Acho que nunca a vi ereta. Por isso sempre pensei que era uma espécie de anã. Só muito mais tarde me dei conta de que ela havia sido moldada pela sua máquina de costura. Tanto tempo sobre ela que não sabia andar sem estar sobre ela. Não sabia ser sem ser sobre ela. Mas quando percebi já era muito tarde.
Lembro que minha mãe me levava até sua janela quando precisava fazer barras, remendar camisas, e depois espichar barras, voltar a remendar camisas e uma vez, só uma, para um vestido novo. Chamava-a na porta e ela vinha lá de dentro em forma de arco. Antes dela um barulho abafado de seus chinelos evoluindo com dificuldade pelo chão. E depois ela, com uma espécie de touca antiquada na cabeça e um vestido disforme de florzinhas lilases. Tinha dois olhos pequenos e sempre bondosos. Quase não falava. Só o inescapável. E o fazia com uma voz que pedia desculpas. Depois voltava no dia marcado e toda a cena se repetia ao contrário. Parecia ter vergonha de cobrar, e eu tinha vergonha da minha mãe que fazia sempre a mesma cara de que o valor era alto demais. E eu sabia que não era. Ela enfiava o dinheiro num bolso invisível na frente do vestido e esboçava seu tímido sorriso sem dentes. Nela, os dentes apareceriam como uma nudez demasiada.
As cenas, a de ida e a de volta, se repetiam em quatro ou cinco ocasiões por ano, toda vez que minha mãe tinha de fazer nossas roupas durarem porque em nosso mundo só havia roupas para vestir, nunca para exibir, e elas tinham de durar. E era ela que fazia esse milagre de nos tornar apresentáveis, mesmo com uma barra de outra cor. Ela fazia com que as descombinações parecessem propositais e nos salvava do ridículo. Fazia isso por boa parte da cidade que passava pela sua janela, em troca de uma cara feia pelos poucos trocados que cobrava, que todos nós sabíamos que eram poucos porque sua casa ainda era mais pobre que a nossa e às vezes parecia que o vestido dançava em seu corpo na magreza sem jeito dos que passam fome um pouco por dia.
Numa manhã eu havia brigado na escola, sim, porque eu brincava com os meninos e brigava como um deles. E numa dessas refregas no recreio, rolando pela areia da pracinha, eu rasguei meu casaco de frio bem no meio das costas. Furiosa não sei se comigo ou porque não tinha dinheiro para outro casaco, minha mãe me arrastou na mesma hora até a casa dela. E quando voltamos lá no dia seguinte porque eu só tinha aquele casaco e todos os dias de inverno eram frios naquele tempo, ela havia passado a noite em claro para que eu pudesse ter casaco para a escola e não precisasse inventar uma doença inexistente para esconder em casa o que me faltava. Naquele dia, com a geada enfiando sua mão gelada pelas nossas pernas, quando minha mãe chamou na janela ela veio de lá com uma rapidez que não era dela. E com um brilho no olho que não era seu apresentou o casaco com um arco-íris de retalhos de diferentes texturas nas costas. Eu nunca tinha visto nada tão lindo em toda a minha vida. Mas minha mãe fechou a cara e disse que a filha era pobre, mas não era palhaça. E ela pediu desculpas com sua voz sem voz e seus olhos voltaram para dentro. Eu espichei os meus dois olhos até o seu rosto na tentativa de tocá-la e mostrar a ela que era a coisa mais linda que eu já tinha visto, mas ela já tinha entrado para dentro de si mesma. E não pude mais achar a porta para ela. No dia seguinte, quando voltamos lá ela entregou o casaco com uma listra da mesma cor nas costas e não quis cobrar mesmo que tivesse passado duas noites em vigília. Minha mãe ainda saiu batendo os pés na geada com seu descontentamento, embora eu adivinhasse ou queria adivinhar que tinha ali um pouco de tristeza por não ter entendido o que entendia.
Daquele dia em diante eu nunca mais quis acompanhar minha mãe até a casa dela. No ano seguinte se instalou na cidade a primeira loja de confecções populares e com o tempo passamos a ter roupas que não eram só para vestir, mas também para exibir. E naquela fartura de tecidos ordinários em cortes sem capricho eu ficava imaginando como ela se virava agora que nosso arcaico pedaço de terceiro mundo finalmente entrava no universo volátil das mercadorias. Sem nunca, porém, ter a coragem de me debruçar sobre sua janela.
Os anos passaram levando com eles uma sucessão de invernos e geadas e um dia, quando eu já vivia na capital, minha mãe me telefonou com uma voz excitada. Denunciada pelo cheiro da morte, a costureira fora encontrada sobre sua máquina de costura. Tinha costurado com linha e agulha a própria boca. E suas mãos sobre ela. Desde então, penso que grito tão perigoso era aquele que ela temia escapar de sua garganta. Quando uma vizinha caridosa foi preparar o corpo para o velório, arrancou a touca da costureira e descobriu embaixo dela uma selvagem cabeleira vermelha que lhe ia até os pés.