O homem dos Crocs vermelhos

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Era um homem mignon. Entrava pela porta do apartamento junto com outros dois companheiros, com a missão de destruir o meu banheiro. Uma semana antes, a vizinha anunciara pelo interfone que um vazamento transformara o teto do seu numa versão em miniatura das Sete Quedas. Quando me avisam que algo vaza do meu apartamento é como se vazasse de mim. Apressei-me a descobrir a fonte dos sete furos, ansiosa por estancar qualquer ligação da minha privada com a vida privada da vizinha de baixo.

Ao vê-los entrando pela porta, sabia que seriam ao mesmo tempo algozes e salvadores, responsáveis por matar meu silêncio com um réquiem para violinos e marretas. Mas, mal assomaram a porta, foi ele que me chamou a atenção. Destacava-se não pela liderança ou pela timidez, mas por um olhar de poeta tuberculoso do século 19. Mal me olhou sem curiosidade antes de voltar a esconder-se sob pálpebras anêmicas, espanando sua desolação e um resto de remela com cílios tão longos que pareciam femininos.

Entrou calado, com calças largas demais, um moletom de uma universidade americana do tipo que se vende na 25 de março e… nesse ponto meu espanto atingiu picos bíblicos. O homenzinho melancólico, em tudo o mais apagado e meio morto, usava um par de vistosos Crocs vermelhos. Sim, aquela sandália de plástico que se tornou moda em anos passados, em formato de pata de elefante — e que é preciso ser um homem muito desassombrado para usar. Coisa que em nenhuma vida ele parecia ser.

Fiquei estaqueada na porta, sem poder despregar os olhos dos Crocs. A sensação era mais ou menos como chegar a Nova York e encontrar o chapéu de frutas da Carmen Miranda na cabeça da Estátua da Liberdade. Ele, porém, não gastou um segundo em mim, antes de arrastar seus Crocs para o banheiro. Passei boa parte do dia distraída do trabalho, tentando decifrar aquele teorema de Fermat em plena quinta-feira, dentro da minha casa. Uma marreta na mão e… um Croc em cada pé.

Quando finalmente eles partiram, depois de demolir meu mundo como eu o tinha conhecido, fui quase na ponta dos pés espiar o que havia restado do meu banheiro, ainda submersa na sensação de algo fora do lugar. Ao apertar o interruptor, deparei-me com uma mulher enorme. Muita carne e nenhum osso, contida em uma pequena fotografia grudada com fita adesiva no azulejo bege da única parede inteira, onde antes havia o espelho onde eu verificava o andamento das minhas rugas enquanto escovava os dentes pela manhã.

Apertada num decote vermelho, a mulherona sorria um riso de dentes grandes, cabelos plissados de loiro, olhar de quem faria bolinho de chuva só de avental na cozinha se eu pedisse. Quem é essa?

Naquela noite, não dormi. Por várias vezes, dei a desculpa de que ia tomar água na cozinha e fui lá verificar se a assombração continuava no mesmo lugar. Continuava.

Na manhã seguinte, já esperei o trio de porta aberta. E lá chegou o homenzinho a bordo dos Crocs, ainda mais pálido do que no dia anterior. Quando eles marcharam corredor adentro, eu fui atrás. Perguntei de uma vez só, sem fazer separação de sílabas: “Queméssa????!”. Silêncio. Dava para ouvir o vizinho de baixo piscando. Olhei para um, olhei para outro, fui capturada pelo não olhar do homenzinho dos Crocs, agora com os olhos cravados nos próprios e chamativos pés. O mestre de obras pigarreou, fingiu ser possível limpar algo nas calças imundas de trabalho, antes de dizer: “É a falecida mulher dele”. E olhou para o homenzinho dos Crocs, que não olhou para ninguém.

Ah, balbuciei eu, enfiando a roupa de megera num só gesto. “Ele não faz obra sem que ela esteja olhando”, explicou o colega que não era ele. “E sabe que dá sorte? A gente até gosta dela ali.” Ah, fiz eu de novo, como se não tivesse aprendido outras letras.

Quando preparava o suicídio jogando-me no ralo, ouvi uma voz grave, profunda, mais solene que a do Cid Moreira lendo a Bíblia. Era dele a voz muito maior do que ele. “Ela me deu esses Crocs…” Olhei para ele, ele olhava para mim. Olhei para os Crocs, ele olhava para mim. Eu fiz mais um “ah” apatetado. E o homenzinho desandou a chorar.

Desculpe-me por ter perguntado, eu disse. Ela é uma mulher muito bonita. E estes Crocs são lindos.

Virei as costas envergonhada, deixando atrás uma ruína muito maior que a do banheiro, uma que era irreparável. Naquela noite não dormi mais uma vez, pensando que não havia como abrir a porta da casa sem ser abalroada pela vida do outro que entrava por ela. Sabia agora que, ao contrário do buraco no meu banheiro, o do peito do homenzinho jamais poderia ser fechado. E quase o invejei não pelo que tinha, mas pelo que teve. Eu agora sabia que a mulher havia visto nele mais do que qualquer outra pessoa no mundo jamais veria. Havia visto nele um homem em cujos pés caberiam um par de Crocs vermelhos.