O vazamento

O barulho entrou no sonho, cravou-se no cérebro e a acordou. Irritada. Quem era o imbecil que tocava o interfone às 9 horas de um sábado?

Arrastou-se descalça até a cozinha. “Bom-dia”, disse o zelador. “Desculpa incomodar, mas a moradora do apartamento abaixo do seu avisou que está com um vazamento no banheiro da suíte. Daria para a senhora dar uma olhada? Se não puder hoje, ela disse que não tem problema algum. Pode ser na próxima semana.”

Ah, não. Vazamento não. Só podia ser na banheira. Tomara que não seja na banheira. Eu não vivo sem minha banheira. Vou agora, avisou. Como continuar dormindo se sua casa pingava na vizinha de baixo?

Lavou o rosto, enfiou uma bermuda e uma camiseta e desceu de havaianas. Odiava vizinhos. Não conhecia nenhum deles além dos cumprimentos emburrados no elevador. O inferno eram os vizinhos. Pensar que algo seu, ainda que fosse água suja, tivesse qualquer contato com os vizinhos, a enlouquecia. Ela não queria nenhuma conexão de condomínio.

Quando algo na casa se estragava, ela sentia se desestruturar por dentro. Como se houvessem fios soltos na sua caixa torácica, rachaduras na carne. Sua alma combalida por infiltrações escorria pelas paredes. Sentia-se acuada. Queria que alguém consertasse por ela. Precisava que outro fizesse reparações. Não suportava.
Você é uma mulher adulta, disse para si mesma. Tenha compostura.

Apertou a campainha. A porta se abriu imediatamente. Uma mulher de 50 e poucos anos, sorriso de orelha a orelha debaixo de um penteado antiquado, um vestido que parecia novo, muito bem passado, cumprimentou-a como se fosse uma visita muito esperada. Sobre o vestido, um avental inteiro, bordado a mão em pontos miúdos. Limpo, limpíssimo. Logo atrás dela, um homem de uns 70 e poucos anos, calça de tergal com friso, camisa por dentro da calça, sapatos engraxados. Eles a esperavam.

“Desculpa incomodar”, a mulher disse. “A gente não gosta de incomodar, ainda mais no sábado. Não tinha esta pressa toda.” Ela vestiu seu melhor papel de vizinha civilizada, mas distante. Não é incômodo algum, imagina. Pelo contrário, incômodo é o que estou causando a vocês, ainda que involuntário.

“Olha, peço desculpas, a casa está uma bagunça. Ainda não tive tempo de arrumar”, disse a mulher. “Estou fazendo um camarão, sabe como é”, acrescentou, cúmplice. Ela disfarçou e olhou ao redor. A casa estava impecavelmente limpa e arrumada. A sua nunca esteve nem tão limpa nem tão arrumada. Nem depois de a faxineira passar.

Notou também os móveis pesados e tristes. Os vazios preenchidos de uma vida metódica. Lá estava ela, devaneando na casa dos outros. Marchou pelo corredor até a suíte. Com licença. E entrou.
O teto estava podre. O gesso era uma massa limosa de verde com manchas escuras onde deviam coexistir constelações de fungos e bactérias variadas. Nossa, ela disse. Este vazamento deve acontecer há anos.

A vizinha torceu as mãos. Atrás dela, seu pai olhou para a ponta dos sapatos pretos. “É que a gente não gosta de incomodar os outros, sabe. Só falamos agora porque está pingando muito.” O pai estendeu a ela um olhar reprovador. Ela se recompôs. “Não estou falando como queixa, claro. Imagina, não se preocupe, podemos aguentar bastante tempo ainda. Temos o outro banheiro.”

Acho que hoje não consigo um encanador, mas na segunda, sem falta, ela disse. Estava consternada. Há anos, enquanto mergulhava feliz em sua banheira, a água de seu corpo nu pingava sobre eles. Abaixo de sua nudez, a água de seu banho corroia a casa deles. Era assustador. E eles não falavam nada. Não se queixavam. Deixaram Páscoas, Natais e aniversários passarem sem um murmúrio.

Quais são os melhores horários para vocês? “Nós não saímos”, disse a mulher. “Ficamos os dois em casa. Meu pai é doente. Eu nem poderia sair, mas, mesmo se pudesse, não gosto. Estamos sempre aqui. A qualquer hora. Como for melhor para você.” Certo, eu vou ligar para o encanador e aviso. Enquanto isso, vou interditar este banheiro, não se preocupem. “Não, imagina”, a vizinha disse. E o pai ecoou. “A gente não se importa. Tome seu banho de banheira sossegada. Se parar, como vamos saber se continua vazando?”.

Ela tentou sorrir. Estava prestes a cair no choro. Foi andando pelo corredor em direção à porta, seguida pelos dois, pai e filha. “Eu vejo você às vezes, indo para o trabalho, eu acho. Está sempre tão bonita, de salto alto”, a mulher disse. E imediatamente ruborizou. Deve me ver correndo pra lá e pra cá. É uma vida louca. E logo se arrependeu de sua pequena demonstração de mulher alfa, ainda que involuntária, como o vazamento da banheira.

Estava há dois passos da porta. “Olha”, a mulher disse. E ela olhou para trás, interrogativa. A vizinha tinha um ar encabulado. O pai lhe deu um empurrãozinho para frente, de estímulo. Estava todo animado. “Sim?”, ela disse. “Você não quer almoçar conosco?”, ela gaguejou. “Você gosta de camarão, não é? Não tem alergia, espero…”.

Por alguns minutos, ela ficou muda, sem saber o que dizer. A mulher a ajudou, forçando um sorriso no rosto. “Você deve ser muito ocupada, imagina. Assim, de surpresa, num sábado! Uma mulher como você…”. É, ela balbuciou, talvez uma outra vez. Para comemorar o fim do vazamento, tentou sorrir. Atrás da filha, o homem olhava para os sapatos pretos.

Ela desejou um bom dia e subiu quase correndo pelas escadas. Em casa, entrou na banheira seca e se enrolou em posição fetal.