Notas sobre os protestos

As bombas de gás e de efeito “moral” usadas em parte das narrativas das manifestações têm causado a “dispersão” do conteúdo
Policial dispara contra manifestantes em São Paulo, no dia 16 NACHO DOCE REUTERS

Policial dispara contra manifestantes em São Paulo, no dia 16 – NACHO DOCE / REUTERS (El País)

De um lado, a polícia. De outro, os Black Blocs. E então o “confronto”, a “dispersão” e o fim do protesto. Entre um e outro, manifestantes pacíficos atingidos pelos “excessos” da polícia provocada a reagir. Essa narrativa dos dois primeiros atos de 2015 contra o aumento da tarifa do transporte público (ônibus, trem e metrô), em São Paulo, contém o risco da repetição e do espetáculo. Reduzidos a um balé perverso, os atos podem esvaziar-se de potência. A banalização do roteiro, como se fosse apenas uma reencenação menor de 2013, mas sem a sua novidade, encobre aquilo que o move, a violência de fundo sofrida por milhões a cada dia num transporte caro e incompatível com a dignidade humana. A opção histórica pelo transporte individual e privado em detrimento do coletivo e público. A vida de gado, transcorrida em horas brutas. Essa é a denúncia explosiva, transgressora, que continua tão atual quanto sempre e tem sido obscurecida. O risco de reduzir os atos ao “confronto” é de, mais uma vez, deixar de escutar o tanto que está sendo dito, inclusive pela violência dos policiais e a dos Black Blocs, mais parecidos do que gostariam.

A verdade, como sabemos, é um bicho difícil de alcançar, nunca está num lugar só e se move. Não é singular, como no início da frase anterior, mas plural. Também neste sentido, os atos contra a tarifa do transporte exigem a máxima atenção. Pode haver tantas armadilhas, bombas de efeito “moral” e artefatos para “dispersar” nas narrativas sobre as manifestações quanto nas ruas. Só algo com muita potência provoca tanto conflito também – e talvez especialmente – no campo minado do discurso, o espaço onde se disputa como a história vai ser contada. E que influencia diretamente o que vai acontecer nas ruas no próximo capítulo. Ou na próxima manifestação.

A diferença dos números é reveladora justamente pela sua imprecisão. Não há sequer uma remota proximidade entre o cálculo de manifestantes apresentado pela Polícia Militar e pelo Movimento Passe Livre, que organiza os atos. Na primeira manifestação (9/1), a PM disse que havia 5 mil pessoas, o MPL falou em 30 mil. Na segunda (16/1), a PM calculou em 3 mil, o MPL em 20 mil. É provável que a verdade dos números esteja em algum lugar entre os extremos, mas nada indica que seja necessariamente no meio. Ainda que não seja incomum nesse tipo de acontecimento, a disputa dos números fala da importância do que se desenrola nas ruas. Se as manifestações de 2015 ganharem um lugar na História, ninguém saberá qual era a adesão no seu princípio.

Os números apontam para a evidência de que, entre o primeiro e o segundo ato, diminuiu a adesão, já que este é o dado convergente nas versões de um e de outro. A redução do número de participantes reforçaria a hipótese de que a ação da PM, ao usar a violência contra todos os manifestantes e até contra quem apenas está passando pela rua, possa estar funcionando: com medo das bombas de gás e das balas de borracha, uma parte dos manifestantes do primeiro ato não teria voltado para o segundo. Neste caso, a PM não cometeria “excessos” por despreparo – ou apenas por despreparo –, como já foi dito, mas como estratégia para esvaziar as manifestações. A meta seria impedir o exercício de um direito constitucional como forma de anular o potencial transgressor da reivindicação.

Esse roteiro expõe a tolerância da sociedade com a violência cometida pela polícia. Do contrário, como se explicaria que, num regime democrático, a violência da PM contra cidadãos exercendo a sua cidadania seja possível e se repita com tão pouca resistência do conjunto da população? Qual é a quantidade de violência necessária para fazer com que as pessoas deixem o conforto de suas casas para ir para as ruas em massa, como aconteceu em 2013, em reação à repressão? Haveria uma administração da violência, para que não passe do “tolerável” para a classe média?

Em 2013 costumava se dizer que a classe média e o centro conheceram nas manifestações a polícia que vai para as periferias, onde a violência das forças de segurança do Estado sempre foi tolerada, quando não estimulada. A julgar pelos dois primeiros atos de 2015, o uso da força pela polícia, contra manifestantes indefesos, que deveria causar espanto e revolta numa democracia, é mais um dado a mostrar que a violência vai se naturalizando também nesses espaços, como parte de um espetáculo que se assiste com alguma dose de tédio. Nessa naturalização, não há inocentes e cada um sabe a parte que lhe cabe. Está faltando mais gente que se espante com a falta de espanto em todos os setores – e também na imprensa.

A narrativa hegemônica das manifestações usa as palavras “confronto”, “dispersar”, “vândalos”. São palavras encobridoras, usadas para ocultar e não para revelar. Lembram os termos usados para disfarçar a gravíssima crise da água. Neste caso, o governo de Geraldo Alckmin já abusou de expressões como “estresse hídrico” e “restrição hídrica”, esta última para não usar a palavra “racionamento”. A crise da água, para além da incompetência do governo do PSDB, demonstrada na falta de planejamento e de medidas de prevenção, é uma crise socioambiental intimamente relacionada às mudanças climáticas. Mas poucos se lembram disso, porque se lembrar disso significaria ter de tomar medidas muito mais profundas, com reflexos diretos nos interesses do Capital. A tarifa do transporte e a água, os dois temas do momento em São Paulo, tem ainda essa convergência: em seu cerne, ambas exigem uma mudança estrutural. Uma na forma de tratar o ato de ir e vir das pessoas numa cidade – e quem paga por isso e quem lucra com isso. A outra na forma de tratar o planeta e explorar seus recursos naturais – e quem paga por isso e quem lucra com isso, já sabendo que no fim pagaremos todos, como já estamos pagando.

Para encobrir este, que é o conteúdo realmente explosivo, escolhe-se tratá-los apenas na superficialidade, estimulando o senso comum a formular frases como: “Esse povo não tem o que fazer ao ficar brigando por 50 centavos”, no caso da tarifa; ou “Tá faltando água porque choveu pouco. É só São Pedro colaborar que o problema tá resolvido”, no caso da água. É importante que se analise o que acontece nas ruas mostrando aqueles que não estão lá, mas que atuam atrás de paredes, algumas delas de prédios públicos. Assim como é importante que se veja o que está sendo dito para alcançar o que não está sendo dito, e que possivelmente seja o mais importante.

“Dispersar”, verbo amplamente utilizado na narrativa das manifestações, não expressa algo tão inofensivo e legítimo como se quer convencer a opinião pública. Há regras para isso, e elas não estão sendo cumpridas. Não é preciso ser um especialista para saber que não se pode encurralar manifestantes e jogar neles bombas de gás e de efeito moral, assim como balas de borracha, sem incorrer em várias violações legais, entre elas a de impedir o exercício democrático de manifestação. Assim como não é preciso ser jornalista para saber que chamar de “dispersão” o que é violência contraria as regras do bom jornalismo e violenta os direitos dos leitores de serem bem informados.

Também vale a pena perguntar que “confronto” é este entre cidadãos desarmados e as forças de segurança do Estado, a serviço do governo. E como e por que isso tem sido torcido para “confronto”. Já a palavra “vândalo” tem sido usada desde 2013, como também os outros termos aqui mencionados, para justificar a violência e borrar as nuances, transformando todos os manifestantes em “vândalos” ou em protetor de “vândalos”. Por que, então, uma parte da imprensa produz e reproduz esse discurso, como se estivéssemos ainda numa ditadura e sob censura, em vez de estar exercendo o espanto e o questionamento da ação da polícia, com base na lei e nas normas? São perguntas importantes, que merecem toda a nossa atenção se quisermos de fato construir uma democracia sólida.

Nessas primeiras manifestações de 2015, parece já existir uma narrativa vencendo a disputa no campo do senso comum, como aconteceu em protestos dos anos anteriores. As manifestações seriam interrompidas por culpa dos adeptos da tática Black Bloc. Não fosse a violência desse grupo composto por não mais do que algumas dezenas de jovens mascarados, a polícia não precisaria exercer a sua força contra os milhares de manifestantes pacíficos. O Movimento Passe Livre, por sua vez, seria o responsável por permitir que os Black Block participem da manifestação, porque se beneficiariam da sua ação para chamar a atenção para o protesto. A responsabilidade pela violência nas manifestações, em vez de ser atribuída à PM, está sendo deslocada para o MPL. Nessa versão, ignora-se vários fatos. Entre eles, a enorme assimetria de forças entre a polícia e os jovens mascarados, assim como a premissa básica de que a PM – o Estado – precisam agir dentro da lei.

Uma parte dos manifestantes parece desejar que os Black Blocs desapareçam dos protestos, porque eles estariam expulsando as pessoas das ruas. Neste sentido, fariam o jogo do governador Geraldo Alckmin (PSDB) e do prefeito Fernando Haddad (PT), ao serem usados para esvaziar os atos, como está sendo dito desde 2013. Esta é possivelmente uma parte da verdade, mas não toda. Há aqui um desafio maior, um realmente difícil, que vale para quem está nas ruas e para quem não está: mesmo discordando dos métodos, ser capaz de compreender a tática Black Bloc como uma manifestação e, principalmente, ser capaz de escutá-la. Ao não escutarmos, nos tornamos reprodutores da violência que acusamos no outro. E permanecemos no lugar das certezas congeladas, uma posição bem ruim para entender alguma coisa.

Quando se olha para os Black Blocs reduzindo-os a jovens violentos, a “vândalos”, como se essa fosse toda a verdade sobre eles, apaga-se a possibilidade de escutá-los. Há também um apagamento deles como pessoas. Um dos discursos mais frequentes dos jovens mascarados é de que sua violência, que para eles seria uma “performance”, denuncia a violência que os mais pobres sofrem no cotidiano das periferias. Sofrem nas mãos da polícia, lá onde as balas não são de borracha, a polícia apontada como o único Estado que se faz presente, mas pela opressão. E sofrem pela ausência do Estado, na forma de educação de má qualidade, saúde de má qualidade, transporte de má qualidade, condições de vida de má qualidade. A esta violência responderiam violentando não pessoas, mas símbolos do capitalismo, como bancos, como forma de chamar a atenção do centro para o que acontece nas margens. Usariam a violência para dar visibilidade a esta violência já naturalizada contra os pobres. E, entre as perguntas que fazem, está a de por que a violência menor que eles cometem chama muito mais atenção do que aquela que seria a violência maior, que tritura a vida de milhões física e simbolicamente dia após dia.

Perder a dimensão política do que estão denunciando os Black Blocs, reduzindo-os a jovens ora manipulados pelo Estado, ora a “bandidos”, é perder muito. Porque eles dizem algo legítimo, e é preciso escutá-los, ainda que se discorde da sua forma de atuação – e eu discordo. Na semana passada, o repórter André Caramante mostrou que a PM paulista matou 816 pessoas entre janeiro e novembro de 2014. É a maior letalidade dos últimos 10 anos. Já os crimes, segundo o repórter, mantiveram-se no mesmo patamar estatístico. Este aumento das mortes cometidas por policiais, em especial nas periferias, onde muitos dos Black Blocs vivem, é uma das denúncias que fazem. Se acreditam que a única forma de serem ouvidos é atirando pedras na polícia, queimando lixo e depredando agências bancárias, isso não diz só deles, mas de toda a sociedade. Para quem se dispõe a complicar suas dúvidas ou diminuir suas certezas, sugiro a leitura de Mascarados – a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc (Geração Editorial), de Esther Solano, Bruno Paes Manso e Willian Novaes. A parte da socióloga Esther Solano, que acompanhou os Black Blocs por vários meses, é especialmente rica.

Tão importante quanto escutar os jovens mascarados é escutar os policiais. Se nas ruas esses homens e mulheres, alguns deles fantasiados de Robocop, representam as forças de segurança do Estado, não é possível ignorar que são mal pagos e mal preparados, muitos deles sofrendo os mesmos problemas denunciados nos protestos. Se a desmilitarização da polícia é um debate que precisa ser enfrentado, com sua lógica de guerra, que pressupõe não um cidadão, mas um inimigo, esta não é nem a única explicação, muito menos a única solução. São os policiais militares que arriscam a sua vida nas ruas para defender uma parte da sociedade, e isso é bastante claro, da outra parte, que sofre a violência cotidiana dos péssimos serviços públicos, de uma precariedade que a impede também de mudar sua posição nesta mesma sociedade, como acontece no caso da educação. Os Black Blocs e os policiais têm mais em comum do que gostariam. E, o mais importante: nenhum deles inventou a violência da sociedade brasileira.

Entre todas as versões vendidas como verdade neste momento, a mais perigosa é a do “confronto” entre a Polícia Militar e os Black Blocs, ou entre a PM e os manifestantes. Ao se reduzir o protesto ao “confronto”, que acaba sendo a única notícia, ou pelo menos a mais difundida a cada ato, evita-se o debate público sobre o transporte e a mobilidade urbana, a reivindicação profunda que move os protestos. Encobre-se também aqueles que não estão nas ruas, como o governador e o prefeito. Na questão da tarifa, PSDB e PT, os dois partidos que se digladiaram na eleição mais apertada desde a redemocratização, comportam-se como amigos de infância.

Não há como afirmar qual será a potência das manifestações de 2015. Muitos apostam que elas se esvaziem. Outros, que em algum momento as duas crises, a da tarifa e a da água, se encontrem nas ruas como já se encontram no cotidiano. Será uma pena se, submetidos à lógica do “confronto”, não conseguirmos escutar o que dizem os manifestantes – e o que não dizem o governador e o prefeito – e perdermos a oportunidade de um debate público, político, sobre a violência silenciosa que corrói os nossos dias. Não é um espetáculo repetitivo, é a nossa vida que pode se repetir como farsa porque nossa imobilidade parece se estender muito além de não conseguir se movimentar em ruas lotadas de carros e em ônibus lotados de gente violentada. Para se mover, é preciso retomar a conversa e escutar.

(Publicado no El País em 19/01/2015)

O longo dia seguinte

A escassez de água em São Paulo é o rei nu das eleições de 2014. No momento em que a maior cidade do país se transforma num cenário de distopia, o processo eleitoral chegou ao fim sem nenhum debate sério sobre o meio ambiente e o modelo de desenvolvimento para o Brasil

 

Chegamos ao dia seguinte sem que o futuro tenha sido de fato disputado. Se a eleição de 2014 foi a mais acirrada das últimas décadas, não só pelos candidatos, mas pelos eleitores, terminou sem debate. Não havia adversários nem nos estúdios de TV, onde os candidatos rolavam ora na lama, ora na retórica mais medíocre, nem nas redes sociais, elas que se tornaram as ruas realmente tomadas pela militância. Havia apenas inimigos a serem destruídos. As fraturas do país dizem respeito bem menos à pequena diferença entre a vencedora e o derrotado – e bem mais a uma fissura entre o país que vivemos e o país inventado. Não como uma fabulação, que é a matéria de qualquer vida. Não como uma utopia, que é onde se sonha chegar. Mas como um deslocamento perverso da realidade, uma cisão. Só essa desconexão pode explicar como a maior cidade do país transformava-se num cenário de distopia durante o primeiro e o segundo turnos eleitorais sem que em nenhum momento o meio ambiente e o modelo de desenvolvimento tenham entrado na pauta com a seriedade necessária. Chegamos ao dia seguinte como parte dos moradores de São Paulo: olhando para o céu à espera de que uma chuva venha nos salvar. E é com essa verdade profunda que temos de lidar.

Se a eleição pareceu interminável, o dia seguinte poderá ser muito mais longo. E seria, qualquer que fosse o vencedor. Com qualquer um deles, o que se disputou foi o poder, não um projeto de país. São Paulo talvez seja a expressão hiper-real desse momento, seja nossa escultura de Ron Mueck, o artista australiano que cria figuras humanas em dimensões superlativas. É como se o futuro tivesse chegado antes na cidade expandida, mais próximo da sombria ficção científica de Philip K. Dick do que da megalópole de comercial de TV onde os novos modelos de carros deslizam céleres por ruas sem trânsito.

Nesse cenário, Geraldo Alckmin, o governador do partido que há 20 anos está no poder foi reeleito no primeiro turno. Confrontados com a crise da água, Aécio Neves (PSDB) disse: “Vivemos a maior estiagem dos últimos 80 anos, e a meu ver o Estado fez algo absolutamente adequado, que foi propor bônus para aqueles que economizassem. Talvez o que tenha faltado foi uma parceria maior do governo federal”. E Dilma Rousseff (PT) rebateu: “Eu disse a ele (Alckmin): governador, pela minha experiência, acho que o senhor deveria fazer obras emergenciais. Porque tudo indica que essa seca se prolongará, e vocês não têm capacidade de abastecimento suficiente”.

Pode existir exibição maior de mediocridade do que essas respostas dadas por aquela que queria continuar presidente e por aquele que desejava se tornar presidente? É de chorar sentado em um dos reservatórios do sistema Cantareira, mas a maioria dos eleitores não pareceu se importar. Um sugere que basta chover ou dar bônus aos consumidores, a outra que obras emergenciais teriam solucionado todo o problema. Nenhum demonstrou nem capacidade nem vontade de fazer relações com o modelo de desenvolvimento, o esgotamento dos recursos, o desmatamento e o modo de vida.

Assim, enquanto São Paulo se transformava numa vitrine do cotidiano corroído pela degradação ambiental, o máximo de discussão que se conseguiu foi sobre de quem é a culpa. Isso num momento global em que as mudanças climáticas e suas consequências são consideradas por alguns dos pensadores mais relevantes do planeta, em todas as áreas, o tema de maior importância desse período, talvez de toda história humana. A cisão com a realidade é total. O monstro bafejava na sala, mas os presidenciáveis disputavam quem tinha dado o nó no rabo do gato.

Mesmo Marina Silva muito pouco tocou nesses temas ao disputar o primeiro turno, desassemelhando-se a si mesma. Ela, de quem se esperava que fizesse a diferença fazendo diferente, preferiu falar sobre a autonomia do Banco Central. No máximo escaparam, ela e todos, pela bandeira fácil do “desenvolvimento sustentável”, como se algum candidato fosse dizer que não quer desenvolvimento sustentável e como se este fosse um conceito já dado. Mas tocar nos temas cruciais do presente e do futuro, disputar a escolha do modelo de desenvolvimento em pontos concretos, com a seriedade que o momento histórico exige, não. O meio ambiente ficou fora da pauta dos presidenciáveis por escolha de conveniência, já que esse é o debate difícil, ao implicar mudanças no modo de vida dos eleitores, mas também porque a população têm escasso ou nenhum interesse no tema, apesar de a degradação ambiental roer o cotidiano. Essa é a fratura da negação.

A escassez de água na maior cidade brasileira é o rei nu destas eleições de 2014. E é por isso que vale a pena revisitar a reeleição de Geraldo Alckmin (PSDB). A seca acentua a nuvem de poluição que envolve a capital, o nariz sangra, a tosse se instala, o recorde de calor fora de época esgarça os nervos dentro de carros e ônibus que se movem lentamente num gigantesco labirinto de concreto. A crise tem produzido cenas como a de caminhões-pipa com escolta policial, prontos para dominar a população desesperada de um interior pintado como bucólico. A polícia que massacrou os manifestantes, agora se prepara para reprimir os sem-água. A imagem dos reservatórios remete ao repertório de geografias historicamente calcinadas. A vida torna-se pior, bem pior. E torna-se bem pior em ritmo acelerado.

Era de se esperar que a experiência cotidiana concreta tivesse um impacto nas urnas. Mas, neste cenário, o governador reelegeu-se ainda no primeiro turno, repetindo: “Não vai faltar água”. E a água já faltava. Se as pessoas votam de forma pragmática, votam pelo retorno imediato, votam naquele que acreditam que vai melhorar a vida delas, por que a crise hídrica teve pouco ou nenhum impacto na eleição? Seria porque a educação, a saúde, a segurança estiveram excelentes nesses 20 anos de governo do PSDB em São Paulo, o que compensaria a escassez de água? Não é o que a realidade mostra. A crise da água tampouco atingiu o desempenho de Aécio Neves, que no segundo turno conquistou 64% dos votos válidos no estado de São Paulo. Que cisão, então, ocorreu nesse momento? E o que ela diz? Ou como a escassez de água não colou na eleição, ou de que forma se colou?

Não tenho respostas, só hipóteses. Uma hipótese possível seria a mesma pela qual a candidatura de Marina Silva erodiu. Marina cometeu vários erros nessa campanha, alguns deles primários. Mas há um deles, que para muitos soa como erro, mas que não me parece que seja. Seu discurso era menos afirmativo do que os eleitores estão acostumados. Ela propunha a construção de soluções, mais do que propostas acabadas (ainda que tenha sido a única entre os três candidatos com chances no primeiro turno a apresentar um programa de governo). Propunha escuta.

Seu discurso foi classificado como “difuso” e “vago”. Às vezes, ser difuso e ser vago são as únicas verdades possíveis em determinado momento histórico, como mostraram as manifestações de junho de 2013. Mas logo essas características, também nela decodificadas como defeitos, foram transformadas em “fraqueza”. E, na sequência, em identidade. Assim, a mulher que nasceu num seringal do Acre, trabalhou desde criança em condições brutais, passou fome, alfabetizou-se aos 16 anos, foi empregada doméstica, sobreviveu a três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose, além de sofrer contaminação por mercúrio, e ainda assim tornou-se professora com pós-graduação, senadora, ministra, uma das maiores lideranças ambientais do planeta e por fim uma candidata à presidência com chances de vencer, foi considerada “fraca”. Mais uma fratura entre imagem e realidade.

As afirmações peremptórias, com pontos de exclamação, assim como as certezas, são mercadorias valorizadas. Em geral ordinárias, mas valorizadas mesmo assim. Num momento em que a falta de controle parece se expressar em toda a sua assustadora grandiosidade, como na escassez de água em São Paulo, assim como na corrosão das condições de vida pela degradação ambiental, talvez as certezas, mesmo que falsas e irresponsáveis, tornem-se ainda mais valorizadas. Talvez a virtude encontrada em Alckmin por parte dos eleitores seja a da negação da realidade: “Tudo sob controle. Não vai faltar água”.

Uma garantia expressada sem hesitação ou titubeio, em voz firme, quando a água se esvai das torneiras e a vida converte-se literalmente em cinza, uma garantia falsa, parece ainda soar como uma garantia. E logo é decodificada como força, como a expressão de alguém que sabe liderar e sabe o que fazer e, principalmente, nos libera de ter de fazer algo. Sua vantagem é manter viva a ilusão mais cara, a ilusão do controle. Esta seria uma cisão para encobrir a fratura maior, a de que os responsáveis não têm responsabilidade. E a de que cada um, que também é responsável pela destruição ambiental, tampouco quer ser responsável, porque isso implicaria mudar de posição e alterar radicalmente seu modo de vida.

Ao esforço de mudar o modo de vida poucos aderem, porque dá trabalho e provoca perdas, exige mediação e concessão. Para muitos, já parece um sacrifício excessivo diminuir o tempo do banho, imagina alterar radicalmente o cotidiano. Assim, vale mais a pena escolher não a ficção, mas a mentira – e ficção e mentira jamais podem ser confundidas –, porque dessa maneira se torna possível manter o máximo de tempo possível uma rotina que não apenas é insustentável a longo prazo, como já não se sustenta agora. E também a fantasia sobre si mesmo como um bom cidadão.

Soa mais conveniente, portanto, acreditar nessa versão mágica, a de que não vai faltar água, quando já está faltando água, promovendo uma cisão com a realidade. De novo, portanto, é um voto pragmático, voltado ao bem-estar imediato de não ter de se mover. De não precisar fazer nada ou muito pouco a respeito. Voltado a algo talvez mais caro do que água, a certeza de que há sempre uma saída que não exija comprometimento e mudança real. Uma saída em que apenas os outros façam o sacrifício, como sempre foi no caso do racionamento muito mais antigo e persistente na casa dos pobres.

No fim da semana passada, foi divulgada uma gravação em que Dilma Pena, a presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), dizia numa reunião interna: “A Sabesp tem estado muito pouco na mídia, acho que é um erro. Nós tínhamos que estar mais na mídia, sabe, (…) nas rádios comunitárias, (…) todos falando, com um tema repetido, um monopólio: economia de água. ‘Cidadão, economize água’. Isso que tinha que estar reiteradamente na mídia, mas nós temos de seguir orientação, nós temos superiores, e a orientação não tem sido essa. Mas é um erro”. O diretor metropolitano da Sabesp, Paulo Massato, fez o seguinte comentário na mesma reunião: “Se repetir o que aconteceu esse ano, do final de 2013, de outubro pra cá, se voltar a repetir em 2014, confesso que eu não sei o que fazer. Essa é uma agonia, uma preocupação. Alguém brincou aqui, mas é uma brincadeira séria. Vamos dar férias para oito milhões e oitocentos mil habitantes e falar: ‘saiam de São Paulo’. Porque aqui não tem água, não vai ter água pra banho, pra limpeza da casa, quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder, vai tomar banho na casa da mãe lá em Santos, lá em Ubatuba, Águas de São Pedro, sei lá, aqui não vai ter”.

É gravíssimo que a presidente da Sabesp tenha sido impedida, por qualquer motivo e mais ainda por motivos eleitoreiros, de alertar a população sobre a enormidade do problema. É criminoso e deve haver apuração e responsabilização de todos os envolvidos. Mas precisamos ter a honestidade de assumir que dificilmente, em 5 de outubro, data da votação do primeiro turno, algum cidadão pudesse alegar desconhecer a situação e a necessidade de economizar água durante a prolongada seca que enfrenta São Paulo.

Geraldo Alckmin deu a mentira que a população queria ouvir porque conhece bem seus eleitores. Parodiando o título do livro do escritor Ferrez, não há inocentes em São Paulo. A reeleição de Alckmin talvez seja um daqueles fenômenos sustentados pela expectativa de que, se mentirmos todos, talvez vire verdade. Em parte, o governador pode não ter vencido apesar da crise da água, mas também por causa dela.

A crise da água na maior cidade brasileira, em plena eleição, é fascinante pelo que diz daquilo que não é dito. Se é um fato que faltou planejamento ao governo estadual tucano, que aí está há 20 anos e agora por mais quatro, esta é só a ponta explícita, a mais fácil de enxergar (ainda que deliberadamente a maioria dos eleitores a tenha ignorado nas urnas). Mas, ao colocar a parte no lugar do todo, revela-se essa crença arraigada, e por estes dias também desesperada, de acreditar que teria bastado algumas obras para escapar do que se tornou a vida cotidiana em São Paulo, na qual a água é apenas a ausência mais gritante. É o dogma, quase religioso, de que o homem pode controlar a catástrofe ambiental que provocou.

De novo, a ilusão do controle, mesmo quando a realidade aniquila os dias, mesmo quando no fundo cada um sabe que, fora e dentro, algo de fundamental da vida de cada um se esvai. Quanto mais se sente que o controle escapa, no miúdo e no macro do cotidiano, maior é a recusa em enxergar. O desastre já passou da porta de casa, mas ainda se crê que basta chover para tudo voltar a ser como antes, que já era ruim, mas menos. Ou que se o não planejado for feito, ainda que tarde, o problema de São Paulo está resolvido. Cinde-se de novo – e talvez uma parte significativa da população sequer perceba que a escassez de água tem causas ambientais profundas. Como se as questões do meio ambiente, que aqui estão, estivessem lá, no mundo abstrato dos outros.

Dilma Rousseff foi reeleita. Sua política ambiental, se é que pode se chamar assim, foi um retrocesso. A visão sobre a Amazônia do governo se notabilizou pela semelhança com o projeto da ditadura militar para a região. Em sua gestão, obras como a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, foram impostas aos povos da floresta sem consulta prévia, autoritarismo que levou o Brasil à Comissão Interamericana de Diretos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Seu próximo alvo é barrar o belo rio Tapajós, onde encontra a resistência dos Munduruku e de comunidades agroextrativistas, como a de Montanha e Mangabal. Pressionado pelo processo eleitoral, o governo disse que, desta vez, cumprirá a lei e ouvirá os índios, mas não escutará os ribeirinhos.

A presidente também arrancou um naco do Parque Nacional da Amazônia para facilitar o caminho das hidrelétricas planejadas para o Tapajós. Mas só criou unidades de conservação na Amazônia a 12 dias do segundo turno, na tentativa de minimizar a repercussão de seu péssimo desempenho no setor. O desmatamento na Amazônia voltou a crescer: 191% no bimestre de agosto e setembro deste ano, comparado à 2013. Segundo o Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), porque o governo adiou a divulgação dos dados oficiais para depois das eleições. Dilma foi também a presidente que menos demarcou terras indígenas desde a redemocratização do país.

Pessoas respeitáveis defenderam nestas eleições que o susto de quase perder o poder fará Dilma Rousseff e o PT retomarem algumas lutas históricas, também no horizonte socioambiental. Veremos. Em seu discurso da vitória, neste domingo (26/10), Dilma falou em “diálogo”. E em “pontes”. Num pronunciamento bem pensado, em que a presidente reeleita podia colar tudo, já que o cargo estava garantido por mais quatro anos, vale a pena prestar atenção nas ausências. Dilma Rousseff não mencionou nem “índios” – e nem “meio ambiente”.

(Publicado no El País em 27/10/2014)

Os Silva são diferentes

Lula e Marina, os dois fenômenos políticos mais fascinantes da história recente, são filhos de Brasis que se desconhecem

 

Há uma ideia no Brasil de que os pobres são todos iguais. É uma visão de senso comum, mas que assinala a análise também de intelectuais. Ela explica a afirmação de que Luiz Inácio Lula da Silva e Marina Silva têm biografias parecidas – e a de que Marina teria sido a sucessora mais natural de Lula, não fossem as divergências que a levaram a deixar o Ministério do Meio Ambiente e depois o PT. Para chegar ao poder num país desigual como o Brasil, Lula e Marina fizeram uma travessia impressionante, uma espécie de jornada de herói. Mas as semelhanças acabam aí. Há enormes diferenças entre a trajetória de um filho de sertanejo que fez o caminho de São Paulo e se tornou operário e depois líder sindical, na região mais industrializada do país, e a trajetória de uma filha de seringueiro, seringueira ela também, na floresta amazônica, que iniciou sua carreira política em um estado como o Acre. Para alcançar a riqueza desse momento histórico do Brasil é preciso compreender que os Silva são diferentes.

Lula e Marina são ambos filhos do Brasil, mas de Brasis bem diversos. E é exatamente por causa de diferenças fundamentais de visões de mundo que, a certa altura, Marina não encontrou mais lugar no projeto do “lulismo”, usando a expressão do cientista político André Singer. A explicação para que a inserção de milhões de brasileiros, no governo Lula, tenha se dado pela via do consumo, é complexa. Mas pelo menos uma parte dela pode ser encontrada no desejo de Lula. No que significa para um operário ascender na escala social. Casa melhorada, roupa boa, geladeira nova e cheia, TV de tela plana, um carro na garagem.

Lula não encarna o sertanejo com uma relação íntima com o sertão, entendido aqui como natureza e cultura. Mas o movimento de transição de um mundo decodificado como passado, para um outro que é futuro. Ele é filho de uma família retirante que queria primeiro fugir da fome, depois subir na vida pelo ingresso na fábrica, pela via do “progresso” e da industrialização. Vencer na vida no mundo do Outro, apropriando-se dele e tornando-o seu pelo acesso aos seus signos. É esse universo de sentidos que ele compreende e com o qual dialoga, talvez como nenhum outro político da história do país. E é para estes pobres que seu governo significou inclusão social.

Marina, não. Ela se cria na floresta e é moldada por ela. Seu pai, migrante nordestino, tinha naquela região amazônica um ponto de chegada. Mesmo quanto a família tentava sair, era para o seringal que acabavam voltando. A iniciação política de Marina se dá nos “empates”, uma tática de resistência na qual homens, mulheres e crianças se dão as mãos para fazer uma corrente em torno da área ameaçada e impedir o seu desmatamento – e, com ele, sua expulsão daquele mundo. O mentor de Marina é Chico Mendes e a luta ali, naquele momento, é expressão de uma relação profunda com a mata, na qual um não se reconhece sem o outro. É uma luta por permanência, não por partida.

O conhecimento que funda Marina, analfabeta até os 16 anos, está contido nessa cultura em que é preciso saber a vocação de cada pé de pau para dominar a tecnologia complexa que permite a sobrevivência, na qual a terra não é mercadoria, mas vida. Sua capacidade de fazer a ponte entre esse saber, transmitido de geração em geração pela oralidade, com a palavra escrita, os livros e a produção acadêmica, é um dos capítulos mais bonitos da sua biografia. Marina só vai chegar ao centro-sul aos 36 anos de idade, já como senadora. Seu movimento pelo mapa se dá com o objetivo de levar ao coração do poder político o universo de sentidos do mundo que deixou não como passado, mas para que possa ser futuro. Se para Lula a possibilidade de ascender está na inclusão no mundo do Outro, para Marina o Outro é aquele que se experencia para alcançar a si mesmo.

Não se trata de dizer que Lula é melhor do que Marina – ou Marina melhor do que Lula. Apenas assinalar que Lula e Marina, os fenômenos políticos mais interessantes da história recente do país, carregam experiências diferentes de brasilidades. Às vezes, as necessidades imediatas da disputa eleitoral borram as nuances mais fascinantes. Se a ascensão de Lula ao poder já produziu no Brasil, só pelo fato em si, uma enorme mudança simbólica, a de Marina ainda é potência e incógnita. A incógnita aqui não colocada como um defeito, mas como possibilidade.

É bastante claro por que Dilma Rousseff, uma mulher urbana, de classe média, com tendência desenvolvimentista, tenha sido, para Lula e o conjunto de valores que o constitui, uma opção muito mais lógica como sucessora. Dilma é alguém com quem Lula tem muito mais afinidades do que Marina, apesar das evidentes diferenças entre eles. É nos sucessivos embates com Dilma, quando esta era ministra de Minas e Energia e depois ministra-chefe da Casa Civil, e Marina ministra do Meio Ambiente, que a ex-seringueira vai perdendo espaço dentro do governo do ex-operário e, em seguida, do Partido dos Trabalhadores. É óbvio que as opções de Lula e do PT se devem a questões de ordem política e econômica, a maioria delas bem pragmáticas, mas não se pode nem se deve esquecer a influência do universo de sentidos que forma o homem e do lugar a partir do qual ele enxerga o país. Para ser objetivo é necessário jamais perder de vista as subjetividades.

A partir do final do segundo mandato de Lula, algumas das lideranças históricas dos movimentos sociais na Amazônia, como por exemplo Antonia Melo e o bispo Dom Erwin Kräutler, ambos do Xingu, começam a perceber que o ser/estar no mundo dos povos da floresta, se antes pelo menos em tese tinham lugar no governo, já não têm mais espaço. E, a partir de Dilma Rousseff, nem mesmo interlocução. Para eles, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se a prova definitiva de que o projeto para a Amazônia de Lula e de Dilma guardava semelhanças com o da ditadura civil-militar: a floresta seguia sendo um corpo para exploração, e os povos da floresta um entrave a um tipo de desenvolvimento que nega sua existência e seu modo de vida. Nesse olhar, a Amazônia, para virar futuro, precisa tornar-se passado.

Lula – e Dilma ainda menos do que ele – pouco entendem dessas outras formas – e é importante assinalar que elas tampouco são homogêneas – de perceber o Brasil e de viver no Brasil. Mas, talvez mais grave do que não compreender outras maneiras de ser brasileiro é não achar que é preciso compreender. Compartilham essa ignorância com uma parte significativa da população, para a qual a Amazônia é longe demais em múltiplos sentidos, o que torna mais fácil perpetuar os crimes contra povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Assim como continuar ignorando, apesar dos sinais inequívocos que já marcam a vida cotidiana, que a mudança climática e as questões socioambientais nela implicadas são, senão o maior, um enorme desafio para qualquer governante desse tempo. Para essa parcela da população, o sonho de todo índio ou ribeirinho é ser pobre na periferia de uma cidade grande. E a pauta socioambiental é coisa de idealistas, sonhadores ou “ecochatos”, incapazes que são de perceber tanto a crise do planeta quanto o fato de que questões como saneamento básico, escassez de água e proliferação da dengue são socioambientais.

Em 2011, quando se começava a implantar o canteiro de Belo Monte, na região de Altamira, no Pará, passei um dia com o chefe de uma das famílias que seriam obrigadas a deixar a terra onde viviam para a construção da maior obra do governo. A certa altura, ele abraçou uma castanheira e desandou a chorar. Tentava me explicar por que ele não podia ser – sem ser ali. Ou a impossibilidade de habitar um mundo sem aquela árvore específica. De repente, o choro estancou e sua voz se encheu de raiva. Ele disse: “Fico revoltado quando Dilma diz que somos pobres. Por que ela pensa que somos pobres? De onde ela tira isso? Essa é a maior mentira”.

Aquele homem quase nada tinha de bens materiais, nem os desejava. Sequer os conhecia e, se conhecesse, não teriam lugar no seu cotidiano. Seu conceito de pobreza e de riqueza era totalmente outro, incompreensível para os fazedores de política do momento. E taxarem-no de pobre, no discurso de Brasília, o ofendia, porque se considerava rico. Não como um discurso bonito e um tanto abstrato, mas porque era de fato como rico que se enxergava, na medida em que a floresta lhe dava tudo o que precisava. Não só no nível concreto, mas também no simbólico. Para ele, a vida que ali tinha era boa.

Me parece que esses ricos e esses pobres Lula – e Dilma menos ainda – jamais conseguiram, ou mesmo quiseram, entender. Embora, como já foi dito, Lula tenha compreendido e dialogado com outros pobres – e com outros ricos. Quando Marina Silva afirma, no primeiro debate entre candidatos à presidência, na Rede Bandeirantes, que o líder seringueiro Chico Mendes, assassinado por sua resistência, era elite, é a partir dessa outra visão de mundo que ela também fala.

Essa ponte entre os vários Brasis, ainda inédita no comando da nação, Marina é a mais apta a fazer. Se de fato o fará, não há nenhuma garantia. Nem Lula foi um operário na presidência, nem Marina é hoje uma seringueira, ambos acrescidos e transformados por outras experiências vividas no curso de trajetórias bem extraordinárias. Mas, assim como Lula levou pela primeira vez ao poder uma visão de mundo muito diversa dos que antes haviam ocupado o Planalto, Marina poderá, caso for eleita, ser a primeira a carregar para o centro das decisões a experiência de quem vive na floresta e a compreensão de que o futuro pode não existir se essa experiência não for incluída no projeto de país. Nesse sentido, ela é muito mais século 21 do que sua principal rival na disputa pela presidência.

Uma curiosidade. Na campanha de 2002, quando Lula se elegeu pela primeira vez presidente, depois de outras três tentativas, havia um encantamento com sua presença vestida em ternos de grife nos salões de parte do PIB paulistano. Recebido pelo casal Eleonora (psicanalista) e Ivo Rosset (empresário, dono da Valisere, entre outras marcas), amigos de Marta Suplicy, Lula era uma espécie de operário que havia chegado ao paraíso. No poder, sua mulher, Marisa Letícia, logo fez plásticas, aplicou botox, mudou o figurino e adotou Wanderley Nunes, um dos cabeleireiros da moda. Muito antes, ainda em 1979, quando despontava como líder sindical nas greves do ABC paulista, Lula assim respondeu aos ataques por ter ido jantar no Gallery, a boate dos ricos e famosos da época, a convite da revista Manchete: “Eu quero que todo operário ganhe o suficiente para frequentar o Gallery”. Desde essa época ele já repetia que “pobre gosta de se vestir bem”.

Marina, a “seringueira, empregada doméstica e negra”, circula de outro modo nos salões paulistanos. Suas roupas são sóbrias, com detalhes étnicos, como a usada na entrevista do Jornal Nacional. Os adereços usam materiais naturais, como sementes da Amazônia, o batom é feito por ela mesmo, com suco de beterraba, já que tem alergia a produtos industrializados. O cabelo é um coque. Marina é vista como chique e moderna, dona de seu próprio estilo, em especial por um tipo de rico que vê na ostentação uma vulgaridade. Sua principal interlocutora nesse mundo é a socióloga Maria Alice Setúbal, mais conhecida como Neca Setúbal, acionista do Banco Itaú, mas também fundadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), uma das organizações mais respeitadas na área educacional. Se Lula era “pop”, Marina é “cool”. Vale a pena prestar atenção em como são decodificados aqueles que até há pouco tinham outro lugar nessa geografia para, de novo, não perder as nuances.

É preciso ter cautela com os fundamentalismos. Quem acusa Marina de ser “fundamentalista” está pasteurizando diferenças. Marina não é uma fundamentalista ambiental, como a acusam setores do agronegócio. Para uma parte do movimento socioambiental, o defeito de Marina é justamente ser menos radical do que os desafios do momento histórico exigem. O “desenvolvimento sustentável” que ela defende, para muita gente respeitável é apenas um conceito vazio, palatável para conversas bem comportadas, mas que oculta contradições profundas.

Marina tampouco é uma fundamentalista evangélica. Dizer isso é acreditar que Marco Feliciano, o deputado-pastor que barbarizou a comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, e Marina Silva são iguais. É confundir denominações religiosas que estão sob o mesmo guarda-chuva, mas que guardam diferenças bastante substantivas entre si. Compreender o Brasil evangélico, em toda a sua complexidade, é um desafio dessa época.

A quem interessa chamar Marina Silva de fundamentalista? A muitos, em especial a lideranças ruralistas, no que se refere à discussão socioambiental, e aos religiosos de fato fundamentalistas, no que diz respeito a questões como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao fazê-lo, rebaixam o debate, na tática mais do que conhecida, e forçam mudanças que beneficiam seus interesses e fortalecem seu lugar de representantes de seus respectivos públicos.

Isso não significa que o eleitor deva deixar de prestar – grande – atenção ao fato de Marina Silva ter posição contrária às pesquisas com células-tronco embrionárias, já ter se declarado “pessoalmente não favorável” ao casamento gay, ter defendido na eleição de 2010 um plebiscito para o aborto e, principalmente, ter cometido na semana passada o ato lamentável, para dizer o mínimo, de voltar atrás no seu programa de governo, um dia depois de tê-lo lançado, no que se refere às políticas para a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).

Com Marina Silva com chances de ganhar, o que se desenha para o Brasil é uma eleição muito mais desafiadora e complexa. É legítimo afirmar que seu discurso é “difuso”, assim como a “nova política” que diz encarnar pode ter ecos de um passado perigoso. Mas é preciso perceber que esta é a sua força nas urnas, não sua fraqueza. A tal “pauta difusa”, uma das fragilidades que setores da sociedade e da mídia viram nas manifestações de junho de 2013, mobilizou multidões. Marina atua nas redes sociais há muito e sabe escutá-las. Circula por elas desenvolta, enquanto outros as frequentam apenas em épocas eleitorais ou em momentos estratégicos, fazendo uma paródia digital das tradicionais visitas de políticos às favelas para as quais não voltam depois, tão à vontade em um e outro lugar quanto bagres num shopping.

“Amadora” e “aventureira” é como Marina têm sido chamada por seus opositores. “Improviso” é outra palavra escolhida para atacar seu discurso. Sem entrar nem em juízos de valor nem na adequação ou não desses termos à Marina Silva, vale a pena lembrar a quem os esgrime, na tentativa de provocar rejeição à candidata, que eles deixaram de ser ofensas há algum tempo, para se transformar em virtudes. A “indefinição”, outra palavra usada para atacá-la, parece ter sido até agora a opção de parte dos eleitores, para os quais a “definição” de outros candidatos é sentida como insuportável. Tudo indica que, de várias maneiras, este é um momento em que, para muitos, os pontos de interrogação soam como possibilidades – e o risco parece ter se tornado uma alternativa melhor do que certezas que preferem rejeitar.

O que isso significa? A chance de começar a desvendar os tantos sentidos dessa eleição fascinante é devolver a complexidade aos protagonistas. Compreender, por exemplo, qual Silva é Marina.

(Publicado no El País em 01/09/2014)

 

Vagão rosa, para não ser encoxada

O que faz das mulheres ainda hoje uma ameaça tão grande que, mesmo quando vítimas, são julgadas culpadas?

 

Alô, mulheres. Se pegarem trem ou metrô em São Paulo, prestem atenção às orientações do sistema de som: “Se você estiver com vontade de ser violentada, ou ao menos receber uns apertões na bunda e nos peitos, siga para o vagão comum. Se estiver cansada, introspectiva, teve um dia difícil, está com TPM, vá para o rosa e viaje tranquila”. Uma excelente semana a todas.

Poderia ser uma piada ou um filme de horror futurista. Mas é sério e não é ficção distópica. Na prática, essa é a mensagem do projeto de lei aprovado em 4 de julho pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. De autoria do deputado Jorge Caruso (PMDB), ele cria um vagão exclusivo para mulheres no metrô e nos trens. Algo similar já existe no Rio de Janeiro. A lei poderá ser vetada ou sancionada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à reeleição, nos próximos dias. Na sexta-feira (18), feministas reuniram-se no centro da capital paulista para um ato em protesto contra a criação do “vagão rosa”.

Não é muito, mas muito estranho mesmo?

Estamos em 2014, há uma mulher na presidência do Brasil. Mas acredita-se necessário criar um vagão só para mulheres nos trens de transporte público da cidade mais cosmopolita do país. Por quê? Porque, se ficarem misturadas aos homens, as mulheres serão encoxadas, apalpadas, abusadas e até estupradas. E é verdade, tudo isso acontece. Tanto que um grupo feminista fez recentemente uma campanha distribuindo alfinetes para as moças enfiarem nos abusadores do metrô.

É bizarro. Diante de uma mulher, num espaço apertado, atulhado de gente, alguns homens sentem-se autorizados a abusar dela. Isso diz de cada indivíduo e, claro, diz também dessa sociedade. Seria importante escutar esses homens para entender qual é a questão de cada um com seu próprio pênis. Talvez vivam um sentimento de impotência avassaladora, para muito além da ereção que conseguem ou não ter. Mas é só uma hipótese para tantas que só podem ser compreendidas na história de cada um.

Mais bizarro do que o ato individual, porém, é o ato público. Mais perigosa é a “solução” que o poder público, nesse caso o parlamento paulista, deu para a violência. Comete-se violência sexual contra as mulheres nos trens, segrega-se as vítimas. Seguindo essa lógica, em breve poderia se propor que, nas ruas e espaços coletivos, as mulheres passassem a usar burca. Assim, os homens não seriam “tentados” a cometer crimes sexuais.

Se o “vagão rosa” (o apelido já é duro de aguentar!) vingar, é um retrocesso muito maior do que pode parecer a um primeiro olhar distraído. É alarmante que os protestos não sejam mais numerosos e barulhentos, dada a seriedade do que está em jogo. Em nome das supostas boas intenções de “proteger as mulheres”, o que se faz, de fato, é reforçar duas ideias do senso comum, interligadas, que persistem há séculos e estão na base da violência sexual.

A primeira delas é que a culpada é a vítima. Seja porque usou “roupas sensuais”, seja porque “se expôs” a uma situação potencialmente perigosa. Nesse caso, apenas por existir. Por ser mulher, precisa ser colocada num “vagão especial”. Sua condição, em si, despertaria sentimentos incontroláveis em alguns homens. Então, nada de ficar perto desses espécimes ou eles não poderão resistir e cometerão a violência. Como se esses homens não fossem responsáveis pelos seus atos, como se fossem incapazes de se controlar, como se fossem animais, eliminando a cultura da equação e deixando restar uma ideia tacanha de natureza.

No conceito do “vagão rosa” as mulheres são colocadas na posição de objetos de desejo ou objetos de posse. E os homens são vistos como vítimas do próprio desejo, sem a necessidade de se responsabilizar por ele. Acho curioso que homens não façam protestos contra o “vagão rosa”: a ideia nele embutida sobre o que é ser um homem é ofensiva ao extremo.

Se o “vagão rosa” virar lei, o próximo passo será: se uma mulher não quis ocupar o vagão especial e foi sexualmente abusada no comum, conclui-se o de sempre: “Ela pediu. Se não quisesse ser encoxada, apalpada, estuprada teria entrado no vagão dela”.

A outra ideia fincada no imaginário de homens (e também de mulheres) é mais interessante. As mulheres é que são a ameaça. (E não aqueles que abusam de seus corpos e de suas almas.) Confina-se, cobre-se, esconde-se aquilo que nos envergonha e aquilo que nos coloca em perigo. Quando se propõe – e se aprova – um vagão especial para as mulheres, o que se está fazendo, de fato, é isolar o elemento desestabilizador. Colocar em ambiente controlado quem teria o poder de revelar, expor algo que deve continuar oculto. O segredo, nesse caso, está naquele que esconde – e não naquela que é escondida.

O “vagão rosa” é mais uma tentativa de sujeitar os corpos femininos, ao determinar que só podem ser “transportados” em sistema de segregação. Uma prova de que, ainda hoje, a imagem social das mulheres difere pouco da visão medieval em que eram compreendidas como “más e impuras”. Não custa lembrar do recente linchamento de uma mulher como “bruxa”, no mesmo estado de São Paulo. (Escrevi sobre isso aqui).

O que há de tão ameaçador nas mulheres?

A buceta, ainda ela. O desembargador Francisco Batista de Abreu, da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais ajuda a explicar. Em acórdão publicado no final de junho, ele expõe uma linha de raciocínio fascinante ao justificar por que o valor de 100 mil reais de indenização, determinado pela justiça de primeira instância, deveria ser reduzido para 5 mil reais, como de fato aconteceu no julgamento em segundo grau. O caso refere-se ao que tem sido chamado de “vingança pornô”.

Um homem e uma mulher namoraram, em cidades diferentes, por cerca de um ano. Depois do término da relação, ainda conversavam e trocavam imagens íntimas pela internet. Na descrição do desembargador, as dela eram “ginecológicas”. O ex-namorado, seguindo o roteiro bocejante dos imbecis, quebrou a confiança estabelecida entre eles e tornou público o que era privado. As imagens, que eram consensuais, foram expostas de forma não consensual. Um ato sujeito à punição legal, portanto.

O desembargador Abreu concluiu, porém, que esta seria uma oportunidade para fazer um julgamento moral da vítima, expondo a profundidade do seu entendimento sobre como uma mulher deve lidar com sua vagina e com seu corpo. Depois da divulgação do caso, o processo foi colocado em “segredo de justiça”, limitando o acesso aos autos. Mas o segredo de quem, àquela altura, deveria ser protegido? Da mulher, do homem ou do desembargador?

A seguir, alguns trechos do voto do desembargador Francisco Batista de Abreu publicados na imprensa:

“Quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado, liberal. Dela não cuida. Irrelevantes para avaliação moral as ofertas modernas, virtuais, de exibição do corpo nu. A exposição do nu em frente a uma webcam é o mesmo que estar em público.”

“As fotos em momento algum foram sensuais. As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam. Fotos sensuais são aquelas que provocam a imaginação de como são as formas femininas. Em avaliação menos amarga, mais branda podem ser eróticas. São poses que não se tiram fotos. (…) São poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro. Não para um ex-namorado por um curto período de um ano. Não para ex-namorado de um namoro de ano. Não foram fotos tiradas em momento íntimo de um casal ainda que namorados. E não vale afirmar quebra de confiança. O namoro foi curto e a distância. Passageiro. Nada sério.”

É possível desenvolver uma tese de doutorado na área de psicanálise e direito a partir do voto do desembargador mineiro. Mas, atendo-se a apenas um ponto de seu raciocínio, percebe-se o que é assustador para o magistrado: “As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam (…) São poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro”.

Para o desembargador, a vagina não é sensual. O que é sensual, segundo ele, não agride nem assusta. É coerente depreender dessa afirmação que a imagem da vagina não só agride o magistrado, como também o assusta. Assim, só pode ser exibida “no escuro”, de forma que não possa ser vista. E para um namorado “verdadeiro”.

Quando o voto se tornou público, lamentou-se em alguns espaços da internet a escuridão em que vive o desembargador Abreu. E até a suposta indigência de sua vida sexual. Mas não se trata de julgá-lo. Como indivíduo, seu Abreu pode até ter medo da vagina. Pode achá-la feia e assustadora. Pode preferir só vê-la no escuro ou não vê-la nunca. É possível ter compaixão por seu Abreu, mas ninguém tem o direito de julgar como seu Abreu se relaciona com a sexualidade do outro e com a sua própria. Isso diz respeito só a ele.

O problema é com o desembargador Abreu, servidor público, investido da Lei. Com a sua pretensão de determinar, como verdade única e universal, registrada nos autos, o que é sensual, o que é erótico, o que é amor “verdadeiro” e quando, como e onde uma vagina pode ser exibida. Assim como determinar que uma mulher que mostra a sua vagina não tem autoestima. O problema é que, ao assim manifestar-se, o desembargador Abreu está representando a Justiça. Seu ato tem efeito direto sobre a vida da vítima – e também sobre as vidas na sociedade brasileira.

A tal “vingança pornô”, em que imagens feitas em âmbito privado são divulgadas contra a vontade de quem é retratado, num ato de quebra de confiança, já levou ao suicídio adolescentes brasileiras que não suportaram o julgamento moral da família, amigos e sociedade. Ao manifestar-se nesses termos, o desembargador está reeditando, para um fenômeno contemporâneo, ligado às novas tecnologias, o velho “ela pediu”. E isso é inadmissível.

O relator do caso, desembargador José Marcos Rodrigues Vieira, defendeu reduzir o valor da indenização dos 100 mil reais determinados em primeira instância para 75 mil reais. Afirmou em seu voto: “Isentar o réu de responsabilidades pelo ato da autora significaria, neste contexto, punir a vítima”. Seu colega, o desembargador Abreu, porém, preferiu julgar a “moral” da vítima, acompanhado pelo terceiro desembargador, Otávio de Abreu Portes. Ao final, determinou-se que 5 mil reais seria um valor suficiente. É possível concluir que, simbolicamente, essa já não é mais uma indenização, mas um pagamento.

O “doutor” enxergaria a vítima como uma “puta”. No sentido de que a prostituta, na sociedade brasileira – e esta é outra enorme violência – é vista como aquela que não tem direito nem ao próprio corpo, nem à Lei. Isso ficou de novo muito claro em junho, quando o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo inocentou um fazendeiro preso em flagrante ao estuprar uma menina de 13 anos. A justificativa: ela seria prostituta, o que teria levado o criminoso a errar sobre a sua idade. Em resumo: com prostituta se pode tudo. O que as coloca fora do corpo e fora da Lei, de várias e complexas maneiras, com consequências sempre aterradoras.

Como afirmam organizações de prostitutas, infelizmente muito pouco escutadas, não existe prostituição envolvendo menores de idade. Com crianças e adolescentes só existe estupro e abuso sexual. Mas esse não foi o entendimento dos desembargadores paulistas. Assim como, ao reduzir em 95 mil reais a indenização devida à mulher que teve imagens do seu corpo divulgadas contra a sua vontade, o que o tribunal mineiro fez foi: não mais determinar ao réu uma indenização pelo dano causado, mas dar um valor à mulher.

É o que se compreende da justificativa contida no voto, em especial nesse ponto: “Mas, de qualquer forma, e apesar de tudo isso, essas fotos talvez não fossem para divulgação. A imagem da autora na sua forma grosseira demonstra não ter ela amor-próprio e autoestima”. À vítima, que foi quem passou a ser julgada e enquadrada como alguém que não se dá valor, é concedido um valor aviltantemente mais baixo do que aquele determinado em primeira instância como indenização pelo ato do réu.

Mas qual é o valor de uma mulher? Como diz Renata Corrêa, em um texto bonito no Biscate Social Club:

“Por essa e por outras que para uma vida livre todas as mocinhas, garotas, meninas, mulheres, cidadãs do mundo não deveriam valer nada. Eu particularmente não valho um centavinho furado. Ninguém pode me medir, me pesar, me trocar ou me comprar: não tenho preço, código de barras, cifrão ou vírgula. Quem tem o direito de dar preço para minha alma? E pro meu corpinho? Nobody, baby. Não valho nada. Não me atribuo valor algum. Não tô a venda: tô vivendo sem conta, sem mercantilismo amoroso, fraterno ou sexual. E também não tô comprando. Mas isso é outra história”.

De volta ao “vagão rosa”, que leva as mulheres a uma viagem sem movimento algum, na qual estão estacionadas no mesmo lugar, para que não exista deslocamento nem nada se altere. O “vagão rosa”, destinado ao transporte das mulheres para que não sejam encoxadas, bolinadas ou até estupradas, é o mesmo lugar simbólico destinado à vagina em visões como a do desembargador mineiro. O corpo feminino, a vagina como sua máxima potência, deve ser oculto. Se for exposto, está subentendido que as mulheres assumirão o risco – e a responsabilidade – de serem violadas, de terem seus corpos (e suas almas) destruídos.

Resta se perguntar que vagão é esse, o que exatamente ele transporta de um lado a outro e qual é o seu destino.

(Publicado no El País em 21/07/2014)

Página 26 de 30« Primeira...1020...2425262728...Última »