Ela que me sabe azul

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Às 7h ela abre a janela. Seu apartamento, no prédio em frente, fica no mesmo nível que o meu. Eu paro de escrever para vê-la abrir a janela. Estou no meu sofá, com o computador no colo. Ela apenas olha sem arriscar o pescoço. Seu limite é a moldura da janela. Parece fazer questão de manter o teto sobre si. Arrisque-se, às vezes eu torço, mas ela nunca avança um centímetro além. Tem um rosto redondo e lembra uma daquelas bolachas brancas de tia do interior. Permanece ali, imóvel, durante longos minutos, olhando só para frente. Nem para cima, nem para baixo. Nem para a esquerda, nem para a direita. Só para frente. Depois, fecha a janela, cerra a cortina e só volta no dia seguinte. A velha na janela é meu original de Edward Hopper que se pinta todo dia no mesmo horário.

Nunca apareceu ninguém atrás dela, nenhum outro rosto além do seu. Já ensaiei algumas vezes o gesto de me dirigir à minha janela e fazer um sinal qualquer. Como num filme de alienígenas do Spielberg. Eu estenderia o meu dedo, ela estenderia o dela, e um raio de luz nos ligaria. Subiria uma música instrumental, e a humanidade estaria salva.

Temia assustá-la, porém. Ou intrometer-me num ritual vital cujo alcance eu não poderia compreender por inteiro. Não sabia o que ela via de mim, já que meu sofá fica de frente para a janela. Possivelmente, ela só enxergava um borrão azul em outro borrão azul. Eu quase sempre sou azul.

O que ela via? O que ela olhava além do meu azul, já que diante dela há apenas um edifício bege e sem imaginação, o meu? Para o quê? Para onde? Por quê? O que ela via quando não estava vendo?

Depois de cada uma de minhas viagens, eu só tinha certeza de ter voltado para casa e que o mundo ainda era o meu quando ela abria a janela. Será que ela tinha notado que o azul sumira por uns dias? Sentira falta? Sofrera?

Com o tempo, percebi que as manhãs só eram reais se ela estivesse ali naquele instante preciso. No momento em que as cortinas se abriam e seu rosto assomava à janela, a vida ganhava materialidade, e eu deixava de vagar a esmo em passos de astronauta. A velha na janela me dava gravidade, e eu desabava do teto para o sofá. Tornamo-nos estranhas íntimas, mas esta era só a minha opinião.

Hoje, as cortinas não se abriram. Ela não veio. Restei eu ali, no sofá, esperando-a, mas o seu mundo permaneceu fechado. Compreendi de repente a sirene da ambulância que havia soado no que eu pensava ser um sonho ruim. E quando entendi, vomitei. Eu não sabia até então como é que o mundo da gente morre. Agora ninguém mais sabe que de manhã sou azul. Então não sou. Em azul não há mais eu.