante, bonito”, diz. “Eu escolhi a Michele.”

CENAS DO COTIDIANO  Os gêmeos têm uma rotina de crianças amadas e pais presentes. Na primeira foto, Michele dá café aos filhos; na segunda, Carla brinca com Joaquim na pracinha; na terceira, Michele deixa os bebês na escola. E, na quarta, ambas dão banho e preparam as crianças para dormir

CENAS DO COTIDIANO
Os gêmeos têm uma rotina de crianças amadas e pais presentes. Na primeira foto, Michele dá café aos filhos; na segunda, Carla brinca com Joaquim na pracinha; na terceira, Michele deixa os bebês na escola. E, na quarta, ambas dão banho e preparam as crianças para dormir

primeira nova familia2

Depois de vários drinques num bar com uma amiga, decidiu ir até o apartamento de Michele. Ela estava de pijama, no carro, espiando diante da porta do bar. Recomeçaram. Carla procurou cada parente para contar sua escolha. Mãe, irmãos, sobrinhos. Dessa vez, foi Carla que assustou Michele. Ela queria casar. “Para mim, casar era morar junto”, diz Michele. “A gente não teria documento, nenhum papel. Eu queria um ritual”, diz Carla. “Queria tornar público para nossas famílias e amigos, para a comunidade.” Michele debateu-se ao longo de muitas sessões de análise. “Sabíamos que não podíamos ser duas noivinhas. E era eu, claro, que ocuparia a posição de noivo. E noivo usa smoking. Ficava pensando: ‘Será que só eu sou a homossexual’?”. Decidiu mandar fazer um conjunto de calça e casaco, que usou com camisa branca, colar, brincos e maquiagem. Carla encomendou um vestido de noiva a rigor. “Por que eu não poderia me vestir de noiva?”, diz. “Eu me sentia noiva. A Michele não seria minha mulher, mas meu marido.” A casa que compraram juntas, num bucólico bairro de classe média de Blumenau, foi decorada com todos os elementos que testemunhavam sua história: pétalas de rosas vermelhas, grãos de café, velas, mapas das regiões de onde vieram os antepassados, as árvores genealógicas das duas famílias, fotografias, cartas e bilhetes do romance. Michele esperou Carla na porta. E um amigo celebrou o casamento, numa cerimônia em que contou a trajetória daquele amor. No altar, as duas choravam. Era 3 de setembro de 2004.

“Acreditamos tanto na importância da família que
nos autorizamos a reinventá-la. Somos tradicionais”
MICHELE KAMERS

“Não me vejo como homossexual. Sou uma mulher
feminina, atraída por homens e mulheres masculinos”
CARLA CUMIOTTO

Em 2005, Carla começou a esboçar um comportamento estranho até para si mesma. Na conversa com uma amiga, trocou a palavra “psiquiatra” por “pediatra”. Depois, ao falar de um bar, em vez do nome “Tip-Tim, disse “tip-top”. Um dia, surpreendeu-se no centro da cidade espiando vitrines de lojas de roupas de bebê. Por fim, começou a sonhar com bebês. E, um dia, quando atravessavam uma ponte, anunciou, sem preliminares: “Michele, acho que quero ter filhos”. O carro quase despencou lá de cima.
Nos dois anos seguintes, as duas discutiram possibilidades e riscos. “Comecei a desejar o desejo dela de ter filhos”, diz Michele. “E um dia tornou-se meu desejo. Mas queríamos ter a tranquilidade de saber que nosso filho ou filha ficariam bem.” Para Michele, havia uma questão crucial. Como seus filhos a chamariam? Nunca houve nenhuma dúvida, na vida e no casamento, de que ela ocupava a posição masculina. “Era claro para mim que eu teria a função paterna na vida do bebê, mas ele não poderia me chamar de pai”, diz. “Era preciso criar outro nome para uma mulher que ocupa a função paterna. Mas qual?”

Muitas sessões de análise depois, Michele chegou à palavra “pami”. Um nome que, mais tarde, entendeu como a união de “pai” e da primeira sílaba de “Michele”, mas também o masculino de uma palavra popular na vida das crianças: “mami”. Na saída do consultório, ligou para Carla. “Encontrei um nome!” Carla respondeu na hora: “Gostei”. A partir da nomeação, a decisão de ter filhos ganhou serenidade. Depois de conversar com o primeiro especialista, em Porto Alegre, compraram na viagem de volta o primeiro presente do bebê. Um Fusca se fosse menino, um dado para a menina – “já que as bonecas ali eram muito feias”.

Ao receber o catálogo, por e-mail, das opções disponíveis no banco de esperma, em São Paulo, optaram por um doador de ascendência alemã, italiana ou portuguesa, para ser parecido com elas, e de olhos castanhos, como os de Michele. Na primeira inseminação, o médico, um especialista renomado, foi taxativo: “Não sei para que tanta emoção se as chances são só de 20%”. Logo depois Carla menstruou, e elas passaram dois dias com a sensação de que alguém tinha morrido. Tentaram de novo. Dessa vez, o médico, um assistente, foi caloroso. “Vai dar certo!” Deixou que Michele fizesse a inseminação. Há fotos com o registro de cada passo. Para elas, era tudo romance. Carla engravidou. E Michele até hoje se vangloria da “pontaria”.

No segundo mês de gestação, ao acompanhar a ultrassonografia, Michele apontou: “Olha só, há outro pontinho preto aqui”. Foi assim que descobriram que teriam gêmeos. Michele adorou. Carla ficou assustada. Aos quatro meses, outra ultrassonografia revelou que os gêmeos eram um casal. Carla relaxou. Já tinham até nomes. Maria Clara era a soma dos nomes das avós: Maria, mãe de Michele, e Clara, mãe de Carla. Joaquim Amandio, dos patriarcas das duas famílias: Joaquim, “nonno” de Carla, e Amandio, avô de Michele. O casal teve o cuidado de inscrever os filhos na linhagem das duas famílias. Eles chegariam ao mundo amparados pela tradição. Pelas paredes da casa, muitas fotos de Joaquim, Amandio, Maria e Clara. Assim como de Joaquim Amandio e de Maria Clara.

Os dois anos de preparação foram decisivos para organizar com amor e inteligência a chegada de crianças que viveriam num arranjo familiar marcado pela diferença. E também para cometer aqueles absurdos dignos de pais que se prezem. Decidiram que Maria Clara seria escritora e Joaquim Amandio aviador. “Loucura, né?”, dizem hoje, rindo muito. Loucura ou não, Joaquim Amandio ganhou um kit aviação. Mas parece ter mais vocação para caminhoneiro, já que não larga seu caminhão cegonheiro por nada.
Carla logo se tornou uma grávida clássica. Com deslocamento de placenta no início da gestação, encolheu o ritmo de trabalho. E sentiu-se uma rainha, mas uma rainha carente. “Você não me olha, não me vê, está sempre trabalhando”, dizia, mal Michele assomava na porta. Se ela se atrasava cinco minutos para chegar da universidade, Carla sentia-se abandonada. Michele então se dedicou a uma ampla reforma do quarto do casal e dos bebês. Iniciar uma reforma, sempre que algo importante está em curso, tornou-se uma marca de Michele.

Quando os gêmeos nasceram, foram tantas as flores que Michele precisou fazer três viagens de carro entre o hospital e a casa para trazê-las. “Eles foram muito bem recebidos”, diz. O primeiro ano foi duro. Carla teve licença-maternidade, Michele nenhuma. “Passava a noite levando os bebês para mamar e depois tinha de acordar às 7 horas para ir à universidade.” É dela o papel de impor limites. Botou horário nas mamadas e aguentou a choradeira, proibindo Carla de chegar perto do quarto para acudir os filhos. Os gêmeos começaram chamando-a de “a pai”. Depois, “a papai”, em seguida “pã”. E, por fim, “pami”. “Quem é o pai da Maria Clara e do Joaquim Amandio?”, perguntou uma coleguinha de escola. “Você tem pai, eles têm pami”, é a resposta. “Eles são filhos seus ou dela?”, indagou um sobrinho na primeira festa de família. “De nós duas”, disse Carla. “Ah, que legal, assim cada uma pode cuidar de um.” Carla e Michele descobriram que as crianças sempre acham uma boa saída. “Que nojo, beijar uma mulher na boca”, disse uma menina na pracinha. “É mesmo, quando elas não se amam, deve ser bem nojento”, retrucou Carla. “Mas, quando se amam, é bonito.” Um garotinho que circulava por perto falou: “Meu pai namora um homem”.

Nem Carla nem Michele vivem em guetos gays. “Nunca me identifiquei como homossexual. Frequentei pouco bares gays. Porque, ao se apresentar como homossexual, me parece que a identidade é reduzida à escolha sexual. Entendo que, na vida, somos homens ou mulheres e, a partir de marcas infantis e dos bons encontros, cada um vai se referenciando a partir do feminino e do masculino”, diz Michele. “Enquanto um casal tem uma relação homoafetiva, homoerótica e quer viver em guetos, problema dele. Mas, a partir do momento em que um casal tem filhos, acho delicado uma criança ser apresentada ao mundo num gueto. Porque todo gueto, e não só o gueto homossexual, visa excluir a diferença. É o confronto com a diversidade, com outras famílias, outras classes sociais, outras experiências, que aumenta as possibilidades, faz com que cada um seja capaz de inventar uma vida melhor. Nas ocasiões em que tentaram eliminar as diferenças, determinar que só existia uma forma de viver, foi muito triste, como no nazismo e no fascismo.”

Michele espera que “pami”, seu nome para os
filhos, vire uma nova palavra inscrita na língua

A pré-escola das crianças foi escolhida por dar prioridade à brincadeira. “Não queremos nossos filhos no computador ou aprendendo inglês, para isso vão ter muito tempo depois”, diz Carla. Quando as crianças fizeram sua estreia para além dos limites da casa da família, Michele e Carla enviaram uma carta à diretora e aos professores. Nela, contavam suas expectativas, sua história de vida e os hábitos dos filhos. A carta é um testemunho de pais amorosos tentando preparar o mundo para os filhos, até que tenham tamanho e maturidade para se defender sozinhos. Num dos itens, denominado “o mito da origem”, escrevem: “Toda criança investiga, lá pelas tantas, de onde eu venho e por que os pais me tiveram. Na verdade, elas querem saber da sexualidade dos pais (não da anatomia), assim como do desejo que as trouxe ao mundo. Isso é o que importa. Como queremos que a escola conte sobre isso para nossos filhos e para as outras crianças, gostaríamos de situar uma pequena história: A mamãe e a pami (nome inventado pela Michele para se apresentar para os filhos) se amavam tanto que chegou uma hora da vida delas que elas quiseram ter filhos. E, como eram duas mulheres, precisavam de um médico que as ajudasse. Aí, elas viajaram para São Paulo e encontraram um médico que as ajudou a encontrar um homem que lhes doou uma sementinha para a vinda dos bebês. Um homem desconhecido, mas muito gentil. É importante que vocês situem que é um doador, e não um pai. Explicar que pai não vem da genética ou do sangue, mas do coração. Por isso, vocês podem explicar que, do mesmo modo que os amiguinhos têm pai e mãe, o Joaquim Amandio e a Maria Clara têm a pami e a mamãe”.

Carla e Michele escreveram uma carta aos professores
da escola para prepará-los para a chegada dos filhos

Na passagem do primeiro para o segundo ano de vida dos gêmeos, Carla e Michele tiveram a primeira crise depois do casamento. Carla reclamava que Michele só pensava no trabalho. Michele dizia que era “a mulher que devia ficar mais com as crianças”. “Imagina se eu casei com uma mulher para ouvir uma coisa machista como essa”, diz Carla.

Hoje, as duas dedicam-se a superar o impasse vivido pela maioria dos casais a partir do primeiro filho: como um casal se transforma em família. “As pessoas acham que, como a gente teve tantas dificuldades para se firmar como casal, não poderia ter crise”, diz Michele. “Temos crises como todo mundo. Nossa questão, no segundo ano, foi como voltar a namorar. Além disso, tenho muitos planos, como fazer meu doutorado na França. Não abri mão desse plano por causa dos bebês ou da Carla. Agora, virou um projeto da família, estamos pensando em morar um tempo na França. A questão aqui é como não perder a singularidade.”

Álbum de família
A história de Michele, Carla, Joaquim Amandio e Maria Clara, contada em imagens

MOSAICO As fotos narram a trajetória de Michele Kamers (à esq. na foto maior, nas fotos de infância e de baile) e Carla Cumiotto, desde que eram crianças e adolescentes até se conhecer, casar-se e formar uma família

MOSAICO
As fotos narram a trajetória de Michele Kamers (à esq. na foto maior, nas fotos de infância e de baile) e Carla Cumiotto, desde que eram crianças e adolescentes até se conhecer, casar-se e formar uma família

Carla e Michele compartilham o pacto de manter o desejo erótico entre elas. “Nosso casamento começou com erotismo. E a gente não larga mão disso”, diz Carla. “Muita gente, depois de ter filhos, deixa de ser homem e mulher, mas achamos que esse é um preço muito alto. Então estamos reinventando nosso casamento.”

A família vive numa casa ampla e antiga, numa rua sem saída que parece feita para criar filhos. No fim do calçamento há uma mata nativa, onde “pami” faz barquinhos de papel para os gêmeos atirarem no rio. Na outra ponta, há uma pracinha. As crianças brincam pelas calçadas com os filhos dos vizinhos. Lá, são conhecidas como “Mano” e “Mana”. Os consultórios das duas estão instalados na parte frontal da casa, o que torna a vida mais fácil e mais próxima das crianças. Há ainda dois membros completando o clã: os cachorros Sofia, um maltês, e Smeagol, um pincher.

Até o início de maio, Carla e Michele não pensavam em divulgar sua vitória na Justiça. A decisão de expor sua trajetória foi tomada depois que a Justiça negou a um casal de mulheres de Carapicuíba, em São Paulo, a tutela antecipada de seus filhos, uma história revelada pela reportagem de ÉPOCA. Nesse caso, os óvulos de Munira Khalil El Ourra foram implantados no útero de sua companheira, Adriana Tito Maciel, gerando gêmeos. Com a negativa, Carla e Michele entenderam que tinham uma responsabilidade “ética e social”. “Se a gente ficasse quietinha, estaríamos fazendo coro à sociedade do narcisismo. Tipo: eu consegui o meu, os outros que se virem”, diz Michele. “Tornar público é uma tentativa de inscrever essa possibilidade no tecido social. Em nenhum momento a gente fez apologia, como se nosso arranjo fosse uma solução ou nossa família fosse melhor que as outras. Cada um faz seu arranjo para se tornar uma família interessante.”

DE VOLTA PARA CASA Michele (à esq.) e Carla retornam depois de passar a manhã brincando com os filhos na pracinha, jogando barquinhos de papel no rio e divertindo-se pela vizinhança da rua onde vivem, em Blumenau, Santa Catarina

DE VOLTA PARA CASA
Michele (à esq.) e Carla retornam depois de passar a manhã brincando com os filhos na pracinha, jogando barquinhos de papel no rio e divertindo-se pela vizinhança da rua onde vivem, em Blumenau, Santa Catarina

Carla e Michele não perderam nenhum paciente devido à exposição, como era o temor de alguns familiares. A reação de pacientes e alunos é de “admiração pela coragem”. “A gente tem uma posição confortável e uma sustentabilidade para dar esse passo sem sofrer com a reação pública”, diz Carla. “As pessoas podem até falar dentro de suas casas, mas não dizem nada para nós. Conseguimos lidar com tranquilidade também porque estamos representadas a partir de diversos referenciais, para além da escolha sexual.” Elas se esforçam para não deixar nada sem dizer. “Enquanto a sociedade pede para esconder, nós fizemos questão de deixar tudo transparente”, diz Carla. Quando são apresentadas a alguém, sempre contam que são casadas e tiveram dois filhos por inseminação artificial. Carla chama Michele de “companheira” ou “marido”. Michele chama Carla de “mulher” ou “princesa”. Ambas se chamam de “amor”. “A gente não acha feio, por isso podemos expor”, diz Michele. “Espero que as pessoas possam mudar um pouco o olhar sobre o que é uma família. Estamos pautadas pelas mesmas leis de toda família, funcionamos a partir dos mesmos códigos. Não estamos fora. Eu tive de inventar um nome, e não é um nome fora da cultura, porque existe um ‘mami’, inventado pelas crianças. Espero que o ‘pami’ possa se inscrever também na cultura, como uma nova palavra, significando coisas diversas para cada um. Tenho muito orgulho da nossa família.”

A história de Joaquim Amandio e Maria Clara está documentada desde o primeiro Kamers e o primeiro Cumiotto que chegaram ao Brasil. Os retratos antigos dividem as paredes da casa com as fotografias que contam o romance de seus pais e seus dois primeiros anos de vida. Michele é quem registra a história dessa nova família. São dezenas de DVDs, centenas de fotos. Até o dia da audiência com o juiz está gravado.
Os gêmeos acordam cedo e pulam dos berços para a cama de “mami” e “pami”. Depois que todo mundo se enrosca um pouco, vão para a mesa do café, quando comem de forma surpreendente para o tamanho. E de tudo um pouco. Depois vão para a rua brincar. À tarde, na escola, Joaquim é conhecido como “conversador” e Maria Clara como “carinhosa”. Michele, Carla ou ambas vão buscá-los. Depois do banho e da mamadeira, as duas se deitam numa joaninha gigante, de pelúcia, até que cada um durma em seu respectivo berço.

No primeiro Dia dos Pais de suas vidas, a escola fez um cartaz com fotografias. Lá está “pami” em duas fotos: uma com Joaquim Amandio, a outra com Maria Clara. Não é a única mulher. Há outras que ficaram viúvas ou cujo marido se tornou ausente – e que tiveram de assumir também a função paterna para os filhos.

A história da família Cumiotto Kamers, não fosse ter duas mulheres à frente, é bem tradicional. Carla e Michele trazem novas nuances à questão. Uma delas é: por que elas não poderiam ser tradicionais? Ou, posto de outra forma, por que, pelo fato de formarem um casal de mulheres, seria imperativo que todas as decisões e arranjos fossem de vanguarda? Se assim fosse, talvez elas não tivessem se empenhado tanto para que sua família fosse reconhecida.

Na volta da escola, a família tem sua brincadeira particular: “Quem é o príncipe do castelo da ‘pami’?”, pergunta Michele. Joaquim responde: “O Mano!”. “Quem é a princesa do castelo da ‘pami’?” Maria Clara diz:“A Mana”. “Quem é a rainha do castelo da ‘pami’?” Carla e os gêmeos afirmam: “A mamãe”. “E quem é a dona do castelo?” Todos gritam, felizes: “A ‘pami’!”.

(Publicado na Revista Época em 29/09/2009)

A lista de Aracy

Enquanto namorava Guimarães Rosa, ela enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para salvar dezenas de judeus na Segunda Guerra Mundial

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

O ANJO DE HAMBURGO Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

O ANJO DE HAMBURGO
Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

Adolf Hitler queria matar Günter Heilborn. Se tivesse conseguido, Luiza, de 4 anos, não contaria histórias mirabolantes para a família com ares de heroína trágica, Marina não teria criado uma taturana para descobrir como ela virava borboleta e Juliana, ao ouvir uma amiga da mãe dizer que era baiana, não teria declarado: “Eu sou mamífera”. Não teria existido futuro para Günter. E não haveria presente para suas bisnetas trigêmeas. O assassinato num campo de extermínio poderia ter interrompido não apenas a história de Günter, mas toda a teia de acontecimentos, piqueniques, lágrimas, dentes de leite, decepções, joelhos esfolados e perguntas sem resposta que sua vida gerou.

É com essa fita métrica que a História vai medir a estatura de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, a funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo que enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para ajudar dezenas de judeus a conseguir vistos para fugir da perseguição nazista na Segunda Guerra Mundial. Ela completará 100 anos no domingo 20 de abril. Separados em tudo, Aracy e Hitler compartilham a mesma data de aniversário. Quando ela nasceu, a mais de 10.000 quilômetros da Alemanha, em Rio Negro, no Paraná, ele completava 19 anos e sonhava em ser artista. Décadas mais tarde, ela viria a tornar-se o anjo de Hamburgo. Ele, o carrasco de 6 milhões de judeus. Em meio ao horror inventado por ele, Aracy descobriu quem era ela.

O que faz alguém decidir que o único modo de salvar também a si mesma é desobedecer a ordens que prometeu cumprir? Que para ser uma boa pessoa é preciso ser uma má funcionária? A mulher sentada numa poltrona do apartamento do filho, em São Paulo, não pode mais responder. Ela sofre de Alzheimer. Os fios de sua memória são como um novelo que escorregou do colo e se perdeu.

Quando a trajetória de Aracy cruzou a de Günter, ela era jovem. E era linda. E não era vista com bons olhos. Em 1934, Aracy era uma mulher desquitada. Naquela época, para a maioria das mulheres, o máximo de ousadia era comprar um fogão a gás. Filha de uma imigrante alemã, Aracy pegou o filho de 5 anos pela mão e embarcou num navio para a Alemanha. Tinha 26 anos, era fluente em várias línguas e decidira ser a dona de sua história.

A vitória da vida Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família...

A vitória da vida
Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família…

Depois de uma temporada na casa de uma tia, Aracy conseguiu emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. Os judeus haviam sido expulsos de universidades, repartições públicas e do Exército. Foram obrigados a entregar seus negócios a arianos. Do Itamaraty eram desferidas “circulares secretas” para embaixadas e consulados. Nelas, a ordem era dificultar a entrada de judeus no Brasil. O Estado Novo de Vargas flertava com o nazismo.

O dentista Günter Heilborn não conhecia nem Aracy nem o Brasil. No fim de 1938, ele foi preso num campo de concentração com milhares de homens judeus. Para não morrer de fome, contou à família que tinha de comer as próprias fezes. Enquanto Günter padecia em Buchenwald, Aracy fazia sua escolha. Com a ajuda de Hardner, antigo guarda civil e proprietário da auto-escola onde aprendera a dirigir seu Opel Olympia, ela forjava atestados de residência falsos para que judeus de qualquer parte da Alemanha pudessem pedir vistos em Hamburgo. Conseguia também passaportes sem o J vermelho que assinalava os documentos. Misturava os pedidos à papelada que levava ao cônsul. Ele assinava os vistos, possivelmente sem saber que despachava judeus para o Brasil.

Parece fácil fazer a coisa certa. Mas só é fácil para quem vê os fatos iluminados pelo julgamento da História. Aracy era uma mulher sozinha com um filho pequeno num país à beira da guerra. Suas ordens eram fechar a porta para os judeus. Anos atrás, quando lhe perguntaram por que fez o que fez, ela disse: “Porque era o justo”. Em 1982, Aracy foi reconhecida como “Justa entre as Nações”, título conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém, aos não-judeus que arriscaram sua vida na Segunda Guerra Mundial para salvar a de judeus. Seu nome figura ao lado de Oskar Schindler e do então embaixador do Brasil em Paris, Luiz Martins de Souza Dantas, outro brasileiro entre as 22 mil pessoas que já receberam a homenagem.

Inge, a noiva de Günter, ouviu rumores sobre o “anjo de Hamburgo”. Naquele momento, ainda era possível conseguir a libertação de judeus que tivessem vistos para deixar a Alemanha. Os nazistas se contentavam em vê-los longe. Em breve, só se satisfariam com eles mortos.

O difícil era conseguir um visto. Na sala do consulado, Inge juntou-se a dezenas de judeus que haviam batido em muitas portas diplomáticas sem conseguir abri-las. Aracy aconselhou Inge a trocar os passaportes de suas cidades – Breslau e Gleiwitz – pelos de Hamburgo para que pudesse ajudá-los. Inge pode ter cruzado ali com Grete e Max Callmann, acuados num canto da sala. “Eu me lembro como se fosse ontem”, diz Grete. “Meu marido viajou para todas as cidades da Alemanha onde existia consulado do Brasil e dos Estados Unidos. Um dia me ligou dizendo que havia chance em Hamburgo. No dia seguinte, estávamos num canto, esperando nossa vez na sala cheia. De repente, uma moça nos chamou. Era a dona Aracy. Ela nos arrumou visto para viajar para o Brasil. Nós quisemos pagar. Mas ela disse: ‘Vocês não me devem nada’.” Na noite de 9 de novembro de 1938, Grete era recém-casada com Max, 22 anos mais velho. Ele havia sido diretor de uma grande loja de departamentos. Como todos os judeus, perdera o posto por um decreto nazista. Sobreviviam agora com uma fábrica de aventais. Grete não conseguia dormir porque Max roncava. Pegou travesseiro e cobertor e transferiu-se para o sofá da sala. “Acordei às 5 horas da madrugada, com um barulho terrível na rua. Os nazistas quebraram tudo o que era de vidro, as janelas das lojas”, diz. Ela sacudiu o marido: “Algo muito ruim está acontecendo”. No dia seguinte, o mundo saberia que os nazistas haviam assassinado dezenas de judeus, incendiado, saqueado e destruído sinagogas, lojas e empresas hebraicas, confinado quase 30 mil homens em campos de concentração. A “Noite dos Cristais” inaugurou o que a História chamaria de Holocausto.

Karl Franken, funcionário de uma loja de roupas para senhoras em Hamburgo, embarcou às pressas num trem para Essen. Pretendia se esconder na casa da mãe. Quando se acomodou numa mesa do vagão-restaurante para jantar, havia ainda um lugar vago. Minutos depois, sentou-se diante dele um oficial da SS. Karl ouviu impassível o nazista discursar. “Foi a única vez na minha vida que tive de levantar e estender a mão. Tive de fazer Heil Hitler”, disse a ÉPOCA, pouco antes de morrer. Tinha 99 anos e ainda vivia a insanidade daquele momento.

aracy grete1

‘‘O que Aracy significou para nós? A vida’’ Grete Callmann, de 94 anos, fugiu da Alemanha com o marido, Max, graças a um visto de Aracy

O oficial desceu em Bremen sem desconfiar que o jovem alto, olhos azuis, era judeu. Essa história será contada em um livro do Núcleo de História Oral Gaby Becker, do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Karl escapou e, com a ajuda de Aracy, embarcou no vapor Cap Norte com 10 marcos no bolso. Seu pai, o alfaiate Alex Franken, morrera em Verdun, na França, combatendo pela Alemanha na mais longa batalha da Primeira Guerra Mundial. Em Moers, sua cidade natal, uma placa saudava-o como herói.

Com o visto dado por Aracy, Inge arrancou Günter do campo de concentração. Casaram-se antes de embarcar para o Brasil no navio Monte Sarmiento. A noiva estava de preto – um luto profético. Para muitos, partir significava viver, mas abandonar os pais para morrer. “No trem para Hamburgo, vi pela janela minha mãe quase desmaiar”, diz Grete. “Foi a última vez que eu a vi.” Aos 94 anos, Grete chora sem soluçar. Suas lágrimas deslizam com a mansidão de quem nunca parou de chorar.
Enquanto o povo alemão envergonhava a si mesmo, Aracy desobedecia ao cônsul-geral, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro. E apaixonava-se pelo adjunto, João Guimarães Rosa. O jovem diplomata ancorou na Alemanha em maio de 1938. Tinha 30 anos, trocara a medicina pela diplomacia, havia vencido um concurso literário e perdido outro. No Brasil, deixara sua primeira mulher, Lygia, e as duas filhas, Vilma e Agnes.

Aracy era uma morena com mais curvas que o Reno, capaz de fazer os alemães gingar ao virar a cabeça para vê-la passar a caminho do consulado. Para sorte dos judeus, também tinha uma personalidade capaz de azedar um Apfelstrudel. Um dia deu uma bronca tão grande num policial que queria revistá-la que ele se encolheu diante de sua baixa estatura. Aracy, então, atravessou calmamente a fronteira com um judeu no porta-malas do carro.

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO
Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

Entre 1938 e 1942, Rosa registrou as impressões de um diplomata brasileiro na Alemanha nazista. No diário, ele é contundente ao narrar a perseguição aos judeus – e parcimonioso nas referências ao romance com Aracy: apenas 16 menções. Mesmo assim, a publicação desse diário é barrada pelas filhas do escritor. Agnes e Vilma desejariam reduzir o tamanho de Aracy na biografia do pai. Procuradas, não quiseram dar entrevista.

O romance está bem documentado nas cartas que “Joãozinho” escreveu para “Ara”. “Deixa que eu diga que você estava linda, linda, na hora de partir. (…) Dormi abraçado com a camisolinha cor-de-rosa, toda impregnada do aroma do corpo maravilhoso da dona de meu amor. (…) Serei absolutamente fiel, não olhando para as alemãzinhas, as quais, por sinal, todas viraram sapos!”, escreveu em 24 de agosto de 1938.

A declaração integra um acervo de 107 cartas e 44 cartões, bilhetes e telegramas escritos por ele. Com base no material, as historiadoras Neuma Cavalcante e Elza Miné preparam uma biografia de Aracy. Rosa registrou sem pudor quanto era feliz aos pés de Aracy – pés que eram objeto de fetiche. “Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos da sua dona”, escreveu no dia seguinte.

Enquanto a Alemanha se incinerava em ódio, Ara e Joãozinho queimavam de amor. O que em nada atrapalhou as atividades subversivas de Aracy. O casal nunca viveu debaixo do mesmo teto em Hamburgo. Ela chegou a esconder judeus em casa. “Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia muito”, contou Aracy, anos atrás. “Nunca tive medo de nada nem de ninguém.”

Getúlio Vargas passou os primeiros anos da guerra fazendo um agrado ao Eixo pela manhã, piscando para os Aliados à tarde. O ataque japonês a Pearl Harbor derrubou-o do muro. Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações com o Eixo. Rosa e Aracy foram confinados no balneário de Baden-Baden por quatro meses. Na viagem de volta ao Brasil, casaram-se por procuração no México. Em quase 30 anos ao lado de Aracy, Rosa inventou um mundo e reinventou a língua portuguesa. Ao lançar sua obra-prima, Grande Sertão: veredas, escreveu: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.

Quando Rosa e Aracy desembarcaram no Brasil, a filha mais velha de Günter e Inge começava a falar. Deram a ela o nome da mulher que lhes deu uma segunda vida. A pequena Marion Aracy só falava em alemão – e o governo havia proibido o uso do idioma. “Eu quero descer do bonde”, gritava a menina na língua do Führer. E Günter precisava fugir correndo com a filha no colo. Se fosse preso, só poderia dizer em alemão que também não gostava de Hitler.

A solteirice de Karl Franken durou pouco no Brasil. Logo se encantou por uma fugitiva do nazismo, Gertraud. O primeiro dos três filhos nasceu no ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha. Karl trabalharia por toda a vida na mesma empresa, a Mueller, de brinquedos e botões. Ele e Gertraud se tornariam uma referência na história da Congregação Israelita Paulista.

A única jóia que Grete Callmann conseguiu trazer foi roubada pelos funcionários brasileiros quando o navio ancorou no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1939. Era seu anel de casamento. Grete era pianista. Tinha estudado desde os 6 anos para interpretar Beethoven, Mozart, até Wagner, conhecido por ter sido o compositor preferido dos nazistas. “Quando chegamos, eu sentia em mim todas as doenças que existem. Mas os médicos não encontravam nada”, diz. “Era medo.”

Quando as cartas da Alemanha chegavam, Grete tremia tanto que não conseguia ler. Seus pais estavam num campo de concentração. Ela sabia que um dia as cartas se calariam. Quando a guerra acabou, em 1945, a Alemanha estava coberta de cinzas humanas. Hitler teria dado um tiro na cabeça. Vargas foi deposto. Ao apoiar a democracia lá fora, não dava mais para manter a ditadura aqui. Karl Franken, Grete e Max Callmann, Günter e Inge Heilborn estavam vivos. Assim como as dezenas de judeus salvos por Aracy.

O RECOMEÇO Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

O RECOMEÇO
Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

...Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e....

…Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e….

aracy bisnetos

…lhes deram cinco bisnetos. A seqüência de fotos da família Franken foi feita uma semana após a morte de Karl. É uma homenagem a ele e a Aracy

Quando a guerra acabou, Grete soube que os pais estavam mortos. Karl descobriu que pouco tinha restado da família. Günter e Inge foram informados de que seus pais tinham sido incinerados. Os “judeus de Aracy” teriam de viver num país tropical, do outro lado do Atlântico com essa herança. Viver era sua vingança. E foi o que fizeram.

Günter e Inge tiveram três filhos – Marion Aracy, Miguel e Ruth – durante a guerra. Günter levou uma década para ter reconhecido seu diploma de dentista. Nos primeiros anos, sustentou a família com a ajuda de prostitutas. Tratava os dentes das mulheres num quartinho de prostíbulo. Quando um policial aparecia, elas diziam que o quarto era usado para fins comerciais. Inge costurou para fora, teve malharia, fez congelados, criou uma colônia de férias em Campos do Jordão. Parecia suportar melhor o peso da vida partida, sorria mais. Günter proibiu o filho de usar marrom, cor do terno que vestia quando foi preso pelos nazistas. Nunca teve bigode. Era chamado pelos netos de “biblioteca ambulante”, porque discorria sobre qualquer tema, de mitologia grega a botânica. Menos sobre o Holocausto.

Em 19 de novembro de 1967, Vera Tess, a neta preferida de Guimarães Rosa, buscava o avô em passos claudicantes pelo apartamento do Rio. Encontrou-o no escritório, tendo um infarto. Aracy perdeu seu grande amor, mas não perdeu a si mesma. No fim de 1968, Geraldo Vandré começou a ser perseguido pelo regime porque a canção “Caminhando” virou um hino de protesto contra a ditadura. Enquanto a repressão o caçava, Vandré compunha, todo refestelado num sofá do apartamento de Aracy.

O prédio era repleto de oficiais e tinha vista para o Forte de Copacabana. Os netos de Aracy, que passavam as férias no Rio, foram incumbidos pela avó de alertar sobre qualquer movimento verde-oliva. Vandré ficou por lá tocando violão, jogando conversa fora. Depois viajou para São Paulo numa Kombi, com o neto mais velho de Aracy, Eduardo Tess Filho. E de lá para o exílio.

Karl Franken morreu no último dia 1o de março. Faltavam menos de seis meses para completar 1 século. Anos atrás, ele voltou à Alemanha. Não encontrou a placa que homenageava seu pai como herói de guerra. Karl Franken afirmou a ÉPOCA, cinco dias antes de morrer: “Eu sou só brasileiro”.

Günter Heilborn criou uma espécie nova de orquídea. Deu a ela o nome de sua mãe, queimada num forno crematório. Selma tinha pétalas brancas e amarelas. Günter apoderou-se por completo da vida que Hitler queria tomar. Morreu quando quis, em 1992. Inge o seguiu em 2000. Todas as tardes, ele e Inge sentavam-se para ouvir música clássica. Jamais ouviram Wagner. E nunca viram filmes sobre o Holocausto.

Grete Callmann tentou ver um filme sobre o nazismo. Começou a gritar dentro do cinema. Não voltou. Quando seu marido morreu, Grete comprou um piano usado. Seus dedos já não reconheciam as teclas. Aos 94 anos, Grete liga seu radinho ao acordar e atravessa o dia embalada por pianistas cuja vida não foi interrompida.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. De lá para cá, a cidade que mais amava no mundo foi se tornando campo minado também para ela. E com relutância, bem devagar, Aracy foi aceitando São Paulo. Nos últimos anos, enquanto saboreava um cigarro, foi cortando um a um os fios que a ligavam ao mundo de fora. Um dia levantou âncora e partiu inteira para dentro de si mesma.

Aos 4 anos, as bisnetas trigêmeas de Günter Heilborn queriam saber por que posavam para fotos. A mãe explicou: “Homens muito maus prenderam seu bisavô, e uma moça muito boa, chamada Aracy, ajudou ele a fugir. Em homenagem a ela, a vovó se chama Aracy”. E por que prenderam?, foi a pergunta seguinte. “Porque não aceitavam que eles eram diferentes.” A família se uniu então no exercício de lembrar de todas as pessoas de diferentes “cores, crenças, tipos e tamanhos” que amavam.

Aracy Guimarães Rosa esqueceu-se de si mesma, mas jamais será esquecida.

O legado de Aracy

POR UM TRIZ Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

POR UM TRIZ
Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

Marion Aracy (sentada) é a filha mais velha de Günter e Inge Heilborn. Seu nome é uma homenagem à mulher que salvou a vida dos pais e tornou a sua possível. Ela teve dois filhos, Selma e Paulo. Selma (de azul), casada com Jorge (de listrado), teve as trigêmeas Marina, Juliana (de rosa) e Luiza (de braços cruzados) e Alexandre, de 2 anos. Paulo, casado com Ana Cintia, é pai de Carolina, de 3. “Sem Aracy, nem eu nem minha família existiríamos. Simplesmente não teríamos acontecido”, diz Paulo Heilborn.

aracy familia

Duas mulheres contra Hitler

Margarethe Bertel Levy e Aracy Moebius de Carvalho foram protagonistas de uma aventura cinematográfica na Alemanha nazista. Tornaram-se amigas para sempre

“Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”, ela diz a ÉPOCA. Tem 99 anos, quase não caminha, não enxerga e não ouve. Mas a mente está límpida – o que faz do corpo uma prisão. Em nenhum momento sua situação vira lamúria. Maria Margarethe Bertel Levy prefere a auto-ironia. É uma mulher impressionante. Como sua grande amiga, Aracy. A aventura dessas duas mulheres extraordinárias na Alemanha nazista é um roteiro de cinema pronto.

“Eu era sexy”, ela diz. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.” Elas eram tudo isso mesmo. As fotos ao lado (Margarethe de chapéu, Aracy de ombros nus) documentam a afirmação. Conheceram-se porque Aracy precisou salvar Margarethe. Encontraram-se no consulado de Hamburgo, em 1938. Até hoje estão juntas. Margarethe visita Aracy, que não mais a reconhece. O filho único de Aracy, Eduardo, cuida de Margarethe, que é viúva e não quis ter filhos “porque gostava muito de viajar”.

Os muitos significados dessa amizade improvável são tema de investigação da historiadora Mônica Raisa Schpun, do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. “Enquanto as pessoas eram separadas pelo nazismo, essas duas mulheres se encontraram”, diz Mônica. “Sua amizade vai muito além de gratidão.” Sobre elas, Mônica publicou um artigo chamado “História de um happy end transatlântico”.

Margarethe pertencia a uma família rica e liberal. Aprendeu sete línguas viajando. Conheceu o marido, o dentista Hugo Levy, no consultório dele. Ela era sua bela paciente, 16 anos mais jovem. Margarethe e Hugo eram cidadãos do mundo. Quando o cerco nazista apertou, Margarethe procurou Aracy, que escondeu Hugo em casa. Depois, emprestou o carro diplomático para que Margarethe o levasse ao interior. Aracy incluiu uma observação nos documentos do casal: “Transformar em visto permanente na chegada”. Cobriu essas letras miúdas ao levar o visto para o cônsul assinar.

É nesse ponto que a história fica ainda mais cinematográfica. Uma rede de alemães – arianos – ajudou os Levys. Um dia, um oficial da SS, Zumkley, bateu na porta do consultório para contar que a mãe de Hugo salvou sua vida ao amamentá-lo. “Agora chegou a minha vez de salvá-lo”, disse. Zumkley avisou o momento certo de partir. Um paciente, Plambeck, escondeu Hugo em sua casa por 12 dias. Outro paciente, funcionário público, conseguiu convencer um colega a encarregá-lo da letra “L” e, assim, fez o inventário – subavaliado – do patrimônio dos Levys. Eles partiram para o Brasil com todos os bens, do consultório aos dois cachorros. Um terceiro paciente garantiu a eles o conforto de quatro cabines no navio Cap Ancona.

Ao desembarcarem em São Paulo, com dinheiro e visto permanente, Margarethe e Hugo integraram-se logo ao Brasil. Margarethe, porém, não escapou da tragédia. “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”, diz. Margarethe crava uns olhos perfurantes, que ela jura que não enxergam direito, e diz: “Com o tempo, a gente não esquece”.

Aracy foi uma católica fervorosa. Margarethe, uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio. Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, diz. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar histórico no Museu do Holocausto, em Israel. Margarethe ainda visita Aracy, mas não consegue alcançá-la. Aracy esqueceu-se dela. À beira dos 100 anos, as duas mulheres e sua extraordinária amizade só resistem na memória de uma delas.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’ Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’
Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2008)

À espera do assassino

Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala

ELIANE BRUM E SOLANGE AZEVEDO (TEXTO)
MAURILO CLARETO (FOTOS)

Revista Época, 25/11/2005 – 11:39 | EDIÇÃO Nº 393

MARCADA PARA MORRER
Maria de Fátima da Silva Nunes, a Santa, de Castelo de Sonhos, Pará, conta como é viver na mira de pistoleiros

‘Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que diz que sabe como é viver jurado de morte. Mas não sabe.  Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo que é para não andar mais porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada. É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando a máfia de Castelo de Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida.’

Os que estão enterrados no cemitério de Castelo de Sonhos acreditaram que o nome do vilarejo era um sinal de boa sorte. Os que ainda estão vivos continuaram no lugar porque não têm como voltar ou porque já foram longe demais. Na beira da BR-163, Castelo de Sonhos é uma empoeirada fotografia 3X4 do Pará, o Estado campeão em conflitos de terra, assassinatos no campo e trabalhadores escravizados. O cemitério resume a geopolítica da região, na divisão desigual entre vítimas e pistoleiros. Não há mandante sepultado. Mortes naturais são uma raridade. Passar dos 50 anos é hora extra. Em Castelo de Sonhos assiste-se em tempo presente à repetição da brutal colonização do Brasil, retrato de um país que vive vários tempos históricos simultâneos. Os brasileiros que acompanham o faroeste como folclore de um mundo distante equivocam-se. É o destino da Amazônia que se decide do modo mais arcaico no Pará. A tiros.

Santa – ou Maria de Fátima da Silva Nunes – pode ser a próxima inquilina de uma das sepulturas abertas pelo coveiro para adiantar o serviço. Ela tornou-se a maior liderança popular de Castelo de Sonhos desde que seu irmão, Brasília – ou Bartolomeu Morais da Silva -, foi executado a tiros por um consórcio de grileiros em 21 de julho de 2002. Brasília é dono do túmulo mais visitado do cemitério. E Santa, a candidata mais habilitada a lhe fazer companhia, porque conseguiu botar um mandante e dois pistoleiros na cadeia por força de sua própria investigação: o fazendeiro Manoel Alexandre Trevisan, o Maneca, e os matadores Márcio Antonio Sartor, o Márcio Cascavel, e Juvenal Oliveira da Rocha, o Parazinho. Foi a primeira vez na história do Pará que um latifundiário foi punido por ter ordenado a morte de um trabalhador. A inversão da lógica deu esperança a quem não tinha nenhuma.

O nome de Santa está ao lado de outros 50 líderes marcados para morrer no relatório ‘Violação dos Direitos Humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense’, preparado pelas ONGs Justiça Global, Terra de Direitos e Comissão Pastoral da Terra. O dossiê será lançado nesta segunda-feira em Brasília e entregue à representante especial da ONU que desembarca ä no Brasil em dezembro para investigar a situação dos ameaçados. Nele, constam 772 execuções de trabalhadores nos últimos 33 anos – e apenas três julgamentos. O braço curto da Justiça para alcançar os poderosos, porém, revela-se longo no caso dos pobres: nos últimos dez anos foram presos 607 camponeses.

Os números dão a dimensão da façanha de Santa. A História mostra que ela pode pagar a ousadia com a vida, como aconteceu com a freira Dorothy Stang em fevereiro. Aos 48 anos, Santa sabe disso. Pouco vê os dois filhos, protegidos em uma cidade distante, vive na casa de um e de outro conhecido, quando as ameaças aumentam foge da cidade no porta-malas de um carro ou a pé, disfarçada de velha, mendiga ou aleijada. Mais de um amigo foi executado por tê-la ajudado, como o barqueiro Papamel, que a tirou de um sítio onde pistoleiros planejavam matá-la escondendo-a debaixo da lona preta do barco. Foi morto a tiros dias depois.

Em Castelo de Sonhos, Santa vive acordada, dia após dia, seu pesadelo. O lugarejo é uma vertigem amazônica. A meia dúzia de ruas envoltas em nuvens de poeira pertencem ao município de Altamira. Entre o distrito e a sede há 1.100 quilômetros, distância equivalente à que separa São Paulo de Porto Alegre. Maior município do mundo, Altamira tem o tamanho da Bélgica e da Grécia juntas, seu território é superior ao de 12 Estados brasileiros. Como acontece com toda terra jovem, quem chega a Castelo quer deixar o passado para trás e construir outra identidade. Assim, o lugar tem poucos sobrenomes e muitos apelidos. São esses os mais numerosos no cemitério, sem cruz, sem nome, sem família para cobrar a morte. Conhecido pelo nome completo, apenas ä quem já cercou seu latifúndio e com ele assegurou lugar fixo no novo mundo.

O fundador de Castelo, Leo Reck, é um dos que usam nome e sobrenome. Mas quando alcançou a floresta virgem nos anos 70 era chamado de Onça Branca. Nas terras que cercou, os garimpeiros Gaguinho e Paraibinha descobriram ouro. Batizaram o lugar com o nome da música que não se cansavam de escutar no LP do compositor Walter Basso. ‘No meu castelo de sonhos você é a rainha…’ Foram os primeiros a acreditar que Castelo de Sonhos era sinal de bom augúrio. Desapareceram sem enriquecer nem deixar rastro.

Ouro foi o primeiro ciclo de Castelo de Sonhos. Depois, a madeira e o gado. A soja se avizinha por Mato Grosso, segue a estrada Cuiabá-Santarém, que o presidente Lula prometeu asfaltar. É a seqüência amazônica. Sob a sanha do ouro Castelo viveu seu batismo de sangue: a guerra entre Onça Branca e Márcio Martins da Costa, o Rambo do Pará. Ele conquistou fama e apelido depois de Reck tê-lo arrastado algemado pela via principal do lugarejo, uma rua à qual o fundador deu o nome de Santo Antônio. Partiu como Márcio, voltou como Rambo. Dominou a região à bala no final dos anos 80, no topo de um império de ouro e drogas com ligações na política paraense. Em 1992 foi morto a tiros pela Polícia Militar. Castelo de Sonhos tinha sido semeada com mais de 300 cadáveres.

Um consórcio de fazendeiros conhecido como ‘a Máfia de Castelo’assumiu o poder depois da morte de Rambo. Brasília desafiou sua autoridade ao reivindicar ao governo federal um assentamento para os garimpeiros quando o ouro escasseou. Toda terra em Castelo de Sonhos é pública. Faz parte dos 30 milhões de hectares grilados no Pará, uma área equivalente a quase dez Bélgicas. A média de cada propriedade, conforme o dossiê das organizações de Direitos Humanos, é de 88.000 hectares – o tamanho de Belo Horizonte, Fortaleza e Recife somados. A maioria é mantida – e expandida – por milícias formadas pelos guaxebas, nome dado aos pistoleiros. Eles não ganham por execução, mas por mês, como um funcionário assalariado: em torno de R$ 1.000 para os peões e até R$ 5 mil para o chefe. ‘Tanto faz matar ou não matar. É um valor fixo por mês. Só ganho por cabeça quando faço particular’, conta um deles (leia a entrevista na pág. 102).

Quando o consórcio de grileiros decidiu executar Brasília, enfrentou um problema: ele era popular também entre a pistolagem. O líder tinha carisma, apartava brigas entre marido e mulher, cuidava de doentes. Sua arma era uma caneta acomodada na orelha pronta para ser sacada diante de uma denúncia. O ‘serviço’ foi encomendado a pelo menos três pistoleiros – e recusado. Quando ele foi assassinado, a população venceu o medo e impediu a polícia local de aproximar-se do corpo até a chegada do legista de Belém. Os fazendeiros criaram o primeiro mártir de Castelo.

Mirar nos líderes para eliminar a resistência gerou um fenômeno novo: o aumento de mulheres na lista dos ameaçados de morte. Elas assumem o lugar de maridos, irmãos e filhos executados. Foi assim com Santa. Viúva, ela sobrevivia fazendo salgados para lanchonetes. O povo de Castelo assistiu à pacata salgadeira anunciar aos grileiros na missa de sétimo dia do irmão que viveria para botá-los atrás das grades. ‘Às vezes estou arrebentada por dentro, mas rio e falo alto para não pensarem que tenho medo’, diz. O último recado foi de que lhe cortariam a língua.

Santa só conseguiu instalar os matadores atrás das grades porque teve uma colaboração insólita: a dos pistoleiros do lugar. ‘Devia um favor para o seu irmão, então vou lhe ajudar’, anunciou Tim Maia, um dos mais temidos. Até ser eliminado, em dezembro de 2003, foi o
que fez. Salvou-a várias vezes da morte. Numa delas, Santa foi colocada disfarçada dentro de um ônibus, uma velha doente com sua bengala. Tim Maia avisou que um dos pistoleiros tinha um cavalo na fivela do cinto e o outro um touro. Eles entraram na primeira parada, com a desculpa de procurar uma parente. Passaram por Santa e não a reconheceram. ‘Senti um gelo dentro do coração’, conta ela. Dias antes de ser executado, Tim Maia fez bravata: ‘Matei 150. Já posso morrer feliz’.

Um a um os pistoleiros foram tombando em Castelo de Sonhos. No fim de outubro sumiu mais um. João Moreira, o Carioca, desapareceu com sua moto quando foi verificar uma grota de ouro. ‘É, sumiu. Outro mistério’, comenta Leo Reck. ‘Se sumiu, outros vão poder viver.’ A polícia não tem pistas. Somente neste ano desembarcou o primeiro delegado no distrito. Dias atrás, José Conceição Corrêa já fazia as malas. Sua passagem por lá foi quase um período de férias. Em cinco meses não fez nenhum inquérito. Ele explica: ‘Castelo de Sonhos é um lugar ordeiro, calmo e tranqüilo’.

Matador assalariado

Pistoleiro conta como, para quem e por que matou 16 pessoas em Castelo de Sonhos e em Mato Grosso. Hoje ele é caçado por matadores de fora da região para não abrir a boca

VÍTIMAS O pistoleiro confessou ter matado os dois trabalhadores abaixo

VÍTIMAS O pistoleiro
confessou ter matado os dois
trabalhadores abaixo

Os fazendeiros citados pelo matador de aluguel em entrevista gravada coincidem com os denunciados no relatório ‘Violação de Direitos Humanos no Pará’ como mandantes de crimes. Seus nomes também constam em inquérito policial como membros do consórcio que ordenou a execução de Bartolomeu Dias Morais, o Brasília. Um deles, Fiorindo Minosso, disse a ÉPOCA que ‘é tudo mentira, isso não tem pé nem cabeça’. Confira:

ÉPOCA – Como começou a matar?
Pistoleiro – Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba nas fazendas.

ÉPOCA – O que é guaxeba?
Pistoleiro – É a polícia dos fazendeiros.

ÉPOCA – Para quais fazendeiros trabalhou?
Pistoleiro – Trabalhei na fazenda Tigre (hoje em processo de desocupação pelo Incra). E também para o Maneca (preso como mandante da morte de Brasília) e para o Fiorindo Minosso. O resto foi particular.

ÉPOCA – Como é particular?
Pistoleiro – 50 gramas de ouro por cabeça.

ÉPOCA – Os fazendeiros pagam por morte?
Pistoleiro – Por mês. Uma humilhação. Me pagavam R$ 800.

ÉPOCA – Como é que funciona?
Pistoleiro – O fazendeiro passa a ordem pro chefe dos guaxebas e ele passa pra gente. A gente fica de olho para não invadirem as terras. Se aparecer na picada, é pra atirar e esconder o corpo. A gente pede aumento mas eles não dão. É só aquele valor no fim do mês, tanto faz matar como não matar.

ÉPOCA – E o que você fez com os corpos?
Pistoleiro – Eu carregava pro mato e enterrava. Quando tinha rio grande jogava dentro. Em Matupá (MT) enterrei um atrás do cemitério. Outros joguei debaixo da ponte do Rio Peixoto. Enterrei uns pra frente da sede do Panquinha, em Castelo, mas esses a Polícia Federal já achou. Numa estradinha que vai pra fazenda de um rapaz por nome Toninho tem mais quatro corpos no mato de umas pessoas que queriam a terra do Maneca. Os dois do Minosso foi o chefe dos guaxebas dele, Hamilton, que consumiu. Não sei onde tão.

ÉPOCA – E os da Tigre?
Pistoleiro – Eles tavam no movimento dos sem-terra. Foi o seu Antonio e um outro que tinha apelido Rabo de Couro. Gostava de usar aqueles chapeuzinhos porque veio do Ceará. Mas esse foi por acaso. A espingarda tava destravada e quando eu pulei da caminhonete disparou. Era só para tirar ele de lá, mas o chumbo pegou na garganta.

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

ÉPOCA – Quantos trabalhadores você matou porque queriam fazer acerto?
Pistoleiro – Quatro.

ÉPOCA – O que sentia quando matava?
Pistoleiro – Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu lembro até hoje.

ÉPOCA – Você fazia alguma marca?
Pistoleiro – Só virava de peito pra cima e pulava duas vezes o corpo antes de ir embora. Superstição da gente pra não ser pego.

ÉPOCA – Já foi pego?
Pistoleiro – Graças a Deus só uma vez. Fui condenado a 16 anos, mas vendi tudo o que eu tinha, paguei R$ 72 mil pro advogado e pro juiz e saí. Estou na condicional.

ÉPOCA – Os pistoleiros de Castelo estão sendo eliminados. O que você vai fazer?
Pistoleiro – Vou embora, mas não posso falar nem onde nem quando. Minha história por aqui acaba. Não sei se tem continuação.

RETRATO DE UM FUNDADOR
Quem é o homem que construiu uma cidade na Amazônia

LILO EPOCA2Aos 70 anos, Leo Reck (foto), o fundador de Castelo de Sonhos, vive hoje a segunda fase da colonização do lugarejo aonde chegou em 1975. A convite, como diz, do governo militar, que o exortou a ‘integrar para não entregar’. Leo Reck precisa limpar a biografia para que no futuro, quando o distrito virar cidade, possa ter um busto na praça e uma história bonita para as crianças recitarem na escola em dias cívicos. A guerra entre Onça Branca, como era conhecido, e Rambo do Pará ficou para trás. ‘Cansei de recolher os corpos que Rambo deixava para enterrar. Larguei para os urubus’, conta. ‘Eu nunca matei ninguém e posso andar de cabeça erguida.’

Conversar com ele é como testemunhar a construção de um herói da pátria em tempo real. ‘Quando chegou o título provisório do Incra, descobri que me deram 180 hectares. Terra desse tamanho eu conseguia no Sul’, explica.’Fiquei com tanta raiva que resolvi fazer uma cidade.’ E assim o velho Leo fez um traçado e vendeu terrenos a R$ 10 mil.Castelo de Sonhos, portanto, é uma cidade planejada. E só não é mais progressista, segundo ele, por causa do presidente Lula e da ministra Marina Silva, ‘que embargaram a Amazônia’. Refere-se à suspensão temporária da licença para corte de árvores na região da BR-163. ‘Não é porque morre algum aqui que atrapalha alguém. É aquele presidente comunista que atrapalha a gente’, destempera-se. ‘Seria bom demais se o governo não se metesse em Castelo de Sonhos.’

Leo Reck sente-se desrespeitado pela Polícia Federal, que passou a circular na Amazônia depois da execução da Irmã Dorothy Stang. Está habituado a outro tipo de lei: ‘Polícia aqui é o dinheiro. Se compra soldado por R$ 200, tenente um pouco mais. Uma morte aqui custa R$ 500’. Não se conforma: ‘Agora nos chamam de grileiros. Mas eu sou é desbravador. Tenho coragem agora, com a idade que tô, de ir lá para as bandas do Rio Negro, pegar uma motossera e plantar uma roça’. Depois de explicar que nos velhos tempos jornalistas viravam comida de urubu ou eram atiradas de aviões com as mãos amarradas, Leo Reck irrita-se com o gravador: ‘Desliga essa porra!’.

LEI TRABALHISTA
Paraguai insistiu demais para receber o pagamento
O atestado de óbito de Félix Gonçalves é uma ironia que ilustra a lei trabalhista em Castelo de Sonhos – e na Amazônia. Causa mortis: ‘Acidente de trabalho’. Apesar de a árvore que o matou ter conseguido decepar o tampo de sua cabeça com o exato formato de um golpe de facão, não deixa de fazer sentido. É costume na região esse tipo de acidente profissional. Quando o trabalhador insiste para ‘fazer acerto’, ou seja, receber o combinado, costuma morrer por justa causa. Conforme a viúva, Florentina Gonçalves, Paraguai exigiu o pagamento de uma ponte que fez para a subprefeitura de Castelo. ‘O Leo Reck botou um pistoleiro ao lado do caixão e pressionou tanto para enterrar rápido que não deu tempo de todas as filhas se despedirem do pai’, conta.

BEM-VINDO A CASTELO DE SONHOS
Como a família Branger descobriu o Brasil da pistolagem

LILO EPOCA3
Eles não tinham nenhuma ideia sobre como as coisas funcionavam. A chegada da família Branger (foto) a Castelo de Sonhos foi um encontro entre dois mundos. ‘Quando meu marido falou o nome, Castelo de Sonhos, eu me encantei’, conta Maria Palmira Branger, a Preta. ‘Todo mundo tem um sonho. O do meu marido era uma fazenda. Meus filhos precisavam de espaço. Pensamos que era um lugar que estava começando e precisava de gente com estudo.’ Deixaram Florianópolis em agosto de 2003 seguindo o conselho de um cunhado que vivia em Mato Grosso. Zulmar Branger deixava lotes de terra onde plantava cebola e alho, Preta fechou as portas de uma confecção e os filhos trancaram a universidade. Partiam para a conquista tardia da Amazônia.

Quando o asfalto da Cuiabá-Santarém acabou, na divisa de Mato Grosso com o Pará, Preta começou a chorar. ‘Era só mato. Eu não queria nem deixar o caminhão de mudanças descarregar’, lembra. Mas deixou. Nunca mais esqueceria desse momento-limite. Um ano depois, em 8 de agosto de 2004, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de Arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo de Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Emerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado o galã do faroeste.

A mãe pedia ajuda da Polícia Militar desde o dia anterior. ‘Primeiro o tenente falou que tinha de esperar 24 horas. Depois que precisavam fazer a segurança do rodeio. Na madrugada do domingo, disse que necessitavam dormir, mais tarde que tinham de cuidar da cavalgada. Comecei a gritar. Só depois descobri que ele levou R$ 40 mil para não fazer nada enquanto meu filho era torturado e morto’, conta Preta. ‘A polícia eliminou os vestígios. Tinha carne debaixo das unhas dele, porque lutou. Não sobrou nada para identificar. Encontramos as roupas queimando no lixão.’

Emerson Minosso tentou entrar no velório, mas foi escorraçado. Mostrou a arma. Ainda desfilou em Castelo de Sonhos por mais três dias. Quando teve a prisão preventiva decretada, já estava longe. Seu pai, Fiorindo Minosso, diz que é tudo mentira.

Várias versões circulam em Castelo de Sonhos para explicar o crime. Em uma delas, Emerson teve ciúme porque sua ex-namorada se interessou pela vítima. Em outra, a morte seria uma estratégia para que a família vendesse a terra por preço baixo e voltasse para onde veio. Nos dias posteriores os Brangers encontraram pistoleiros patrulhando a divisa entre as fazendas. ‘Fui aprender o que significava cada morte aqui’, conta Preta. ‘Me explicaram que quando jogam na estrada é para calar a boca porque estão agindo.’

Quando sepultava o filho, um matador sussurrou no ouvido de Zulmar: ‘Você quer que eu faça o serviço?’. Outros dois fizeram a mesma proposta. Ele recusou. Velou o filho no Dia dos Pais. ‘O corretor falou que era um lugar calmo, seguro. Quando chegamos, nos primeiros 60 dias houve 40 mortes. No Brasil não tem pena de morte, mas aqui tem’, conta o pai. ‘Pensava que só matavam peão rodado e pistoleiro. Achei que não matassem gente de bem’, diz a mãe. ‘Vi gente degolada boiando no rio. Vi um pai ser morto na frente do filho de 4 anos no bar. Vi uma bala atravessar o corpo de uma pessoa e atingir o de outra numa festa. Vi um corpo entupir uma bomba de sucção. Tinha pedras no lugar das vísceras’, relata Calebe, o irmão. ‘O que nunca vi neste lugar foi briga a socos.’

O que Cledson viu está sepultado com ele no cemitério de Castelo de Sonhos. A família Branger decidiu ficar. ‘Consegui uma fazenda’, explica o pai. ‘Ganho muito dinheiro aqui’, afirma o irmão. ‘Nós éramos patinhos. Não entendíamos nada. Agora, aquela coisa boazinha que tinha em mim acabou’, diz a mãe. Dias atrás ela viu Fiorindo Minosso na rua. Gritou: ‘Seu desgraçado. Como tem coragem de olhar para mim?’. Castelo de Sonhos é um lugar pequeno. Meia dúzia de ruas desoladas. A família Branger aprendeu que nelas há dois tipos de pessoas: vítimas e assassinos.

QUADRO EPOCA1

 QUADRO EPOCA2

QUADRO EPOCA

QUADRO EPOCA3

Página 28 de 28« Primeira...1020...2425262728