Devemos ter medo de Dilma Dinamite?

As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

Antonia Melo é uma mulher forte, reta. O Brasil não sabe, porque ela vive bem longe do poder central, mas todos nós temos uma dívida histórica com Antonia que há décadas luta pelos direitos humanos e pelo desenvolvimento sustentável em uma das regiões mais conflagradas da Amazônia. Hoje, Antonia é uma das principais vozes contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte – a maior e mais controversa obra do PAC. É neste ponto que a história de Antonia Melo cruza com a de Dilma Rousseff, que mesmo antes de ser presidente era chamada por Lula de “mãe do PAC”.

Em 2004, as lideranças da região do Xingu, na Amazônia, foram surpreendidas pela informação de que os boatos eram verdadeiros: apesar do compromisso assumido no programa do candidato Lula e contra todas as promessas de campanha, o projeto de Belo Monte estava na mesa de Dilma Rousseff, ministra de Minas e Energia. O deputado federal Zé Geraldo (PT-PA) convidou então um grupo de lideranças para uma audiência com a ministra, em Brasília, onde poderiam expor suas preocupações. Lula havia sido eleito com o apoio maciço do movimento social do Xingu e, neste momento, era fácil acreditar que seriam bem recebidos. E, principalmente, escutados.

Antonia Melo preferia declinar do convite porque, naquele período, estava em curso o julgamento do caso dos meninos emasculados de Altamira, no Pará. E ela havia dedicado mais de uma década da sua vida à luta para que os assassinos fossem descobertos e punidos. Mas a insistência foi grande, e Antonia viajou a Brasília para compor o grupo de lideranças que se encontraria com a ministra. O que aconteceu ali eu escutei da sua boca, recentemente, quando estava na sua casa, em Altamira, para entrevistá-la. Os olhos de Antonia se encheram de lágrimas e sua voz embargou. Fiquei pensando no que poderia causar tanta dor àquela mulher que enfrentava grileiros de peito aberto, já havia sido ameaçada de morte e perdera vários companheiros assassinados por pistoleiros. Só depois de ouvir o relato compreendi que, para alguém com a dignidade de Antonia Melo, o sentimento de ser traída poderia ser devastador. Foi isso que ela me contou, enquanto um dos seus netos pequenos dormia no quarto.

– Quando chegamos à audiência, a Dilma demorou um pouco para aparecer. Aí veio, com um cara do lado e outro do outro, como se fosse uma rainha cercada por seu séquito. Nós estávamos ali porque, se era desejo do governo estudar esse projeto, queríamos ter certeza de que seria um estudo eficiente, já que sabíamos que todos os estudos feitos até então eram uma grande mentira, sem respeito pelos povos da floresta nem conhecimento do funcionamento da região. Então, já que o governo queria estudar a viabilidade de Belo Monte, que o fizesse com a seriedade necessária. A Dilma chegou e se sentou na cabeceira da mesa. O Zé Geraldo nos apresentou e eu tomei a palavra. Eu disse: “Olha, senhora ministra, se este estudo vai mesmo sair, queremos poder ter a confiança de que será feito com seriedade”. Assim que eu terminei essa frase, a Dilma deu um murro na mesa. Um murro, mesmo. E disse: “Belo Monte vai sair”. Levantou-se e foi embora.

Quando Antonia Melo terminou seu relato, compreendi que sua emoção se devia à lembrança da humilhação sofrida e à descoberta do autoritarismo do governo que ela tinha apoiado. Mesmo assim, Antonia só se desfiliaria do PT cinco anos e muitas decepções depois, em 2009.

Lembrei-me deste episódio ao ler a reportagem da revista americana Newsweek, da semana passada, que tem Dilma Rousseff na capa, fato amplamente comemorado como um triunfo feminino. Na chamada de capa, o título é: “Dilma Dinamite: Onde as mulheres estão vencendo”. Dentro, o perfil da presidente brasileira tem o seguinte título: “Não mexa com Dilma”. Ao ver Dilma Rousseff discorrendo na ONU, em Nova York, sobre as vantagens da ascensão das mulheres ao poder, pensei imediatamente nas mulheres que a presidente não escuta no Brasil. Entre elas, as mulheres do Xingu.

Sobre Dilma Rousseff, a editora-chefe da Newsweek, Tina Brown, disse à coluna de Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo. “Dilma, e não Lula, é hoje o político alfa do Brasil”. Como mulher, esse papo de “alfa” me dá um pouco de sono. É tão masculino, não no sentido dos homens interessantes que estão surgindo nesta época, mas no sentido John Wayne dos trópicos. Na cultura colaborativa que está nascendo, nada menos moderno do que achar inovador uma mulher alfa. Quando as empresas e também os governos têm o desafio de se horizontalizar, valorizar os aspectos autoritários de uma liderança, seja ela um homem ou uma mulher, é manter o debate em marcha a ré.

Reconheço o valor de Dilma Rousseff ser a primeira mulher na presidência do Brasil e a primeira mulher a abrir a Assembleia Geral das Nações Unidas como líder de uma nação. Mas este fato só ganha densidade se o discurso abandonar os velhos chavões sobre o feminino – e a prática se afastar do autoritarismo no país que essa mulher governa. O que se passou foi o contrário disso. As partes interessantes do discurso de Dilma – como puxar as orelhas das nações que geraram a mais recente crise econômica global e a defesa do estado palestino – nada tem a ver, pelo menos diretamente, com o fato de Dilma ser mulher.

Já quando a presidente se refere ao protagonismo feminino, desde a campanha o discurso é uma coleção de clichês distanciados da realidade. Por exemplo. “Na língua portuguesa, palavras como vida, alma e esperança pertencem ao gênero feminino. E são também femininas duas outras palavras muito especiais para mim: coragem e sinceridade”. Truque pobre de retórica, já que as palavras morte, tortura e violência, assim como covardia e mentira também pertencem ao gênero feminino na língua portuguesa. E todas essas palavras pertencem de fato aos homens e mulheres encarnados na vida, independentemente do gênero.

Antes, em evento na ONU sobre a participação das mulheres na política, ao lado de Hillary Clinton e Michelle Bachelet, Dilma afirmara: “As mulheres são especialmente interessadas na construção de um mundo pacífico e seguro. Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos”. Com todo o respeito que Dilma merece como presidente legitimamente eleita, assim como por várias qualidades e aspectos de sua trajetória, isso é uma enorme bobagem. Alguém acredita que as mulheres são menos violentas que os homens?

Podem ser, por questões históricas e culturais, violentas de uma forma diferente. Mas até isso não é muito preciso. E mais estranho soa quando é dito por uma mulher conhecida por destratar seus subordinados a ponto de levar alguns às lágrimas e dá murros na mesa como qualquer chefe bruto que ninguém quer ter não por ser exigente, mas porque berrar com alguém é desrespeitoso – e, como as empresas já começam a aprender, improdutivo. E, neste caso, pouco importa se o destempero seja praticado por um homem ou uma mulher. Há um bom tempo, esse tipo de comportamento deixou de ser confundido com firmeza e autoridade, independentemente de gênero.

Outro aspecto raso dessa afirmação sobre as mulheres e a geração da vida se evidencia no fato de que vivemos um momento histórico onde os homens estão sendo chamados a ocupar seu lugar na educação e no cuidado dos filhos. Neste momento, valorizar a biologia na gestação da vida como algo que tornaria as mulheres mais aptas a governar apenas por serem mulheres é um tanto arcaico. Gerar a vida vem ganhando significados mais profundos no mundo complexo e com fronteiras menos definidas em que temos o privilégio de viver.

É bonito quando Dilma Rousseff diz no seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU o seguinte: “O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo”. Dilma refere-se à crise econômica global gerada pela Europa e pelos Estados Unidos. Mas seria importante que olhasse para dentro do país que governa e percebesse que não há nada mais velho do que a sua política para a Amazônia, muito semelhante à política da ditadura que ela combateu, tanto nas obras monumentais quanto na maneira autoritária como têm sido impostas à população brasileira e aos povos diretamente atingidos.

A maior obra do PAC, a hidrelétrica de Belo Monte, financiada em grande parte por dinheiro público, está a anos-luz de qualquer exemplo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Isso dito não por mim, mas pelos maiores especialistas brasileiros na área. Sem contar que Belo Monte tem sido imposta não só aos povos da floresta, mas a todos nós, ameaçando uma das mais ricas biodiversidades do planeta, estratégica para o futuro da humanidade, e também condenando à destruição a cultura e a vida de indígenas, ribeirinhos e agricultores.

A truculência no trato de Belo Monte está mais próxima das práticas do “velho mundo” do que das “novas formulações para um novo mundo”, para usar a expressão da presidente. A política do governo tem um bom exemplo neste vídeo em que o atual presidente do Ibama, Curt Trennepohl, deixa claro o modus operandi do Planalto – seu antecessor, Abelardo Bayma, aliás, pediu demissão por não suportar a pressão da Eletronorte para liberar Belo Monte sem o cumprimento das exigências da lei. Vale a pena assistir ao vídeo: é curto e contundente.

Quando estive na região que será alagada pela hidrelétrica, na Volta Grande do Xingu, deparei-me com a cena abaixo, protagonizada pelo Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), formado, convém não esquecer, por estatais como Eletrobrás, Chesf e Eletronorte, fundos de pensão e de investimento, como Petros, Funcef e Caixa FIP Cevix, construtoras como OAS, Queiroz, Galvão e Mendes Júnior, entre outras. Até a Vale entrou no consórcio por pressão do governo. A foto abaixo seria cômica, não fosse trágica. Revela a ideia que o Consórcio faz da nossa inteligência. Sim, sim, a Norte Energia destrói a floresta amazônica, mas recicla lixo.

Visão ambiental na Amazônia. (Foto: Eliane Brum / Arquivo Pessoal )

Visão ambiental na Amazônia. (Foto: Eliane Brum / Arquivo Pessoal )

A mesma presidente que enalteceu as vantagens da liderança feminina na ONU não recebeu as mulheres do Xingu que, com grande esforço, viajaram até Brasília para levar a sua voz e as suas reivindicações. Para quem viaja de ônibus, o percurso do interior dos travessões da Transamazônica até Brasília é muito mais penoso do que pegar o avião presidencial rumo a Nova York. A história do encontro que não houve me foi contada pela principal liderança feminina de Cobra Choca, comunidade de agricultores da Volta Grande do Xingu que tem colaborado para transformar o Brasil num dos maiores produtores de cacau do mundo – e fazem isso mantendo boa parte da floresta em pé.

Ana Alice Santos migrou do Paraná, onde trabalhava como doméstica desde os 6 anos de idade, para a Amazônia, onde se tornou agricultora. Ela me contou sua experiência com Dilma Rousseff comendo um cacau diante de sua casa cercada por floresta. E em nenhum momento foi possível esquecer que, se a sociedade não se fizer ouvir, toda a vida ali será afogada em breve por Belo Monte.

– Eu votei na Dilma. E a maior decepção que eu tive foi o diálogo que ela não teve com a gente. Em março, no mês das mulheres, nós fomos até Brasília: 1.800 pessoas. E ela não nos recebeu. Mostrou que não dá importância nenhuma para as mulheres da Amazônia. Chamaram até a tropa de choque, mas a gente saiu pacificamente. Fomos para conversar, não para brigar. Saímos derrotadas, mas tentamos de novo entre o final de abril e o início de maio. E ela mandou alguém da Casa Civil pegar o documento que trazíamos. Viajamos três dias e duas noites. E a presidenta não nos escutou. Foi quando decidi não votar mais. Não compensa você votar em quem não te representa. Não compensa votar numa presidenta que é uma vergonha para as mulheres. Porque nós, mulheres, tínhamos de fazer a diferença. E como a Dilma está fazendo a diferença? Matando as mulheres da Amazônia? Matando os seres humanos que aqui sobrevivem? Matando a nossa floresta, as nossas espécies dentro do rio? Esta presidenta mulher está matando a nossa vida ao matar o Xingu.

Em seu discurso histórico na ONU, Dilma Rousseff afirmou: “Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje”. Ao ouvir essa parte do discurso, pensei que era de mulheres como Antonia Melo e Ana Alice que Dilma falava em sua retórica politicamente correta. E que deveria dar minha contribuição para que essas vozes que tentam alcançar Dilma, mas que por ela têm sido repelidas, pudessem ser escutadas – se não pela presidente, pelo menos pela sociedade brasileira.

Vozes das mulheres do Xingu, cuja vida, a cultura e o futuro dos filhos estão ameaçados pela política para a Amazônia da “mãe do PAC”. Como mulher urbana, moradora de São Paulo, que compreende que o que acontece na floresta repercute não só no Brasil, mas no planeta, diz respeito não só aos filhos e netos delas, mas também aos nossos, compartilho da mesma angústia ao testemunhar a imposição de Belo Monte e o início do rastro de destruição que ela já começou a provocar.

Gostaria que a primeira mulher presidente botasse em prática no Brasil o que disse nos Estados Unidos: “Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos”. Não por ser mulher, mas porque dignidade não depende de gênero.

(Publicado na Revista Época em 26/09/2011)

Um procurador contra Belo Monte

Conheça o homem que se tornou o flagelo do governo ao lutar contra a maior e mais polêmica obra do PAC

Se um dia a história da construção da Hidrelétrica de Belo Monte for bem contada, o procurador da República Felício Pontes Jr. será uma espécie de herói da resistência. E um dia as histórias acabam sendo bem contadas. Nascido no Pará, com um avô canoeiro e o outro caminhoneiro, ele é também herdeiro deste duplo movimento – o dos rios que carregam homens e cargas sem ferir a floresta, o das estradas que a sangram. Felício – ou “benajoro” (chefe) – como é chamado pelos caiapós em sinal de respeito, é a principal voz no Ministério Público Federal (MPF) contra Belo Monte. Desde o início deste século, o grupo de procuradores no Pará já entrou com 11 ações contra a hidrelétrica. Felício costuma escrever seus argumentos durante as madrugadas, tempo de silêncio em que a escrita, assim como a indignação, fluem melhor. E parece estar perturbando a Norte Energia S.A. (NESA), o consórcio responsável pela construção da usina, que em maio pediu seu afastamento ao Conselho Nacional do Ministério Público, por causa do seu blog Belo Monte de Violências. Em vez de responder às dúvidas e críticas expostas no blog, que vale a pena ser lido, o consórcio preferiu calar seu autor. Não conseguiu.

Aos 45 anos, católico, três filhos, Felício é um homem sem os maneirismos pomposos que costumam estar ligados aos que lidam com o Direito. No rosto moreno, carrega os traços de um antepassado indígena, cuja história se perdeu na cultura da família, mas permanece como registro genético e sentimental. Fez mestrado em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC do Rio de Janeiro, cidade onde trabalhou como advogado para favelados e crianças de rua. Depois, tornou-se oficial do Unicef em Brasília. Mas, quando chegou a hora de escolher seguir carreira internacional ou permanecer no Brasil, fez concurso para o Ministério Público Federal e voltou para o Pará. Desde então, passa parte do expediente bem longe das salas com ar-condicionado. No calor de 40 graus que seguidamente acomete a região, ele sacoleja em voadeiras pelos rios da Amazônia, dorme em redes nas aldeias indígenas, enfrenta corredeiras e trilhas de quilombos para alcançar os povos mais invisíveis do país. Felício Pontes Jr. é um procurador que suja os sapatos na terra às vezes ensanguentada do Brasil.

Nesta luta com mais perdas do que ganhos, como são em geral as lutas que valem a pena, ele já viu tombar amigos demais. De tiro, como Dorothy Stang, com quem foi o último a falar antes de a missionária ser assassinada. E, quando não consegue se fazer escutar na burocracia de Brasília, onde os povos da floresta são vistos como um entrave ao desenvolvimento, às vezes o procurador chora por não poder levar uma resposta a quem às vezes só conta com ele para se manter vivo.

Na entrevista a seguir, Felício nos ajuda a compreender um projeto que há mais de 20 anos vem sendo combatido pelos movimentos sociais e por muita gente que hoje está no poder – e que saiu do papel justamente no governo Lula e no de sua sucessora, Dilma Rousseff. Para implantar a maior e mais polêmica obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), além de recursos públicos, o governo tem comprometido sua reputação internacional. Por que tanto empenho? O procurador afirma que o setor elétrico é “a caixa-preta do governo”. E nos dá algumas pistas para compreender uma das obras mais mal contadas de nossa história recente.

Ao falar no programa de conferências TEDx Ver-o-Peso, no final de agosto, Felício terminou sua palestra aplaudido de pé. Encerrou-a parafraseando Darcy Ribeiro: “Fracassei em quase tudo que fiz. Tentei defender os povos da floresta, e essas mortes mostram que não consegui. Tentei defender os rios amazônicos, e Belo Monte mostra que não consegui. Tentei defender a floresta, e o desmatamento insiste em mostrar que fracassei. Mas meus fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

É uma grande frase. Mas, no caso de Belo Monte, a luta ainda não acabou. Fui até Belém do Pará para conhecer o procurador que tem enfrentado o governo federal na implantação de Belo Monte porque queria trazê-lo para esta coluna. É uma entrevista longa, como todas as publicadas neste espaço. Um bom programa para a Semana da Pátria, quando as máquinas já são cada vez mais numerosas na região da Volta Grande do Xingu e os migrantes vão chegando aos milhares nesta novela trágica, tantas vezes reprisada na Amazônia. A seguir, a história contada não por um burocrata da Justiça, mas por um homem de Justiça.

Por que você acha que, depois de seis eleições presidenciais democráticas, a visão do governo sobre a Amazônia continua tão semelhante à da ditadura militar, com a realização de grandes obras e a imposição autoritária pelo poder central?
Felício Pontes Jr. – Os efeitos da ditadura não terminam com ela. A opressão diante de qualquer discussão com a sociedade sobre como e para quem vamos gerar energia ainda é resquício da ditadura. Diz-se que o assunto é “técnico” e pronto. É como se essa palavra fosse mágica: tem o poder de afastar qualquer discussão sobre o assunto. Eu mesmo cairia nessa conversa se não tivesse, por missão profissional, de vasculhar o setor de energia elétrica do Brasil. E posso dizer hoje que esta é a caixa preta do governo. Não há nenhuma área tão fechada em si mesma como esta. Mesmo com as décadas que se passaram entre os projetos hidrelétricos mais antigos e o governo atual; mesmo que o Brasil tenha atravessado a transição entre uma ditadura para o regime democrático; mesmo que os algozes da presidenta tenham sido substituídos por ela no comando da nação; a verdade é que as práticas governamentais de construir hidrelétricas mudaram muito pouco, quase nada. O setor elétrico no fundo é dirigido pelas mesmas pessoas que estavam no comando décadas atrás. Esses burocratas descartam oportunidades de promover a eficiência energética, tão em moda na Europa e na Califórnia. Nada que traga o novo é considerado.

O que mais chama a sua atenção nesta insistência do governo em construir Belo Monte?
Felício – Há uma coisa em Belo Monte que chama muita atenção de qualquer um que tenha de lidar com o processo, com volumes e mais volumes de processos, que é a mentira do Governo. Eles fogem dos debates e, como o nosso sistema judiciário funciona mal, o sistema não propicia que quem tenha razão consiga alguma coisa neste país. Tanto é que, nas nove últimas ações, obtivemos nove liminares e todas elas foram suspensas pelo tribunal (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), em Brasília. Normalmente, quase sempre, por uma pessoa só, que é o presidente do tribunal. E com base nesta suspensão, eles vão levando a obra.

Qual é a sua hipótese sobre o fato de as liminares caírem sempre em Brasília?
Felício – Primeiro, é um distanciamento mesmo, do Judiciário. Existem dois ramos do Judiciário, muito evidentes para mim, hoje. Um é o carreirista. É aquela pessoa que faz concurso para juiz porque é um emprego que dá um dinheiro bom. Do tipo: “Vou ter uma aposentadoria tranquila”. E eu vejo quem vai para Brasília, salvo raras exceções, nesta posição de que é um emprego bom, com status e aposentadoria, e que permite chegar aos tribunais superiores, independentemente do que fará lá. E, do outro lado, são poucos os juízes, realmente, com vocação de juiz. Vocação de juiz tem aquele que enfrenta, que olha o que é justo, o que é injusto. As pessoas aqui (no Pará), de um modo geral, são aquelas que chegaram agora no Judiciário, e foram estas que concederam as decisões para a gente. Muitos deles ainda têm o espírito de mudança, do romantismo, da vocação. Mas quando isso chega às instâncias superiores, ou seja, nos mais velhos, muda tudo. E eles têm o poder de segurar, sentar em cima, e o processo não anda.

O que acontece? As pessoas vão ficando cínicas ao longo da carreira no Judiciário?
Felício – Acho que a faculdade de Direito já faz isso. Eles doutrinam a gente de uma forma que, por mais revolucionário que você entre, sai conservador. Sabe aquele negócio da manutenção do status quo? A lei é “isso” aqui. Vocês têm de defender que “isso aqui” seja feito, não importa que “isso” cause uma distorção entre ricos e pobres, e que esta distorção seja uma das maiores do mundo. Isso não tem importância, tem de defender o que está escrito. Acho que é essa a tônica, de um modo geral, que a faculdade passa para a gente. Mesmo pessoas pobres, que chegaram ao Judiciário pobres, tornam-se conservadoras no contato com o meio. E a pessoa conservadora no Brasil vai assimilar essa teoria desenvolvimentista a qualquer custo, como se isso não se voltasse contra a gente, hoje, já que estamos vivendo na “sociedade de risco”. Mas eles não conseguem enxergar isso. Então é o desenvolvimento a qualquer custo.

Você acha que as decisões dos tribunais superiores, no caso de Belo Monte, têm a intenção de agradar o governo? Ou uma outra hipótese é que seriam o reflexo da ignorância com relação à Amazônia, ao que realmente é a Amazônia?
Felício – Como são muitas decisões, eu vejo as duas coisas. Nas últimas, me parece que o objetivo principal era agradar o governo. Por mais que você tenha um distanciamento da Amazônia, por mais que você não entenda nada da Amazônia – é clara a intenção de agradar o governo. Por que agradar o governo? Porque quem nomeia estas pessoas para o STJ (Superior Tribunal de Justiça) ou o STF (Supremo Tribunal Federal) é o governo. Nas decisões anteriores, eu acho que ficou mais evidente mesmo esta coisa do distanciamento. Os caras não têm a menor idéia do que é isso aqui. Não têm a menor idéia do impacto que esta usina vai causar. O povo da floresta é invisível. De Marabá para baixo, o povo da floresta é invisível. E é muito difícil você tentar defender os interesses de quem é invisível.

Por que você acha que a Amazônia é tão invisível para o restante do país, ainda que, paradoxalmente, seja tão visível?
Felício – Isso aqui é muito diferente. Tirando a parte que virou metrópole, como Manaus e Belém, é uma visão diferente de mundo mesmo. Se você juntar os ribeirinhos, a população mais pobre da Amazônia, à população mais pobre da periferia de São Paulo, por exemplo, acho que eles não conseguiriam nem falar entre eles, de tão diferentes que são. Têm uma visão de mundo completamente diferente. Se um não puder passar um tempo grande na casa do outro, eles não vão se entender. Me lembro de uma grande liderança indígena dos Tembé, na divisa do Pará com o Amazonas. Ele disse uma vez: “Eu só fiquei na aldeia quando era pequeno. Adolescente, me trouxeram para a cidade. E eu queria saber quem era rico na cidade, que me mostrassem um rico”. Aí mostraram para ele um fazendeiro. E mostraram que na fazenda tinha cavalo, boi… E ele disse: “Mas é só isso? Ele é rico porque tem isso? Então eu sou muito mais rico do que ele!” É outra visão de mundo. E isso é extremamente difícil de ser compreendido no centro-sul do Brasil.

A resistência à Belo Monte, assim como a outros grandes projetos, em geral é confrontada com alguns mitos do senso comum, espertamente difundidos e reforçados por aqueles que querem aprovar a obra o mais rapidamente possível. Gostaria que você comentasse alguns deles. O mais popular é aquele que opõe desenvolvimento à preservação ambiental. E transforma todos aqueles que resistem em “ecochatos”.
Felício – O desenvolvimento predatório se opõe à preservação ambiental. Não enxerga o meio-ambiente como o lar, a casa, o habitat de todos os seres vivos. Mas sim como recurso econômico a ser exaurido para gerar lucro. E quase sempre lucro para poucos. É dessa visão de desenvolvimento que temos de nos livrar. Precisamos tecer outro tipo de racionalidade para lidar com o fato de que os recursos naturais de que dispomos são finitos, e que temos responsabilidade, não só com o nosso conforto, mas também com a sobrevivência das gerações futuras. A ideia de verdadeiro desenvolvimento não pode deixar de levar em consideração a preservação ambiental. Se deixar, não é desenvolvimento. Belo Monte é exemplo disso. Como a hidrelétrica não leva em conta o aspecto ambiental, a geração de energia será reduzida. Isso porque um dos efeitos da mudança climática sobre a Amazônia é a diminuição do volume de água dos rios. Outro fator é o desmatamento. No caso de Belo Monte, ele pode chegar a 5.300 quilômetros quadrados além da área inundada. Haverá a extinção de espécies ameaçadas que nunca foram estudadas. A Volta Grande do Xingu é considerada de “importância biológica extremamente alta” pelo próprio Ministério do Meio Ambiente (Portaria MMA n° 9/2007). E ela será impactada de maneira irreversível, já que haverá a redução de 80% a 90% da vazão do Xingu em 100 quilômetros de sua extensão. Hoje, ninguém tem dúvida de que a falta de floresta influenciará na vazão do rio. Portanto, trata-se de um falso projeto de desenvolvimento – ou um projeto de “desenvolvimento predatório”.

Hidrelétricas na Amazônia só podem ser consideradas limpas se estiverem falando em limpeza étnica

Já é possível medir o que este tipo de “desenvolvimento” causou à Amazônia e a todos nós?
Felício – O desenvolvimento predatório não trouxe desenvolvimento aos povos da floresta – ou trouxe um mínimo diante das perdas. Ele começou a ser implantado na época da ditadura militar – nos anos 70. Passados mais de 30 anos, já é possível medir o resultado desse modelo aqui no Pará, o locus privilegiado. O estado é o campeão em trabalho escravo e em mortes de trabalhadores do campo no Brasil. Estes são os resultados de uma política de desenvolvimento que não leva em consideração os povos da floresta. Ao contrário, nega a sua existência. Em oposição central a esse modelo está o socioambientalismo. Ele parte de um princípio básico: a articulação entre a biodiversidade e a sociodiversidade. Dito de outro modo, ele concilia desenvolvimento econômico com preservação ambiental. É concebido e voltado para os povos da floresta, que possuem centenas de anos de conhecimento sobre a forma de lidar com os recursos florestais sem o impacto suicida. O socioambientalismo possui um campo fértil no Brasil – o líder mundial em biodiversidade. Embora tenha sido estudado apenas 5% do potencial farmacológico da flora mundial, um quarto dos medicamentos usados está baseado em produtos vegetais. Veja o quanto poderíamos lucrar com eles. Imagine se tivéssemos estudado 50% apenas do potencial farmacológico das espécies florestais da Amazônia. É fácil perceber o que isso significaria em geração de emprego e renda com produtos que não sejam predatórios, como são a madeira, o gado, a soja, ou a energia. Mas nada disso é levado em consideração.

Outra ideia, amplamente difundida no caso de Belo Monte, como foi nas usinas anteriores, é a de que as hidrelétricas são energia limpa e barata. Mas você sempre contesta essa apregoada vocação das hidrelétricas…
Felício – Hidrelétricas, principalmente na Amazônia, estão muito longe de configurar energia limpa. Não só pela emissão de metano, um dos piores gases do efeito estufa, mas também pelos danos ambientais. No caso do metano, Belo Monte vai produzir quase a mesma quantidade emitida por São Paulo, a maior cidade do Brasil, segundo o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). Belo Monte, de forma singular, causará inundação à montante da barragem e seca à jusante. Nessa proporção, ela é inédita. Apenas essas consequências já seriam suficientes para derrubar a ideia de que hidrelétricas produzem energia limpa. E essa constatação derruba também a tese de que a energia produzida é barata. Não é. E só foi no passado porque não estavam valorados economicamente os danos ambientais e sociais. Hoje, não valorar os danos ambientais e sociais é se colocar fora do processo histórico. O MPF (Ministério Público Federal) cobra na Justiça o custo de 100 quilômetros do Xingu morto; o custo pelo desaparecimento de 270 espécies de peixes na Volta Grande, alguns que só existem lá; o custo do desmatamento para a formação dos reservatórios; o custo do desmatamento associado; o custo pela perda do lençol freático. Do ponto de vista social, temos o custo causado pelo impacto sobre indígenas e ribeirinhos, como o fim a navegação, a proliferação de mosquitos e de doenças como malária e dengue, que deverão levar à necessidade de remoção, o que é proibido pela Constituição, no caso dos indígenas. Não há nada de limpo nisso, a não ser que estejam falando de limpeza étnica.

E qual será o custo real de Belo Monte?
Felício – Isso tudo será somado em Belo Monte. A ação judicial para valorar já existe. E deve estabelecer o real custo da obra, tornando-a inviável economicamente. Ou seja, se todos os custos sociais e ambientais fossem respeitados e compensados, a usina seria inviável. É uma equação que nunca vai fechar. As hidrelétricas fornecem energia supostamente barata porque não são incluídos os custos socioambientais. Aliás, a energia eólica já deu sinais de que terá em breve o preço mais barato no Brasil. Sobre a solar, há perspectiva de que seus custos sejam reduzidos à metade em dois anos. Fruto de uma política agressiva da China, que deseja seu barateamento, e pesquisas de universidades americanas. Portanto, hidrelétricas na Amazônia são sujas e caras.

Nós, da Amazônia, estamos mais longe de Brasília do que os chineses

A ideia do risco de apagão no país também aparece com frequência. Neste caso, afirma-se que, se Belo Monte não for construída, o Brasil correria o risco de “apagão”. Também se difunde que a energia será destinada à população em geral ou aos mais pobres.
Felício – A propaganda do risco de apagão está presente desde a primeira ação judicial do MPF contra Belo Monte. Na imprensa da época, 2001, afirmava-se que, se não fosse construída Belo Monte naquela década, o Brasil entraria em colapso. Não entrou. E dificilmente entrará num futuro próximo, especialmente pela entrada da energia eólica no sistema nacional, que é maior do que o governo esperava. Todos os planos decenais erraram para mais a quantidade de energia que a nação precisa para continuar crescendo. Isso sem falar na repotencialização das usinas antigas, utilização da biomassa desperdiçada, mudança das linhas de transmissão e eficiência energética, que não existe no Brasil. Estudos da USP (Universidade de São Paulo) mostraram que o ganho de energia, ao trocar as turbinas antigas de hidrelétricas com mais de 20 ou 30 anos, seria na ordem de 10% de toda a energia gerada no Brasil. E isso sem a construção de nenhuma barragem. Só fazendo com que as já existentes se tornem mais eficientes. De outro lado, a energia gerada por Belo Monte não é destinada à população brasileira. Será destinada aos projetos de extração mineral e de indústrias eletrointensivas (siderúrgicas, por exemplo), que empresas multinacionais pretendem instalar na Amazônia. Até nisso Belo Monte é igualzinha a Tucuruí, que foi construída para atender as necessidades energéticas da Albrás – conglomerado japonês que se instalou no Pará na década de 80. Hoje (a Albrás) paga um preço ridiculamente subsidiado pela energia que custou a casa e a vida de milhares de brasileiros. Um morador do município de Pacajá, em um debate sobre Belo Monte, fez a seguinte pergunta aos funcionários governamentais presentes: “Meu município fica a 150 quilômetros da usina de Tucuruí e até hoje não chegou energia elétrica lá. Se construírem Belo Monte, estaremos a 140 quilômetros de mais uma usina. Vamos continuar sem energia?”

Outra afirmação que se faz sobre Belo Monte é de que a população atingida é pequena e o impacto ambiental mínimo.
Felício – Falar em “poucos atingidos e impacto mínimo” é desconhecer os documentos do licenciamento. Trata-se de contar com a ignorância do povo brasileiro sobre a Amazônia. É minimizar a importância dessa região e dos brasileiros que vivem nela. É minimizar o fato concreto de que as riquezas amazônicas continuam, com Belo Monte, sendo destruídas e exportadas em troca de muito pouco ou quase nada. É minimizar a área específica da Amazônia onde Belo Monte está sendo instalada, a Terra do Meio, enclave fundamental para determinar a sobrevivência da floresta para os brasileiros do futuro. É minimizar, principalmente, a importância estratégica que a Amazônia tem para o futuro do Brasil. A Volta Grande do Xingu é um ecossistema precioso e delicado. Esse patrimônio estará perdido com a construção da usina. Portanto, o impacto não é mínimo, a não ser pela ótica do esgotamento irracional dos recursos, que parece ser a ótica do governo brasileiro. A convivência dos brasileiros com a floresta nessa área, em particular, resultou no desenvolvimento de técnicas de plantio, de pesca, de preservação florestal que também constituem patrimônio das gerações futuras. Esse tipo de discurso de impacto mínimo dá a impressão incômoda de que nós, da Amazônia, estamos bem mais longe de Brasília do que os chineses. Esse discurso nos reduz a brasileiros de segunda classe.

A presidenta deveria ouvir cientistas e técnicos do seu próprio governo, em vez de repetir a propaganda da Norte Energia

Dilma Rousseff afirmou, em 9 de agosto, no programa “Conversa com a presidenta”, o seguinte: “Belo Monte será fundamental para o desenvolvimento da região e do país, e o reservatório não vai atingir nenhuma das dez terras indígenas da área. Os povos indígenas não serão removidos de suas aldeias”. O que você, que tem denunciado sistematicamente as ilegalidades de Belo Monte, tem a dizer sobre isso?
Felício – A última ação judicial do MPF contra Belo Monte prova, com documentos do governo, que os impactos sobre as etnias Arara e Juruna serão tão grandes que eles não poderão permanecer nas terras indígenas. E isso é lógico. Como os índios – pescadores e navegadores há séculos – vão continuar vivendo em um rio que não está mais lá? Eles terão que mudar as aldeias de lugar porque pelo menos 80% da vazão natural do rio será desviada. Trata-se de uma região de floresta de aluvião, que depende do alagamento sazonal para que as espécies vegetais e animais se multipliquem. Sem o alagamento, a floresta, os animais e os peixes vão morrer. Isso está dito nos pareceres técnicos do próprio Ibama também. Basta ler os documentos que estão disponíveis no site do órgão. Todas as licenças foram concedidas com base em critérios políticos vagos, ao custo da demissão de vários diretores do Ibama e em total desacordo com as conclusões dos técnicos. Por isso criou-se essa situação absurda, meio kafkiana, em que a presidente da República pode falar algo sem nenhuma base nos documentos que os próprios técnicos do governo elaboraram. A Norte Energia chegou a veicular uma propaganda nos aeroportos em que apareciam os desenhos de uns indiozinhos gordos na Volta Grande do Xingu. Mas quem acredita que haverá saúde e crianças fortes numa região que vai perder 80% da água? Melhor seria se a presidente ouvisse os cientistas das universidades e institutos brasileiros e os técnicos do seu próprio governo, em vez da propaganda do empreendedor.

O MPF e parte dos movimentos sociais têm afirmado que Belo Monte é apenas a primeira usina do Xingu. Sua implantação seria apenas uma estratégia para vencer a resistência da população e, assim que a primeira se torne fato consumado, as outras seriam implantadas. Afirmam também que as usinas são um pretexto para alcançar o verdadeiro objetivo por trás do projeto: a riqueza mineral embaixo das terras indígenas, flonas (florestas nacionais) e resex (reservas extrativistas) da região. Por que vocês afirmam isso e quais provas têm do que dizem?
Felício – Belo Monte não pode ser uma usina apenas. Não tem lógica. Mesmo sem os custos socioambientais é dinheiro demais para pouca energia. A usina não gera nada durante pelo menos quatro meses do ano. Que empreendimento se sustentaria fechado durante tanto tempo? A única lógica é fazer mais barragens rio acima para armazenar água para o período de estiagem. Em lugar do formoso Xingu, teríamos imensos lagos. O que significa água parada, proliferação de insetos, doenças. Morte. Significa também a remoção de povos indígenas, ainda que ela seja inconstitucional. O caminho para a exploração mineral dessas terras estaria aberto. O mesmo se pode dizer das unidades de conservação.

Por que você acha que, no Brasil, índios, extrativistas e quilombolas, que são populações que você escuta, conhece e com as quais trabalha, são vistos como entraves ao desenvolvimento? Que tipo de mentalidade e experiência histórica move esse olhar?
Felício – Os povos da floresta são invisíveis, ou uma abstração para o governo e para maioria dos brasileiros. Essas pessoas, sua experiência e sua maneira única de extrair da floresta o necessário, sem devastá-la, estão sendo permanentemente removidas pelo “progresso” à brasileira. São pessoas que poderiam ensinar a todos nós como o desenvolvimento humano está diretamente conectado à preservação ambiental. Porém, em vez de serem ouvidas, estão sendo expulsas. Projetos que dão certo, como os PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável) Esperança, idealizados por Irmã Dorothy, ou como tantas famílias que vivem nas Reservas Extrativistas e Terras Indígenas da Amazônia, são sistematicamente ameaçadas por pistoleiros, fazendeiros, grileiros e madeireiros. Penso que todos esses ameaçados o são justamente porque representam a prova viva de que é possível aliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental e, principalmente, com redistribuição de renda. Quando o governo brasileiro propõe e executa, da forma como está executando, um projeto violento como Belo Monte, está se enfileirando ao lado daqueles que ameaçam agricultores, quilombolas, indígenas, ribeirinhos. É um projeto de uma violência simbólica, cultural, que todos nós que vivemos aqui estamos sentindo. Estamos sentindo que o nosso governo não respeita o nosso jeito de viver na Amazônia. Nosso governo acredita que o bom para o Brasil é substituir os rios da Amazônia, em torno dos quais toda nossa vida é estruturada, por barragens. Ou é ignorância – ou é má fé.

Os índios me ajudaram a quebrar tabus

Por que você quis fazer Direito?
Felício – Meus avós compreenderam que a sua geração estaria aniquilada do ponto de vista de educação. Um ficaria como caminhoneiro a vida toda, o outro como canoeiro. Mas os filhos iam estudar. Meus pais conseguiram se formar em Direito e fizeram a mesma coisa com os filhos. O interessante é que eles não queriam que eu fizesse Direito. Nunca disseram isso na minha cara, mas eu sabia que eles não estavam satisfeitos. Porque o Direito, para quem está na Amazônia e tem uma visão mais humanista, é extremamente ingrato. A história da Amazônia é uma história sangrenta, de genocídio, mesmo, da população local. O que sempre predominou aqui foi o que veio de fora. A história inteira é assim. Eles sabiam do sofrimento que é tentar fazer alguma coisa diferente. Para eles, o MPF me salvaria de tudo isso. “Agora ele está abrigado”. Mal sabiam eles que o perigo seria maior ainda.

Mas qual era o desejo que te movia?
Felício – Eu era muito ligado aos movimentos da Igreja Católica, que era quem fazia oposição à ditadura aqui na Amazônia. Naquela época, a Teologia da Libertação fervilhava. Eu fazia retiros com as comunidades de base. Estava estudando ainda, mas para eles eu era o “doutor da Capital”. Eu não conseguia chegar lá e me ver diferente do que eles eram. Era toda a história da minha família que estava ali na minha frente, mas aquelas eram pessoas que não puderam ou não tiveram a astúcia, a visão que meus avós tiveram, de botar o pessoal para estudar e sacrificar uma geração para que a outra pudesse viver melhor. Se meus avós não tivessem feito isso, eu estaria na posição invertida: estaria sentado lá e um outro falando.

Era como um espelho?
Felício – Exatamente. O meu espelho eram as comunidades. E era uma coisa que me doía muito. Em vez de me dar prazer, me dava uma angústia muito grande ver aquelas pessoas sendo espoliadas de todos os lados. Quando eles eram serviçais, por exemplo, numa empresa ou numa fazenda que surgia, os direitos trabalhistas não eram pagos. Ou era um grileiro que chegava com um papel na mão dizendo: “Olha, eu sou dono da sua terra”. “Mas como? Esta terra é do meu tataravô, passou para o meu bisavô, a gente está aqui e nunca teve documento da terra.” Mas o cara veio com um documento, e eles perdem tudo. Isso me doía muito. Por isso eu digo que foi um aprendizado doloroso, porque eu via aquilo que eu não queria ver. Aquela podia ser a minha família. E a situação era completamente injusta. Isso me moveu a fazer Direito. Isso fez com que eu dissesse: “Não, eu tenho que fazer alguma coisa para mudar isso aí”. E depois, dentro do Direito, era o Ministério Público que nascia com a Constituição de 1988. E o Ministério Público era o grande defensor da sociedade. Então é aqui que eu vou, pensei.

Por que você foi para o Sudeste do país e depois decidiu voltar para a Amazônia?
Felício – Os índios lá de Santarém dizem o seguinte: que tu podes ir num lugar pela primeira vez, mas que tu te sentes tão bem nesse lugar, tão bem, que parece que já foi muitas vezes, já conhece aquilo. Uma das teorias é que o umbigo da pessoa foi parar naquele lugar. Aqui se tem o costume de jogar o umbigo no rio quando a pessoa nasce, para alimentar os bons fluidos. Nunca perguntei, mas eu acho que meu umbigo foi parar em qualquer lugar na calha do rio Amazonas. Porque é interessante como eu me sinto bem nesses lugares. Em muitos deles eu fui a primeira autoridade pública a pisar ali.

Onde?
Felício – Em comunidades quilombolas, por exemplo, encravadas em lugares tão remotos que é preciso passar por rio, corredeira, tudo. Para mim era ótimo viajar assim. E fui a primeira pessoa com posto de autoridade a entrar nesses lugares. E é fantástico. Eu aprendi muito com eles. Com TODOS eles. E fui aprendendo a cada viagem. Veja o Xingu, com sua enorme diversidade cultural. Numa margem do rio há uma etnia que adota a poligamia. Na margem oposta há um povo que é monogâmico, com uma sociedade estratificada, com um chefe. Em outra, você não tem chefe de ninguém, cada família manda no seu nariz. Essa diversidade cultural é extremamente rica, e foi muito importante para mim porque quebrou um monte de tabus. Todos os tabus impostos durante a infância, eu fui quebrando ao conhecer essas realidades tão diversas.

Que tabus, por exemplo?
Felício – A poligamia era um. Eu tinha um preconceito muito grande, por achar que isso era impossível. Até conhecer um dos povos indígenas que tem o menor tempo de contato conosco, com a civilização da gente. São os Zo’é. Eles são fantásticos. Da Ilha do Marajó para o oeste da Amazônia é o único grupo tupi. Uma das teorias é que eles não aceitaram o contato com os portugueses e vieram fugindo. Entraram na calha do rio Amazonas e subiram o rio Trombetas. Estão lá, próximos a Guiana, Suriname. Uma única pessoa, que devia ter uns 20 e poucos anos, falava um pouco de português. Eu estava num processo de separação naquele tempo, com dois filhos. E estava lá trabalhando com essa etnia. Eles são poligâmicos no sentido de que você pode encontrar uma mulher com vários homens, ou um homem com várias mulheres. E passou a mulher deste índio que falava um pouco de português, e ela tinha o dobro da idade dele. Mas passou com três índios atrás. Aí ele falou para mim assim: “Minha mulher”. E eu disse: E esses aí? E ele respondeu: “Estes são os maridos dela”. Tu és mais um marido? “É, eu sou o quarto marido”. E então ele falou: “Mas eu vou me separar”. Como é que é? “Eu vou me separar…”. E me acendeu a luz, porque eu estava num processo de separação e, embora não fosse uma briga, o processo de separação é sempre meio traumático, doloroso. E aí ele disse assim para mim: “Eu vou me separar porque ela não me procura mais. Eu fico aqui esperando, e ela não vem à noite”. Falou assim. E como é a separação? Ele disse: “É assim: eu vou lá, olho para ela, pego a minha rede, tiro, e levo para outra maloca. Pronto. Eu já estou separado”. Aí eu disse: Pô, que legal, isso. E aí vai para onde? “Tem outras mulheres aí, e a gente vai ver com qual vai dar certo…” E tu podes ter várias mulheres? Ele disse: “Eu posso. Se eu tiver uma roça grande, eu posso ter várias mulheres”. Ele perguntou para mim assim: “E tu? Quantas mulheres tens?” Eu disse: Só uma. “Ah, então tua roça é pequena, né?”

E o que essa história mudou no seu processo pessoal de separação?
Felício – Eu voltei dessa viagem, sentei com minha ex-mulher e disse: Vamos simplificar essa coisa?

Tipo, posso pegar minha rede?
Felício – Tudo o que eu tinha em casa se resolveu em uma mochila grande. Sabe aquela mochila que eu levava para as caminhadas? Uma mochila de barraca, de camping. Tudo o que eu tinha ficou lá dentro. O processo de separação foi tão simples depois dessa viagem…

O que mais você aprendeu com os povos da floresta?
Felício – Toda vez que a gente vai até esses povos é porque está acontecendo alguma bronca muito grande, que nem a Funai deu conta. Ninguém vai lá porque está tudo bem. E sempre vou com uma ideia de argumentação jurídica e volto com outra. Porque a realidade é muito mais forte do que qualquer teoria. E ela muda a gente mesmo. Muda tanto do ponto de vista profissional quanto do ponto de vista pessoal.

Como é a sua rotina?
Felício – Eu tento estar o tempo todo em contato com eles. E toda vez que eu volto, em geral eu tenho de entrar com uma ação contra alguém. Ou contra o governo, ou contra algum fazendeiro, ou contra uma empresa mineradora. Aí eu vou estar numa sala, com um juiz na minha frente, e eu preciso convencer o juiz de que estou certo. Acho que não existe meio melhor de fazer isso do que eu relatar para ele a realidade. E isso faz uma diferença muito grande, porque, quando eu enfrentar algum procurador da União, por exemplo, defendendo o Governo, mas que nunca foi lá, que não pisou nessas áreas, ou o advogado de uma multinacional que não conhece nada da Amazônia, com um grande escritório na Avenida Paulista, um andar inteiro, então eu saio na vantagem.

Uma vantagem enorme…
Felício – Enorme. Porque o cara não se dispôs a comer carne de veado – e às vezes não tem nem o que comer. Eu sempre tento levar alguma coisinha, que a gente possa dividir e que também não agrida a cultura deles. Mas recentemente a gente acabou passando mais tempo do que devia e não tinha mais comida. Aí, o chefe da aldeia me chamou e disse: “Vamos comer aqui em casa”. Quando cheguei lá, era picadinho de tucunaré no urucum com farinha. O aspecto da comida era extraordinário, qualquer chef ia ganhar prêmio com aquela comida que estava ali. Ele conseguiu fazer um tempero do urucum e deixar o peixe vermelho. Ficou uma coisa… Olha, eu, na França não comeria tão bem.

Já vi malocas com uma arquitetura tão espetacular quanto os prédios de Paris

O que você já comeu, e em que lugares já dormiu para conhecer a realidade desses povos?
Felício – Ah, eu durmo onde eles dormem. Eu gosto mais de rede do que de cama, então isso me dá uma vantagem muito grande ao ir para esses lugares. E todos os tipos de caça que você imagina que exista, carne de veado, de paca, de tatu, tudo isso eu já comi. Algumas fizeram bem, outras nem tanto, mas eu tenho um respeito muito grande por essas culturas. Eu digo que a gente pode sair daqui e ir para os Estados Unidos, para a Europa. É tão fácil de ir e achar que é uma cultura diferente, mas no fundo é a mesma coisa. Não consigo achar tanta diferença entre estar nos Estados Unidos ou na Europa, em passar 20 horas viajando e ir para um outro continente, e passar 20 horas viajando dentro de um rio, em uma canoa, para chegar a uma área destas. Isto é diferente. Isto é fantástico. Quer ver coisa diferente, não é ver a Europa. É claro que é diferente para a gente, mas é um “diferente” dentro da mesma civilização. Aqui, não, aqui a civilização é outra. A arquitetura é outra. Eu já vi malocas construídas de uma forma fantástica, com uma arquitetura fantástica, que eu olhava e ficava tão deslumbrado quanto com os prédios de Paris.

E o risco?
Felício – O risco é sempre grande. Eu confesso que, toda vez que tenho de ir para lá, tenho de enganar a minha família, principalmente meus pais, dizendo que eu não estou indo, para evitar a preocupação. Porque só vamos quando há um conflito grave. E a família sempre tem muito medo de que eu possa não voltar.

Como você vai?
Felício – Normalmente, eu vou só. Ou com um assessor… E a Polícia Federal nem sempre está disponível. Aliás, cada vez está pior. Quando tem diária, não tem gente; quando tem gente, não tem infraestrutura. E eu não posso dizer para os índios: “Olha, eu não vou porque a Polícia não tem…”, porque eu sei que o problema é grave. Quando eles chamam tem que estar lá.

Que nome os índios dão a você?
Felício – A maioria chama de “o procurador”. Nos caiapós do tronco Gê, que tem toda uma hierarquia, eles chamam “benajoro”, que significa chefe. Eu me sinto assim, com uma responsabilidade enorme quando eles dizem: “o benajoro vai falar…”

Qual foi o maior risco que você correu? Já foi ameaçado de morte?
Felício – Acho que o maior risco foi com uns madeireiros em Santarém, na época em que estava iniciando a Lei de Crimes Ambientais. Eles nunca tinham sido processados penalmente pelos estragos que tinham feito à floresta. Eu era procurador em Santarém, meu primeiro posto. E aquele foi um momento de muita tensão. Ninguém me ligou e falou: “Olha, eu vou te matar”. Mas o pessoal da Polícia Federal, que estava monitorando, veio falar comigo e disse: “Olha, eles estão armando alguma coisa. Em todas as reuniões de madeireiros que a gente conseguiu infiltração, o teu nome está lá dentro. Tu estás correndo risco”. Então foi um período muito ruim, porque eu tinha que fazer a cada dia um percurso diferente, e Santarém é uma cidade pequena. Foi um período bem difícil também porque o poder político local era apoiado por eles, e a gente não tinha apoio de ninguém. E eu era o único procurador lá.

Você sentia medo?
Felício – Sentia. Eu posso até não ter sido seguido, mas você sabe o que o medo faz com a gente. Eu não podia sair lá na cidade, não tinha vida social na cidade. Então, nos finais de semana, eu me refugiava nas comunidades ribeirinhas.

Voltei da viagem pelo Xingu chorando, de impotência

Dizem que o Xingu é um rio meio mítico, diferente dos outros. O que é o Xingu para você?
Felício – Ah, o Xingu é sagrado. Todos os rios para mim são sagrados, por conta da infância que eu tive. Acho que aquela definição da Amazônia como povo das águas é extremamente verdadeira. Não é clichê, não. A gente depende da água. E o Xingu, com essa característica de ter um monte de gente, com culturas tão diferentes, vivendo de forma pacífica e respeitosa só existe porque o rio está vivo, porque o rio existe. Se o rio morrer, vamos ter consequências diretas nessa harmonia, nessa integração dos povos da floresta, sobretudo os povos indígenas, com a água. O Xingu é realmente algo especial. Eu consigo distinguir todos os rios por onde eu passo, por onde eu trabalho. Cada um tem a sua peculiaridade. Mas o Xingu é uma coisa diferente, sabe? Não saberia dizer a você o que faz o Xingu tão especial, tão diferente em relação aos outros, que também são tão especiais, tão diferentes. Acho que só essa etnodiversidade pode explicar isso. É incrível, porque qualquer outro projeto de desenvolvimento que vem de fora para a Amazônia costuma terminar num estrago muito grande sobre a biodiversidade local. E isso não se deu no Xingu. Eu acho que as pessoas de um modo geral sabiam da importância do Xingu e do respeito que tinham que ter por ele. Quando saio um pouquinho de Altamira, para mim parece uma natureza tão selvagem como se eu estivesse a milhares de quilômetros de qualquer comunidade com telefone.

O que você sente lá?
Felício – Eu sinto uma harmonia muito grande quando chego lá no Xingu. Mas, nos últimos tempos, por conta de Belo Monte, também uma tristeza, uma fúria, algumas vezes até ódio pelo que está prestes a acontecer. Foram os índios que deram o primeiro alerta que recebi sobre a morte do Xingu – ou a morte da vida, sobretudo na Volta Grande do Xingu.

Como foi?
Felício – Uma coisa surreal. Eu estava no Paquiçamba, a aldeia dos jurunas, na Volta Grande do Xingu, e um índio apareceu trazendo um pedaço de pau que tinha uma numeração. Era uma tábua métrica, medindo a enchente e a vazante do rio. E aí a gente já sabia que não era coisa boa que vinha por aí. Isso foi entre 1999 e 2000. O Manoel Juruna começou então a fazer um relato, dizendo o que iria acontecer se fosse barrado o Xingu. E foi uma coisa que deixou todo mundo que estava participando daquela reunião extremamente triste, porque ele narrou de uma forma tão melancólica, e ao mesmo tempo tão viva, o que ia acontecer. Ele dizia assim: “Olha, quando esse rio for barrado, não vai ter água suficiente para ter peixe”. E seguia na sua lógica: “Com a diminuição da água, não vai ter peixe; não tendo peixe nem água, nós vamos ter uma praga de carapanã (mosquito)”. Eu fui lembrar isso tudo quando li o Painel dos Especialistas (vale muito a pena ler no site do Instituto Socioambiental), dez anos depois. O que os maiores especialistas do Brasil diziam sobre as consequências de Belo Monte era exatamente o que o cacique da aldeia tinha dito.

E como você se sentiu naquele momento?
Felício – Quando ele parou de falar ficou todo mundo me olhando, como quem diz: “E agora, o que nós vamos fazer?”. E eu assustado, porque, nossa, o que eu vou dizer aqui? Só faltava a palavra oficial de que era Belo Monte que o governo iria fazer. Porque já havia toda a movimentação, as voadeiras no rio, a regra métrica, tudo estava indicando que era Belo Monte. Eu disse que, a partir daquele momento, iríamos ficar em contato o tempo todo, e iríamos até o final nessa luta. Era tudo o que eu podia dizer. Eu sei que isso deve ter causado uma frustração extrema neles, porque eles queriam que o procurador da República, naquele momento, dissesse: “Nós vamos barrar Belo Monte”. Eles queriam ouvir isso, mas eu não tinha como dizer isso. Eu lembro que voltei chorando na voadeira. Eu passei a viagem inteira de volta chorando. Eu sabia da gravidade, sabia que naquele momento havia um genocídio em curso ali, se iniciando na minha frente, e sabia que eu era extremamente impotente. Ser procurador da República e nada era a mesma coisa naquela hora.

Até hoje eu me culpo pela morte de Dorothy Stang

E como é lidar com essa impotência?
Felício – Ah, é terrível. Eu tento fazer um trato com todas essas populações que eu tenho de defender judicialmente: “Eu não tenho idéia se a gente vai ganhar ou não, não há como saber disso, mas vocês podem ter certeza de que a gente vai até o final, que a gente não vai se vender”. Porque uma das características que eles tinham dos órgãos que os tinham assessorado antes era de terem se “vendido” – digo isso entre aspas, porque a Funai, por exemplo, tem uma certa limitação; ela não pode ir contra o governo porque ela é parte do governo. Então, eles viam a independência do procurador, do Ministério Público, e diziam: “Vocês não têm rabo preso com ninguém, vocês podem ir até o final”. O duro é tentar explicar que “ir até o final” não significa que a gente vá vencer. Então é extremamente angustiante. Olha, a Dorothy (Stang) morreu, e até hoje eu me culpo. Porque a Dorothy morreu porque nós não fizemos o trabalho que tinha de ser feito. As pessoas foram assentadas naquele lugar, que era terra pública, e chegou o assassino dela com um papel na mão para tirar aquelas pessoas de lá. Eu lutava na Justiça e conseguimos bloquear, conseguimos que aquele papel não fosse aceito. E ele achou que, como não conseguiu na Justiça, tinha de matar a líder do movimento para conseguir a terra. Então foram muitas perdas nesse processo todo.

E antes da Dorothy foram muitos outros…
Felício – Eu conheci o Dema (Ademir Federicci, assassinado em 2001). O Dema era a voz mais eloquente contra Belo Monte. Nunca encontrei nenhum discurso mais inflamado, mais técnico, mais forte contra Belo Monte do que o do Dema. E quando a gente começou a campanha, o Dema era o expoente, não só pelo conteúdo que ele tinha, mas pela forma com que ele expunha esse conteúdo. Sabe aquele orador nato? Um cara que não tinha estudo nenhum, assentado na Transamazônica? Era o Dema. O Dema tinha aquilo. E foi assassinado em Altamira de uma forma que até hoje não dá para acreditar. Dizem que foram duas pessoas. Entraram na casa dele e queriam roubar uma televisão, ele gritou e acabou levando tiro. E todo mundo em Altamira, naquele tempo, dormia com a janela aberta. Roubar televisão? Até hoje foi muito mal explicado, e coincidiu com aquele início do processo contra Belo Monte. Logo depois foi o Brasília (Bartolomeu Moraes da Silva, assassinado em 2002), em Castelo dos Sonhos. E depois a Dorothy (assassinada em 2005), que foi para mim a morte mais traumática de todas. Eu convivia muito com a Dorothy nos últimos cinco anos da vida dela. A gente se falava quase toda a semana. E agora o Zé Cláudio e a Maria (assassinados em maio deste ano). Na última vez em que o Zé Cláudio esteve aqui, ele me mostrou uns sabonetes e um creme que fazia de castanha do Pará. Ele disse: “Olha, Felício, o cara do meu lado estava vendendo a árvore de castanha para os madeireiros. Aí eu perguntei para ele: ‘Por quanto você vendeu a árvore?’”. Não lembro mais o valor que ele disse, mas era em torno de uns R$ 300. O Zé Cláudio disse então para ele: “R$ 300 é o lucro que eu vou ter com a venda destes produtos. E isso aqui é só de uma árvore. Só que, daqui a pouco, no ano que vem, eu vou ter de novo esse lucro de R$ 300 e você não vai ter mais como tirar esse dinheiro porque vendeu a árvore”. Eram ideias extremamente perigosas.

De certo modo, você tem a missão constitucional de defender essas pessoas. E elas morrem. Como você lida com isso?
Felício – É uma dor muito grande, porque não é só a dor da perda de alguém que é extremamente especial, mas sinto também um certo remorso. De certa forma, eu poderia ter feito mais. Por que não conseguimos convencer o Judiciário dessas coisas? Por não conseguirmos, acabamos deixando essas pessoas numa situação extremamente vulnerável.

A população da Amazônia traz uma ideia inovadora, mas o Judiciário não entende porque é conservador

Como você lida internamente com essa impotência? Porque uma coisa é dizer para essas pessoas, publicamente, que vai lutar até o fim. Outra é estar em casa sozinho, diante dos seus limites. Como você lida com isso?
Felício – É terrível. Toda vez que eu tenho um trauma desses, ou tenho uma ação dessas perdida, ou sinto o Judiciário extremamente fraco, a primeira coisa que me dá é vontade de desistir de tudo e dizer: “Eu vou parar porque eu estou me enganando, estou enganando estas pessoas, a gente não vai conseguir…”

Enganando que tem Justiça, é isso?
Felício – Exatamente. O sistema judiciário não funciona, e eu não posso dizer para as pessoas que acreditem nisso, ou usar este sistema para defender essas pessoas. Eu tive, por várias vezes, à beira de abandonar tudo. Logo depois desse primeiro momento, eu tento então me apoiar em alguma coisa do tipo: qual é o efeito prático que vai ter a minha saída desse caso? Ou qual seria o efeito prático de deixar a profissão, porque na minha cabeça vem sempre isso, que deixaria a profissão para voltar a dar aulas. Mas qual seria o impacto prático disso? Acho que, nesta hora, eu me lembro da Resistência Francesa (movimento contra a ocupação da França pela Alemanha nazista, na II Guerra Mundial) e digo assim: a gente tem de, pelo menos, mostrar para esses caras que a gente não concorda com eles. Que eles venceram a gente, mas não conseguiram nos convencer de que esse modelo deles é o modelo certo, e o nosso modelo é o errado. Pelo menos isso tem de ser repassado. É por isso que eu continuo na luta. Mas o sistema judiciário está cada vez mais conservador. E o que me dá dor é ver mesmo que nós, da Justiça, fomos ficando extremamente conservadores. Quanto mais o país está crescendo, mais conservador ele se torna.

Qual é o impacto desse conservadorismo sobre a população da Amazônia e a ideia de desenvolvimento?
Felício – É enorme. Como essa população apresenta um modelo de desenvolvimento, de sobrevivência, de melhoria da condição econômica que é inovador, é preciso estar com a mente aberta para aceitar. E este é o verdadeiro desenvolvimento, porque concilia preservação ambiental com desenvolvimento econômico. Mas não vamos encontrar isso no Judiciário. É muito mais fácil para o Judiciário entender que a Vale vai chegar e vai abrir um buracão e exportar milhares de toneladas de minério de ferro, e que esse dinheiro vai beneficiar todo mundo… Isso é mentiroso, mas é muito mais fácil de ser compreendido pelo Judiciário do que dizer: “Nós vamos fazer aqui uma indústria de biotecnologia”. Essa população, com o conhecimento que tem sobre os óleos vegetais, pode fazer extratos de rejuvenescimento, perfumes, xampus, óleos para a indústria farmacêutica, e isso pode se tornar um grande polo de desenvolvimento. Mas não é fácil fazer com que o Judiciário entenda isso.

Você foi, possivelmente, a última pessoa a falar com Dorothy Stang antes de ela ser assassinada, não?
Felício – Antes de sair para o lugar onde ela foi morta, eu liguei para ela. Ela estava saindo e tivemos uma conversa completamente diferente de todas as outras. Ela falava assim: “Olha, Felício, continua. Vocês vão ter muitos obstáculos, mas continua na luta, não desiste. Nosso povo – ela falava sempre “nosso povo” – precisa de ti aí. Não desiste disso, que no final a gente vai vencer”. Ela nunca tinha falado nada disso, mesmo nas situações mais tenebrosas que a gente passou nos últimos cinco anos da vida dela. Nesse dia ela falou. Então, eu sempre tento me lembrar disso.

Você acha que ela teve um pressentimento?
Felício – Eu acho que ela sabia. Ela tinha a exata noção de que ia morrer e foi para aquela reunião. Acho que ela sabia que a morte dela podia significar a vitória do projeto.

Mais do que a vida…
Felício – Mais do que a vida. Ela tinha a exata noção disso. Ela se entregou, ela foi mártir, mesmo. Ela sabia que ia morrer naquela hora. E eu dizia para ela não ir. E esse foi outro trauma da minha vida. Por que eu não a segurei naquela hora?

Porque ela decidiu ir…
Felício – Hoje eu concordo com você, mas eu não achava isso uns anos atrás. Eu achava que podia ter interferido e podia ter evitado essa morte. Isso ficou na minha cabeça por muito tempo.

Essa história de Belo Monte já tem mais de 20 anos. Ninguém nunca poderia imaginar que justamente no governo Lula – e agora no de Dilma Rousseff – ia sair essa usina… Por que você acha que virou uma causa para este governo?
Felício – Acho que há duas coisas aqui. A primeira delas é uma coisa que o José Dirceu falou numa entrevista que li não sei onde, dizendo que o Lula é um cara conservador. O Lula é, de fato, um cara conservador. Ele não tem nada a ver com alguém que veio da base e que tem uma posição filosófica, sociológica. Não, nada disso. Ele é conservador mesmo. Nesse conservadorismo, ele vai se juntar com o que tem de mais conservador neste governo e vai assimilar que o grande desenvolvimento do país é isso mesmo: barrar todos os rios e construir. A segunda explicação que eu tenho para isso é a invisibilidade dos povos amazônicos. Acho que a invisibilidade é até maior do que isso. Não é só dos povos da Amazônia, é da Amazônia, mesmo. Houve muito dinheiro para o desenvolvimento da Amazônia. O problema é que a idéia de desenvolver a Amazônia era toda feita de Brasília para o Sul. O que desenvolveu lá é o que a gente vai desenvolver aqui. Por isso que hoje, apesar de todo o dinheiro, a gente tem um índice de desenvolvimento humano abaixo da média nacional, o que já é uma vergonha.

Você acha que a batalha para impedir Belo Monte está perdida?
Felício – Não, não. Interessante… Mesmo apanhando quase todo dia, eu não consigo perder a esperança. A hora que eu tenho para sentar e escrever essas ações, basicamente, é a madrugada. E é a hora em que eu adoro escrever. Acabo indo a madrugada inteira sem sentir que passou o tempo, de tanta esperança que tenho de que uma hora isso vai dar certo. Mas eu não acho que a solução vai estar nessas ações que a gente está escrevendo por aqui. Eu vejo o Direito, a Procuradoria, nós, aqui, como um instrumento. É do movimento social que vai partir a sensibilização, tanto do Judiciário, quanto das Cortes Internacionais, para parar Belo Monte. E eu acho que vou continuar com essa esperança até o momento de ver a barragem construída na minha frente. Enquanto ela não estiver construída, tenho esperança de reversão.

Se Belo Monte for construída, como vai ficar o Xingu? Você consegue enxergar?
Felício – Eu já até sonhei com isso.

E como foi?
Felício – Um pesadelo. Sabe o que me vem na cabeça? A parte mais pobre da periferia de Altamira, com as crianças com aquela barriga d’água na beira do reservatório. O rio vai se tornar um lago pobre ali em Altamira. E aquelas crianças na beira do lago, na beira do rio Xingu, completamente aniquiladas do ponto de vista físico, sabe? Eu via isso. E na parte jusante da barragem eu não vejo índios mais. É como se fosse um deserto. Toda aquela magnífica biodiversidade que existe, com as cachoeiras, os peixes, tudo desaparece. Como se fosse um deserto. É uma visão dantesca.

E como você acordou desse pesadelo que está prestes a se tornar bem real?
Felício – Pensando que não posso deixar que isso aconteça. Quer dizer, no que depender de mim, isso não pode acontecer. Eu vou fazer a minha parte.

(Publicado na Revista Época em 05/09/2011 e atualizado em 12/10/2011)

Cabeça a prêmio: R$ 80 mil

Defensor da floresta pede ajuda para não morrer

No porto de Altamira, Raimundo Belmiro se prepara para embarcar na voadeira que o levará de volta para casa. Junto com ele viaja o tio, Herculano Porto. Só alcançarão seu destino, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, no Pará, depois de três dias de viagem por rio. Só é possível navegar com a luz do sol. À noite assam no fogo de chão o que pescaram horas antes nas águas, para comer com farinha, amarram a rede numa árvore e dormem para acordar com o barulho impressionante dos macacos. Eles moram numa região da Amazônia entrincheirada entre os rios Xingu e Iriri – e conhecida por um nome mítico: Terra do Meio. Quem olha para Raimundo e Herculano enxerga dois homens pequenos. Raimundo mais falante, Herculano mais sestroso. São dois gigantes. Todos nós, brasileiros, devemos a eles a preservação de um pedaço da floresta. Nesta guerra travada no coração turbulento da selva, os dois quase perderam a vida anos atrás. E hoje, mais uma vez, aos 46 anos, Raimundo Belmiro tem a cabeça a prêmio. O preço: R$ 80 mil.

Primeiro, é preciso compreender que, na Amazônia brasileira, as ameaças precisam ser levadas a sério. Na luta para proteger a floresta há uma trilha de cadáveres de homens e mulheres honestos, em geral anônimos, quase sempre abandonados pelo Estado.

Se no Rio de Janeiro, no Sudeste do país, uma juíza é executada com 21 tiros, dá para imaginar como a violência se desenrola nos confins do Brasil. Somente em maio, como todos sabemos, cinco pessoas foram assassinadas na Amazônia porque lutavam pelo que todos nós deveríamos estar lutando. Mas não estamos. Se existe floresta nativa em pé, tenhamos certeza, é por causa da luta dessa gente que se organiza, que grita e que morre – e que às vezes consegue fazer o Estado cumprir a lei.

Se Raimundo Belmiro for assassinado depois de ter pedido proteção, a responsabilidade será do governo federal – e também será nossa. Desde o início de agosto, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) sabe que Raimundo Belmiro está com a cabeça a prêmio. O ICMBio é o órgão do governo federal responsável por “fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das Unidades de Conservação federais”.

Apesar de ser área de proteção federal, a reserva extrativista tem sido desmatada pelos fundos, a partir de uma localidade chamada Trairão. Ao derrubar a floresta, os bandidos deparam-se com a resistência de Raimundo Belmiro, principal liderança do Riozinho do Anfrísio. É por isso que seu nome circula entre a pistolagem da região. Como antes aconteceu com Brasília, Dema, Dorothy, Zé e Maria, apenas o nome de alguns tombados nos últimos anos no Pará.

Estas são as palavras que Raimundo me pediu para levar ao Brasil e ao mundo:

– Se as autoridades me entendessem e vissem que eu tenho valor, eu queria uma proteção. Uma coisa séria, porque não tá fácil pra mim. Eles sabem quando eu tô na floresta, sabem quando eu tô em Altamira. Estou desprotegido, só tenho a proteção de Deus. E o pessoal tá invadindo lá dentro do Riozinho, tirando madeira. E essa gente ataca pelas costas. À traição.

Raimundo fez esse mesmo pedido de proteção ao escritório do ICMBio de Altamira, no início de agosto. Nesta última sexta-feira, 19, falei com Paulo Carneiro, coordenador-geral de proteção ambiental do ICMBio, em Brasília. Apesar de terem se passado mais de dez dias, Carneiro afirmou que tomara conhecimento da ameaça de morte apenas naquele momento, a partir do meu contato. Também disse que o órgão estava ciente de que existiam focos de desmatamento na reserva extrativista. E assegurou que falaria com Raimundo Belmiro e providenciaria sua proteção a partir desta semana. Caberá a todos nós garantir que essa promessa seja cumprida e que a Amazônia não seja manchada mais uma vez de sangue, em mais uma morte anunciada.

Conheci Raimundo Belmiro, este homem pequeno, de sorriso meio encabulado e coragem amazônica, em 2004. Como 99% dos moradores do Riozinho do Anfrísio, Raimundo Belmiro não existia no Brasil oficial. Não tinha carteira de identidade, nem votava. Descendentes de soldados da borracha, nordestinos pobres levados para o interior da floresta pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, eles foram abandonados na selva quando a o látex deixou de valer a pena. Raimundo e cerca de duas centenas de pessoas viviam quase sem contato com o restante do Brasil. Viviam do extrativismo, como outros milhares de protetores anônimos da floresta.

Mas, se o Estado os ignorava, grileiros e desmatadores não. Eram estes ribeirinhos que estavam entre eles e os lucros da devastação. Para ameaçá-los, os bandidos desfilavam pelo rio com capangas exibindo suas armas, botavam fogo em castanhais e algumas vezes também em casas da Terra do Meio. Sozinhos, armados apenas com velhas espingardas que só serviam para caçar paca, os moradores resistiam lutando pela floresta e pela vida – duas entidades que, para nossa sorte, nunca puderam separar.

Naquele tempo, Raimundo Belmiro, Herculano Porto e Luiz Augusto Conrado (o Manchinha), as três principais lideranças da região, conviviam com a certeza de poderem ser assassinados no próximo segundo. Contei esta história, junto com o fotógrafo Lilo Clareto, numa reportagem publicada em 4/10/2004, que pode ser lida aqui: O Povo do Meio. Na época, a ex-seringueira Marina Silva era a ministra do Meio Ambiente. Como nenhum outro político neste país, Marina compreende a floresta e os homens e mulheres da floresta. E sabe que lá ameaça de morte vira morte.

Naquele momento, com uma sensibilidade que hoje faz muita falta no governo, Marina Silva disse: “O Estado e a sociedade brasileira têm uma dívida com a população extrativista que presta um serviço lá no coração da Amazônia, protegendo a nossa biodiversidade, cuidando dos rios e das florestas. É uma questão de justiça e de estratégia. Eu vivi o que eles viveram. Quando olhei para eles, vi minha gente. Sabia o que eles estavam passando. Não é coisa de entender racionalmente, mas de entender com o coração”.

Por ordem de Marina, os três foram retirados da selva de helicóptero e levados a Brasília para que contassem da guerra da floresta. Ali, ganharam identidade: a do documento e a da história escutada. Em novembro de 2004, Lula assinou o decreto criando a reserva extrativista Riozinho do Anfrísio. Em dezembro, o governo federal deu a Raimundo Belmiro o prêmio Defensores de Direitos Humanos. Agora, sete anos depois, Raimundo mais uma vez está sendo caçado por pistoleiros.

Peço agora que cada um pare de ler por um instante para tentar imaginar o que significa estar no meio da floresta amazônica, ameaçado de morte.

É assim que Raimundo Belmiro se sentia em 2004. É assim que se sente agora.

Antes de empreender sua longa jornada selva adentro, Raimundo Belmiro me disse:

– Se me matarem, Eliane, matam um homem.

É por ser um homem que Raimundo Belmiro precisa continuar vivo.

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P.S. – Para saber mais sobre Raimundo Belmiro e a Amazônia, você pode ler O Povo do Meio, À Espera do Assassino e Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela? Também pode buscar informações nos sites do Instituto Socioambiental e Movimento Xingu Vivo Para Sempre, entre outros.

(Publicado na Revista Época em 22/08/2011)

O Dia do Medo Macho

Os “machões” da Câmara de São Paulo estão precisando de terapia

Quando li nos jornais que a Câmara de Vereadores de São Paulo tinha aprovado um projeto de lei criando o “Dia do Orgulho Hétero”, minha primeira reação foi de indignação. Como cidadã que tem crises de bronquite por causa da poluição da cidade, em que ônibus, carros e caminhões circulam deixando nuvens de fumaça com monóxido de carbono, entre outras porcarias, sem que ninguém pareça fiscalizar. Como cidadã que tropeça nos buracos de calçadas quando anda a pé e já sofreu trancos na coluna quando anda de carro por causa da péssima pavimentação das ruas. Como cidadã que passa horas todo dia num trânsito empacado e é empurrada e machucada em trens e ônibus lotados porque o transporte público é insuficiente e ineficiente e a população que dele depende é tratada como gado. Como cidadã que testemunha a péssima qualidade da educação pública e do atendimento nos postos de saúde. Como cidadã que sofre nos períodos de seca com a qualidade do ar, mas teme a chuva porque ano após ano os mais pobres morrem soterrados ou têm suas casas destruídas por causa do descaso do poder público e de obras adiadas. Como cidadã que vive tudo isso na cidade mais rica de um país que é a sétima economia do mundo, ao ler a notícia minha primeira reação foi de indignação.

Afinal, será que os vereadores que deveriam honrar o voto da população não têm problemas reais para discutir no seu tempo muito bem pago com dinheiro público? Mais ainda ao saber que o autor do projeto, o vereador Carlos Apolinario (DEM) apresentou a proposta em 2005 e só conseguiu aprová-la, em primeira votação, no ano de 2007. Botou de novo a proposta em discussão em junho deste ano e, desde então, segundo a imprensa paulistana, estava emperrando a análise de outros projetos para, como chegou a ser dito, “vencer pelo cansaço”.

Quem é Carlos Apolinario, o homem que está tão preocupado com os gays? Como lembrou Fernando de Barros e Silva, colunista da Folha de S.Paulo, Apolinario é um adepto do troca-troca, pelo menos na política: “Já esteve no PMDB, passou por um tal de PGT, frequentou o PDT e hoje se abriga no DEM”. Mas, pelo empenho demonstrado, parece que aprovar o “Dia do Orgulho Hétero” era uma questão de convicção e de fidelidade para o vereador. E o projeto foi aprovado por 31 de 55 vereadores que só estão lá porque seus eleitores pensaram que fariam um bom trabalho.

Datas como o “Dia do Orgulho Gay” ou o “Dia da Mulher” ou o “Dia da Consciência Negra” fazem parte da luta pelos direitos básicos de parcelas da população que historicamente sofreram – e ainda sofrem – as consequências da discriminação e do preconceito por aquilo que são. Os gays, por exemplo, contra os quais o “Dia do Orgulho Hétero” se opõe, têm sofrido diariamente por séculos e continuam a ter ainda hoje sua vida ameaçada mesmo em cidades como São Paulo, em que os casos de homofobia aparecem com frequência alarmante nas manchetes da imprensa. Dezenas de pessoas são assassinadas por ano no Brasil por causa de sua orientação sexual. E, em julho, um homem teve parte de sua orelha decepada no interior de São Paulo ao abraçar seu filho porque foram “confundidos” com um casal homossexual – como se isso justificasse a violência.

A homofobia é um problema sério, que tem ameaçado a vida de cidadãos honestos, pagadores de seus impostos, que com seu trabalho ajudam a manter São Paulo e o Brasil funcionando. E a homofobia merece a preocupação dos vereadores de São Paulo. Em vez de se preocupar com isso, o que eles fazem? Aprovam uma lei que só vai acirrar a violência.

Em seu site oficial, Carlos Apolinario, que se autointitula “o vereador das mãos limpas”, discorre sobre “heterofobia” e “ditadura gay”. E assim justifica seu projeto: “Na verdade, meu projeto de lei que cria o Dia do Orgulho Hétero não significa um ataque à figura humana dos gays, que eu respeito. Meu objetivo é combater os excessos e privilégios praticados pelos gays”.

De fato, como todos sabemos, na vida real não há notícia de nenhum heterossexual sendo espancado por gays na Avenida Paulista ou discriminado na escola, no trabalho e em espaços públicos, como acontece com os homossexuais. Não há notícia de nenhum heterossexual ouvindo piadas nem risinhos por onde passa. Logo, o “Dia do Orgulho Hétero” pode ser interpretado como, no mínimo, uma provocação vulgar. Mas com consequências nefastas, na medida em que a homofobia tem causado a morte de seres humanos.

Como os heterossexuais nunca tiveram seus direitos nem sua vida ameaçados por causa de sua orientação sexual, não há justificativa para uma data como esta ser aprovada pela Câmara e fazer parte do calendário oficial de São Paulo. Como disse Pedro Estevam Serrano, professor de direito constitucional da PUC-SP: “Constitucional é (a lei). Mas, legítima no sentido humano, não é. Não é uma atitude de paz, é uma atitude beligerante”.

Por tudo isso, minha primeira reação foi de indignação. E, como cidadã, é indignada que devo me manter, já que a lei foi criada e aprovada por homens e mulheres públicos para ter repercussão e consequências públicas sobre a vida dos milhões de moradores de São Paulo. E com ecos no país e fora dele.

Mas, é sempre bom a gente dar a volta, e tentar compreender porque homens como Carlos Apolinario e os outros 30 que votaram a favor de seu projeto tiveram a atitude que tiveram. Sempre vale a pena vestir a pele do outro, ainda que em casos como este seja uma tarefa e tanto. A pergunta que me fiz foi a seguinte: “Por que homens e mulheres heterossexuais, que nunca tiveram sua orientação sexual questionada ou sofreram qualquer discriminação por causa dela, se sentem tão ameaçados pela homossexualidade do outro?”.

E segui com questões que me permitissem alcançar Carlos Apolinario e os outros 30: “Se eu me considero heterossexual e estou em paz com minha orientação sexual, por que vou me incomodar com a do outro? Por que preciso criar uma lei que se oponha ao modo de ser do outro, se ele e o mundo inteiro respeitam o meu modo de ser? Por que me sinto ameaçado por uma expressão da sexualidade que é pessoal apenas porque é diferente da minha?”. Por quê?

Em geral, a violência, seja ela física ou psíquica, é uma reação à percepção de ameaça. Você reage para se defender. Sente-se inseguro, arma-se (com pistolas, palavras ou leis) e reage com violência porque não consegue lidar de uma forma mais sofisticada com aquilo que interpreta como uma agressão. Se, na vida pública, não há nenhuma ameaça contra os heterossexuais sob nenhum ponto de vista, logo, não é aí que está o nó da questão. Portanto, é legítimo pensar que a ameaça possa ser uma percepção de foro íntimo para Carlos Apolinario e os outros 30. E, por dificuldades de lidar com essa questão no âmbito pessoal e privado, ela acabou se manifestando em fórum indevido, consumindo dinheiro público e acirrando problemas coletivos numa cidade que tem sido palco de crimes movidos pela homofobia.

Com isso não quero reforçar o clichê de que quem se sente incomodado com os gays pode estar com sua homossexualidade escondida no armário. Mas lembrar o que a necessidade de criar o “Dia do Orgulho Hétero” só desvela: a sexualidade é um território pantanoso e, para cada homem e mulher é pantanoso de uma maneira diversa. Não sei que tipo de perturbação moveu cada um dos vereadores que aprovaram a lei – e suas pulsões só acabaram por dizer respeito a mim e a todos os cidadãos de São Paulo porque eles fizeram dela algo público – fizeram dela uma lei.

Carlos Apolinario e os outros 30 não merecem o nosso escárnio, mas sim a nossa compaixão. Estes muitos homens e algumas mulheres precisam de ajuda, não de condenação. Preocupada com essa constatação, fui conferir seus rendimentos e verifiquei que um vereador de São Paulo recebe, por mês, R$ 15.033 de salário, além de R$ 16.359 de verba de gabinete para despesas variadas. Conclusão: dá bem para pagar uma terapia, dá não? Eles serão mais felizes e, mais bem resolvidos, poderão até se dedicar aos problemas reais de São Paulo. Nós todos, por razões humanitárias e de cidadania, agradecemos.

(Publicado na Revista Época em 08/08/2011)

Reprodução assistida – ou desassistida?

O caso das trigêmeas e o lugar da maternidade em nosso tempo

No início deste ano, imprensa e público se chocaram com o caso de um casal paranaense que teve trigêmeas, depois de se submeter a técnicas de reprodução assistida, e quis dar uma delas para adoção. As meninas nasceram em janeiro de um parto prematuro e ficaram por quase um mês na UTI neonatal de uma maternidade de Curitiba. Os pais já haviam manifestado a intenção de entregar um dos bebês para ser adotado antes do nascimento. Mas, “denunciados” pelos funcionários do hospital ao Conselho Tutelar por “rejeitar” uma das filhas, supostamente a mais frágil, perderam a guarda das três. Em fevereiro, as meninas foram colocadas em um abrigo por intervenção judicial. Os bebês ficaram afastados dos pais por dois meses e meio, com visitas restritas a duas horas semanais. Em maio, a Justiça deu a guarda temporária a parentes e permitiu que os pais pudessem visitá-las diariamente. Desde o início, os pais declararam-se arrependidos de terem desejado dar uma das crianças para adoção e tentaram reaver a guarda das três filhas. O médico que acompanhou o casal em todo o processo da reprodução assistida, disse à imprensa: “Eu nunca vi um casal rejeitar os filhos após um tratamento para engravidar. Muito menos rejeitar um ou rejeitar dois. Isso realmente é uma novidade”.

Quando o caso tornou-se público, o casal virou uma espécie de monstro. A ideia, disseminada no senso comum, era: como pais, que desejaram tanto ter filhos, a ponto de se submeter a um procedimento caro e nem sempre bem sucedido, tiveram a coragem de “abandonar” a mais frágil das crianças? Danielle Breyton, Helena Albuquerque e Verônica Melo estavam entre as poucas vozes dissonantes. Psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, elas pesquisam as questões da reprodução assistida desde 1997, no grupo denominado “O feminino no imaginário cultural contemporâneo”.

Impressionadas com o linchamento dos pais pela sociedade, elas escreveram um texto para a imprensa intitulado “Responsabilidades no caso das trigêmeas”. Tiveram dificuldade para encontrar espaço para publicá-lo, apesar da qualidade do trabalho e da experiência de 14 anos de estudos da questão da reprodução assistida. Vale a pena pensar se a falta de espaço pode significar uma resistência a escutar algo que adicione maior complexidade ao debate e algo que nos implique a todos – em vez de apenas demonizar os pais.

No texto, que tive a oportunidade de ler, as psicanalistas fazem algumas perguntas incômodas: “De quem é a responsabilidade pela implantação de três ou quatro embriões no útero de uma jovem de 28 anos? A quem cabe a decisão que implica tamanhos riscos? Ao casal? À equipe médica? Ao Estado?”. Desde o início deste ano, uma norma do Conselho Federal de Medicina determina que, no caso de mulheres com até 35 anos, devem ser implantados no máximo dois embriões, já que uma gravidez múltipla traz riscos para a mãe e para os bebês, sem contar as demais sequelas físicas e psíquicas. Entre os 36 e os 39 anos recomenda-se implantar três embriões. E apenas mulheres com mais de 40 anos podem ter quatro embriões implantados.

As psicanalistas apontam que, no caso das trigêmeas, os pais incorporaram algo que faz parte do discurso hegemônico, plenamente assimilado pela sociedade e amplamente divulgado pela mídia em centenas de reportagens. Neste discurso, os termos “escolha, doação, descarte e redução” são corriqueiros na área da reprodução assistida. No texto, elas criticam a desimplicação de todos no caso, a começar pelo médico, e afirmam que as trigêmeas não são apenas filhas de seus pais – mas de uma cultura. Neste sentido, são filhas de todos nós.

Quando o caso tornou-se público, chamou a atenção a incapacidade da maioria das pessoas que se manifestaram de parar para pensar, ainda que por um instante: “Como deve se sentir uma mulher de 28 anos com três bebês prematuros ao mesmo tempo?”. Quem tem apenas um, saudável e nascido de nove meses, sabe que não é fácil, especialmente nos primeiros tempos. É possível para qualquer um imaginar como pode ser difícil e assustador cuidar de três prematuros. Reconhecer a dor do outro não significa tirar-lhe a responsabilidade, apenas admitir que é preciso ter mais cuidado antes de julgar. Por que a condenação dos pais pela sociedade foi imediata e massiva é algo que vale a pena pensar. E talvez as imagens estampadas em jornais e revistas, assim como nas telas da TV, de casais sorridentes com sua ninhada de filhos nascidos na mesma gestação, que todos nós já vimos alguma vez, possam ser uma pequena parte da explicação.

O caso provoca ainda uma série de questões. Que Justiça é esta que prefere colocar três recém-nascidas em um abrigo em vez de deixá-las com os pais, que se dizem arrependidos e dispostos a criar as três filhas? Por que, como disse a advogada do casal, não ajudá-los a lidar com as dificuldades em vez de puni-los? E que sociedade é esta que se apressa a linchar o casal, preferindo transformar os pais em monstros e assim se afastar por completo do que a horroriza, em vez de pensar se não tem nada a ver com isso? O debate vale a pena não para que possamos encontrar outro culpado, mas para compreender o que tudo isso diz da época em que vivemos.

Convidei Danielle, Helena e Verônica para uma conversa nesta coluna. Não apenas sobre o caso das trigêmeas, mas sobre a reprodução assistida e o lugar da maternidade no nosso tempo. Na entrevista a seguir, destaco três temas que considero mais instigantes. O primeiro é a percepção de um paralelo entre parto natural e cesárea/reprodução natural e reprodução assistida. As psicanalistas perceberam, ao acompanhar grupos de pais à espera do procedimento, que, se o parto natural tornou-se exceção no Brasil, com prevalência da cesariana na maioria dos nascimentos, o mesmo começa a acontecer com a reprodução: um número crescente de mulheres, cada vez mais jovens e cada vez mais cedo, se consideram inférteis e incapazes de engravidar naturalmente, em relações sexuais com seus parceiros.

Outro tema muito interessante é que a tecnologia é amplamente usada e festejada no processo da reprodução e do nascimento, mas assim que o filho nasce volta-se imediatamente ao mito do amor materno: todos aqueles que colaboraram e às vezes até decidiram os processos relativos à reprodução e ao parto saem de cena, e o filho volta a ser dos pais e principalmente da mãe, já que é ela que tem licença maternidade de quatro ou seis meses. E então a sociedade exige que esta mãe ame incondicionalmente e de imediato seu filho e dê conta de tudo, mesmo que sejam três prematuras, como no caso que gerou a polêmica. Esta mãe não pode ter conflitos, dúvidas ou medos. Qualquer sentimento menos nobre diante de um bebê que chora sem parar ou que ela teme perder é considerado “antinatural” e ameaçaria um determinado ideal de maternidade. Da mulher se espera que seja uma supermãe – ou então correrá o risco de a sociedade transformá-la numa bruxa a ser queimada na fogueira midiática.

Por fim, vale a pena pensar no que a tecnologia deu às mulheres. É importante sublinhar que a tecnologia deu muito. Mas o reconhecimento dos benefícios deve servir também para nos estimular a problematizar as questões. Na conversa a seguir, Danielle, Helena e Verônica mostram que, de certo modo, o controle de novo está fora das mulheres – e na mão do poder hegemônico sobre o corpo na nossa época, que é o da Medicina. Perguntar sempre vale a pena. E pode nos levar a respostas intrigantes. É isso que tento fazer na conversa a seguir.

– Como surgiu a ideia de pesquisar a reprodução assistida?

Helena Albuquerque –  A ideia do grupo era pesquisar o feminino na cultura e buscar respostas para uma série de perguntas. Mudou alguma coisa em relação à mulher? Os conflitos e as angústias das mulheres são os mesmos? A mulher lida melhor com a sexualidade do que já lidou numa época mais repressiva? O grupo intercalava o estudo de textos psicanalíticos sobre o feminino com as questões da cultura e da clínica. Estávamos às voltas com a questão da reprodução assistida no consultório, e o tema surgiu na discussão. Resolvemos montar, então, um pequeno grupo para estudar os efeitos da tecnologia da reprodução assistida no feminino: na mulher, no jeito de conceber de um casal, no jeito de conceber a gravidez, o parto, a criança; se estas coisas se mantinham no mesmo lugar, se mudavam de lugar. Depois de um tempo de estudo teórico, fomos fazer uma pesquisa de campo no Hospital Pérola Byington, onde há um Serviço de Reprodução Humana totalmente gratuito que atende mulheres do Brasil inteiro. O foco da nossa pesquisa era investigar como ficava a ideia da infertilidade uma vez dado o diagnóstico: como os casais processavam isso subjetivamente, o que para eles era infertilidade, o que o diagnóstico causava em suas vidas. Trabalhamos com dois grupos de casais que selecionamos na fila de espera do Serviço de Reprodução Humana.

– Por que vocês escolheram este tema e não outro?

Verônica Melo – Acho que partimos de situações que a gente vivia, ou na clínica, ou com pessoas próximas, amigos que estavam buscando a reprodução assistida.

A mulher começa a se atrapalhar com coisas que sempre foram sentidas como sendo dela, sobre as quais tinha uma maior apropriação: menstruação, gravidez, amamentação passam a ser tomadas por uma parte da Medicina e da Mídia quase como se fosse doenças, disfunções. Ou seja, ficam na fronteira da patologia. Aparecem situações como, por exemplo: se a menstruação atrapalha, uma injeção a elimina.

A Psicanálise nasce, como todo mundo sabe, a partir das mulheres histéricas. Na época de Freud, a mulher tinha como marco de valor a procriação. Era este o papel social dela. Então, vamos estudando o que foi se passando na história da cultura e que lugares a mulher foi percorrendo e foi assumindo. E aí chegamos hoje a uma mulher que pilota aviões, mas se atrapalha com a amamentação. Começamos a prestar atenção nas propagandas de laboratórios e de clínicas especializadas em reprodução assistida, chamando a mulher com um tipo de mensagem mais ou menos assim: “Você não precisa mais ter de decidir entre progredir na carreira e ter filhos. Não se incomode com isso, porque você pode congelar óvulos, você pode congelar os embriões e postergar. Você pode ter filho lá pra frente”.

Danielle Breyton – O que inclusive não é verdade, não é? É uma propaganda enganosa. Porque uma mulher, depois dos 40 anos, mesmo com reprodução assistida possivelmente vai ter dificuldades para engravidar.

– O que começa a chamar a atenção de vocês é uma espécie de ilusão de controle da mulher sobre o seu próprio corpo?

Verônica – Sim, é uma armadilha para a mulher. Como se ela tivesse o poder nas mãos dela de decidir: “Então eu posso parar a minha menstruação; então eu posso ter uma carreira brilhante e depois eu vou ser mãe”. E é uma mentira porque, na verdade, depois de tudo o que ela conquistou, vai acabar sucumbindo, de novo, a uma demanda da cultura. De certo modo, depois de tudo o que conquistou acaba virando um objeto da Medicina.

Danielle – De um lado, temos um discurso supostamente libertador, de autonomia sobre o próprio corpo. De outro, há um controle absoluto sobre os corpos e sobre o tempo.

Helena – E este é outro tema forte na nossa pesquisa. Como se dá o discurso médico, qual é a proposta da Medicina. Não é que todo médico seja assim, mas é o que prevalece. Percebemos que, desde que o parto foi transferido para a mão da Medicina, ele foi, de certa forma, patologizado. E o discurso feminista, de uma forma enviesada, acaba submetendo a mulher a um controle maior do corpo, via Medicina. Parece que antes havia mais espaços para a mulher ocupar por conta própria do que depois que a Medicina se impõe com um discurso muito hegemônico. Décadas atrás, o problema da mulher era a fertilidade e a tentativa de ter uma vida sexual sem engravidar. Isso dá uma virada muito impressionante. O filho não é mais algo que acontece um pouco imprevistamente, sem planejamento. Você decide ter um filho. Então, tem uma conta a fazer: é preciso saber se o filho cabe no orçamento. É muito comum ouvirmos: “Olha, a gente vai ter um filho só. Não vai ter o segundo filho porque não temos dinheiro”. Então, há uma contabilidade. Há a questão da carreira, do corpo, do tempo e do filho, entre outras. Há uma decisão que precisa ser ser tomada e que torna mais difícil ter um filho. Sem contar que agora seu filho tem de ser feliz. (Risos)

Danielle – E você tem de continuar com seu corpo incrível e trabalhando como você sempre trabalhou…

Helena – E seu filho tem de ter um carro, uma casa…

Verônica – Tem um custo que já é pré-avaliado do filho. Em reunião de escola, há pais falando: “Olha, com a mensalidade dava para comprar um carro por ano…”.

Helena – Com uma equação colocada desta maneira, ter um filho torna-se uma decisão difícil de ser tomada.

– Vocês acham que a mulher perdeu muito nessa mudança?

Helena – Ela ganhou muito também.

Danielle – Ganha e perde. Problematizar isso não é questionar todo o ganho que as mulheres tiveram, pelo contrário.

– Vocês mencionaram a questão do controle do corpo e do tempo. Como a questão do tempo entra na infertilidade e na reprodução assistida?

Verônica – Quando a gente entrou no tema da infertilidade, nos deparamos com trabalhos que apontavam para uma mudança. Se antes considerar que uma mulher tinha problemas de infertilidade se dava após um certo tempo de pesquisa, de estudo da própria mulher mesmo, da fisiologia dela e tal, este tempo foi sendo suprimido. Hoje, o diagnóstico é dado num tempo muito mais curto: “É infértil, vamos começar a fazer tratamento”.

– Mais ou menos quanto tempo?

Verônica – Na Europa, eram dois anos de espera. E nos Estados Unidos um ano. Aqui também, mas está diminuindo.

Danielle Três meses…

Helena – Três meses, elas estão ansiosas, e os médicos – alguns, outros não – as encaminham para começar uma reprodução assistida, que vai virando um pouco uma questão mercadológica, né? São procedimentos caros. Em nossa pesquisa, percebemos um paralelo com a questão do parto normal e da cesariana. A cesariana salva a vida de muitas mulheres que têm complicações no parto, assim como de bebês. Mas virou uma distorção, na medida em que hoje, no Brasil, 80% dos partos são cesarianas. Da mesma forma, há um paralelo entre engravidar com relações sexuais, do jeito natural, e ter filhos via reprodução assistida. É como se um deslocamento parecido começasse a ser feito. O francês Jacques Testart (responsável pelo nascimento do primeiro bebê de proveta na França, em 1982) disse que engravidar normalmente vai virar coisa de ecologista. E aí temos vários filmes sobre esse tema, como “Gattaca – A Experiência Genética” (Andrew Niccol, 1997).

Danielle – É como se a liberdade passasse pelo controle. É uma questão do controle esse deslocamento da cesariana. Se organiza, planeja e ponto. Já há muitos casais que resolvem partir para a reprodução assistida com esse intuito: controlar, já. De uma vez só tem dois filhos e já resolve o problema.

Verônica – E para os médicos também. No parto normal, por exemplo. Uma coisa é ficar ali, com um trabalho de parto que vai levar cinco, seis, sete horas. A outra é marcar horário e resolver. Na questão da reprodução há este mesmo paralelo. Como determinar se ali existe um caso de infertilidade, de esterilidade? Quanto tempo se espera a gravidez acontecer sem intervenção? O tempo está diminuindo, mesmo para casais muito jovens. Nos chamava muito a atenção os números do ESCA (Esterilidade Sem Causa Aparente). Essas estatísticas agora estão diminuindo, porque é necessário justificar o procedimento e acabam achando uma causa. Acham a causa, às vezes, e um mês depois a mulher engravida sem intervenção nenhuma.

– É como se o médico, simbolicamente, fosse para a cama com o casal, não?

Helena – Ele passa a fazer parte da cena…

– Vocês perceberam, ao longo da pesquisa, que alguns casais que se declaravam inférteis no consultório médico nem mesmo tinham relações sexuais. Precisavam de reprodução assistida porque não transavam…

Danielle – Há, inclusive, um livro sobre isso, (“Mal-Estar na Procriação – As mulheres e A Medicina da Reprodução”), de uma psicanalista francesa, Marie-Magdeleine Chatel. Ela percebeu que, nas entrevistas médicas, o médico não perguntava sobre as relações sexuais. Então, numa das consultas, das quais participava como observadora, ela pergunta sobre a frequência com que tinham relações sexuais, e o casal responde que não tinha. Mas não ocorria aos médicos fazer essa pergunta.

Verônica – Essa é outra escuta que tem de ser incluída na entrevista médica. Porque não existe um olhar para algo que possa também ser coadjuvante nessa infertilidade.

Helena – É como se não interessasse, não precisasse. A relação sexual fosse supérflua.

Verônica – Tanto é que os folhetinhos que a gente ia arrecadando nas clínicas de fertilização falavam para a mulher o seguinte: “Se distraia, não pense no assunto, vá ao shopping…”. (Risos)

– Vocês perceberam que, assim como as mulheres estão se sentindo incapazes de assumir seu próprio parto, de dar à luz naturalmente, elas também começam a se sentir incapazes de engravidar sem a ajuda do médico e da Medicina?

Helena – E isso é também efeito de um discurso que está na cultura. As razões são muitas. Acho que há o medo da responsabilidade, na medida em que vira uma decisão de tantas consequências econômicas e corporais. E há um certo distanciamento do próprio corpo, dos processos que acontecem no corpo e que assustam. Muitas mulheres empresárias, executivas não menstruam mais, por exemplo.

– O que vocês estão dizendo é que supostamente as mulheres teriam hoje um maior controle sobre o próprio corpo. Mas, de certo modo, as decisões estão sendo delegadas à Medicina?

Danielle Exatamente.

Verônica É interessante pensar que lá atrás havia uma leitura nas Ciências Sociais de que a mulher sofria mais repressão na cultura porque, por causa desses processos fisiológicos, a mulher tinha um pé mais dentro da natureza. A hipótese era de que, por isso ser ameaçador, então o homem/a cultura exercia um controle maior sobre a vida dela. Se a gente atualizar essa ideia, hoje, ao tentar reassumir o controle sobre o corpo, a mulher está sendo novamente controlada. Acho que é isso que a gente foi observando.

– Outra questão que vocês levantam na pesquisa é que, para ser mãe, é preciso deixar de ser filha. E parece que esta tem sido uma passagem difícil para muitas mulheres…

Verônica – Dentro dessa cultura que valoriza muito a imagem, essa coisa de não poder envelhecer, de não haver diferenças entre gerações, encontramos também isso. Para ser mãe, você tem que deixar de ser filha, você tem que deixar agora o seu filho acontecer. Então, passar para este lugar, o de deixar de ser filha para ser mãe, exige uma operação subjetiva muito grande. É muito difícil.

Helena – Justamente. E aí entra a questão de como se lida com as perdas atualmente. Os lutos e as perdas. Está mais difícil fazer luto hoje. E virar mãe implica em um luto. O luto da filha, o luto de uma posição. Isso também estaria dificultado, na cultura atual, onde não se pode perder nada.

Verônica – E nada pode deixar marcas. Nem marca da velhice, nem marca da gravidez. Então você pega os famosos, que são formadores de opinião/imagem: mulheres que têm filhos e já aparecem na sequência com um corpo sem marca nenhuma de uma gravidez. Nessa cultura, nada pode fazer marca, nada pode fazer ruga.

– E como entra esta questão, que também é muito presente na nossa cultura, de que não há limites, de que se pode tudo?

Verônica – Percebemos isso… Se eu tenho vontade, eu posso. Que vai até para a coisa da educação da criança, da falta de limites, de eu não poder lidar com o meu desejo. O meu desejo impera, é imperativo. Então, eu QUERO ter um filho, e a qualquer custo eu vou ter esse filho. Agora, esse filho, às vezes, muitas vezes até, não está no lugar de filho mesmo. Ele está mais como objeto de satisfação narcísica para esse casal, para essa mulher. A gente continua achando que existe uma tendência para isso: para não poder lidar com a perda, com a frustração, com o limite que às vezes o próprio corpo impõe. Só que a coisa se complica bastante porque às vezes, muitas vezes, essa limitação que o corpo mostra é um sintoma. É um sintoma dessas próprias dificuldades, da própria falta de condições de exercer a maternidade. A certa altura, propusemos, em nossa pesquisa, uma divisão entre vontade e desejo. Quando a mulher chega para o médico e fala “eu quero ter um filho”, seria importante se ele pudesse sugerir questões para essa mulher, levando-a a diferenciar entre vontade e desejo. Eu posso querer ter um filho, e te digo que quero, mas desejo mesmo? Inconscientemente talvez o desejo desta mulher não seja este. Se você percebe isso, você consegue trabalhar com essa pessoa, ajudando-a a desfazer esse conflito que está lá dentro, o de querer e não querer, e poder falar que quer e não quer. Porque fala muito que quer, mas onde há espaço para aparecer a parte que não quer? E o “não quer” também não é absoluto, né? Porque tem um lado que quer também.

Danielle –  É importante deixar claro que a questão não é com a técnica, ou com quem procura essa tecnologia. A questão é cultural. Diz respeito ao lugar que tem um filho hoje, ao lugar dos corpos, ao lugar do controle. A gente não está discutindo os casos de reprodução assistida, mas o que isso nos faz ver sobre os tempos em que vivemos.

Verônica – Quando a mulher chega ao consultório, a dor daquela mulher que quer ter um filho é verdadeira. Achamos que ela pode ter um filho, mas achamos também que é preciso tomar cuidado. Aquela mulher vive a deficiência como sendo dela, quando a gente acha que essa infertilidade diz respeito à forma como está sendo processada toda essa questão na cultura: da mulher, do lugar de mãe, do lugar da maternidade. Não se trata de ser contra a reprodução assistida, mas de questionar como estamos lidando com a tecnologia. E o que essa forma de lidar diz da nossa época.

– Uma das questões da reprodução assistida trazida por vocês é a de que, já que você pagou tão caro e se submeteu a tantos procedimentos para engravidar, então está provado que você deseja este filho e é certo que você vai amá-lo. A realidade tem mostrado que as relações humanas são mais complicadas que isso…

Helena –  Eu acho que uma coisa muito complicada em relação a isso é a questão da ambivalência. Porque toda grávida, toda mãe, é ambivalente em relação aos filhos. Quer, não quer; ama e odeia… Uma vez feita a reprodução assistida, o filho tem de ser amado. É como se a ambivalência pudesse ser eliminada da cena.

Danielle – É como se o fato de ter procurado a reprodução assistida eliminasse, automaticamente, qualquer ambivalência. Isso é uma loucura completa.

Helena – E isso penaliza as mães, porque, afinal, fizeram tanto esforço… Ou seja, a mulher usou essa tecnologia que custa tão caro, que no SUS não estão pagando, e depois fica em conflito com a gravidez, com a maternidade? Como assim? Parte-se da ideia de que a tecnologia pode tornar o processo da maternidade asséptico e sem conflitos. Só que, na realidade, não é assim que acontece. O conflito não some, a ambivalência não some porque usou tecnologia para engravidar.

– Pegando este gancho, me deparo hoje com um certo desamparo dos pais. Porque, para se tornar pai e mãe é preciso abrir um espaço interno. Não é só transformar uma parte da casa em quarto do bebê e chamar uma decoradora. Mas parece que esse processo de abrir um espaço interno e se preparar internamente para receber o filho não é vivido por muitos pais ao longo da gestação. E então, de repente, estão com um filho nos braços, mas sem espaço interno, porque os conflitos não foram vividos no seu tempo – e nem mesmo se admite que os conflitos existam. Então, esses pais ficam muito angustiados, às vezes desesperados… Faz sentido para vocês o que estou dizendo?

Helena –  Achamos que não ter espaço interno tem a ver com a efetividade atual. Por que a efetividade hoje em dia prevalece sobre a afetividade. Deu uma virada nisso. Por falta de espaço interno.

Verônica – Temos uma situação ocorrida no grupo que pode traduzir isso. O que a gente vai vendo com essas mulheres é que assumem muito cedo a questão da infertilidade. Elas assumem o discurso da infertilidade de uma forma intensa. E num desamparo muito grande. Tivemos um momento no grupo em que, depois de falar sobre a Medicina e a técnica, lá pelas tantas uma delas começou a lembrar que a mãe fazia um caldo de galinha, elas começaram a lembrar do resguardo, e que no tempo de suas avós ou mães não se podia lavar o cabelo durante a menstruação. E aí começa um movimento no grupo que foi muito interessante, o de resgatar algo do simbólico mesmo, algo de um corpo olhado pelo outro. Disso que a gente estava falando: de as mulheres trocarem informações sobre o que está acontecendo com o próprio corpo.

– De um saber que não é médico….

Helena – Sim, de um saber que era herdado das mães. Porque hoje você não pergunta mais para a mãe, para a avó: “Como é que faz isso?”. Antes, o pedido de como se faz isso ou aquilo era para as mulheres da família. Hoje, elas ligam para o pediatra. Acho que é importante pensar o quanto o processo de reprodução assistida, e todas essas questões, repercutem na forma como os pais se apropriam dos filhos.

– Eu escuto muito a seguinte frase dita por mulheres as mais diversas: “Acho que não vou conseguir engravidar…”. Assim, do nada. Ao longo da pesquisa, vocês chegaram a perceber se as mulheres já se consideravam inférteis antes dos exames e do diagnóstico? Se o médico apenas confirmava uma infertilidade em que elas já acreditavam mesmo antes de procurá-lo?

Danielle – Eu me lembro de exemplos do consultório. Acho que atualmente a questão da infertilidade está muito presente. As mulheres, realmente, de 25, 27, 28 anos, se perguntam se vão conseguir engravidar, se vão ter dificuldade… Faz parte, já, do discurso. E este discurso costuma ser confirmado muito facilmente. Bastam seis meses de tentativa e já partem para a tecnologia.

Helena – A forma como a idéia da reprodução aparece na mídia já traz embutida a ideia de que as mulheres são inférteis, que precisam de uma assistência para engravidar.

– Vocês acham que toda essa questão também se dá, em parte, por uma relação de consumo? Porque há um momento em que a maior parte dos casais se sente obrigada a ter um filho. Não parece só ser uma questão de desejo, para alguns, mas também de imagem. Aí tem o filho. Só que ter um filho não é como ter um carro. Não dá pra vender e comprar outro – ou devolver se não está satisfeito com o desempenho. Nem dá para escolher o modelo, o sexo ou a cor dos olhos. Há algo da ordem do incontrolável de ter um filho que parece estar surpreendendo alguns pais…

Danielle – Tive uma paciente que fez um lapso a respeito do filho. Ela o chamou de carro. E o trabalho foi entender que, naquele momento, o que ela queria era um carro – e não um filho. Um carro em que ela escolhia a cor, o tamanho, o preço… Naquele momento da análise, para ela, soltou alguma coisa. Ela investiu no carro, ela e o marido compraram um carro incrível. Porque o projeto era esse mesmo. Muito mais tarde, ela começou a se preparar para ter um filho, e daí toda a história já era outra: os sonhos, como fazer ninho etc. Porque daí a história passa por como é que você vai lidar com a situação da ordem do não-controle mesmo. Era importante distinguir estas duas coisas e ficar tranquila. No momento em que o projeto é carro, o projeto é carro. Mas carro e filho não vão coincidir, não são a mesma coisa. Não dá para comprar um filho. E aí você protege a mãe e protege o filho.

Verônica – Lembrei de uma psicanalista que fala dos efeitos da tecnologia sobre a subjetividade humana. Acho que isso também é uma das coisas que assusta no fato de ter filhos, isso de que supostamente a felicidade do filho teria de ser garantida pelo oferecimento de TUDO pelos pais. O filho tem de ser feliz e você tem de dar todas as respostas para ele, tem de supostamente atender todas as necessidades dele. Essa psicanalista fala que um dos efeitos da tecnologia, por exemplo, se dá sobre a experiência do tempo de espera. Antigamente, você ligava a televisão e esperava a válvula esquentar, a imagem demorava a aparecer. Depois, você passa a apertar o botão e a imagem imediatamente aparece. E ela começa a notar no consultório que antes os filhos chamavam a mãe puxando a saia, puxando a roupa. (Verônica mostra o movimento de puxar.) E que depois passou a ser apertando assim… (Ela simula o toque em um controle remoto). É uma imagem de como a resposta tem de ser imediata. Se aperta, tem de responder. Então, eu acho que tem isso, essa coisa do controle, de que eu posso programar ter um filho, faço as contas de quanto vai custar. E também parece que é necessário se antecipar a tudo. Não é algo que está dado, e vamos ver o que acontece. É como se você não contasse com a experiência vivida. Que a experiência, no processo de construção desta maternidade e desta paternidade, fosse abrindo caminhos e trazendo elementos para você construir uma resposta para a situação. Essa questão do tempo é fundamental. E ela aparece em todas as etapas do processo.

– Por que vocês se indignaram com o tratamento dado aos pais que manifestaram a intenção de entregar para adoção uma das trigêmeas?

Helena – A gente foi lendo na imprensa e se dando conta de que havia um linchamento moral daquele casal. Uma mulher de 28 anos teve três meninas. Desde o início o casal se angustiou e anunciou que queria dar uma das meninas para adoção. E, quando nasceram as três, eles reafirmaram esse desejo. Não dá para ter certeza, porque as informações dadas pela imprensa são desencontradas, mas é possível que tenham escolhido dar para adoção a mais frágil das três. E aí o hospital denuncia para o Conselho Tutelar que esses pais estão rejeitando uma das crianças e a medida da Justiça é separá-las dos pais. Mandaram as trigêmeas para um abrigo. E os pais só poderiam vê-las durante duas horas por semana. Achamos que toda essa história tem que ser contextualizada para que a responsabilidade não recaia apenas sobre o casal. Há outros atores e fatores em cena.

– Vocês acham que os pais foram abandonados?

Danielle – Foram.

Verônica – Mas acho que eles não foram abandonados neste momento. Porque não deveria ser assim: eu tenho três filhos e escolho um. Você já sabe disso antes, e o que vai fazer. Porque aí vem de novo essa coisa da vontade. Do controle. Dessa coisa de que eu posso tudo. Então, se eu engravidei de três eu posso querer só dois. Como é que você se implica naquilo que acontece na sua vida? Eu me desfaço disso? É que nem novela? Mata, porque aquele personagem está demais? Descarto? O que nos chama a atenção é o que a gente vinha falando: como uma questão que é montada culturalmente – faz parte do discurso da cultura – é jogada, e esse casal passa a ser o único representante da falha. Quando é muito claro que a falha está em todo o processo. A questão não passa por tirar a responsabilidade do casal, mas a falha começou muito antes e estamos todos implicados nela. Qual é o discurso da Medicina, amplamente divulgado pela mídia? Implanta, escolhe, descarta, reduz…

– Aí, de repente, fica todo mundo surpreendido, não é? Somos todos inocentes… Nunca ninguém tinha falado nisso…

Helena – Nos cabe perguntar sobre a responsabilidade pela implantação de três embriões no útero de uma jovem de 28 anos. De que forma essa decisão foi tomada? A decisão cabe ao casal ou à equipe médica responsável pelo procedimento da reprodução assistida? Os casais são suficientemente esclarecidos sobre todo o processo da fertilização in vitro e sobre o destino dado aos embriões que não forem utilizados? É certo que o procedimento de implantação de embriões numa mulher jovem tem mais chances de dar certo, de os embriões se fixarem e seguirem se desenvolvendo, do que numa mulher de mais idade.

Vale a pena lembrar também da existência da técnica de redução embrionária, muito discutida no âmbito da medicina reprodutiva e praticada, embora proibida, no Brasil. Trata-se da técnica que permite a eliminação de um ou mais embriões, ainda em fase celular, em pacientes que geraram mais de um. Também chamada de técnica de “descarte de embriões”, é defendida por uma parte dos médicos como sendo necessária em mulheres com gravidez de risco por se tratar de uma gestação múltipla.

É evidente que o dilema vivido pelo casal não é um dilema que só lhes diz respeito, pois é explicitamente trazido à cena e posto em prática pela Medicina, cujas tecnologias de reprodução assistida estão à disposição no mercado. Este casal está, então, inserido em uma cultura em que a opção de “descartar um dos fetos” está colocada.

Já vimos reportagens, antes deste caso, contra as quais ninguém se manifestou ou se indignou. O título de uma delas, manchete de uma revista, era o seguinte: “A escolha mais difícil. O aumento no numero de gestações múltiplas coloca o dilema: abortar ou não alguns dos fetos?”. Quer dizer, está na manchete de uma revista, mas, na hora em que isso se encarna em alguém, que eu posso escolher, que eu posso descartar, porque está na Mídia, está na Medicina… há toda essa reação. E, paradoxalmente, na hora em que a Justiça determina a separação entre as crianças e os pais, como uma medida supostamente protetora, a amamentação é interrompida e impõe-se o abandono das crianças.

Danielle – Fala-se, por exemplo, da gravidez de risco. Mas há outra questão, que é o risco subjetivo, que fica completamente anulada. A gravidez é de risco não apenas porque são três bebês. Mas também porque lidar com três crianças que nascem, em geral, superprematuras, em situações de uma fragilidade extrema e absoluta, é um risco gigantesco. Porque é complicado fazer laço com três filhos ao mesmo tempo; é complicado fazer laço com três bebês que nascem frágeis, perigando morrer, perigando ter mil sequelas. Todas essas questões ficam muito negligenciadas no processo da reprodução assistida.

Verônica – Assim como fica negligenciada a figura do médico, que surge numa fala totalmente impávida neste caso. Ele disse: “Nunca vi um caso desses acontecer antes, de uma mãe rejeitar o filho”.

Helena – Ele foi o médico da mulher, foi ele quem implantou os embriões. Ela era paciente dele, e em vez de defendê-la e dizer “Eu conheço esta pessoa…”, ele se desimplica de um jeito muito irresponsável.

– Por que vocês acham que este casal sofreu um linchamento moral?

Helena – No cenário da reprodução assistida se intensifica de novo a questão do mito do amor materno. É isso o que, afinal, o médico enfatiza no discurso dele: “Eu nunca vi pais que, depois de quererem engravidar, rejeitam um filho…” Parece que, no mundo da reprodução assistida, não pode existir dor, perda, luto, conflito, ambivalência. Fica uma coisa chapada, onde só cabe sucesso, sentimentos positivos, potência, amor. Há um nível de negação muito intenso neste mundo. Há uma negação intensa de todo o lado do sombrio, digamos assim. E a positivação e a intensificação muito hipócrita, inclusive, de que não há conflito, não há ambivalência.

Danielle – Neste mundo obviamente todos querem ter um filho, obviamente todos querem ter muitos filhos e obviamente todos vão amá-los. De repente, há um encontro com o avesso disso. Então, é o seguinte: eu não tenho nada a ver com isso. Isso é ela – não eu. Jogam o conflito para cima do mais frágil.

Helena – Quando surge algo assim, como neste caso das trigêmeas, vira um escândalo. O médico diz: “Bom, nunca vi isso”. É hipócrita, é cruel, é uma negação. Há uma coisa muito negadora, em vários campos, como o menino lá do Realengo que matou todo mundo. A sociedade, a escola, não tem nada a ver com isso. Ele é um monstro que fez isso. Então, acho que há um certo parentesco de colocar a monstruosidade no indivíduo e, assim, a sociedade pode negar ter qualquer relação com essa violência, ambivalência, rejeição. O problema está no indivíduo. Há várias situações em que todo mundo se exime da responsabilidade. Nós não somos violentos – o violento é o outro. Não só violento, como um monstro. Como neste caso das trigêmeas. Ninguém diz: “Não cuidamos direito desta menina, que engravidou de três bebês”. É melhor negar e simplificar. Agora, você imagina o estrago que foi feito nesse começo de família, nestes pais e nestas filhas…

– Ao analisar o caso das trigêmeas, vocês afirmam o seguinte: “Tomemos, que o filho é nosso!”. O que significa isso?

Helena – Acho que “o filho é nosso” neste sentido, de que a gente precisa se comprometer com aquilo que está em jogo.

Danielle – E que a gente, como cultura, está veiculando e fazendo aparecer. Então acho que a ideia do “nosso” é: precisamos nos implicar e nos responsabilizar por aquilo que estamos fazendo acontecer.

Verônica – O que este casal está explicitando da nossa cultura? Por que causaram tanta indignação? São questões que precisamos nos colocar. Há uma banalização do processo todo, doação e descarte de óvulos, há uma banalização do que é ter três filhos ao mesmo tempo. Pensar sobre isso é responsabilidade de todo mundo. Esta, afinal, é uma produção da nossa cultura. Neste sentido é que “o filho é nosso”. É preciso também olhar para a idealização desse controle. Porque, de fato, não existe controle nesse nível. Implantam-se cinco embriões para tentar que dois deem certo. Então, os médicos jogam com isso. Só que o problema de jogar com isso é que no final da linha há um bebê. Ele está ali. E, agora, faz o que com ele?

Helena – Estamos todos implicados. Mas, em vez de problematizar, acusamos. E nos retiramos da cena. A ideia do “Tomemos, que o filho é nosso!” é reconhecer que estamos todos dentro da cena. O casal também tem de se responsabilizar. O problema foi responsabilizar a eles, exclusivamente, deixando-os sós. Eu acho que o “Tomemos que o filho é nosso!” é assim: este é um fruto da nossa cultura. É filho da cultura, não só deste casal.

– O que eu acho muito curioso é que existe essa tecnologia toda, nada precisa ser natural, nem o parto nem a reprodução, que pode ser feita num tubo de ensaio e não na cama, e no fim disso tudo a sociedade abre uns olhos espantados e exige a sacralidade do amor materno. “Como assim, essa mãe não acha maravilhosos ter três bebês ao mesmo tempo? Ah, nunca se viu uma coisa dessas…” Voltamos ao mito, como vocês disseram.

Helena – Eu acho que a mãe volta ao lugar idealizado via tecnologia. Ela foi destituída desse lugar tão idealizado, e ela volta a ser restituída a esse lugar com a tecnologia da reprodução assistida. O que volta com a reprodução assistida é justamente o mito do amor materno.

– Como assim?

Helena – Desse jeito. Se ser mãe passa a não ser mais tão valorizado – ser executiva talvez tenha mais valor, ou ser uma grande esportista, ou ter dinheiro, ou ter um carro bacana… As tecnologias de reprodução assistida possibilitam que as mulheres voltem a ser mães. Essa mãe que eles fabricam, que eles possibilitam/produzem, tem de ser uma mãe com letra maiúscula: uma mãe sem conflito com a maternidade, que nunca vai rejeitar o filho. De certo modo, a tecnologia possibilita a volta de “A Mãe”. E esta mãe não tem sombra, não tem marca. É a mãe com o letreiro e as luzes piscando. Ela retorna, e tem de refazer o mito do amor materno, porque também isso justifica a existência das tecnologias, da pesquisa, das ampliações dessas fronteiras tecnológicas. Então, é como o médico das trigêmeas falou: “Nossa, toda essa tecnologia, todo esse empenho, e eu nunca vi uma mãe depois de tudo isso não querer um filho”.

– O médico parece ter se sentido traído, né?

Verônica – Nesta pesquisa, a gente participou de algumas reuniões dos médicos do setor de reprodução. Em uma das discussões, eles debatiam a taxa de fertilidade. Um dos participantes disse: “Bom, a inseminação artificial bovina é perfeita, ela tem resultados ótimos, porque você usa o melhor reprodutor com aquela que tem mais condições de reproduzir. Nossos pacientes aqui são os piores reprodutores. As matrizes que a gente tem são falhas”. O que pensamos é que essa idéia remete ao biológico, ao corpo como uma máquina de procriação.

Helena – A gente fala muito que a Medicina retira o sujeito de cena, né? Acho que tem um pouco a ver com isso. O sujeito é aquele que é dividido, que tem conflitos. Sem conflitos não há sujeito.

(Publicado na Revista Época em 25/07/2011)

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