Estranho

O primeiro sinal foi a barra da calça jeans. Sua calça preferida, de grife. Ela costumava usar com salto alto. Quando comprou, usando uma boa parte do décimo terceiro do último Natal, pedira para a costureira deixar a barra um pouco comprida. Mas naquele dia a calça arrastava no chão apesar do salto de 12 centímetros. Que estranho, pensou. Já estamos no meio do ano e ela parecia estar no comprimento certo. Não deu mais atenção. No dia seguinte deixou a calça novamente na costureira, implorando que aprontasse na sexta-feira, para usar numa festa no sábado.

O segundo sinal se revelou três dias depois. A temperatura havia baixado brutalmente por conta de uma frente fria vinda da Argentina, e ela precisou tirar o edredom da parte de cima do armário. Sempre havia feito isso sem necessidade de subir num banco ou na escada. Mas naquele dia as pontas de seus dedos mal alcançaram a parte superior do guarda-roupa. Sentiu uma garra lhe apertando o estômago, a garra da infância, a mesma que sentiu quando o pai lhe pediu que sentasse em seu colo e não a soltou por tempo demais. Será que estava encolhendo? As pessoas encolhiam com a idade, mas ela só tinha 34 anos. Se matricularia na aula de alongamento da academia.

Dois dias depois foi pegar um pacote de coxas de galinha desossadas no freezer para preparar seu famoso risoto de frango com funghi. Não alcançou. Neste terceiro sinal, desmaiou. Como no dia em que o pai foi embora, e a mãe fechou a cara para ela. Até morrer num asilo, pouco antes do Natal e da compra da sua calça de grife.

Não podia mais ignorar. Algo de muito estranho estava acontecendo. Ligou para o clínico geral que havia cuidado dela quando a gripe suína quase a matara no inverno passado. “Estou encolhendo”, ela disse. Silêncio. É verdade. Você vai achar que eu sou maluca, mas eu estou encolhendo. Tenho um intervalo hoje à tarde, às 16h30, ele finalmente disse. Venha ao consultório para conversarmos. Ela desligou. Ele não acreditava nela.

Experimentou várias roupas diante do espelho. Nada havia mudado na sua largura, apenas no comprimento. Ela era a mesma, apenas uns 15 centímetros mais baixa. Com uma saia que antes mal batia nos joelhos e agora caía até os tornozelos, os pés enfiados num sapato de festa com salto de 15 centímetros, pegou um táxi para levá-la ao consultório. Queria andar na rua o mínimo possível. Você está um pouco diferente, disse o motorista. Cortou o cabelo? Não, acho que emagreci um pouco. Está sem salto, ele disse. Ela não respondeu. Saiu do carro tropeçando.

Doutor, eu sei que parece loucura, mas estou encolhendo. O médico perguntou como andava a sua vida, se tinha dormido bem nos últimos dias, se sentia falta de um namorado. Não tem nada de errado comigo, doutor, eu não estou louca. Mas a cada dia estou menor. Tanto insistiu, que ele a mediu. A altura não batia com a da ficha. Acho que cometi um erro aqui no preenchimento do seu cadastro, ele disse. Não, ela quase gritou. Está tudo certo. Sou eu que encolhi! O senhor não está ouvindo? Ele estava, mas não escutava. Ela começou a chorar um pranto convulso. Saiu de lá com um antidepressivo pesado e um ansiolítico leve.

Antes de chegar em casa, comprou duas caixas de seu bombom preferido e uma lata de sorvete. Passou a noite encolhendo e comendo doces, diante de uma sequência de comédias românticas. Adormeceu no sofá azul. Quando acordou, o dia amanhecendo e entrando em rasgos pelas cortinas, levantou-se para ir ao banheiro e estatelou-se no chão. O sofá era alto demais para o seu tamanho. Assim como todo o resto. Fez xixi na caixa de areia do gato. Que a olhava com um olhar estranho, um olhar que a estranhava.

Duas semanas depois os bombeiros arrombaram a porta a pedido do síndico, que por sua vez havia sido pressionado pela vizinha do lado, que sempre espionara a vida dela. Ela não aparece há dias, já veio aqui um colega de trabalho dizendo que ela sumiu do emprego. Tocamos a campainha muitas vezes, mas ela não atende, dizia a mulher, com os olhos de fuinha que ela não viu. Escutei uns miados estranhos do gato, agregou o faxineiro.

A porta foi abaixo, apesar das duas fechaduras tetra. Não a encontraram. Estavam lá as roupas empilhadas sobre a cama, os CDs, a coleção de DVDs do cinema americano das décadas de 50 e 60 que ela adorava, o lap top ainda conectado em sua página do facebook, os pratos sujos na pia, até um vibrador verde. De 30 centímetros, cochichou o zelador.

E o gato, que se enrolou nas pernas da vizinha do lado, ronronando.