O pecado do meu pai

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Meu pai é um homem tão reto que, mesmo hoje, passado dos 80, ele anda pela cidade com a coluna perfeitamente alinhada. Anda não, desfila. Já tentei surpreendê-lo distraído e nada. Lá está ele, numa postura de miss. Há anos tento convencê-lo a colocar tip-top em casa. Aqui é necessário uma explicação: tip-top, aqueles macacõezinhos de bebê, é o nome que damos para pijamas e roupas largas e confortáveis de ficar em casa. Mesmo não morando comigo (claro!), minha filha e meu genro têm seus respectivos tip-tops guardados para quando vêm de visita. E todo hóspede sabe que precisa botar na mala um “tip” se quiser ser bem recebido. Explicação feita, a regra vale para todos. Menos para o meu pai. Ele acorda pela manhã, depois de uma higiene rigorosa à beira da pia do banheiro, ausculta seu guarda-roupa impecável e de lá retira com a ponta dos dedos uma camisa de colarinho, um suéter nos dias de inverno, calça e cinto, as meias combinando. Sempre pronto para um casamento ou uma solenidade cívica. O único sinal de que está em casa são os chinelos. Não furados como os meus, mas novíssimos há décadas. Assim é meu pai.

Esta mesma retidão externa alinha seu caráter. Reto e impávido como um arranha-céu em que o Niemeyer não botou a mão. Observei-o com rigor filial por mais de quatro décadas e não consegui encontrar nem mesmo uma curva suave. E olha que procurei, às vezes com um quê de raiva. Não é possível que o homem não tenha balançado pelo menos uma vez. Nada. Ele ouve, ouve, ouve. Pensa, pensa, pensa. E faz o que deve. Custe o que custar. É possível discordar de suas decisões e houve momentos em que lhe faltou compreender que as curvas também são filhas de Deus, mas sempre foi impossível duvidar de que sua ação tenha resultado de uma crença profunda. Em resumo. Mesmo quando meu pai me pareceu errado, ele estava sendo fiel a si mesmo.

É nesse mesmo formato de reta que meu pai vive o evangelho de Cristo. Nunca foi um católico de ocasião nem tampouco cego para os malfeitos da Igreja. Para ele, ser cristão é viver o mais próximo da forma como Cristo viveu. E ele se dedicou com afinco não a ter fé — mas a viver a fé. Por isso, quando a rádio lhe entrevistou no aniversário de 80 anos, perguntando qual era o segredo da sua saúde e longevidade, em vez de falar nos xaropes de ervas de gosto abominável que ele nos fazia tomar até sairmos de casa, meu pai surpreendeu a todos dizendo sem hesitar: “o perdão”. Explicou que, se alguém lhe fez algum mal algum dia, estava perdoado. Se ainda fizesse, idem. Guardar ódio, mágoa e rancor não fazia parte da sua vida.

Diante deste pai, que todos que conhecem amam e que, com a idade ficou ainda mais encantador porque deu para ter cabelos encaracolados e brancos de ovelhinha de livro infantil, eu, a ovelha negra da família, dediquei-me a encontrar um deslize. E encontrei. Ao entrevistá-lo sobre a história da sua vida tempos atrás, ele anunciou que me contaria o que pode ter sido a única insubordinação de toda a sua existência. Me animei toda e acho que até apareceram uns chifrinhos vermelhos na minha cabeça. Secretamente, eu salivava.

Esta foi a história que meu pai contou. Nos tempos de sua infância, na zona rural onde ele vivia, a Sexta-Feira Santa era santíssima. Os católicos não podiam comer carne, como hoje, e também tinham a obrigação de se recolher e se entristecer o máximo possível. Eram horas de silêncio. Os adultos tentavam não conversar — e as crianças estavam proibidas de brincar. Tudo porque há dois mil anos Cristo havia sido crucificado supostamente naquele dia. E a humanidade inteira tinha de reviver a barbárie e se arrepender, mesmo não tendo estado lá na ocasião.

Criança que trabalhou desde muito cedo, como todas da roça naqueles tempos, meu pai não conseguia compreender por que no dia em que até os adultos tinham folga não podiam ser alegres. E toda Sexta-Feira Santa aquele guri pequeno, por volta dos seus seis anos, era tomado por um desejo incontrolável de fabricar um carrinho. E o desejo já começava uma semana antes a lhe rondar o coração de passarinho. Ora, se nem falar alto podia, não havia pecado maior do que enfiar pregos na madeira no dia em que tinham feito o mesmo com Jesus. Era, todos garantiam, o mesmo que crucificar o filho de Deus. De novo.

Meu pai ouvia isso. Mas lhe era impossível resistir à tentação. Toda Sexta-Feira Santa o piá mais obediente da Picada Conceição se afastava, juntava uma tabuinha de madeira, um carretel de linha número 16, a mais forte, usada pela mãe para remendar as roupas, com a qual fabricava o eixo traseiro, e outro, de linha 30, menor, para o dianteiro. Munia-se de martelo e pregos e construía o seu carrinho quebrando o silêncio imposto pela religião. Muito, mas muito mais tarde me confidenciou com as mãos trêmulas: “Eu ficava pensando: será que eu sou ruim? Eu achava que era uma pessoa mais ou menos boa…”.

Em seguida, seus olhos bondosos se abriram abarcando o passado. Meu pai ainda estava surpreso com o seu pecado de menino.