Vamos precisar de um balde maior

Quem seremos nós, sem água? Caberá a essa geração imperfeita enfrentar os desafios de um futuro que chegou antes
Carro abandonado em Atibainha, que integra o sistema Cantareira. ANDRÉ PENNER AP (El País)

Carro abandonado em Atibainha, que integra o sistema Cantareira. ANDRÉ PENNER AP (El País)

Quando a gente abre a torneira em São Paulo e não sai nada, e sabe que logo chegará o dia que não haverá nada no dia seguinte e no dia seguinte ao dia seguinte e assim por um tempo que ninguém sabe quanto será e quem diz que sabe mente, descobrimos que nos tiraram muito mais do que água. Essa é a parte aterrorizante. E é aterrorizante para além das vidas secas. O terror é menos pelo que só agora faltou, mais pelo que nunca existiu. O terror é dado pela perda das ilusões de que tudo estava sob controle. E, de repente, aqueles que repetiam que estávamos todos bem bem mostraram que, na verdade, estamos todos bem perdidos. O estado de torpor dos moradores de São Paulo foi perfurado pela realidade, abriu-se um rombo que talvez seja impossível fechar. No fundo desse buraco não há vazio, mas espelho. É nesse ponto que existe algo de fascinante. É quando o morador de São Paulo vira todos, encarna o humano dessa época, uma catástrofe diante da catástrofe. Nós, o futuro que chegou primeiro.

Quem seremos nesse mundo em que o clima se mostra alterado, nesse planeta agora mais hostil pela nossa ação? Que filosofia produziremos? E que sentidos criaremos?

São Paulo sem água é uma imagem poderosa. A cidade expandida em que mais de 20 milhões vivem à beira de um rio que matamos. A cidade que virou estufa, abarrotada por carros que se movem mais e mais lentamente, queimando combustíveis fósseis e lançando gases na atmosfera. A cidade que desmatou o entorno dos mananciais e desprotegeu-se. A cidade em que, quando a chuva cai, parece que evapora antes de chegar ao chão convertido em concreto e, nas tempestades, alaga e é destruída porque o cimento não pode absorver a água. As chaminés das fábricas do século 20 da São Paulo “que amanhece trabalhando”, assim como os canos de descarga dos carros de cada dia, são falos decaídos. As ilusões de potência e de superação, o sem limites da modernidade, viram pó na cidade imensa, transformando São Paulo num monumento que ela não sonhou ser – e nós em seres trágicos.

O dia em que as autoridades ruíram

O momento em que a máquina do mundo se abriu para a maioria foi no final desse janeiro, ao ser anunciado que poderia haver um rodízio 5X2 – cinco dias sem água, dois com água. A classe média correu a comprar caixas d’água extras e galões, houve quem estocou centenas de litros, os baldes viraram objetos de desejo. Lembrou “Tubarão”, o filme de Steven Spielberg que talvez tenha inaugurado o conceito de blockbuster, na cena em que o monstro emerge com uma boca capaz de palitar os dentes com o barco que pretendia caçá-lo e o xerife da cidade diz, na frase que ficou antológica para quem gosta de cinema: “Vamos precisar de um barco maior”. Parece que, por aqui, nós vamos precisar de um balde maior.

Nosso momento presente é enorme. Precisaríamos ter na liderança um estadista, uma pessoa capaz de botar o interesse público acima de suas ambições eleitorais, alguém que compreende a amplitude do que está em jogo, um político com visão de século 21. Nosso desamparo é maior porque não temos essa figura nem no governo de São Paulo nem no governo do país. Temos no comando do estado alguém com uma mentalidade de vereador de cidade pequena. E nada contra vereadores de cidade pequena, existem os bons, apenas que para um governador o olhar precisa ser muito mais amplo e a política exercida num outro nível. E, no Planalto, temos uma presidente vendida como “gerente”, o que não é exatamente o que se espera de alguém que comanda um país, mas, como sempre pode piorar, se mostrou uma má gerente ainda no primeiro mandato.

O futuro chegou antes. E justamente no momento em que as instituições políticas e os grandes partidos estão desacreditados, em que se pode mentir para ganhar a eleição e dizer o contrário em seguida. É assim que a população descobre que as autoridades não só falsearam a realidade como não sabem o que fazer agora que a calamidade se instalou. As autoridades desautorizaram-se, num fenômeno político tão grave quanto complexo. E a população encontrou-se só e com o monstro na sala.

Se a realidade é assustadora, também é muito interessante. Nenhum dos governantes que deixaram a situação chegar a esse ponto – sem esquecer que Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo rumam no mesmo sentido – estão no poder por um processo autoritário. Não, estão lá porque a maioria dos que hoje se sentem desamparados votaram neles. No caso de São Paulo, o PSDB está indo para 24 anos no governo, há uma geração de paulistas que nasceu, passou pela infância e pela adolescência e virou adulto sob o comando da mesma sigla e nenhum alternância de poder. Dilma Rousseff está no segundo mandato, e o PT vai para 16 anos no Planalto. Geraldo Alckmin se elegeu no primeiro turno quando a “crise da água” era evidente, mesmo que o governador tenha negado a gravidade da realidade durante toda a campanha. Elegeu-se no primeiro turno em parte porque dava aos eleitores a chance de continuar fingindo que estava “tudo sob controle”. E, assim, ninguém precisou se mover, mudando velhos hábitos perniciosos e assumindo a responsabilidade de economizar água.

É como disse no Twitter André Vallias, poeta e designer gráfico, referindo-se à situação da água e da energia: “O Brasil não é o País do Futuro, mas da Fatalidade: atrás dessa palavra nossas autoridades se escondem para fugir à responsabilidade”. E isso vale também para os prefeitos, em especial para Fernando Haddad (PT), em São Paulo, e os das cidades da Grande São Paulo, que parece que acordaram só ontem, assim como para os parlamentares desse Congresso, que iniciam um novo mandato atolados na velha lama viciada, fazendo com que a maioria sequer espere qualquer coisa deles, a não ser mais do pior. Mas, se a responsabilidade das autoridades eleitas é muito maior e elas têm de responder pelo que não fizeram e pelo que não disseram, tanto quanto pelo que fizeram e disseram, numa democracia nenhum cidadão é inocente, ainda que alguns possam ser menos culpados do que outros.

A hora de se inspirar nos jovens e virar gente grande

Agora que as figuras paternas e maternas ruíram – e a gente tem certeza disso quando, diante da catástrofe em curso, elas mandam rezar para um Pai maior ou invocam São Pedro – seria uma boa hora para virar gente grande. E recuperar a amplidão da política, como nos lembraram os manifestantes de 2013. E continua a nos lembrar o Movimento Passe Livre em 2015, com os protestos pela tarifa zero. Precisamos ser eternamente gratos a esses jovens tão jovens, porque têm sido eles os verdadeiros adultos, no sentido de apontar que o rei está nu (e perdido) e somos nós que temos de assumir a responsabilidade de pensar a cidade. Cada vez que eles vão para as ruas contra o aumento da tarifa do transporte público, o que fazem é uma denúncia profunda do modelo desastroso de ocupação urbana e da opção criminosa pelo transporte privado e individual. Lembram-nos de que, sem a liberdade de ir e vir, não somos nada além de coisas. São eles que se movem diante da paralisia alienada dos mais velhos – e a experiência de literalmente se mover nas manifestações, por ruas de uma cidade que não se move, é de uma enorme força simbólica.

Na catástrofe da água que se anuncia já existem focos de cidadania consolidados, outros surgindo agora, que reúnem cidadãos que assumiram a responsabilidade de participar das decisões e de pressionar as autoridades. Enquanto o governador de São Paulo diz que não há certeza de que será preciso fazer rodízio, cidadãos começam a reivindicar que, sim, é preciso haver rodízio agora, neste instante, já que não é possível voltar atrás no tempo e começar a fazê-lo meses e até anos antes, o que teria tornado a situação de hoje menos desesperadora. Gente que percebeu que deveríamos desde sempre ter compreendido que não é possível consumir água dessa maneira descuidada, como se os recursos fossem infinitos, nem jamais deveríamos ter nos acostumado a abusos como usar água potável para dar descarga no banheiro ou deixar a água ir embora sem criar sistemas de reúso. Cidadãos que sabem que é preciso mudar não na emergência, mas para sempre. Enquanto o governador, mais uma vez, prioriza suas ambições eleitorais e ainda está “estudando” se haverá um plano de contingência, há cidadãos que decidiram lidar com a realidade e pressionar as autoridades a tomar decisões reais num mundo real, antes que só reste o êxodo.

Este é um dos poucos efeitos positivos da catástrofe que se anuncia. Aponta que ainda temos um caminho se cada um assumir a sua responsabilidade, incluindo aí a de pressionar o poder público a assumir a sua própria. Pertence a esse conjunto de reação a Aliança pela água, reunindo várias organizações que superaram suas diferenças em nome da emergência comum. Assim como os coletivos de jornalismo independente, entre eles a Mídia Ninja e a Ponte, que se uniram para documentar o colapso da água criando “a conta da água” na internet. Diante da pouca confiabilidade da informação oficial e da certeza de que foram enganadas por tempo demais, por todos os lados pessoas estão se juntando na busca de abarcar a dimensão do que está acontecendo e pensar no que fazer e em como viver daqui para a frente.

Um desses encontros aconteceu em 28 de janeiro na Casa de Lua, uma organização feminista que chamou os moradores de São Paulo pelas redes sociais para debater, produzindo um momento muito rico, tanto na intensidade das angústias quanto na sinceridade das respostas em construção. O encontro pode – e deve – ser assistido aqui. Entre os vários momentos interessantes, uma mulher fez a pergunta: “Eu sou uma pessoa comum, uma microempresária. Eu quero saber o que fazer, como eu posso ajudar”. A resposta de um dos debatedores, que restringiu-se a alterações no perímetro da casa e da família, não a satisfez. Ela então retrucou: “Vocês não estão entendendo. Eu acho que chegamos a esse ponto por que cada um sempre pensou em resolver apenas o seu problema. Eu quero saber o que posso fazer não para mim, mas para todos”.

“A negação como política de governo e como defesa psíquica”

A psicóloga paulistana Camila Pavanelli de Lorenzi, 32 anos, é uma das que está fazendo alguma coisa, se moveu. Ela começa a se tornar uma referência nas redes sociais por causa de seu Boletim da Falta D’água, criado em outubro de 2014. Nessa conversa comigo, ela conta como passou a dividir o doutorado na Universidade de São Paulo – sobre “os conceitos psicanalíticos de sublimação e realidade”, a partir da série de TV “The Wire” e de dois livros nos quais a série é baseada – com sua investigação pessoal sobre a catástrofe em curso. É revelador que seja uma psicóloga a tentar compreender o que as notícias da água dizem para além do que está escrito. Os grifos são meus, os parênteses são dela:

Como foi que começou a fazer o boletim?

Camila – Comecei numa noite em que eu estava especialmente de saco cheio de passar o dia lendo notícias – tanto sobre a falta d’água quanto sobre o posicionamento oficial do governo de que não faltava água – e decidi reunir e resumir tudo o que eu havia lido num texto só. Postei no Facebook. Compilar essas informações me trouxe algum alívio. Eu precisava (preciso ainda) entender o que diabos estava acontecendo. Havia muita coisa sendo publicada sobre a falta d’água, mas em veículos diferentes – era difícil ter uma visão mais abrangente da real gravidade da situação. Então fiz essa compilação de notícias naquela noite. Fiz a mesma coisa na noite seguinte, com o mesmo objetivo de me situar melhor em meio ao caos – e, de quebra, compartilhar o que eu estava lendo com meus amigos. E depois não vi motivos para parar. Eu sentia (sinto ainda) que não havia uma linguagem para falar sobre a chamada crise da água, e que era preciso (é ainda) criar essa linguagem. Depois de uma semana postando os boletins no Facebook, várias pessoas começaram a sugerir que eu criasse um blog ou tumblr só para eles. Achei que fazia sentido, e fiz um tumblr. Mas continuo postando os boletins na minha página pessoal do Facebook também, para facilitar os compartilhamentos.

Como você faz esse acompanhamento cotidiano?

Camila – No começo eu fazia todo dia. Acessava sites de notícia, fosse da grande mídia ou da mídia alternativa, e os órgãos oficiais do governo. Aí uma coisa levava a outra. Saía uma notícia sobre um processo ou decisão judicial, eu ia atrás desse documento. Saía uma notícia que não diferenciava muito bem os conceitos de pluviometria e vazão, eu ia atrás de um manual de hidrologia para entender os conceitos um pouco melhor. E assim fui construindo uma narrativa sobre a falta d’água no estado de São Paulo, dia a dia. Parcial, informal, incompleta, amadora. A minha narrativa do que estamos vivendo, enfim.

Como são seus dias desde então?

Camila – No ano passado, dediquei cerca de duas horas todas as noites à escrita do boletim. Passei a frequentar menos a academia. Passei a escrever menos no meu blog pessoal. Passei a escrever menos e-mails longos para os amigos. Neste ano, ainda não sei dimensionar quantas horas essa maluquice está me tomando. Ainda estou aprendendo a fazer um boletim semanal. Acabei de criar uma conta no Twitter (@bolfaltadagua) para me ajudar, para reunir uma pré-seleção de links. Vou tuitando e retuitando ali tudo o que leio de interessante. Desse mundaréu de notícias, vou selecionar algumas para costurar a narrativa da semana.

O que você faz quando não está olhando para a água ou para a falta dela?

Camila – Trabalho na minha tese, cozinho, cuido da casa, escrevo no meu blog. Levo a mais pequeno-burguesa das vidas, em suma.

O que te pega mais nessa questão da água?

Camila – A negação. Sobretudo a negação como política de governo. Eu não entendo nada de água, meio ambiente, gestão de recursos hídricos, nada disso. Mas eu entendo muito de negação como defesa psíquica. A negação foi catastrófica na minha vida pessoal e precisei de anos de análise para começar a elaborar alguns lutos (para não soar muito enigmática: minha mãe morreu quando eu tinha dez anos e sempre encarei isso como um fato normal e corriqueiro da vida, como se não fosse nada demais, “é chato, mas acontece” etc. Foi com a análise que pude sentir pela primeira vez a tragédia que foi eu ter perdido a minha mãe). Aí, de repente, eu vejo a negação sendo adotada pelo governo do estado como forma de lidar com uma crise sem precedentes na história do Brasil. E isso evidentemente tem efeitos sobre a população. Isso me fascina, na verdade: as relações entre a negação como política de governo e a negação como defesa psíquica. Porque ninguém, de verdade, acredita que a água vai acabar (ou, se acredita, não consegue conceber o que significa isso). E é compreensível que seja assim. Como acordar de manhã, ir para o trabalho, cuidar dos filhos – levar a vida de sempre, enfim – quando se tem a perspectiva de que a água pode acabar dentro de poucos meses? Melhor acreditar que a crise não é tão grave assim. E acabou que tivemos a união da sede com a vontade de beber. De um lado, a população que desejava ouvir que estava tudo bem e que poderia seguir com a vida normalmente; de outro, um governo que realizou plenamente esse desejo, garantindo que não faltava nem faltaria água em São Paulo.

Você termina seus boletins dizendo: “Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais”. Vi no debate da Casa de Lua que essa questão, entre ter calma, como foi colocado por outra debatedora, e a sua conclamação/autorização para, ao contrário, entrar em pânico, te perturbou. O que tem pensado sobre isso?

Camila – Fiquei perturbada, sim. Nos primeiros dias eu concluí o boletim com “calma que amanhã tem mais”. Mas logo me dei conta de que o problema era justamente que estávamos calmos demais. Pânico, para mim, não é “ó meu deus vamos todos morrer mesmo então melhor se matar antes”. Pânico, para os fins do Boletim da Falta d’Água em SP, é o oposto da letargia institucionalizada. É o oposto de “não falta água, não faltará água em São Paulo”. É o meu manifesto antinegação. É um apelo para que as pessoas se informem sobre o que está acontecendo e, a partir daí, tomem as ações que julgarem mais adequadas. Como não acredito em ação sem reflexão, acho importante estar bem informado para resolver o que fazer. E isso em todos os níveis: desde construir cisterna em casa até exigir providências das autoridades, passando pela organização de redes de solidariedade nos bairros e comunidades.

(Fim da conversa com Camila)

A disputa da narrativa já começou

A palavra “crise” me parece muito pequena diante do que já está desenhado. Talvez coubesse anos atrás, momento em que, se tivesse sido pronunciada, assumida e enfrentada, poderia ter tido seu impacto reduzido. Hoje, não mais. Alguns têm sugerido a palavra “colapso”. E colapso pode dar conta da impossibilidade de viver como antes, da convicção de que não existirá mais “a vida de sempre”, de algo que não pode ser refeito sobre as mesmas bases. O que se anuncia me parece poder ser representado por “catástrofe”, palavra que escolhi usar mesmo correndo o risco de ser chamada de “apocalíptica”, como já se acostumaram a ouvir todos aqueles que alertam para os rumos perigosos de São Paulo e do país, assim como para os desafios da mudança climática do planeta há anos, décadas. Já padecemos demais com os eufemismos esgrimidos pelas autoridades. Mas, ainda que saibamos que as palavras são importantes, jamais podemos esquecer que os extremos de nossa condição são irrepresentáveis, escapam da linguagem. É também a batalha da linguagem que travaremos – e nela está também tudo aquilo que não vira palavra.

É isso que Camila também diz quando afirma que ainda não encontrou a linguagem para expressar o que vive. Ela, assim como todos aqueles que, individual ou coletivamente, se mobilizaram para documentar a catástrofe da água são filhos desses tempos de internet e têm enorme importância para a construção da realidade do dia seguinte. Quanto mais múltiplas forem as versões, melhor para a busca das verdades dos fatos e para a interpretação das subjetividades. A disputa narrativa já começou, e as armadilhas são proporcionais ao tamanho do desafio.

Uma versão bastante difundida por alguns noticiários, em especial os da TV aberta, tem sido a de que o problema dos apagões de energia seriam decorrentes das hidrelétricas que ainda não foram concluídas, como Belo Monte, ou das que ainda não foram iniciadas. Em seguida, vem o culpado: “por atrasos/dificuldades no licenciamento ambiental”. Por que eu me refiro à escassez de energia quando estava falando da escassez de água? Primeiro, porque são temas relacionados. Segundo, porque aqui claramente é demonstrada a repetição do discurso da dissociação e da negação. E foi também a dissociação e a negação, em todos os planos, que nos trouxe até o estado atual de calamidade.

Talvez nunca tenhamos precisado tanto fazer relações e compreender o mundo dentro de uma teia de ação e consequências como hoje. A narrativa que compartimenta falseia e informa mal. Está superada em todas as áreas, inclusive na educação. No momento em que sofremos as consequências da irresponsabilidade de nossas escolhas, em que as questões ambientais devem estar no topo das nossas prioridades se quisermos ter alguma chance, em que executivos das grandes empreiteiras que constroem as grandes hidrelétricas e que são as grandes financiadoras de campanhas políticas estão na cadeia por conta da operação Lava Jato, tenta-se de novo e sempre colocar ambientalistas e preocupações ambientais como um “entrave”. Por que e a serviço de quem? Ignorância, má fé ou ambas?

Um exemplo. A falta de água se anuncia como catástrofe, mas, ao mesmo tempo, o governo federal quer concluir Belo Monte, no rio Xingu, apesar de todas as irregularidades e da denúncia de etnocídio indígena, e barrar o Tapajós. Aqui, há algumas relações que podem ser feitas: 1) as hidrelétricas têm grande impacto no desmatamento e na destruição ambiental, não apenas pela obra em si, mas também pelo desequilíbrio que provocam ao expulsar ou realocar comunidades, assim como a quantidade de migrantes que atraem e todas as consequências envolvidas nisso; 2) a devastação da Amazônia, onde hoje estão sendo feitas e planejadas as grandes barragens, já é dramática e compromete o clima; 3) há cientistas e trabalhos científicos de alto nível mostrando que a floresta amazônica tem um papel estratégico na regulação do clima do Brasil e do planeta, o que envolve a questão das chuvas no sudeste do país; 4) os reservatórios das hidrelétricas ficam baixos quando a chuva é escassa, comprometendo o abastecimento da energia; 5) priorizar hidrelétricas na Amazônia e culpar a resistência a elas pelo desabastecimento é encobrir que o governo federal não fez o necessário investimento na diversificação de fontes de energia; 6) é também escamotear que, em vez de conscientizar a população da necessidade de poupar, porque os recursos são finitos, o governo federal fez exatamente o contrário disso, estimulando o consumo; 7) os enormes problemas sociais e ambientais causados pelas hidrelétricas, e neste quesito Belo Monte é o nosso atual mostruário (ou “monstruário”, como alguns preferem), são causados também porque o processo de licenciamento ambiental não é respeitado nem as condicionantes legais, aquilo que é preciso fazer para que a obra possa ser realizada com danos menores, não são cumpridas.

Em resumo: a verdade é muito mais complicada e atrapalha os poderosos interesses envolvidos. Os links dos últimos parágrafos são de grande importância para quem compreender que precisa compreender o que está em jogo e participar das decisões. Se pode emergir algo de positivo desse momento que vivemos é o de fazer com que questionemos a nossa relação com o meio ambiente, assim como o nosso lugar num planeta cada vez mais hostil pela nossa ação, dando-nos a chance de nos tornarmos pessoas capazes de enfrentar os desafios dessa época, que, como qualquer um pode perceber, são enormes.

O que está em jogo não são obras, mas nossa relação desastrosa com o meio ambiente, nossa dissociação com a natureza e nossa ignorância. Ignorância no sentido de desconhecer até mesmo que é preciso conhecer. É imperativo romper com a negação. E podemos começar a fazer isso aumentando nossa leitura crítica e construindo as relações necessárias. Não custa lembrar sempre que, como diz a frase famosa, “na guerra, a verdade é a primeira vítima”.

Os possíveis cenários da “guerra da água”

Quem seremos nós quando a água acabar? Tudo indica que saberemos muito em breve. Uma reportagem de O Estado de S. Paulo mostra que, seis anos atrás, um estudo envolvendo 200 especialistas mostrou ao governo paulista uma projeção do que aconteceria se a crise não fosse enfrentada. O relatório chama-se “Cenários ambientais 2020”. Nele, projetava-se, a partir das informações disponíveis, o que aconteceria até este ano caso medidas não fossem tomadas. O objetivo do estudo era estabelecer planos de ação para impedir que os cenários mais pessimistas se realizassem – ou seja, para evitar a realidade de hoje.

É aterrador de várias maneiras, a começar pelo fato de que o estudo encomendado pelo governo do PSDB foi ignorado pelo governo do PSDB, resultando no que está aí. Mas é aterrador também pelo cenário sugerido no documento como o mais provável. O texto é escrito como se o narrador já estivesse em 2020 e tudo já tivesse acontecido.

Diz a reportagem: “O estado (de São Paulo) teria assistido nesse período (2015) a um ‘conflito pelo uso dos recursos hídricos’, que desencadeou uma ‘guerra da água’ entre algumas regiões. Essa guerra teria começado após ‘um ano atípico de chuvas, com precipitações muito abaixo do esperado’”. O documento diz ainda: “O ano de 2018 significou um marco na história do uso da água no estado de São Paulo e os problemas verificados podem ser considerados uma continuação daqueles da crise de 2015. Em determinadas regiões, em função do uso intensivo de agrotóxicos (defensivos agrícolas) e fertilizantes (adubos), as águas superficiais e subterrâneas foram afetadas, comprometendo o abastecimento público de alguns municípios. As ações judiciais se multiplicaram, no rastro das manifestações populares que reivindicaram o abastecimento público em detrimento do agronegócio. A Agência Nacional de Águas (ANA) disponibilizou técnicos que auxiliaram na mediação do conflito. No auge da crise, prefeitos e vereadores aprovaram pacotes com leis restringindo temporariamente atividades econômicas de uso intensivo de água”.

Esta é a projeção realizada em 2009 – e ignorada. Agora, estamos no presente, em 2015, ano em que a “guerra da água” começaria.

Que impacto terá a falta de água nos empregos? Como farão os pais para trabalhar se os filhos ficarem sem escola e sem creche? O que acontecerá com os doentes e os velhos? Que tipo de inferno ainda maior se tornarão os presídios e as instituições para crianças e adolescentes infratores? Como será nos hospitais se as doenças aumentarem? Será que devemos tentar fugir de São Paulo?

Estas são algumas das perguntas que aparecem nos debates sobre a água, vindas de uma plateia cheia de angústia diante da incerteza de um futuro que é logo amanhã. Da experiência concreta da realidade vem o exemplo da cidade paulista de Itu, no ano passado, quando donas de casa foram para as ruas com tomates e ovos e seus filhos com pedras, quando carros-pipa precisaram de escolta policial, quando surgiram traficantes de água, quando as pessoas foram assaltadas depois de horas na fila para encher um galão ou um balde. Quando os assaltantes queriam não mais dinheiro, mas água. A Grande São Paulo se tornará Itu, multiplicada por milhões?

Depende de nós construir, coletivamente, uma resposta que não seja a barbárie do individualismo e do salve-se quem puder ou quem tem mais dinheiro. Os mais ricos podem sair da cidade, a classe média vai ter que aprender com os mais pobres, que há muito estão submetidos ao regime de rodízio de água sem que ninguém se importe além deles, como é que se vive na escassez. O que não podemos permitir é que a catástrofe da água seja reduzida a um problema de segurança pública, com as forças de repressão do Estado a serviço dos mesmos de sempre, como já se tornou um hábito no tratamento das questões mais profundas, exatamente para desviar o foco, esvaziar o conteúdo e escapar das responsabilidades.

Para começar, precisamos entender que o que parece anormalidade, exceção, é possivelmente a normalidade daqui em diante. São Paulo apenas antecipa o futuro por todos os superlativos com os quais foi construída. Precisamos nos preparar para um clima de extremos, nosso mundo já é pior. E é pior, na compreensão de 97% dos artigos científicos sobre o clima, por causa da ação humana sobre o planeta. Assim, precisamos mudar mesmo. E a água é apenas o tema mais urgente que exige nossa participação nas decisões da cidade, do estado e do país – do mundo. E está relacionada com as principais questões socioambientais. A água não pode mais ser vista como mercadoria.

Não há tempo para formar uma geração que compreenda os desafios desse momento histórico. Teremos de enfrentá-los com os homens e mulheres imperfeitos de nossa época – arrogantes, consumistas, egoístas e inconsequentes, ainda com as ilusões da modernidade batendo em nossos corações enquanto o mundo ao nosso redor se arruína. Terá de sermos nós, a única matéria humana disponível, com o melhor que conseguirmos encontrar na escassez íntima de nossos interiores.

O tempo de despertar já passou. Agora é preciso acordar em pé.

(Publicado no El País em 02/02/2015)

 

Notas sobre os protestos

As bombas de gás e de efeito “moral” usadas em parte das narrativas das manifestações têm causado a “dispersão” do conteúdo
Policial dispara contra manifestantes em São Paulo, no dia 16 NACHO DOCE REUTERS

Policial dispara contra manifestantes em São Paulo, no dia 16 – NACHO DOCE / REUTERS (El País)

De um lado, a polícia. De outro, os Black Blocs. E então o “confronto”, a “dispersão” e o fim do protesto. Entre um e outro, manifestantes pacíficos atingidos pelos “excessos” da polícia provocada a reagir. Essa narrativa dos dois primeiros atos de 2015 contra o aumento da tarifa do transporte público (ônibus, trem e metrô), em São Paulo, contém o risco da repetição e do espetáculo. Reduzidos a um balé perverso, os atos podem esvaziar-se de potência. A banalização do roteiro, como se fosse apenas uma reencenação menor de 2013, mas sem a sua novidade, encobre aquilo que o move, a violência de fundo sofrida por milhões a cada dia num transporte caro e incompatível com a dignidade humana. A opção histórica pelo transporte individual e privado em detrimento do coletivo e público. A vida de gado, transcorrida em horas brutas. Essa é a denúncia explosiva, transgressora, que continua tão atual quanto sempre e tem sido obscurecida. O risco de reduzir os atos ao “confronto” é de, mais uma vez, deixar de escutar o tanto que está sendo dito, inclusive pela violência dos policiais e a dos Black Blocs, mais parecidos do que gostariam.

A verdade, como sabemos, é um bicho difícil de alcançar, nunca está num lugar só e se move. Não é singular, como no início da frase anterior, mas plural. Também neste sentido, os atos contra a tarifa do transporte exigem a máxima atenção. Pode haver tantas armadilhas, bombas de efeito “moral” e artefatos para “dispersar” nas narrativas sobre as manifestações quanto nas ruas. Só algo com muita potência provoca tanto conflito também – e talvez especialmente – no campo minado do discurso, o espaço onde se disputa como a história vai ser contada. E que influencia diretamente o que vai acontecer nas ruas no próximo capítulo. Ou na próxima manifestação.

A diferença dos números é reveladora justamente pela sua imprecisão. Não há sequer uma remota proximidade entre o cálculo de manifestantes apresentado pela Polícia Militar e pelo Movimento Passe Livre, que organiza os atos. Na primeira manifestação (9/1), a PM disse que havia 5 mil pessoas, o MPL falou em 30 mil. Na segunda (16/1), a PM calculou em 3 mil, o MPL em 20 mil. É provável que a verdade dos números esteja em algum lugar entre os extremos, mas nada indica que seja necessariamente no meio. Ainda que não seja incomum nesse tipo de acontecimento, a disputa dos números fala da importância do que se desenrola nas ruas. Se as manifestações de 2015 ganharem um lugar na História, ninguém saberá qual era a adesão no seu princípio.

Os números apontam para a evidência de que, entre o primeiro e o segundo ato, diminuiu a adesão, já que este é o dado convergente nas versões de um e de outro. A redução do número de participantes reforçaria a hipótese de que a ação da PM, ao usar a violência contra todos os manifestantes e até contra quem apenas está passando pela rua, possa estar funcionando: com medo das bombas de gás e das balas de borracha, uma parte dos manifestantes do primeiro ato não teria voltado para o segundo. Neste caso, a PM não cometeria “excessos” por despreparo – ou apenas por despreparo –, como já foi dito, mas como estratégia para esvaziar as manifestações. A meta seria impedir o exercício de um direito constitucional como forma de anular o potencial transgressor da reivindicação.

Esse roteiro expõe a tolerância da sociedade com a violência cometida pela polícia. Do contrário, como se explicaria que, num regime democrático, a violência da PM contra cidadãos exercendo a sua cidadania seja possível e se repita com tão pouca resistência do conjunto da população? Qual é a quantidade de violência necessária para fazer com que as pessoas deixem o conforto de suas casas para ir para as ruas em massa, como aconteceu em 2013, em reação à repressão? Haveria uma administração da violência, para que não passe do “tolerável” para a classe média?

Em 2013 costumava se dizer que a classe média e o centro conheceram nas manifestações a polícia que vai para as periferias, onde a violência das forças de segurança do Estado sempre foi tolerada, quando não estimulada. A julgar pelos dois primeiros atos de 2015, o uso da força pela polícia, contra manifestantes indefesos, que deveria causar espanto e revolta numa democracia, é mais um dado a mostrar que a violência vai se naturalizando também nesses espaços, como parte de um espetáculo que se assiste com alguma dose de tédio. Nessa naturalização, não há inocentes e cada um sabe a parte que lhe cabe. Está faltando mais gente que se espante com a falta de espanto em todos os setores – e também na imprensa.

A narrativa hegemônica das manifestações usa as palavras “confronto”, “dispersar”, “vândalos”. São palavras encobridoras, usadas para ocultar e não para revelar. Lembram os termos usados para disfarçar a gravíssima crise da água. Neste caso, o governo de Geraldo Alckmin já abusou de expressões como “estresse hídrico” e “restrição hídrica”, esta última para não usar a palavra “racionamento”. A crise da água, para além da incompetência do governo do PSDB, demonstrada na falta de planejamento e de medidas de prevenção, é uma crise socioambiental intimamente relacionada às mudanças climáticas. Mas poucos se lembram disso, porque se lembrar disso significaria ter de tomar medidas muito mais profundas, com reflexos diretos nos interesses do Capital. A tarifa do transporte e a água, os dois temas do momento em São Paulo, tem ainda essa convergência: em seu cerne, ambas exigem uma mudança estrutural. Uma na forma de tratar o ato de ir e vir das pessoas numa cidade – e quem paga por isso e quem lucra com isso. A outra na forma de tratar o planeta e explorar seus recursos naturais – e quem paga por isso e quem lucra com isso, já sabendo que no fim pagaremos todos, como já estamos pagando.

Para encobrir este, que é o conteúdo realmente explosivo, escolhe-se tratá-los apenas na superficialidade, estimulando o senso comum a formular frases como: “Esse povo não tem o que fazer ao ficar brigando por 50 centavos”, no caso da tarifa; ou “Tá faltando água porque choveu pouco. É só São Pedro colaborar que o problema tá resolvido”, no caso da água. É importante que se analise o que acontece nas ruas mostrando aqueles que não estão lá, mas que atuam atrás de paredes, algumas delas de prédios públicos. Assim como é importante que se veja o que está sendo dito para alcançar o que não está sendo dito, e que possivelmente seja o mais importante.

“Dispersar”, verbo amplamente utilizado na narrativa das manifestações, não expressa algo tão inofensivo e legítimo como se quer convencer a opinião pública. Há regras para isso, e elas não estão sendo cumpridas. Não é preciso ser um especialista para saber que não se pode encurralar manifestantes e jogar neles bombas de gás e de efeito moral, assim como balas de borracha, sem incorrer em várias violações legais, entre elas a de impedir o exercício democrático de manifestação. Assim como não é preciso ser jornalista para saber que chamar de “dispersão” o que é violência contraria as regras do bom jornalismo e violenta os direitos dos leitores de serem bem informados.

Também vale a pena perguntar que “confronto” é este entre cidadãos desarmados e as forças de segurança do Estado, a serviço do governo. E como e por que isso tem sido torcido para “confronto”. Já a palavra “vândalo” tem sido usada desde 2013, como também os outros termos aqui mencionados, para justificar a violência e borrar as nuances, transformando todos os manifestantes em “vândalos” ou em protetor de “vândalos”. Por que, então, uma parte da imprensa produz e reproduz esse discurso, como se estivéssemos ainda numa ditadura e sob censura, em vez de estar exercendo o espanto e o questionamento da ação da polícia, com base na lei e nas normas? São perguntas importantes, que merecem toda a nossa atenção se quisermos de fato construir uma democracia sólida.

Nessas primeiras manifestações de 2015, parece já existir uma narrativa vencendo a disputa no campo do senso comum, como aconteceu em protestos dos anos anteriores. As manifestações seriam interrompidas por culpa dos adeptos da tática Black Bloc. Não fosse a violência desse grupo composto por não mais do que algumas dezenas de jovens mascarados, a polícia não precisaria exercer a sua força contra os milhares de manifestantes pacíficos. O Movimento Passe Livre, por sua vez, seria o responsável por permitir que os Black Block participem da manifestação, porque se beneficiariam da sua ação para chamar a atenção para o protesto. A responsabilidade pela violência nas manifestações, em vez de ser atribuída à PM, está sendo deslocada para o MPL. Nessa versão, ignora-se vários fatos. Entre eles, a enorme assimetria de forças entre a polícia e os jovens mascarados, assim como a premissa básica de que a PM – o Estado – precisam agir dentro da lei.

Uma parte dos manifestantes parece desejar que os Black Blocs desapareçam dos protestos, porque eles estariam expulsando as pessoas das ruas. Neste sentido, fariam o jogo do governador Geraldo Alckmin (PSDB) e do prefeito Fernando Haddad (PT), ao serem usados para esvaziar os atos, como está sendo dito desde 2013. Esta é possivelmente uma parte da verdade, mas não toda. Há aqui um desafio maior, um realmente difícil, que vale para quem está nas ruas e para quem não está: mesmo discordando dos métodos, ser capaz de compreender a tática Black Bloc como uma manifestação e, principalmente, ser capaz de escutá-la. Ao não escutarmos, nos tornamos reprodutores da violência que acusamos no outro. E permanecemos no lugar das certezas congeladas, uma posição bem ruim para entender alguma coisa.

Quando se olha para os Black Blocs reduzindo-os a jovens violentos, a “vândalos”, como se essa fosse toda a verdade sobre eles, apaga-se a possibilidade de escutá-los. Há também um apagamento deles como pessoas. Um dos discursos mais frequentes dos jovens mascarados é de que sua violência, que para eles seria uma “performance”, denuncia a violência que os mais pobres sofrem no cotidiano das periferias. Sofrem nas mãos da polícia, lá onde as balas não são de borracha, a polícia apontada como o único Estado que se faz presente, mas pela opressão. E sofrem pela ausência do Estado, na forma de educação de má qualidade, saúde de má qualidade, transporte de má qualidade, condições de vida de má qualidade. A esta violência responderiam violentando não pessoas, mas símbolos do capitalismo, como bancos, como forma de chamar a atenção do centro para o que acontece nas margens. Usariam a violência para dar visibilidade a esta violência já naturalizada contra os pobres. E, entre as perguntas que fazem, está a de por que a violência menor que eles cometem chama muito mais atenção do que aquela que seria a violência maior, que tritura a vida de milhões física e simbolicamente dia após dia.

Perder a dimensão política do que estão denunciando os Black Blocs, reduzindo-os a jovens ora manipulados pelo Estado, ora a “bandidos”, é perder muito. Porque eles dizem algo legítimo, e é preciso escutá-los, ainda que se discorde da sua forma de atuação – e eu discordo. Na semana passada, o repórter André Caramante mostrou que a PM paulista matou 816 pessoas entre janeiro e novembro de 2014. É a maior letalidade dos últimos 10 anos. Já os crimes, segundo o repórter, mantiveram-se no mesmo patamar estatístico. Este aumento das mortes cometidas por policiais, em especial nas periferias, onde muitos dos Black Blocs vivem, é uma das denúncias que fazem. Se acreditam que a única forma de serem ouvidos é atirando pedras na polícia, queimando lixo e depredando agências bancárias, isso não diz só deles, mas de toda a sociedade. Para quem se dispõe a complicar suas dúvidas ou diminuir suas certezas, sugiro a leitura de Mascarados – a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc (Geração Editorial), de Esther Solano, Bruno Paes Manso e Willian Novaes. A parte da socióloga Esther Solano, que acompanhou os Black Blocs por vários meses, é especialmente rica.

Tão importante quanto escutar os jovens mascarados é escutar os policiais. Se nas ruas esses homens e mulheres, alguns deles fantasiados de Robocop, representam as forças de segurança do Estado, não é possível ignorar que são mal pagos e mal preparados, muitos deles sofrendo os mesmos problemas denunciados nos protestos. Se a desmilitarização da polícia é um debate que precisa ser enfrentado, com sua lógica de guerra, que pressupõe não um cidadão, mas um inimigo, esta não é nem a única explicação, muito menos a única solução. São os policiais militares que arriscam a sua vida nas ruas para defender uma parte da sociedade, e isso é bastante claro, da outra parte, que sofre a violência cotidiana dos péssimos serviços públicos, de uma precariedade que a impede também de mudar sua posição nesta mesma sociedade, como acontece no caso da educação. Os Black Blocs e os policiais têm mais em comum do que gostariam. E, o mais importante: nenhum deles inventou a violência da sociedade brasileira.

Entre todas as versões vendidas como verdade neste momento, a mais perigosa é a do “confronto” entre a Polícia Militar e os Black Blocs, ou entre a PM e os manifestantes. Ao se reduzir o protesto ao “confronto”, que acaba sendo a única notícia, ou pelo menos a mais difundida a cada ato, evita-se o debate público sobre o transporte e a mobilidade urbana, a reivindicação profunda que move os protestos. Encobre-se também aqueles que não estão nas ruas, como o governador e o prefeito. Na questão da tarifa, PSDB e PT, os dois partidos que se digladiaram na eleição mais apertada desde a redemocratização, comportam-se como amigos de infância.

Não há como afirmar qual será a potência das manifestações de 2015. Muitos apostam que elas se esvaziem. Outros, que em algum momento as duas crises, a da tarifa e a da água, se encontrem nas ruas como já se encontram no cotidiano. Será uma pena se, submetidos à lógica do “confronto”, não conseguirmos escutar o que dizem os manifestantes – e o que não dizem o governador e o prefeito – e perdermos a oportunidade de um debate público, político, sobre a violência silenciosa que corrói os nossos dias. Não é um espetáculo repetitivo, é a nossa vida que pode se repetir como farsa porque nossa imobilidade parece se estender muito além de não conseguir se movimentar em ruas lotadas de carros e em ônibus lotados de gente violentada. Para se mover, é preciso retomar a conversa e escutar.

(Publicado no El País em 19/01/2015)

Meu ‘confronto’ com a polícia de Alckmin

Na primeira grande manifestação de 2015, em São Paulo, um dos ”vândalos” era eu
Manifestante diante de um cordão policial em São Paulo. NACHO DOCE REUTERS

Manifestante diante de um cordão policial em São Paulo. NACHO DOCE / REUTERS

Alguns minutos antes de virar “vândala”, eu parei de caminhar, me virei de costas e olhei a multidão que ocupava a Consolação, na primeira manifestação contra o aumento de 50 centavos da tarifa de ônibus, em São Paulo. Era sexta-feira, 9 de janeiro, no início da noite. Como é horário de verão, ainda estava claro. Pensei como era bonito milhares de pessoas se reapropriando das ruas, do espaço público, da cidade, para exercer seu direito democrático de protestar contra o que consideram injusto. São Paulo, vista a pé, andando por ruas sem carros, é uma outra cidade. É humana. Das janelas e sacadas dos prédios, as pessoas abanavam. Pouco antes, eu tinha ouvido de dois manifestantes: “E aí, até quando isso aqui vai parecer uma romaria?”. E, quando voltei a me virar para recomeçar a caminhar, o clima na minha frente era outro. Os black blocs e alguns outros tinham se adiantado e começavam a dar chutes em portas de ferro, arrancavam latas de lixo e espalhavam o conteúdo no meio da rua. Foi quando o vi.

Vestido de amarelo, ele estava alheio aos mascarados de preto. Mas seguia-os. Sabendo como os black blocs agem nos protestos, ele me contaria em seguida, costuma segui-los para recolher as latinhas de refrigerante e cerveja. E assim fazia esse balé surreal em que ele parecia recortado de uma outra cena, alheio ao que acontecia, atento apenas ao chão, caminhando lentamente na vanguarda da marcha enquanto ao redor o caos se instalava. Abordei-o, me apresentei como jornalista, e ele me disse que se chamava Ailton da Silva, tinha 58 anos e morava em São Miguel Paulista, na Zona Leste, uma das regiões mais pobres da capital. Aquela que alaga a cada chuva e é a primeira a ficar sem água nas torneiras nesses tempos em que São Paulo se aproxima mais e mais de um cenário de distopia.

Para juntar o equivalente ao valor de uma passagem de ônibus, depois do aumento – R$ 3,50 –, Ailton precisaria, pelos seus cálculos, de quase 100 latinhas. Ele estava bem longe disso. Algo para aqueles que dizem “é só 50 centavos” pensarem. “Só” para quem?

Perguntei da camisa amarela, ele me disse que a que importava era a que estava por baixo. E me mostrou uma camisa do Corinthians que já tinha visto jogos demais. Despediu-se, então: “Preciso continuar. Vou seguir, me arriscando ao perigo”. Deu um passo, olhou para trás e abanou. Então seguiu, olhando para o chão, no brutal pragmatismo da sobrevivência, que encontra todas as brechas possíveis, como a de seguir black blocs para catar latinhas no lixo que espalham pelas ruas como forma de protesto.

No momento em que o catador de latinhas desapareceu confusão adentro, alguns black blocs quebraram a porta de uma agência do Santander. Eu ainda andei mais uns passos. Então manifestantes que estavam na frente começaram a correr na direção contrária a da marcha. E eu vi – e senti – as primeiras bombas de gás lacrimogêneo. Por instinto, eu e todos que estavam ali começamos a correr em direção à esquina, para pegar a rua paralela e escapar de sermos atingidos. Mas a Polícia Militar do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) nos encurralou. A ação da PM mostrava que ela não queria que os manifestantes se dispersassem, mas sim que fossem atingidos. Passaram a lançar bombas também na nossa única rota de fuga, impedindo que saíssemos por ali.

Em certo momento, havia quatro bombas quase juntas na minha frente. E não precisa ser nem especialista nem muito inteligente para saber que esse não é o “procedimento”. Nesse momento, eu já sufocava e, sem conseguir respirar pelo nariz, tentava pegar o ar pela boca, o que não se deve fazer. Meu rosto inteiro e meus braços queimavam, minha sensação era a de que minha pele se desmanchava. Meus olhos ardiam. Era difícil respirar, enxergar e não havia como fugir. Nos jogamos contra as portas de ferro, as grades, os vidros dos prédios e lojas fechados, que não se abriam para nós. No medo, a solidariedade é uma das primeiras a morrer.

A polícia estava atirando bombas em nós. Era assustador. Aqueles homens, pagos com o nosso dinheiro para nos proteger, nos atacavam deliberadamente. Nós, desarmados, indefesos, amontoados junto às paredes, com o corpo inteiro doendo, continuávamos sendo atingidos. Era bem claro que não havia nenhuma ameaça ali, só cidadãos acuados e aterrorizados. E eles continuavam jogando bombas e impedindo que fôssemos embora.

O Estado nos atacava. Essa foi a percepção que me fez sentir mais pavor. Era bem claro que os policiais atiravam bombas em nós por ódio. Nós éramos os seus inimigos. É a lógica da Polícia Militar, e ela se expressava com clareza quase didática naquele momento. Percebi que, com aquele nível de raiva e com aquele total despreparo, o descontrole poderia aumentar ainda mais e poderíamos ser mais machucados do que fomos. Poucas coisas são mais assustadoras do que um Estado violento, do que a consciência de que aqueles que detêm o uso da força estão armados, despreparados e com ódio. Alguém poderia, inclusive, ser morto. E ali era o que sentíamos. Amontoados como ratos de laboratório de um experimento sádico, tínhamos medo de morrer nas mãos de uma polícia que se mostrava criminosa. E que parecia ter esperado apenas um pretexto para atacar aqueles que também deveria proteger.

Nesse momento tinha tanto gás que comecei a ficar tonta e a sentir que perderia a consciência. Pensei que se desmaiasse ali poderia morrer ou pisoteada ou pelas mãos da PM. Imagino que algum instinto de sobrevivência tenha me salvado, porque consegui continuar consciente, apesar de sufocada. Ao meu lado, um senhor de cerca de 70 anos tentava não cair. Algumas pessoas vomitavam. Um garoto gritava: “Me ajudem, eu preciso de ajuda”. Outro dizia: “Não estou enxergando nada.” E bateu contra a parede. Eram estes os “vândalos”, eu inclusive.

Não sei quanto tempo durou até eu conseguir fugir dali. Me pareceu uma eternidade. Não sei quem chamou essas coisas de “bombas de efeito moral”. Assim como as bombas de gás lacrimogêneo, como já está provado, podem causar danos à saúde a médio e a longo prazo. Em casa, enjoada, com o rosto vermelho, eu pesquisava sobre elas para saber o que deveria fazer e descobri que em pessoas que têm bronquite, como eu, elas podem causar edema pulmonar. Quase desmaiei duas vezes antes de finalmente conseguir dormir.

Fico muito espantada, como jornalista e como cidadã, com o uso da palavra “confronto” para definir o que aconteceu na primeira grande manifestação de 2015. E em muitas outras antes dela. Qual era a minha condição e a dos manifestantes de nos “confrontarmos” com centenas de policiais armados? Qual era o confronto quando estávamos estatelados contra uma parede levando bombas de gás e balas de borracha? Que confronto é este entre as forças de repressão do Estado e cidadãos exercendo seu direito legítimo de protestar? Esse discurso do “confronto” lembra os tempos da ditadura e de uma imprensa submetida à censura. Deveria ser inadmissível na democracia. Que se chame essa violação da lei pela polícia, no cumprimento de ordens superiores, de “confronto” é um desrespeito também com a História.

Ao final da noite de ontem, depois de ter sido vítima de violência policial, minha sensação era a de ter sido abusada. A pessoa que estava comigo revivia o mesmo sentimento que tinha tido, anos atrás, quando sofreu um sequestro relâmpago e ficou sob a mira de armas e ameaçado de morte. Não conseguiu dormir. Como jornalista que cobre direitos humanos, sei muito bem que, na periferia, as balas não são de borracha e o terror é cotidiano. E fiquei torcendo para que o catador de latinhas tenha conseguido escapar.

Quando tudo acabou – e, ao mesmo tempo, nada acabou –, eu entrei pelo portão de grades do meu prédio, igual a todos aqueles que antes não se abriram para mim, e me entreguei à ilusão de proteção. O catador de latinhas está entregue ao desamparo, os portões não se abrem para ele e ele só come se continuar olhando para o chão.

Uso aqui a única arma que tive na vida. Minha escrita.

(Publicado no El País em 10/01/2015)

Romana e o bilionário do amianto: a dor que não prescreve

A italiana que se tornou símbolo da luta contra a fibra assassina é uma das vítimas derrotadas por Stephan Schmidheiny no tribunal que envergonhou a Itália

 

Quando a entrevistei, dois anos atrás, ela me disse que já não chorava. Em algum momento da sua luta contra a Eternit, as lágrimas secaram dentro de Romana Blasotti Pavesi. Passamos uma tarde e uma manhã conversando em seu apartamento em Casale Monferrato. É difícil acreditar à primeira vista que na pequena cidade do Piemonte a tragédia respira entre ruas e paisagens de cinema italiano, nas vitrines das confeitarias onde os krumiris, o delicioso biscoito de Casale, se oferecem a quem passa. Então pessoas como Romana começam a falar. E quando falam enumeram seus mortos. E a narrativa mais uma vez desafina com o cenário do apartamento em que sua solidão é acompanhada por uma população de bibelôs bem ordenados e coloridos, por uma coleção de pequenos elefantes de todas os formatos, origens e texturas – a maioria deles com a tromba para cima, que é como ela gosta. Pergunto a ela se é por significar boa sorte, ela responde que assim parecem felizes. Romana pede um momento, diz com licença, e desaparece no quarto. Volta de lá com uma caixa. De dentro ela tira com a ponta dos dedos um cabelo longo e raro, com diferentes nuances de dourado e vermelho. Bello, molto bello. É de Maria Rosa, ela diz. A filha de Romana foi a quinta de sua família a morrer pelo câncer do amianto.

Luto sem fim: Romana Blasotti Pavesi, em seu apartamento, na cidade italiana de Casale Monferrato JOÃO LUIZ GUIMARÃES/2012

Luto sem fim: Romana Blasotti Pavesi, em seu apartamento, na cidade italiana de Casale Monferrato JOÃO LUIZ GUIMARÃES/2012

Romana é a presidente da Associação de Familiares e Vítimas do Amianto de Casale Monferrato. A cidade foi marcada pela fábrica da Eternit instalada lá em 1906. Durante décadas considerada o melhor lugar para um operário trabalhar, até que os primeiros começaram a tombar das doenças provocadas pelo material conhecido também como asbesto. Depois, já não eram os trabalhadores que tiveram contato direto com a fibra, mas moradores que nunca haviam pisado no chão de fábrica. Professores, médicos, jornalistas, profissionais de todo o tipo que habitavam a cidade começaram a morrer de doenças causadas pelo amianto. A contaminação ambiental já havia se consumado e as décadas seriam atravessadas pela tragédia. Romana afirma que mais de 40 novos casos de mesotelioma, um câncer agressivo e fatal causado pelo amianto, surgem a cada ano na cidade.

Casale Monferrato então se levantou e liderou um processo histórico na Justiça italiana contra o bilionário suíço Stephan Schmidheiny e o barão belga Louis de Cartier de Marchienne, este último morto ao longo do julgamento. Stephan Schmidheiny é herdeiro da família que fundou a Eternit suíça e plantou fábricas de amianto por vários países ao longo do século 20, inclusive no Brasil, semeando a morte. Em 1976, ele assumiu o comando dos negócios e, segundo sua versão, teria decidido abandonar a produção com amianto ao descobrir que a fibra causava doenças fatais. A Eternit suíça só saiu das mãos da família mais de uma década depois, no final dos anos 80. O grupo se retirou da produção quando o amianto já tinha se tornado um escândalo de saúde pública na Europa, com milhares de vítimas e pedidos de indenização. O primeiro país europeu a banir o amianto foi a Islândia, em 1983, logo seguida pela Noruega, em 1984. Em 2005, o material foi proibido pela União Europeia. Hoje, está banido de 66 países do mundo, uma lista da qual o Brasil não faz parte. Com a venda das participações do grupo suíço Eternit, todo o passivo ambiental e humano ficou para trás.

Ao longo do processo da Justiça italiana, os promotores revelaram uma teia de centenas de mortos e doentes, a maioria deles de Casale Monferrato. Homens e mulheres contaram como perderam pais, mães, filhos e irmãos de câncer, alguns doentes só tiveram tempo de dar seu depoimento antes de morrer. Além do mesotelioma, a asbestose, conhecida como “pulmão de pedra”, é outra doença progressiva e fatal causada pelo amianto. Neste caso, a inalação da fibra provoca um ininterrupto processo de cicatrização que vai endurecendo o órgão até impedir o movimento de expiração e inspiração. As vítimas de asbestose morrem lenta e dolorosamente por asfixia. No Brasil, era neste momento que empresas como a Eternit despachavam seus representantes para os hospitais para que os operários em agonia assinassem um documento aceitando uma indenização irrisória em troca da vida que acabava, impedindo assim que suas famílias entrassem com ações judiciais após sua morte.

O marido de Romana, Mario Pavesi, já sofria com a asbestose quando começou a sentir a pontada nas costas que anunciava o mesotelioma. Mario era um homem calado, guardava seu mundo dentro de si, e por meses manteve segredo sobre a ferroada persistente. Ele já tinha visto muitos colegas de fábrica terem esse mesmo sintoma e morrerem depois. Um dia, de repente, Mario deixou escapar um gemido. E Romana soube que a atmosfera da casa se alterava de forma inexorável, porque aquele homem não gemia.

Mario tinha ficado órfão aos 16 anos, obrigado a sustentar a mãe e os irmãos menores. Em seguida, a Segunda Guerra incendiou a Europa e ele foi enviado como soldado a uma de suas frentes mais duras, a dos Balcãs. No dia em que ele se materializou diante de Romana, numa ousadia rara para aquele rapaz sério demais, fazia apenas um ano que retornara da Iugoslávia. Eles nunca haviam se falado e Mario já se apresentou com intenções de casamento. Dias depois, assistiram à Ninotchka no cinema. Mario já tinha visto o filme, mas como Romana era louca por Greta Garbo, fez de conta que era sua primeira vez. Casaram-se sete meses depois. Em 1957, já com os filhos Ottavio e Maria Rosa, Mario ingressou na Eternit, onde trabalharia por 20 anos. Quando sentiu a pontada nas costas, estava aposentado. Morreu de mesotelioma na noite de 15 de maio de 1983, aos 61 anos. Pouco antes de morrer, Mario saiu da sua inconsciência e estendeu a mão para Romana. Ela a segurou por um silêncio longo. Depois de uma vida, despediram-se assim. Romana não poderia adivinhar naquele momento que sua trajetória mudaria radicalmente de curso e o homem que amava seria apenas o primeiro da sua família sepultado pelo amianto. Nesse tempo, Romana ainda chorava.

A família completa: Romana e Mario com os filhos Ottavio e Maria Rosa. REPRODUÇÃO/ARQUIVO PESSOAL

A família completa: Romana e Mario com os filhos Ottavio e Maria Rosa. REPRODUÇÃO/ARQUIVO PESSOAL

Como as doenças provocadas pelo amianto, como o mesotelioma, têm um longo tempo de latência, em alguns casos décadas, o pico da tragédia de saúde pública acontece às vezes com a fábrica já fechada. A Itália baniu o amianto em 1992, mas ainda hoje lida com o escândalo sanitário. No Brasil, a fibra só é proibida em seis estados brasileiros: Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Minas Gerais. Atualmente, o país é o terceiro produtor mundial, o terceiro exportador e o quarto usuário de amianto. Enquanto a fibra vai desaparecendo dos bairros mais nobres das grandes cidades do centro-sul, segue perigosamente farta nas favelas e periferias, assim como nas casas de quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e indígenas.

Desde as últimas décadas do século 20, o Brasil vem colecionando mortes de trabalhadores, assim como de familiares que tiveram contato com as roupas sujas de amianto, por asbestoses e mesoteliomas. Há várias ações na Justiça buscando banir o amianto do país, assim como indenizações para as vítimas, mas a indústria exibe um lobby poderoso atuando no atual governo, no congresso e no judiciário. As mortes de centenas de brasileiros, a maioria deles operários, e a tragédia de saúde pública que se avizinha com a contaminação ambiental têm muito menos visibilidade do que o bom senso e a responsabilidade pública permitiriam, o que torna a persistência do amianto no Brasil uma caixa-preta ainda por ser totalmente desvendada.

Na Itália, as vítimas e familiares de vítimas levaram o bilionário suíço à Justiça e conseguiram condená-lo em duas instâncias. Em 13 de fevereiro de 2012, Stephan Schmidheiny foi condenado, pelo Tribunal de Turim, a 16 anos de prisão e ao pagamento de 100 milhões de euros. O crime foi descrito como “desastre ambiental doloso permanente e omissão dolosa de medidas de segurança para os operários”. Em 3 de junho de 2013, a sentença não só foi confirmada na corte de apelação, como foi ampliada de 16 para 18 anos de prisão. Tudo indicava um desfecho vitorioso para aqueles que perderam a própria vida ou a vida daqueles que amavam no julgamento de última instância, em Roma.

E então, na quarta-feira, 19 de novembro de 2014, o inominável aconteceu. Diante das vítimas de Casale Monferrato e de outras regiões italianas, a corte italiana anulou a condenação de Stephan Schmidheiny: não por inocência do réu, mas porque o crime teria prescrito. Foi dito no tribunal que era uma opção pelo Direito – e não pela Justiça. “Às vezes o Direito e a Justiça tomam direções opostas, mas os juízes não têm alternativa: eles devem seguir o Direito”, disse Francesco Iacoviello, procurador-geral da Corte de Cassação de Roma. Em comunicado, a Corte afirmou que “a acusação era de desastre ambiental e não de homicídio”. E, portanto, “não poderia ignorar a expiração do prazo de prescrição, que começou a contar a partir de 1986, quando a Eternit fechou suas fábricas na Itália”.

O choque durou apenas um segundo antes do primeiro grito, que logo virou um clamor. “Vergonha! Vergonha! Vergonha!”. Vítimas, familiares de vítimas e moradores da cidade contaminada pareciam feridos de morte. A cena era impressionante. Era para ser uma vitória histórica, que impactaria as vítimas do mundo e contribuiria para a aceleração do banimento do amianto de países como o Brasil. E de novo o poder econômico – e por consequência político – venceu. Para alguns, que observavam de fora, era claro que só poderia ser este o desfecho, já que essa sempre foi a lógica do mundo. Mas, nos últimos anos, os habitantes de Casale Monferrato e todos aqueles que perderam pais, mães, irmãs, filhos na brutal agonia provocada pelas doenças do amianto acreditaram que poderiam alterar o curso da História. “Não é possível que a demanda por justiça prescreva em alguns casos”, afirmou à imprensa Matteo Renzi, primeiro-ministro italiano. “Há feridas que não conhecem limites de tempo.” Em Casale Monterrato, os sinos de todas as igrejas tocaram ao mesmo tempo em sinal de luto. Uma das lideranças da luta das vítimas, Bruno Pesce, anunciou que, na semana em que o príncipe do amianto, Stephan Schmidheiny, venceu, dois moradores de Casale Monferrato morreram de mesotelioma. E morreram derrotados de todas as maneiras possíveis.

Aos 85 anos, Romana Blasotti Pavesi descobriu-se vencida. Sua batalha contra Stephan Schmidheiny não foi a mais importante de sua existência. A morte de quem se ama é sempre a maior batalha perdida numa vida humana. E Romana viu primeiro seu marido, Mario, depois sua irmã, Libera, em seguida sua prima, Anna, o próximo foi Giorgio, seu sobrinho, e por fim, embora nunca se saiba se acabou, Maria Rosa, a filha. Todos mortos por mesotelioma, o câncer do amianto. “Não é vingança”, repetiu Romana. “Nossa luta contra Stephan Schmidheiny é por tudo o que ele representa.” A velha mulher desvia o extraordinário azul de seus olhos para dentro, para o lugar das memórias, e diz: “Não tenho rancor contra o responsável por toda essa tragédia, mas se ele tivesse a possibilidade de acompanhar um doente que lhe fosse caro, do princípio ao fim, talvez ele pudesse entender alguma coisa”.

Foi com a morte de Maria Rosa, na bárbara subversão da lógica que obriga uma mãe a sepultar sua filha, que Romana perdeu a capacidade de chorar. Maria foi o nome que o pai escolheu, Rosa foi dado pela mãe. Maria Rosa nunca trabalhou com amianto. Nas lembranças de Romana, uma a sobressalta. Ela e Mario levando a então pequena Maria Rosa para passear nos arredores da fábrica onde o pai era um trabalhador orgulhoso. Redemoinhos de pó se levantavam do material descartado, era até bonito. E então Maria Rosa, já adulta e mãe de um filho, aparece na casa da mãe: “Estou com mesotelioma”. Ela tinha atribuído a dor nas costas a um tombo ocorrido quando esquiava. A radiografia revelou a verdade brutal. Seu último gesto, em agosto de 2004, foi vencer a fragilidade de seu corpo mastigado pelo câncer para abraçar o filho, Michele, com uma força que ninguém sabe de onde tirou.

Família amputada: depois do amianto, restaram Romana e o filho Ottavio REPRODUÇÃO/ARQUIVO DE FAMÍLIA

Família amputada: depois do amianto, restaram Romana e o filho Ottavio REPRODUÇÃO/ARQUIVO DE FAMÍLIA

Com metade da família amputada da vida pelo amianto, Romana dedicou as últimas décadas de sua existência à busca por justiça. Enquanto ela e seus companheiros de luta se organizavam, a maioria deles carregando atestados de óbitos de familiares e colegas de trabalho, Stephan Shmidheiny levava à frente uma das mais fascinantes e bem sucedidas operações de lavagem de biografia – ou de “greenwashing” – da história recente (leia artigo sobre isso aqui). Logo passou a ser chamado pela imprensa internacional de “filantropo” e, por paradoxal que pareça, de “ambientalista” e “ecologista”. Foi uma das estrelas da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e criou, entre outras organizações, a Avina, uma fundação dedicada a programas ambientais e de redução da pobreza que atua também no Brasil. Entre as honrarias que lhe foram oferecidas, figuram o título de doutor “honoris causa” em letras humanas pela universidade americana de Yale e a Ordem do Cruzeiro do Sul, concedida a ele pelo então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso.

No site da Avina, o homem levado à Justiça pelas vítimas do amianto como um criminoso socioambiental é apresentado como “pioneiro da luta contra o amianto”. A notícia da anulação de sua sentença pela corte italiana é publicada sob a chamada “desenvolvimento sustentável”. Em posicionamento com data deste mês de novembro, a Avina assim manifesta-se: “(….) contrária a que se continue empregando amianto em qualquer tipo de indústria. Por isso, as autoridades públicas de todas as nações devem normatizar e regulamentar a proibição da produção e uso do amianto, além de desenvolver ações de proteção da cidadania das vítimas por ele afetadas”.

Em sua defesa, o magnata suíço costuma afirmar que desconhecia o potencial destrutivo do amianto. Segundo sua versão, quando soube que a fibra era cancerígena, escolheu abandonar o setor. Em comunicado após a anulação da sentença, porta-vozes de Stephan Schmidheiny afirmaram: “A defesa espera que o Estado italiano proteja Stephen Schmidheiny de futuros processos criminais injustificados e encerre todos os processos correntes”.

Lideranças da luta pelo banimento do amianto, vítimas e familiares contestam a inocência do herdeiro da Eternit suíça apresentando documentos que comprovam que a relação entre o amianto e doenças como a asbestose é conhecida desde o início do século 20. Nos anos 60 do mesmo século já estava documentada a ligação entre a fibra e o mesotelioma. No Brasil, a fábrica da Eternit no município paulista de Osasco foi instalada no começo da década de 40, quando já se conhecia o potencial destrutivo do amianto. Stephan Schmidheiny chegou a fazer uma espécie de estágio na fábrica brasileira, um dos argumentos que usa ao afirmar que desconhecia os males causadas pela fibra. No processo judicial italiano ficou claro que, em 1976, diante das crescentes notícias sobre a relação entre asbesto e patologias fatais, a indústria promoveu uma conferência na Alemanha para discutir estratégias para enfrentar o problema sem deixar de produzir amianto, da qual Stephan Schmidheiny participou.

Segundo as vítimas, ainda que fosse possível aceitar que o desconhecimento sobre o caráter tóxico do amianto fosse de fato real, nada explica o grupo ter vendido a Eternit: uma transação comercial lucrativa que levou à continuidade das operações, ainda que nas mãos de outros donos, como acontece no Brasil e em outros países onde a fibra ainda não foi banida. Assinalam ainda a impossibilidade de justificar o abandono do passivo ambiental e humano consumado enquanto a fortuna da família Schmidheiny era construída. “Stephan Schmidheiny teve na Justiça uma vitória formal”, afirma a engenheira brasileira Fernanda Giannasi, auditora aposentada do Ministério do Trabalho no Brasil, e uma das lideranças mundiais na luta pelo banimento do amianto. “Para o resto de sua vida ele vai ter de conviver com essa marca. Não o deixaremos esquecer nem por um minuto o que ele fez contra a humanidade.”

A voz das vítimas tem muito menos ressonância, porém, do que a poderosa operação de marketing internacional investida na mudança da imagem daquele que consideram seu algoz. O financiamento de ações de caridade e programas socioambientais por Stephan Schmidheiny tem silenciado várias pessoas histórica e profissionalmente ligadas à defesa dos direitos humanos e do meio ambiente no mundo e também no Brasil. É parte da explicação de por que as vítimas do amianto, considerado uma das maiores tragédias de saúde pública da história da humanidade, travam suas batalhas sozinhas, isoladas de parcelas da sociedade que, pela lógica, deveriam lutar ao seu lado.

Romana, como uma personagem shakespeariana, viu-se jogada ao som e à fúria de forças poderosas. Ela, que iniciou a vida trabalhando como empregada doméstica na casa dos mais ricos, teve a ousadia de confrontar um bilionário homenageado por revistas como a Forbes e universidades como Yale. No tribunal, ao ver agigantar-se diante dela o espectro aniquilador da injustiça, Romana só conseguiu encontrar um adjetivo: “Abominável”. Depois, diria: “Estou cansada. Cansada de sofrer e de ver as pessoas morrerem ao meu redor. A decepção dói como eu jamais poderia imaginar.”

Os anos se encurtam diante dela. Mas Romana sabe que, enquanto há vida, a escrita da História ainda pode ser disputada. Deixou a corte amparada pelo único filho que lhe restou, Ottavio. E não chorou.

Em pé: Romana diante do que restou da fábrica de amianto da Eternit que contaminou a cidade e provocou centenas de mortes por mesotelioma JOÃO LUIZ GUIMARÃES/201

Em pé: Romana diante do que restou da fábrica de amianto da Eternit que contaminou a cidade e provocou centenas de mortes por mesotelioma JOÃO LUIZ GUIMARÃES/201

(Publicado no El País em 24/11/2014)

 

O vírus letal da xenofobia

O primeiro teste no Brasil deu negativo para o ebola, mas positivo para o racismo

 

Uma epidemia, como Albert Camus sabia tão bem, revela toda a doença de uma sociedade. A doença que esteve sempre lá, respirando nas sombras (ou nem tão nas sombras assim), manifesta sua face horrenda. Foi assim no Brasil na semana passada. Era uma suspeita de ebola, fato suficiente, pela letalidade do vírus, para exigir o máximo de seriedade das autoridades de saúde, como aconteceu. Descobrimos, porém, a deformação causada por um vírus que nos consome há muito mais tempo, o da xenofobia. E, como o outro, o “estrangeiro”, a “ameaça”, era africano da Guiné, exacerbada por uma herança escravocrata jamais superada. O racismo no Brasil não é passado, mas vida cotidiana conjugada no presente. A peste não está fora, mas dentro de nós.

Foi ela, a peste dentro de nós, que levou à violação dos direitos mais básicos do homem sobre o qual pesava uma suspeita de ebola. Contrariando a lei e a ética, seu nome foi exposto. Seu rosto foi exposto. O documento em que pedia refúgio foi exposto. Ele não foi tratado como um homem, mas como o rato que traz a peste para essa Oran chamada Brasil. Deste crime, parte da imprensa, se tiver vergonha, se envergonhará.

Não sei se há desamparo maior do que alcançar a fronteira de um país distante, nessa solidão abissal. E pedir refúgio, essa palavra-conceito tão nobre, ao mesmo tempo tão delicada. E então se sentir mal, e cada um há de saber como a fragilidade da carne nos escava. Corrói mesmo aqueles que têm o melhor plano de saúde num país desigual. Ele, desabitado da língua, era desterrado também do corpo. Para alcançar o que viveu o homem desconhecido, porque o que se revelou dele não é ele, mas nós, é preciso vê-lo como um homem, não como um rato que carrega um vírus. Para alcançá-lo é preciso vestir o homem. Mas só um humano pode vestir um humano.

E logo ouviu-se o clamor. Não é hora de fechar as fronteiras?, cobrou-se das autoridades. Que os ratos fiquem do lado de fora, onde sempre estiveram. Que os ratos apodreçam e morram. Para os ratos não há solidariedade nem compaixão. Parece que nada se aprendeu com a Aids, com aquele momento de vergonha eterna em que os gays foram escolhidos como culpados, o preconceito mascarado como necessária medida sanitária.

E quem são os ratos, segundo parte dos brasileiros? Há sempre muitos, demais, nas redes sociais, dispostos a despejar suas vísceras em praça pública. No Facebook, desde que a suspeita foi divulgada, comprovou-se que uma das palavras mais associadas ao ebola era “preto”. “Ebola é coisa de preto”, desmascarou-se um no Twitter. “Alguém me diz por que esses pretos da África têm que vir para o Brasil com essa desgraça de bactéria (sic) de ebola”, vomitou outro. “Graças ao ebola, agora eu taco fogo em qualquer preto que passa aqui na frente”, defecou um terceiro. Acreditam falar, nem percebem que guincham.

“Descrever uma epidemia é uma forma magistral de revelar as diversas formas de totalitarismo que maculam uma sociedade. Neste quesito, os brasileiros não economizaram. A divulgação, por meios de comunicação que atingem dezenas de milhões de pessoas, da foto de um homem negro, vindo da África, como suspeito de ebola, foi a apoteose do fantasma do estrangeiro como portador da doença”, afirmou a esta coluna Deisy Ventura, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo, pesquisadora das relações entre direito e saúde, autora do livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1). “Veja que este fantasma é mobilizado em relação aos pobres, sobretudo negros, nunca em relação aos estrangeiros ricos e brancos. O escravagismo, terrível doença da sociedade brasileira, associa-se ao desejo conjuntural de dizer: este governo não deveria ter deixado essas pessoas entrarem. É uma espécie de lamento: tanto se esforçaram as elites para branquear este país, e agora querem preteá-lo?”

A África desponta, de novo e sempre, como o grande outro. Todo um continente povoado por nuances e diversidades reduzido à homogeneidade da ignorância – a um fora. Como disse um imigrante de Burkina Faso à repórter Fabiana Cambricoli, do jornal O Estado de S. Paulo: “Os brasileiros não sabem que Burkina Faso é longe dos países que têm ebola. Acham que é tudo a mesma coisa porque somos negros”. Ele e dezenas de imigrantes de diversos países da África estão sendo hostilizados e expulsos de lugares públicos na cidade de Cascavel, no Paraná, onde o primeiro caso suspeito foi identificado. Tornaram-se “os caras com ebola”, apontados na rua “como os negros que trouxeram o vírus para o Brasil”.

O ebola não parece ser um problema quando está na África, contido entre fronteiras. Lá é destino. O ebola só é problema, como escreveu o pesquisador francês Bruno Canard, porque o vírus saiu do lugar em que o Ocidente gostaria que ele ficasse. “A militarização da resposta ao ebola, que com a anuência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em setembro último, passou da Organização Mundial da Saúde a uma Missão da ONU, revela que a grande preocupação da comunidade internacional não é a erradicação da doença, mas a sua contenção geográfica”, reforça Deisy Ventura.

O homem a quem se acusou de trazer a doença para o Brasil, para o lugar onde o vírus não pode estar, sempre foi um sem nome, um ninguém, um não ser. Só é nomeado, ganha rosto, para mais uma vez ser violado. Para que continue a não ser enxergado, porque nele só se vê a ameaça, que é mais uma forma de não reconhecê-lo como humano. Ele, o rato.

A história do liberiano que morreu de ebola nos Estados Unidos expõe o labirinto. Ele tinha 18 anos quando a guerra civil começou a matança que só terminaria em 250 mil cadáveres. No campo de refugiados na Costa de Marfim conheceu uma mulher e teve com ela um filho. Ela conseguiu migrar para os Estados Unidos com a criança de três anos, ele seguiu para um campo de refugiados em Gana. Só em 2013 conseguiu voltar ao seu país devastado. Em setembro, finalmente, obteve o visto para entrar nos Estados Unidos, para casar com a mãe de seu filho e ver o menino, agora quase um adulto, se formar no ensino médio. Antes de partir, um gesto de solidariedade: ajudou a levar uma vizinha com ebola para o hospital. Sem saber, carregou com ele o vírus da doença para além das fronteiras. O labirinto era sem saída, o futuro só existia como passado, e ele morreu nos Estados Unidos. O filho do qual ficou exilado por 16 anos não pôde se despedir do pai. O legado da saudade do pai era a marca de um flagelo deixado no filho pelo olhar do Ocidente. Para os mesmos de sempre, o exílio ultrapassa a vida.

Para o homem que alcançou o Brasil em busca de refúgio e teve sua dignidade violada na exposição de seu nome, rosto e documentos, ainda existe a espera de um segundo teste para o vírus do ebola. Não importa se der negativo ou positivo, devemos desculpas. Devemos reparação, ainda que saibamos que a reparação total é uma impossibilidade, e que essa marca pública já o assinala. Não é uma oportunidade para ele, é para nós.

É preciso reconhecer o rato que respira em nós para termos alguma chance de nos tornarmos mais parecidos com um humano.

(Publicado no El País em 13/10/2014)

 

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