O doping dos pobres

Promover saúde não é sufocar a dor da vida com drogas legais

Parte da minha família tem origem rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.

Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão à lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu suportava com brios de filósofo estóico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “fulana sofre dos nervos”.

Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento e recusavam-se a juntar o marido bêbado na bodega do povoado. Rebelavam-se. Por culpa dos nervos.

Eu criava ouvidos de Dumbo – não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério dos ataques de nervos. Será que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã, perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram nervos e pronto. E não eram assunto de criança.

Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível. Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico não tratasse com alguma beberagem de cor estranha. Minha teoria pessoal é que não existia vírus ou bactéria ou até mesmo nervos capaz de suportar o cheiro daqueles troços. Mas o velho Chico morreu, não sei dizer se antes ou depois dos nervos. E agora tudo é tratado com comprimidos de cores variadas.

Quando comecei minha aventura de repórter, no final dos anos 80, ainda encontrava referência aos nervos por onde andasse, fosse em zonas rurais de norte a sul, fosse na periferia das grandes cidades. Com o tempo, especialmente a partir dos anos 90, as mesmas queixas começavam a ser embaladas em termos médicos. Nos últimos anos, tenho ficado embasbacada ao entrevistar gente analfabeta que fala em depressão como se fosse o nome de alguém da família. A terminologia médica invadiu a linguagem em todas as classes sociais e regiões – e se inscreveu na cultura.

Há algum tempo penso nos muitos significados dessa enorme mudança. Significa que as pessoas estão sendo mais bem tratadas e tendo acesso a medicamentos? Talvez. Mas não me parece que seja isso. Ou pelo menos apenas isso. Estou preocupada com o que tenho testemunhado pelas periferias do Brasil. Antes, quando batia na casa das pessoas mais humildes, os pais de família me apresentavam sua carteira de trabalho. Isso sempre me devastou, porque revelava a violência silenciosa que vitimava os mais pobres. Com o gesto, eles queriam provar que eram trabalhadores, gente de bem – e não vagabundos ou bandidos porque eram pobres. Eu tentava explicar que não era autoridade nem tinha direito algum de ver seus documentos. Mas o homem diante de mim, estendendo a carteira de trabalho, carregava na alma séculos de humilhação. Então, eu examinava e elogiava seu documento.

Hoje, quase não acontece mais. De uns tempos para cá, o que muita gente tem me mostrado são, adivinhem: “seus” medicamentos. Com um sentido diverso. Acreditam que, por ser jornalista, tenho um conhecimento que eles não têm, sou capaz de esclarecer suas dúvidas. Estou lá, sentada no único sofá ou na melhor cadeira da casa, quando acontece. Depois da prosa inicial, que no meu caso leva umas duas horas, já estamos todos bem à vontade. Então o pai ou a mãe ou a avó fazem sinal para a menina mais nova. E lá vem a criança carregando uma lata da cozinha. Deposita entre as minhas mãos, como uma hóstia. Olho e já sei o que vou encontrar: cartelas de comprimidos até a boca.

Querem saber se faz bem mesmo. Se posso explicar como devem tomar. Se acho que o guri que só apronta na escola deveria tomar também. Me arrepio. Examino o conteúdo. Procuro as bulas. Boa parte são antidepressivos e tranquilizantes. Pergunto quem toma e por que toma. O avô porque não dorme, a mãe e a avó porque estão deprimidas, o pai porque é nervoso e o filho porque é “muito agitado”. Com variações, claro. Mas em geral as deprimidas são as mulheres. Lembro que eram elas também as que mais sofriam dos nervos. Não que os homens não sofram, mas sinto que resistem mais antes de assumir publicamente que são “deprimidos”. Em geral eles não dormem ou são “nervosos”. Muitas vezes, os pais bebem álcool, os filhos são usuários de drogas.

Com delicadeza, explico que não sou médica, que precisam procurar o posto de saúde. Respondem que a próxima consulta é só daqui a três meses. Descubro então que trocam de medicamentos. Quando acham que o seu não está resolvendo, tentam o do outro. Consciente da minha ignorância, afirmo apenas o que posso afirmar: não tomem o medicamento que é do outro nem dêem para as crianças. Semanas atrás uma mulher me perguntou se podia dar um tranquilizante para a sua sobrinha, de 9 anos, que estava muito agitada. Eu disse que de jeito nenhum, “é muito forte”. Minutos depois, veio me contar com um sorriso. Tinha encontrado uma solução: “Dei só a metade”.

A medicalização da dor de existir não é nenhuma novidade. Antidepressivos e tranquilizantes estão disseminados em todas as classes sociais. Para boa parte das pessoas tomar uma pílula para conseguir “aguentar a pressão” é tão trivial quanto tomar um cafezinho. Mas penso que, se você é de classe média, tem mais acesso à informação, à terapia, a um tratamento mais competente. Tem mais acesso à escuta da sua dor.

É importante fazer a ressalva. Não sou contra antidepressivos e tranquilizantes. Nem tenho autoridade para ser. Acho que medicamentos têm sua hora e seu lugar. Mas não é preciso ser médico para saber que, em geral, seu uso deve ser temporário, monitorado e acompanhado por outros recursos. Como psicoterapia e análise, em muitos casos. Ou seja, devem ser usados com muita parcimônia, critério e acompanhamento. E não como se fossem pílulas de açúcar, que podem ser tomadas por todos a qualquer sinal de dor psíquica.

O que tenho visto é um doping social. Combate-se a maconha, o crack, até o cigarro, ótimo. Mas e as drogas médicas que estão pelos barracos e pelos palácios? São menos drogas porque dadas por um doutor?

Minha percepção é de quem anda bastante por aí. Por ser repórter, tenho o privilégio de entrar por várias portas, escutar a narrativa de muitas e diferentes vidas. Para escrever este texto conversei com psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que trabalham na rede pública de saúde. Queria ir além do meu testemunho. Seus relatos são mais assustadores que o meu.

“Basta chorar”, afirma uma psiquiatra muito conceituada. “Há poucos psiquiatras na rede pública, em qualquer parte do país. Em geral, as pessoas vão ao médico por algum outro motivo. Então choram. E o médico, seja qual for a sua especialidade, receita um antidepressivo ou um benzodiazepínico (tranquilizantes – ansiolíticos e hipnóticos). Meses depois a pessoa volta. E continua chorando. Aí ganha um mais forte. Ou ganha dois. E ela continua chorando. Mas tudo o que ouve é que é doente e tudo o que lhe dão são remédios. Só que ela continua chorando.”.

“As pessoas são levadas a acreditar que o remédio pode acabar com a sua dor, uma dor que tem causas muito concretas. Não resolve, claro. Um exemplo. Uma mulher tinha dois empregos, um de dia, outro de noite. O que ganhava não dava para pagar as contas. Os ônibus que pegava para chegar até esses empregos eram lotados. Ela vivia num barraco. Aí procurou o posto de saúde e lhe trataram com antidepressivos. Não adiantou. Deram-lhe outro medicamento. Nada. Um dia, sem nenhuma esperança ou recurso, ela tentou suicídio”, conta uma psicóloga. “A questão é que não há promoção de saúde, porque isso implicaria se preocupar com projeto de vida, com perspectiva de vida, com melhoria das condições de vida. O que há é medicalização da vida. Vemos o tempo todo gente que foi viciada em ansiolíticos nos postos de saúde.”.

“A gente vê um monte de gente sofrendo. E sofrendo muito. Mas o atendimento funciona assim: está chorando?, toma um antidepressivo; não dorme?, pega um benzodiazepínico. É uma supermedicalização sem critério. As pessoas estão tomando remédios como se fossem bolinhos”, afirma um psiquiatra. “Vivemos uma época de sedativo social. O médico não tem tempo de escutar, dá um remédio para que parem de chorar ou reclamar, e as pessoas vivem a fantasia de que são atendidas. Não funciona, claro. Elas continuam sofrendo. Então voltam e o procedimento se repete. E assim vai diminuindo a pressão social.”.

Vale a pena parar e refletir. Nossa época está produzindo gerações de anestesiados? A medicalização da dor psíquica é um fenômeno relativamente recente. Pelo menos nesta proporção, com essa enorme variedade de medicamentos disponíveis e muito mais sendo produzido em escala industrial e vendido em licitações para a rede pública em suas variadas instâncias. Cada comprimido de diazepam (benzodiazepínico), por exemplo, custa menos de um centavo para a rede pública. Bem mais barato, digamos, que uma sessão de psicoterapia.

Se pensarmos que a medicação da população com antidepressivos e tranquilizantes se acentuou a partir dos anos 90, que tipo de sociedade teremos daqui, digamos, uma ou duas décadas? O que acontece com as pessoas quando têm a sua dor de existir abafada, mascarada, calada a golpes de pílulas? Não sei. Mas acredito que são perguntas que devemos nos fazer. Nós todos, não apenas os governantes ou os profissionais da saúde. Estamos vivendo uma mudança cultural das mais profundas. E não me parece que estamos suficientemente atentos a suas causas, significados e implicações. Que tipo de mundo e de gente estamos criando quando a resposta para toda dor é uma pílula?

De novo, não sou contra o uso responsável de medicamentos. E me sinto bastante satisfeita por viver numa época em que é possível curar – ou pelo menos controlar – muitas doenças graças ao avanço da ciência. Mas não é disso que se trata. O que tenho testemunhado não é tratamento – mas doping. E do pior tipo, o legalizado, aquele que é travestido como promoção de saúde e promovido pelo Estado, sob a pressão da indústria farmacêutica. E, atenção: cada vez mais cedo. Em todas as classes sociais, as crianças começam a ser medicadas nos primeiros anos de vida, bastando para isso não ter um comportamento na escola considerado “normal”.

Na passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos. Desde criança, convivo com as muitas dores de existir. Como quase todo mundo. Às vezes “a vida dói como uma afta”. Mas nem sempre – talvez até raramente – seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são doença. Sentimos tristeza, melancolia, medos, lutos. Tanto pela perda de quem amamos como pela perda de amantes como pelas pequenas perdas de cada dia.

A dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que conseguimos transformar dor em criação. Elaboramos nossas muitas dores criando poesia, pintura, escultura, música, vestidos, bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência, histórias. Cada um a sua maneira. Se em vez de elaborar a dor e transformá-la em expressão, tomamos comprimidos que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos fazendo conosco e com o nosso mundo?

Se você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é humilhado pelo seu chefe, mora num barraco e não tem dinheiro para pagar as contas, você está deprimido porque não tem mais forças para suportar esse cotidiano ou está doente porque não consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para saber que ninguém pode estar bem em condições de vida como essas. Sua alternativa não é se entupir de tarja-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma vida melhor, pressionar o poder público, criar uma associação comunitária para exigir seus direitos, construir um projeto de vida com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se tornar possível.

Ser ativo e ser parte é ter saúde. Não há nada mais doentio e aniquilador do que o sentimento de impotência. E, quando a questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e transformadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. Por isso, fico muito preocupada quando entro nas casas e os moradores me mostram suas pílulas.

Tenho o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do Brasil. Em especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. Das mais diversas regiões da Grande São Paulo, toda noite de quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o criador da Cooperifa, pode passar horas contando sobre gente que chegou lá aniquilada, com a espinha quebrada, a vida por um triz. E, ao ser escutada, sentir-se parte, transformou a sua vida. Gostaria que alguém fizesse uma pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a saraus de poesia, rodas de samba, posses de hip-hop, oficinas de arte, associações comunitárias e a população que não pertence a nada, nem a si mesma.

Penso que o conceito de saúde – e de saúde mental – não existe se não abarcar projeto de vida.

O primeiro texto que escrevi, aos 9 anos, foi inspirado pela abissal melancolia de um domingo de manhã em que eu estava sozinha enquanto todos em casa dormiam. Era escrever ou a melancolia me engolir. Aos 11 anos, eu já tinha um livro de poesias. Todas elas elaboravam momentos diversos da minha dor de existir. Para mim, a escrita foi a maneira que encontrei de elaborar a minha angústia, “os meus nervos”. Acabei fazendo disso um projeto de vida.

Já vivi muitos momentos duros, inúmeros traumas. Posso afirmar, sem exagero, que fui vítima da maioria dos artigos do Código Penal, com exceção de assassinato. Estive algumas vezes à beira do precipício. E por duas vezes na minha vida precisei de medicamentos. Tive a sorte de encontrar profissionais competentes, humanistas, que acreditavam no que faziam, no que eram. O uso de medicamentos foi pontual, parcimonioso, controlado e com tempo para acabar. Sempre acompanhado por sessões de psicanálise. Superei cada um deles não me anestesiando, mas elaborando a dor. E criando furiosamente.

Tudo o que vivi uso para escrever. E tudo o que vivi me ensinou a escutar. Quando entro na casa das pessoas como repórter e elas me mostram seus medicamentos, o que esperam de mim é que as escute. E é o que talvez eu faça de melhor. Fico horas em suas casas, apenas ouvindo. Escutando de verdade. A narrativa da vida é um reconhecimento da vida. A escuta da dor é um reconhecimento da dor. Se alguém que sofre procura um médico e, em vez de escutá-lo, ele o entope de comprimidos, o que aconteceu ali não é promoção de saúde, é promoção de doença. E o médico que se sujeita a isso pode estar tão doente quando aquele que o procura. O sistema de saúde não pode funcionar como um reprodutor de impotências. Uma linha de produção de impotências, que em vez de apertar parafusos, coloca bolinhas na boca. Como sabemos por pesquisas, é significativo o número de médicos que não apenas dopa, mas também se dopa.

Promover saúde é promover vida. E a vida começa pela escuta da vida. É o que faço como contadora de histórias reais. Mas quando as pessoas me mostram uma lata de comprimidos, que todos tomam, da criança mais nova ao avô, não é de mim que elas precisam. Para não me sentir impotente, escrevo este texto. Na esperança de que alguém me escute.

(Publicado na Revista Época em 31/08/2009)

À espera do assassino

Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala

ELIANE BRUM E SOLANGE AZEVEDO (TEXTO)
MAURILO CLARETO (FOTOS)

Revista Época, 25/11/2005 – 11:39 | EDIÇÃO Nº 393

MARCADA PARA MORRER
Maria de Fátima da Silva Nunes, a Santa, de Castelo de Sonhos, Pará, conta como é viver na mira de pistoleiros

‘Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que diz que sabe como é viver jurado de morte. Mas não sabe.  Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo que é para não andar mais porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada. É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando a máfia de Castelo de Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida.’

Os que estão enterrados no cemitério de Castelo de Sonhos acreditaram que o nome do vilarejo era um sinal de boa sorte. Os que ainda estão vivos continuaram no lugar porque não têm como voltar ou porque já foram longe demais. Na beira da BR-163, Castelo de Sonhos é uma empoeirada fotografia 3X4 do Pará, o Estado campeão em conflitos de terra, assassinatos no campo e trabalhadores escravizados. O cemitério resume a geopolítica da região, na divisão desigual entre vítimas e pistoleiros. Não há mandante sepultado. Mortes naturais são uma raridade. Passar dos 50 anos é hora extra. Em Castelo de Sonhos assiste-se em tempo presente à repetição da brutal colonização do Brasil, retrato de um país que vive vários tempos históricos simultâneos. Os brasileiros que acompanham o faroeste como folclore de um mundo distante equivocam-se. É o destino da Amazônia que se decide do modo mais arcaico no Pará. A tiros.

Santa – ou Maria de Fátima da Silva Nunes – pode ser a próxima inquilina de uma das sepulturas abertas pelo coveiro para adiantar o serviço. Ela tornou-se a maior liderança popular de Castelo de Sonhos desde que seu irmão, Brasília – ou Bartolomeu Morais da Silva -, foi executado a tiros por um consórcio de grileiros em 21 de julho de 2002. Brasília é dono do túmulo mais visitado do cemitério. E Santa, a candidata mais habilitada a lhe fazer companhia, porque conseguiu botar um mandante e dois pistoleiros na cadeia por força de sua própria investigação: o fazendeiro Manoel Alexandre Trevisan, o Maneca, e os matadores Márcio Antonio Sartor, o Márcio Cascavel, e Juvenal Oliveira da Rocha, o Parazinho. Foi a primeira vez na história do Pará que um latifundiário foi punido por ter ordenado a morte de um trabalhador. A inversão da lógica deu esperança a quem não tinha nenhuma.

O nome de Santa está ao lado de outros 50 líderes marcados para morrer no relatório ‘Violação dos Direitos Humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense’, preparado pelas ONGs Justiça Global, Terra de Direitos e Comissão Pastoral da Terra. O dossiê será lançado nesta segunda-feira em Brasília e entregue à representante especial da ONU que desembarca ä no Brasil em dezembro para investigar a situação dos ameaçados. Nele, constam 772 execuções de trabalhadores nos últimos 33 anos – e apenas três julgamentos. O braço curto da Justiça para alcançar os poderosos, porém, revela-se longo no caso dos pobres: nos últimos dez anos foram presos 607 camponeses.

Os números dão a dimensão da façanha de Santa. A História mostra que ela pode pagar a ousadia com a vida, como aconteceu com a freira Dorothy Stang em fevereiro. Aos 48 anos, Santa sabe disso. Pouco vê os dois filhos, protegidos em uma cidade distante, vive na casa de um e de outro conhecido, quando as ameaças aumentam foge da cidade no porta-malas de um carro ou a pé, disfarçada de velha, mendiga ou aleijada. Mais de um amigo foi executado por tê-la ajudado, como o barqueiro Papamel, que a tirou de um sítio onde pistoleiros planejavam matá-la escondendo-a debaixo da lona preta do barco. Foi morto a tiros dias depois.

Em Castelo de Sonhos, Santa vive acordada, dia após dia, seu pesadelo. O lugarejo é uma vertigem amazônica. A meia dúzia de ruas envoltas em nuvens de poeira pertencem ao município de Altamira. Entre o distrito e a sede há 1.100 quilômetros, distância equivalente à que separa São Paulo de Porto Alegre. Maior município do mundo, Altamira tem o tamanho da Bélgica e da Grécia juntas, seu território é superior ao de 12 Estados brasileiros. Como acontece com toda terra jovem, quem chega a Castelo quer deixar o passado para trás e construir outra identidade. Assim, o lugar tem poucos sobrenomes e muitos apelidos. São esses os mais numerosos no cemitério, sem cruz, sem nome, sem família para cobrar a morte. Conhecido pelo nome completo, apenas ä quem já cercou seu latifúndio e com ele assegurou lugar fixo no novo mundo.

O fundador de Castelo, Leo Reck, é um dos que usam nome e sobrenome. Mas quando alcançou a floresta virgem nos anos 70 era chamado de Onça Branca. Nas terras que cercou, os garimpeiros Gaguinho e Paraibinha descobriram ouro. Batizaram o lugar com o nome da música que não se cansavam de escutar no LP do compositor Walter Basso. ‘No meu castelo de sonhos você é a rainha…’ Foram os primeiros a acreditar que Castelo de Sonhos era sinal de bom augúrio. Desapareceram sem enriquecer nem deixar rastro.

Ouro foi o primeiro ciclo de Castelo de Sonhos. Depois, a madeira e o gado. A soja se avizinha por Mato Grosso, segue a estrada Cuiabá-Santarém, que o presidente Lula prometeu asfaltar. É a seqüência amazônica. Sob a sanha do ouro Castelo viveu seu batismo de sangue: a guerra entre Onça Branca e Márcio Martins da Costa, o Rambo do Pará. Ele conquistou fama e apelido depois de Reck tê-lo arrastado algemado pela via principal do lugarejo, uma rua à qual o fundador deu o nome de Santo Antônio. Partiu como Márcio, voltou como Rambo. Dominou a região à bala no final dos anos 80, no topo de um império de ouro e drogas com ligações na política paraense. Em 1992 foi morto a tiros pela Polícia Militar. Castelo de Sonhos tinha sido semeada com mais de 300 cadáveres.

Um consórcio de fazendeiros conhecido como ‘a Máfia de Castelo’assumiu o poder depois da morte de Rambo. Brasília desafiou sua autoridade ao reivindicar ao governo federal um assentamento para os garimpeiros quando o ouro escasseou. Toda terra em Castelo de Sonhos é pública. Faz parte dos 30 milhões de hectares grilados no Pará, uma área equivalente a quase dez Bélgicas. A média de cada propriedade, conforme o dossiê das organizações de Direitos Humanos, é de 88.000 hectares – o tamanho de Belo Horizonte, Fortaleza e Recife somados. A maioria é mantida – e expandida – por milícias formadas pelos guaxebas, nome dado aos pistoleiros. Eles não ganham por execução, mas por mês, como um funcionário assalariado: em torno de R$ 1.000 para os peões e até R$ 5 mil para o chefe. ‘Tanto faz matar ou não matar. É um valor fixo por mês. Só ganho por cabeça quando faço particular’, conta um deles (leia a entrevista na pág. 102).

Quando o consórcio de grileiros decidiu executar Brasília, enfrentou um problema: ele era popular também entre a pistolagem. O líder tinha carisma, apartava brigas entre marido e mulher, cuidava de doentes. Sua arma era uma caneta acomodada na orelha pronta para ser sacada diante de uma denúncia. O ‘serviço’ foi encomendado a pelo menos três pistoleiros – e recusado. Quando ele foi assassinado, a população venceu o medo e impediu a polícia local de aproximar-se do corpo até a chegada do legista de Belém. Os fazendeiros criaram o primeiro mártir de Castelo.

Mirar nos líderes para eliminar a resistência gerou um fenômeno novo: o aumento de mulheres na lista dos ameaçados de morte. Elas assumem o lugar de maridos, irmãos e filhos executados. Foi assim com Santa. Viúva, ela sobrevivia fazendo salgados para lanchonetes. O povo de Castelo assistiu à pacata salgadeira anunciar aos grileiros na missa de sétimo dia do irmão que viveria para botá-los atrás das grades. ‘Às vezes estou arrebentada por dentro, mas rio e falo alto para não pensarem que tenho medo’, diz. O último recado foi de que lhe cortariam a língua.

Santa só conseguiu instalar os matadores atrás das grades porque teve uma colaboração insólita: a dos pistoleiros do lugar. ‘Devia um favor para o seu irmão, então vou lhe ajudar’, anunciou Tim Maia, um dos mais temidos. Até ser eliminado, em dezembro de 2003, foi o
que fez. Salvou-a várias vezes da morte. Numa delas, Santa foi colocada disfarçada dentro de um ônibus, uma velha doente com sua bengala. Tim Maia avisou que um dos pistoleiros tinha um cavalo na fivela do cinto e o outro um touro. Eles entraram na primeira parada, com a desculpa de procurar uma parente. Passaram por Santa e não a reconheceram. ‘Senti um gelo dentro do coração’, conta ela. Dias antes de ser executado, Tim Maia fez bravata: ‘Matei 150. Já posso morrer feliz’.

Um a um os pistoleiros foram tombando em Castelo de Sonhos. No fim de outubro sumiu mais um. João Moreira, o Carioca, desapareceu com sua moto quando foi verificar uma grota de ouro. ‘É, sumiu. Outro mistério’, comenta Leo Reck. ‘Se sumiu, outros vão poder viver.’ A polícia não tem pistas. Somente neste ano desembarcou o primeiro delegado no distrito. Dias atrás, José Conceição Corrêa já fazia as malas. Sua passagem por lá foi quase um período de férias. Em cinco meses não fez nenhum inquérito. Ele explica: ‘Castelo de Sonhos é um lugar ordeiro, calmo e tranqüilo’.

Matador assalariado

Pistoleiro conta como, para quem e por que matou 16 pessoas em Castelo de Sonhos e em Mato Grosso. Hoje ele é caçado por matadores de fora da região para não abrir a boca

VÍTIMAS O pistoleiro confessou ter matado os dois trabalhadores abaixo

VÍTIMAS O pistoleiro
confessou ter matado os dois
trabalhadores abaixo

Os fazendeiros citados pelo matador de aluguel em entrevista gravada coincidem com os denunciados no relatório ‘Violação de Direitos Humanos no Pará’ como mandantes de crimes. Seus nomes também constam em inquérito policial como membros do consórcio que ordenou a execução de Bartolomeu Dias Morais, o Brasília. Um deles, Fiorindo Minosso, disse a ÉPOCA que ‘é tudo mentira, isso não tem pé nem cabeça’. Confira:

ÉPOCA – Como começou a matar?
Pistoleiro – Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba nas fazendas.

ÉPOCA – O que é guaxeba?
Pistoleiro – É a polícia dos fazendeiros.

ÉPOCA – Para quais fazendeiros trabalhou?
Pistoleiro – Trabalhei na fazenda Tigre (hoje em processo de desocupação pelo Incra). E também para o Maneca (preso como mandante da morte de Brasília) e para o Fiorindo Minosso. O resto foi particular.

ÉPOCA – Como é particular?
Pistoleiro – 50 gramas de ouro por cabeça.

ÉPOCA – Os fazendeiros pagam por morte?
Pistoleiro – Por mês. Uma humilhação. Me pagavam R$ 800.

ÉPOCA – Como é que funciona?
Pistoleiro – O fazendeiro passa a ordem pro chefe dos guaxebas e ele passa pra gente. A gente fica de olho para não invadirem as terras. Se aparecer na picada, é pra atirar e esconder o corpo. A gente pede aumento mas eles não dão. É só aquele valor no fim do mês, tanto faz matar como não matar.

ÉPOCA – E o que você fez com os corpos?
Pistoleiro – Eu carregava pro mato e enterrava. Quando tinha rio grande jogava dentro. Em Matupá (MT) enterrei um atrás do cemitério. Outros joguei debaixo da ponte do Rio Peixoto. Enterrei uns pra frente da sede do Panquinha, em Castelo, mas esses a Polícia Federal já achou. Numa estradinha que vai pra fazenda de um rapaz por nome Toninho tem mais quatro corpos no mato de umas pessoas que queriam a terra do Maneca. Os dois do Minosso foi o chefe dos guaxebas dele, Hamilton, que consumiu. Não sei onde tão.

ÉPOCA – E os da Tigre?
Pistoleiro – Eles tavam no movimento dos sem-terra. Foi o seu Antonio e um outro que tinha apelido Rabo de Couro. Gostava de usar aqueles chapeuzinhos porque veio do Ceará. Mas esse foi por acaso. A espingarda tava destravada e quando eu pulei da caminhonete disparou. Era só para tirar ele de lá, mas o chumbo pegou na garganta.

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

ÉPOCA – Quantos trabalhadores você matou porque queriam fazer acerto?
Pistoleiro – Quatro.

ÉPOCA – O que sentia quando matava?
Pistoleiro – Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu lembro até hoje.

ÉPOCA – Você fazia alguma marca?
Pistoleiro – Só virava de peito pra cima e pulava duas vezes o corpo antes de ir embora. Superstição da gente pra não ser pego.

ÉPOCA – Já foi pego?
Pistoleiro – Graças a Deus só uma vez. Fui condenado a 16 anos, mas vendi tudo o que eu tinha, paguei R$ 72 mil pro advogado e pro juiz e saí. Estou na condicional.

ÉPOCA – Os pistoleiros de Castelo estão sendo eliminados. O que você vai fazer?
Pistoleiro – Vou embora, mas não posso falar nem onde nem quando. Minha história por aqui acaba. Não sei se tem continuação.

RETRATO DE UM FUNDADOR
Quem é o homem que construiu uma cidade na Amazônia

LILO EPOCA2Aos 70 anos, Leo Reck (foto), o fundador de Castelo de Sonhos, vive hoje a segunda fase da colonização do lugarejo aonde chegou em 1975. A convite, como diz, do governo militar, que o exortou a ‘integrar para não entregar’. Leo Reck precisa limpar a biografia para que no futuro, quando o distrito virar cidade, possa ter um busto na praça e uma história bonita para as crianças recitarem na escola em dias cívicos. A guerra entre Onça Branca, como era conhecido, e Rambo do Pará ficou para trás. ‘Cansei de recolher os corpos que Rambo deixava para enterrar. Larguei para os urubus’, conta. ‘Eu nunca matei ninguém e posso andar de cabeça erguida.’

Conversar com ele é como testemunhar a construção de um herói da pátria em tempo real. ‘Quando chegou o título provisório do Incra, descobri que me deram 180 hectares. Terra desse tamanho eu conseguia no Sul’, explica.’Fiquei com tanta raiva que resolvi fazer uma cidade.’ E assim o velho Leo fez um traçado e vendeu terrenos a R$ 10 mil.Castelo de Sonhos, portanto, é uma cidade planejada. E só não é mais progressista, segundo ele, por causa do presidente Lula e da ministra Marina Silva, ‘que embargaram a Amazônia’. Refere-se à suspensão temporária da licença para corte de árvores na região da BR-163. ‘Não é porque morre algum aqui que atrapalha alguém. É aquele presidente comunista que atrapalha a gente’, destempera-se. ‘Seria bom demais se o governo não se metesse em Castelo de Sonhos.’

Leo Reck sente-se desrespeitado pela Polícia Federal, que passou a circular na Amazônia depois da execução da Irmã Dorothy Stang. Está habituado a outro tipo de lei: ‘Polícia aqui é o dinheiro. Se compra soldado por R$ 200, tenente um pouco mais. Uma morte aqui custa R$ 500’. Não se conforma: ‘Agora nos chamam de grileiros. Mas eu sou é desbravador. Tenho coragem agora, com a idade que tô, de ir lá para as bandas do Rio Negro, pegar uma motossera e plantar uma roça’. Depois de explicar que nos velhos tempos jornalistas viravam comida de urubu ou eram atiradas de aviões com as mãos amarradas, Leo Reck irrita-se com o gravador: ‘Desliga essa porra!’.

LEI TRABALHISTA
Paraguai insistiu demais para receber o pagamento
O atestado de óbito de Félix Gonçalves é uma ironia que ilustra a lei trabalhista em Castelo de Sonhos – e na Amazônia. Causa mortis: ‘Acidente de trabalho’. Apesar de a árvore que o matou ter conseguido decepar o tampo de sua cabeça com o exato formato de um golpe de facão, não deixa de fazer sentido. É costume na região esse tipo de acidente profissional. Quando o trabalhador insiste para ‘fazer acerto’, ou seja, receber o combinado, costuma morrer por justa causa. Conforme a viúva, Florentina Gonçalves, Paraguai exigiu o pagamento de uma ponte que fez para a subprefeitura de Castelo. ‘O Leo Reck botou um pistoleiro ao lado do caixão e pressionou tanto para enterrar rápido que não deu tempo de todas as filhas se despedirem do pai’, conta.

BEM-VINDO A CASTELO DE SONHOS
Como a família Branger descobriu o Brasil da pistolagem

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Eles não tinham nenhuma ideia sobre como as coisas funcionavam. A chegada da família Branger (foto) a Castelo de Sonhos foi um encontro entre dois mundos. ‘Quando meu marido falou o nome, Castelo de Sonhos, eu me encantei’, conta Maria Palmira Branger, a Preta. ‘Todo mundo tem um sonho. O do meu marido era uma fazenda. Meus filhos precisavam de espaço. Pensamos que era um lugar que estava começando e precisava de gente com estudo.’ Deixaram Florianópolis em agosto de 2003 seguindo o conselho de um cunhado que vivia em Mato Grosso. Zulmar Branger deixava lotes de terra onde plantava cebola e alho, Preta fechou as portas de uma confecção e os filhos trancaram a universidade. Partiam para a conquista tardia da Amazônia.

Quando o asfalto da Cuiabá-Santarém acabou, na divisa de Mato Grosso com o Pará, Preta começou a chorar. ‘Era só mato. Eu não queria nem deixar o caminhão de mudanças descarregar’, lembra. Mas deixou. Nunca mais esqueceria desse momento-limite. Um ano depois, em 8 de agosto de 2004, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de Arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo de Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Emerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado o galã do faroeste.

A mãe pedia ajuda da Polícia Militar desde o dia anterior. ‘Primeiro o tenente falou que tinha de esperar 24 horas. Depois que precisavam fazer a segurança do rodeio. Na madrugada do domingo, disse que necessitavam dormir, mais tarde que tinham de cuidar da cavalgada. Comecei a gritar. Só depois descobri que ele levou R$ 40 mil para não fazer nada enquanto meu filho era torturado e morto’, conta Preta. ‘A polícia eliminou os vestígios. Tinha carne debaixo das unhas dele, porque lutou. Não sobrou nada para identificar. Encontramos as roupas queimando no lixão.’

Emerson Minosso tentou entrar no velório, mas foi escorraçado. Mostrou a arma. Ainda desfilou em Castelo de Sonhos por mais três dias. Quando teve a prisão preventiva decretada, já estava longe. Seu pai, Fiorindo Minosso, diz que é tudo mentira.

Várias versões circulam em Castelo de Sonhos para explicar o crime. Em uma delas, Emerson teve ciúme porque sua ex-namorada se interessou pela vítima. Em outra, a morte seria uma estratégia para que a família vendesse a terra por preço baixo e voltasse para onde veio. Nos dias posteriores os Brangers encontraram pistoleiros patrulhando a divisa entre as fazendas. ‘Fui aprender o que significava cada morte aqui’, conta Preta. ‘Me explicaram que quando jogam na estrada é para calar a boca porque estão agindo.’

Quando sepultava o filho, um matador sussurrou no ouvido de Zulmar: ‘Você quer que eu faça o serviço?’. Outros dois fizeram a mesma proposta. Ele recusou. Velou o filho no Dia dos Pais. ‘O corretor falou que era um lugar calmo, seguro. Quando chegamos, nos primeiros 60 dias houve 40 mortes. No Brasil não tem pena de morte, mas aqui tem’, conta o pai. ‘Pensava que só matavam peão rodado e pistoleiro. Achei que não matassem gente de bem’, diz a mãe. ‘Vi gente degolada boiando no rio. Vi um pai ser morto na frente do filho de 4 anos no bar. Vi uma bala atravessar o corpo de uma pessoa e atingir o de outra numa festa. Vi um corpo entupir uma bomba de sucção. Tinha pedras no lugar das vísceras’, relata Calebe, o irmão. ‘O que nunca vi neste lugar foi briga a socos.’

O que Cledson viu está sepultado com ele no cemitério de Castelo de Sonhos. A família Branger decidiu ficar. ‘Consegui uma fazenda’, explica o pai. ‘Ganho muito dinheiro aqui’, afirma o irmão. ‘Nós éramos patinhos. Não entendíamos nada. Agora, aquela coisa boazinha que tinha em mim acabou’, diz a mãe. Dias atrás ela viu Fiorindo Minosso na rua. Gritou: ‘Seu desgraçado. Como tem coragem de olhar para mim?’. Castelo de Sonhos é um lugar pequeno. Meia dúzia de ruas desoladas. A família Branger aprendeu que nelas há dois tipos de pessoas: vítimas e assassinos.

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