O atum

Para João

Acordou decidido a cometer uma extravagância. Passara a vida com o dinheiro contado. Agora que estava aposentado, tinha de contar mais cada vez menos dinheiro. Mas desde que vira na revista uma receita de atum, não conseguiu tirar a imagem da cabeça. “A carne tenra e crocante desta iguaria provoca uma transcendência….” Não conseguia esquecer a frase do crítico de gastronomia. Ele não sabia o que era “transcendência”, mas queria ter uma. Intuía que era bom.
Transformara-se numa obsessão. O atum era a última imagem antes de pegar no sono, a primeira quando acordava. Logo não podia mais dormir. Queria experimentar a transcendência antes de morrer, a carne tenra e crocante do atum.

Naquele dia acordou obstinado. Ele havia sido sempre um homem reto, cumpridor dos seus deveres. Uma vez até havia sido elogiado pelo chefe da repartição por devolver uma nota de 100 reais que havia encontrado no banheiro. O chefe disse que era dele e a embolsou. Ele não tinha certeza de que era do chefe. Mas, como disse para a mulher, naquele tempo ainda ignorante do câncer que viria a matá-la, o que importava era que ele tinha feito a coisa certa.

Agora, gastaria a mesma quantia para comprar aquele atum. Nem que tivesse de atrasar a conta da água e da luz, comer sopa pelo resto do mês, adiar a aquisição de um cobertor mais grosso para o inverno que chegava. Ele queria aquela transcendência mais do qualquer coisa que tivesse desejado em toda a sua vida.

Vestiu seu melhor casaco, passou no caixa eletrônico do banco, raspou tudo o que ainda lhe restava na conta e entrou pela primeira vez na Casa Santa Luzia porque não queria porcaria. Queria aquele atum. Não o criado em cativeiro, entupido de hormônios para aumentar o peso. Mas o capturado em mar aberto por barcos equipados com a mais avançada tecnologia, o que o jornalista disse que provocava transcendência.

O atendente perguntou quem era seu patrão. Ele não entendeu. Depois, percebeu que havia ali muitos mordomos ou coisa parecida, como nas novelas. Homens como ele, mas mais bem vestidos que ele, que faziam compras toda semana ali, que comungavam de uma soberba que os irmanava. Disse com uma satisfação secreta: é para mim mesmo.

Caminhou cinco quarteirões para que não o vissem pegando o ônibus. Sentia-se diferente. Como se tivesse feito algo importante na vida. Sentia-se até mais alto. Mesmo a gastrite que o atormentava desde os 24 anos parecia ter sumido.

Em casa retirou com cuidados de pai a página da revista que havia guardado bem dobrada na gaveta da cozinha. Leu e releu a receita com os óculos de vista cansada comprados na farmácia. Ele sempre fora um bom cozinheiro. Tinha mais mão para a cozinha que a mulher, que sempre queimava o feijão. Talvez convidasse a filha que não o visitava havia meses, sempre com a desculpa de que o marido estava trabalhando aos domingos. Não, aquele atum era dele. Pela primeira vez na vida, ele teria algo só dele. Lavou bem as mãos, passou álcool-gel e abriu o pacote sobre a mesa. Sentou-se diante do atum. Ficou olhando para ele.

Sentiu um calafrio, como se tivesse estabelecido uma conexão com o peixe. Mas ele estava ali, bem morto. Aquele atum em cima da sua mesa de fórmica descascada pelos anos, pela miséria da sua vida de assalariado, atravessara oceanos e conhecera profundezas. Tinha sido capaz de vencer 170 quilômetros de mar aberto num só dia. Aquele atum havia comido mais peixes que ele em toda a sua existência. Experimentara uma vida selvagem. Aquele atum ali tinha sido livre. Que jornadas ele não empreendera, que maravilhas não vislumbrara no fundo do mar, que aventuras com certeza vivera.

Aquele atum ali tinha brigado pela sua vida e sido subjugado não por resignação ou por passividade ou porque não cogitara que havia outro jeito de existir que não a obediência. Aquele atum ali fora subjugado apenas pela força. E morrera lutando.

E agora estava ali, na mesa de fórmica descascada de sua cozinha, para ser comido por ele. Entre seus dentes gastos por carne de segunda e maltratados por dentistas de subúrbio. Para lhe dar transcendência. E ele nem sabia o que era transcendência.

Sentiu náuseas. A gastrite voltara. Ou era algo mais. Vomitou na pia da cozinha.

No dia seguinte, recolheu os últimos trocados e se enfiou num ônibus para o Guarujá. Trazia o atum nas mãos. As pessoas olhavam para ele, mas ele não as via. A mulher sentada ao seu lado no ônibus tentou puxar conversa, mas ele não a ouviu. Ela então reclamou do cheiro, mas ele parecia tão alienado de tudo que os passageiros concluíram que era retardado. E na segurança de suas certezas, o deixaram em paz.

Quando desembarcou na rodoviária, caminhou até a praia com seu atum. E foi entrando no mar com ele. Um homem vestido pobremente com um atum nos braços mar adentro. Naquele momento, se pudessem enxergar seu pensamento, descobririam que ele só tinha um lamento. O de não ter conhecido a transcendência.