Parecia mais um dia igual. Rorix, o duende cor-de-rosa, estressado como sempre nesta época do ano, sacudia-o sem parar. Queria saber se podia pintar os olhos da Barbie Los Angeles de dourado. Sim, sim, pinte de dourado com listras prateadas se quiser, mas me deixe dormir. Virou-se para o lado, não sem certo esforço para ajeitar sua barriga cada vez mais imensa. Hum, eu não devia ter comido aquele chester com damascos no jantar.
Precisava ficar de olhos bem abertos nos duendes que davam acabamento nas Barbies. Eles não conseguiam ficar com aquelas coisinhas deles dentro das calças bufantes. A cada réveillon chegavam mais de um milhão de cartas de mães ameaçando denunciá-lo. Hum.
Logo, porém, sonhou que seu trenó era puxado não por aquelas renas pastelonas, mas por unicórnios. Hum, havia algo errado com aqueles unicórnios. Os chifres eram poás. Rorix, de novo. Desta vez, para avisar que Xiror havia surtado, como de hábito nesta época do ano, e arrancara todas as pernas dos bonecos do Homem Aranha com os dentes. Hum. Lá se foram os unicórnios poás. E lá estava ele naquele lugar nefasto chamado Pólo Norte, os pés gelados como um nariz de morsa, os dedões parecendo salsichas Bock. Ô lugar!
Deve ter sido Átila, o Huno, na encarnação anterior, para merecer morar numa terra daquelas, varrida por ventos, coberta por neves eternas. Dias antes havia enviado um e-mail para a COP15, em Copenhagen, manifestando-se contra a redução de gases de efeito estufa. Ele — como alguns líderes mundiais — era a favor do aquecimento global. Tinha esperança de, no próximo século, estar morando debaixo de uma palmeira, pança lambuzada de bronzeador, vestido apenas com uma sunga de lycra vermelha. Mas não foi levado a sério. Quem leva a sério alguém com um nome como o dele?
E lá estava ele, cada vez mais desesperançado, condenado ao pior emprego do mundo. Ano após ano fazendo o mesmo trabalho burocrático, com os mesmos subordinados sem imaginação e com orelhas estranhas, ouvindo as mesmas músicas insuportáveis, descendo por chaminés cada vez mais inóspitas, cobertas por cercas elétricas, alarmes, seguranças brucutus. Sem falar nos pit bulls e nos skinheads, que corriam atrás dele com bastões chamando-o de veado. Sim, ninguém merecia uma roupa ridícula como aquela, vermelha e com pompons. Que vida, meu Deus, não era à toa que a mulher havia fugido com um vendedor de rum creosotado um século antes.
Levantou-se da cama. Sua barriga fez ruídos tão assustadores que Rorix Xiror Júnior despencou de uma pilha de patins. Algo de cor esquisita escorria da cabeça do duende, mas achou melhor não investigar. Bem que ele havia achado estranho aquele chester ter uma terceira sobrecoxa dentro do peito. Pensara, porém, que era um aprimoramento genético.
Agora, sentia uma pontada no intestino. Ó, céus, como se a vida já não fosse suficientemente difícil nesta época do ano. Ordenou a Xirorix, o cozinheiro, que fizesse um chá de fígado de beluga. Sentou-se em sua cadeira de aço guinzo, diante do computador. Já devia ter terminado há uns dez dias aquele game em que uma das garotas super poderosas, Docinho, provavelmente, tinha de capar o maior número de aliens. Ele sentia um arrepio a cada vez que um alien perdia o pinto, mas uma encomenda era uma encomenda. E a menina havia se comportado direito.
E então a dor dobrou-o em dois. Apertou a tecla errada e os aliens comeram Docinho por trás. Xirorix correu com o chá em sua direção, mas ele deu um tapa na xícara com tanta força que um dos cacos cravou-se na porta da casa da mãe da Björk. Deus, ele estava mal. Colocou as duas mãozonas sobre o barrigão. Havia algo muito suspeito ali. Parecia que algo vivo queria sair do interior de suas entranhas. Seria um bebê?
Pensamento estranho, ele devia estar mais esgotado do que pensava. Então a coisa dentro dele foi toda para um lado. Ele jogou-se para frente de tanta dor. Àquela altura, todos os duendes haviam parado de trabalhar e olhavam para ele com aqueles olhinhos argutos. Voltem ao trabalho, seus merdas, quis gritar. Mas a coisa foi toda para o outro lado e ele foi jogado no chão, esmagando três centenas de Harry Potters e duas dúzias de réplicas em tamanho natural de Edward Cullen, o vampiro vegetariano.
De repente, ele estava com muito calor. Queimava por dentro. Arriscava estar com uma febre de mais de 40 graus. Mandou que Xiror abrisse a porta. Apavorado, segurando uma Barbie Malibu pelos cabelos platinados, o duende obedeceu. Arrastando-se pelo chão, ele conseguiu alcançar o lado de fora. Pela primeira vez, a neve lhe dava uma sensação agradável. Esfregou-se nela como um urso polar. E então a dor foi tanta que desmaiou.
Quando despertou, não sabe quanto tempo depois, a coisa saía de dentro dele. Arrebentara sua carne e levantava-se suja de sangue, tripas e fezes. Então percebeu as letras. O monstro era todo escrito. Tinha perdido os óculos de vista cansada na segunda cólica, mas conseguiu perceber que a coisa era feita de palavras em diferentes línguas e dialetos, boa parte deles africanos. Já tinha visto aqueles garranchos em algum lugar. Mas onde?
Voltou a gelar. Sim, eram as cartinhas das crianças pobres que ele jogara no lixo por falta de leis de incentivo que permitissem atender aos seus pedidos. Quando ainda era jovem havia batido na porta de alguns estadistas na tentativa de obter um financiamento. Depois, desistira. A cada ano, jogava-as direto no incinerador. Como, então, elas foram parar dentro dele? E, pior, viraram aquele monstro dentro dele?
Naquele Natal nenhuma criança ganhou presente. Todas tiveram a mesma festa triste. Como na música de John Lennon, o mundo finalmente era um só.
Segundo Rorix, preso pela imigração num voo para Los Angeles, suas últimas palavras foram:
Ho, Ho, Ho.