O pai

Lembra de seu primeiro olhar para aquele homem. Um olhar de baixo para cima, porque ela mal havia deixado de arrastar a barriga no chão e se assentava sobre duas pernas ainda inseguras de seus passos. Viu primeiro o corpo de tronco, os músculos esgarçando a camisa de homem comum. A camisa muito limpa, mas sem ambição. Muito tempo depois ela descobriria que ele só tinha uma altura mediana. Mas nesta primeira vez e em muitas depois desta, ele lhe pareceu um gigante.

Ela viu mais.

Atrás dos óculos dele, ela adivinhou no movimento fugidio das pálpebras a fragilidade do pai. Foi muito rápido, quase como aqueles vultos fantasmagóricos que passam no espelho do banheiro em filmes de terror. Mas o suficiente para assinalar a alma dela com uma aflição que a perseguiria por toda a vida. O pai, como ela, tinha medo. E por causa das frestas na fortaleza do pai o amou mais.

Toda vez que o pai saía de casa para trabalhar, o peso da responsabilidade nos ombros levemente arqueados, algo dentro dela quase se partia. Ela sabia que os ombros do pai aguentariam o peso, mas algo invisível dentro dele se rompia um pouco a cada dia. Passava as horas na espera do pai, temendo que a represa da fortaleza do pai se rompesse longe dela e, liquefeito, ele não achasse mais o caminho de casa, o caminho para ela.

Quando o via chegar, quase se alegrava. Mas a sombra atrás dos óculos e atrás dos olhos continuava lá. Assim como a certeza precoce de que a carne do pai era mortal. Podia ser atravessada, furada, atingida, tocada. A carne do pai era exposta. E só havia aquela carne imperfeita para proteger a alma de passarinho do pai, ocultar seu medo de não poder se levantar a cada manhã para dar uma vida a ela, à mãe e aos irmãos. Quando o via assim, ela chorava um choro convulso. E ninguém sabia o que aquela menina tinha. Dentro dela, abriam-se feridas de um tipo que não se fecha, apenas convive-se.

À noite, ela esperava o pai sentar-se no sofá para assistir ao jornal nacional e o escalava pelos joelhos até acomodar-se no colo dele. Ficava ali, compacta e imóvel, respirando sem alarde, até a mãe arrastá-la para a cama, esperneando, aos berros. Ela sente falta do pai, diziam as tias impressionadas, as vizinhas, às vezes a mãe. Precisa da proteção dele. Essa menina é muito medrosa, vai dar trabalho.

Ela se calava. Só ela sabia que se postava com todo o pequeno do que era para proteger o corpo do pai. Ela inteira diante do coração do pai. Quando viesse, a primeira bala do mundo seria para ela.