Dentro dela

Começou ao despertar da anestesia. Foi um sucesso, diziam. Ela não se sentia um sucesso. Mas tirou tudo? Tudo, tudinho. Não sobrou nada. Ela não sentia que tinha acabado. Ao contrário. Tinha um gosto metálico na boca. É da anestesia, o médico garantiu. Ao seu redor todos pareciam leves. Ela, ainda mais pesada. Tem algo errado. É natural que seja difícil para você acreditar que acabou, disse a psicóloga com voz de elevador. Terceiro andar, lingerie e roupa de banho. O tumor foi retirado do seu corpo, mas permanece no seu inconsciente. Você precisa se autorizar a viver. Vou lhe passar um antidepressivo leve. E os cochichos no corredor. Eu me sinto pior. Ela gritava. Putaquiopariu ninguém me ouve nesta merda!

Dormonid. Acordou em casa. No sofá azul, como ela gostava. Tudo parecia igual. Sua coleção de DVDs de animação da Pixar. Os livros amontoados sobre a mesinha, mais livros embaixo da mesinha. Seu louva-a-deus da sorte. A orquídea que não dava mais flores. Dentro dela não. Havia algo sólido dentro dela. Ela sentia. Urrava agora. Pelo amor de deus eu não sou louca. Me escutem. Tem algo dentro de mim. Algo diferente da outra coisa. Aumentaram a dose dos medicamentos. Quando acordou tirou a névoa dos olhos com a mão. Levantou da cama apoiando-se na cômoda. Caminhou trôpega até o banheiro. Lavou o rosto. A água estava fria. Enfiou o primeiro vestido. Espalhou o conteúdo das gavetas no chão em busca de dinheiro. Quatorze reais. Achou sua bolsa pendurada no cabide. Esgueirou-se até a porta sem que a empregada que passava roupa no quarto dos fundos a visse. Desceu pelo elevador de serviço e pegou um táxi na esquina aonde chegou apoiando-se nas paredes. Deu o nome de um hospital novo ao motorista. Desembarcou na emergência. Tenho dores, gritava. Estou morrendo. Carregaram-na para dentro depois de certificar-se do seu plano de saúde extra-plus-super-king. Quero fazer um ultrassom. Tem algo dentro de mim. Não, não vou tomar remédio nenhum. Sou alérgica. Se me doparem eu processo vocês. Carregaram-na de maca até a sala onde um técnico entediado a encarou com olhos mortos. Ar que entra ar que sai ar que entra ar que sai, ela concentrava-se para não sucumbir ao pânico. O grito. Agora não mais dela. Mas do técnico. A médica entra. Gritam. Ela tentando se levantar. Mais gente de branco. Gritam. Me tirem daqui. Gritos. Não dela. Dela. Ela engole golfadas de ar. Coloca todo o ar no abdômen como aprendeu no pilates e consegue se levantar. Silêncio. Todos olham para ela, para a TV onde passa ela, o que há dentro dela. Ela vira o aparelho. Está furiosa agora. Enxerga. O pequeno homenzinho nu comendo seu fígado de colher.

Ninguém quer o futuro

Vivemos um presente esticado porque o amanhã nos apavora

No passado, havia um futuro. Cresci acreditando que o futuro seria um tempo melhor. Meus pais cresceram acreditando que no futuro haveria um mundo melhor. Minha filha começou a duvidar do futuro. Meus netos possivelmente temerão o futuro. Não é uma mudança pequena. Não consigo avaliar com precisão o quanto isso nos modifica, mas escuto e olho e percebo que nos transforma. E imagino que seja uma transformação profunda. Esta vida em que preferimos não ter nenhuma representação de futuro. Já que qualquer representação baseada na realidade prevê a possibilidade do nosso fim. Não mais um fim do indivíduo, com a morte que nos aguarda a todos, mas o fim da espécie.

Tento lembrar no que eu acreditava nestes dias em que São Paulo está em estado de alerta, descendo aos 12% de umidade relativa do ar, e as capas de jornais mostram a nuvem de chumbo da poluição sobre os prédios e casas onde tentamos viver nossas vidas. Acabei de acordar e espirro sem parar. Nós, que sofremos de rinite alérgica, padecemos mais nestes dias. E eu já tomo antibiótico por causa de uma doença respiratória causada pela combinação de secura e contaminação do ar. Você quer sabe como será o mundo logo ali? Olhe para São Paulo. O pôr-do-sol tem exibido uma beleza assustadora. Poderia ser usado num filme de fim de mundo.

O que acreditávamos no futuro do passado? Ou pelo menos o que parte da minha geração, nascida sob o signo da chegada do homem à Lua, talvez tenha sido a última a acreditar? Que a ciência cumpriria suas promessas e nos libertaria do jugo do trabalho alienante. Além de nos garantir vida longa, juventude e bem-estar. Que teríamos todas as benesses da tecnologia sem pagar nenhum tributo ao planeta por isso. Que, seja qual fosse a nossa ideologia, por diferentes caminhos chegaríamos a um mundo em que ninguém mais fosse explorado ou passasse fome. Ninguém duvidava também que estaríamos viajando no espaço e desbravando outros planetas.

É verdade que a ficção científica desenhava um mundo muito mais sombrio e parecido com este aonde realmente chegamos – ou ainda chegaremos. De Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) a Philip K. Dick (Andróides sonham com carneiros elétricos?, no qual se baseou o filme cult de Ridley Scott, Blade Runner), Ray Bradbury (Fahrenheit 451) e outros. Mas era ficção. E tínhamos tanta certeza nas possibilidades do futuro que poderíamos ler o livro e assistir ao filme sem acreditar na imagem no espelho. O futuro, afinal, nos pertencia. Bastava depor ditadores e combater as corporações.

O que sabemos hoje é o suficiente para mudar radicalmente nosso desejo: nós gostaríamos que o futuro nunca chegasse. Diante de nós, há dificuldades de sobrevivência não apenas como indivíduo ou povo de uma nação determinada, mas como espécie. Começando, como sempre, pelos mais pobres e os mais frágeis entre nós, na geopolítica mundial e na geopolítica dentro do nosso quintal. Diante de nós se desenha uma guerra por água, alimentos contaminados e o aquecimento global. Os ditadores continuam por aí e as corporações extrapolaram as dimensões que conseguimos abarcar.

A tecnologia nos permitiu comunicação instantânea e a internet mudou para sempre nosso jeito de nos relacionar com o espaço, com o tempo e com os outros. Mas esta tecnologia espetacular faz com que o conceito de horário de trabalho tenha se tornado obsoleto e os chefes e as tarefas nos alcancem por email, torpedo e outras ferramentas que nos submetem onde estivermos, estendendo a jornada para todas as horas e confundindo espaços e limites. Mesmo os consideráveis avanços da ciência em várias áreas nos provocam desconfiança. É difícil achar que a clonagem e os transgênicos sejam apenas uma ótima notícia. E, depois da grandiosa pisada de Neil Armstrong na Lua, só conseguimos despachar umas sondinhas espaciais um pouco mais longe. Ou seja: estamos presos no planeta que exploramos além da conta. E começamos a nos sentir claustrofóbicos nele.

Assim como nos sentimos claustrofóbicos dentro de nossa própria vida. Não é a toa que tanto se fala de felicidade hoje. Este discurso da felicidade soa como um discurso do desespero. É uma noção de felicidade desconectada do real e dos sentidos dados para a vida, uma felicidade por si mesma. Afinal, torna-se difícil viver quando a melhor ideia de futuro que conseguimos ter é a quitação da casa própria depois de centenas de prestações ou a compra de uma TV com tela plana ainda maior para a Copa do Mundo no Brasil ou um carro que pode andar no deserto do Atacama, mas que vai ficar parado no trânsito da cidade.

Nossa concepção de futuro se apequenou. Restringiu-se a materialidades logo ali. Ao reduzir nossos sonhos à compra de objetos de consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida. A rejeição do futuro nos ajuda a entender a mediocridade do nosso presente. E de nossas aspirações. Explica por que, ao perguntar a alguém qual é o seu desejo, esta pessoa possa responder que é um Ipad. E ninguém estranhe.

Não é curioso um monte de gente acreditar que o mundo vai acabar em 21 de dezembro de 2012 por causa da suposta profecia de um povo para o qual o fim do mundo chegou muito antes, pelas mãos dos espanhóis? Parece ser mais fácil gastar energia e teses com um fim de mundo mirabolante do que encarar que, sim, o nosso mundo pode acabar. Não por profecias, mas como consequência de nossas ações e de nossas escolhas. Não em 2012. Mas progressivamente, como já vem acontecendo.

Dá para entender por que o fim do mundo dos maias é mais palatável. Ele não depende de nós. Não precisamos nos responsabilizar por ele. Qualquer saída é mágica. Podemos continuar sendo os mesmos cretinos com relação ao meio ambiente e aos outros, porque o apocalipse cai do céu. Com a realidade do esgotamento do planeta é mais complicado. Ela exige de nós profundas mudanças de hábitos de consumo e de comportamento. Muito além de fazer uma reciclagem de lixo mais ou menos e achar que por isso estamos fazendo a nossa parte. Exige de nós um novo tipo de ser – humano – e de estar no mundo.

É verdade que o planeta está sofrendo. E uma variedade de espécies de flora e de fauna desaparece pela nossa sanha. Mas não é o planeta que vai acabar se continuarmos nesta toada. Somos nós. Tempos atrás, assisti ao documentário De volta a Bikini (National Geographic), do mergulhador Lawrence Wahba. O documentário conta o que aconteceu ao atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, onde os Estados Unidos testaram armas nucleares nos anos 40 e 50. Numa exibição de seu poderio bélico, expulsaram a população e destruíram a natureza de uma forma atroz ao detonar duas bombas atômicas como as de Hiroshima e Nagasaki. Assim como a Bravo, a primeira bomba de Hidrogênio, o mais potente artefato lançado pelos EUA em sua história.

Passados 60 anos, o atol se recuperava, os peixes voltavam e a vida se refazia. Ao assistir ao documentário, me choquei menos com a capacidade de destruição humana, já que esta é bem conhecida. O que me chamou a atenção foi o fato de que a vida se impunha sem nós. É o que possivelmente aconteça com a Terra depois que nos matarmos. Sem nós ela se renovará e seguirá seu curso. A passagem humana será apenas um lapso de tempo – nossos milhares de anos um nada perto dos milhões em que os dinossauros dominaram o planeta como espécie. Uma história curta que ninguém vai contar.

Em uma palestra no ótimo Café Filosófico, programa da TV Cultura, a filósofa Viviane Mosé se arriscou a ser mal interpretada. Não lembro as palavras exatas, mas ela sugeria que há algo de bom no aquecimento global. Pela primeira vez algo nos une para além das convenções arbitrárias, das ideias de nação, de religião, de etnias, de ideologias e de crenças – para além de tudo o que nos divide e nos afasta. Ainda que os mais frágeis e os mais pobres sejam os primeiros a sofrer, estamos todos no mesmo planeta que se esgota pelas nossas ações. Desta vez, não vai dar para os mais ricos saírem voando numa nave espacial de luxo para um planeta novinho em folha. E, ainda que estejamos todos mortos, já que assistimos apenas ao início de um possível fim de mundo, é dos nossos descendentes que se trata. Por paradoxal que pareça, o aquecimento global nos permite olhar para o planeta e para nós como os astronautas em órbita: sem divisões.

É uma chance. Uma oportunidade de sermos melhores. Porque talvez só sendo melhores possamos voltar a ter um futuro onde ancorar. Um que valha a pena imaginar e que impulsione as ações do nosso presente. Para isso, é preciso abrir mão das várias formas de anestesia diante desta realidade. Inclusive abdicar da exigência de uma felicidade que não se conecta à vida, que só é possível alcançar por alguma droga – legal ou ilegal.

Vale a pena analisar a literatura produzida nestes tempos sem futuro – ou melhor, com um futuro que ninguém quer. A literatura de qualidade, claro – e não as catastrofistas de ocasião. Talvez o exemplo mais interessante seja A Estrada (Alfaguara), do excelente Cormac McCarthy, levada aos cinemas por John Hillcoat e já em DVD. Nele, um pai e seu filho empreendem uma jornada num mundo pós-apocalíptico. É uma fábula sobre esse tenebroso futuro sobre o qual especulamos, mas é também uma narrativa sobre a única coisa que nos salva – o amor.

Quanto mais vivo e olho o mundo, aumenta em mim a convicção de que só o amor faz sentido e dá sentido. Não este amor umbigólatra por si mesmo. Ou no máximo pelos seus. Mas o amor que só se justifica no outro, que abarca a humanidade inteira. Enquanto tentarmos salvar “o nosso”, que é o de cada um, não temos a menor chance. Desta vez, os espertos de sempre não vão se safar. Ou pelo menos não por muito mais tempo que todos os outros.

Quando é a sobrevivência da espécie que está ameaçada, não há salvação individual. Ou nos tornamos melhores todos, nos reinventamos como homens e mulheres novos a partir das necessidades de um presente que está aí ou continuaremos assistindo ao nosso fim anunciado, aceitando as progressivas limitações que já contaminam nossa vida. Estes novos homens e mulheres precisam estar conscientes da precariedade da condição humana e de sua insignificância na história do planeta. É pelo reconhecimento da fragilidade que nos une que podemos nos tornar grandes de uma maneira inédita, uma que nos permita viver e deixar viver.

Há tantos clichês, alguns até bem bonitos, sobre viver o presente. Somos povoados por orientalismos neste sentido. Mas não é simbólico. Não desta vez. Tudo o que temos agora é esse presente esticado. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Mas a questão é exatamente estar presente – no presente.

E não anestesiados de várias maneiras, como tem acontecido. Não se trata do imperativo do gozo pelo gozo, do prazer instantâneo. Não é por acaso que às vezes saímos da mesa do bar onde bebemos e alguns de nós se drogam na companhia de estranhos próximos, mas que continuam estranhos apesar do riso, com a sensação de vazio, de que nada de importante aconteceu de fato. De que por maior que tenha sido a nossa euforia e a nossa performance, não estávamos ali. Ninguém estava.

Não é isso que é estar presente no presente. Viver no presente é ser capaz de criar sentido. Escutar o outro e a si mesmo. Se arriscar a ser transformado por esse contato. Só é possível estar no presente amarrando, ao mesmo tempo, o passado e o futuro. Só é possível mudar se arriscando a estar. No presente. Ainda que às vezes doa. Há um filme muito bonito sobre a coragem de abdicar de uma vida anestesiada e se arriscar a estar no presente. Pode ser encontrado em qualquer locadora. E fala dessa geração que começou a temer o futuro. Em português, se chama “Hora de voltar” (Garden State, de Zach Braff).

Temos alguma chance se passarmos a determinar nosso estar no mundo por uma atitude amorosa com as pessoas e com o planeta. Começando pelas pequenas ações de todo dia, da relação com o motorista de ônibus e com a moça da padaria ao que realmente precisamos comprar e consumir, já que qualquer objeto tem um custo em recursos naturais e vai demorar a se decompor. Nenhum de nossos atos é impune. E agora, mais do que nunca, não é mesmo. Pagaremos o preço ainda nesta vida.

É uma transformação profunda. E que dá trabalho. Mudar é dificílimo. Acho que a maioria das pessoas vai continuar consumindo e se anestesiando loucamente. Sem nem mesmo perceber que é estranho ter de comprar água não contaminada ou ter dor no peito depois de uma caminhada, como acontece agora em São Paulo. Não tenho muita esperança. Mas me agarro à pouca que tenho. A de que mais gente desperte e esteja presente no presente. Para, quem sabe, reconquistarmos um futuro que valha a pena imaginar.

(Publicado na Revista Época em 30/08/2010)

A vingança

(em memória de tia A.)

Esta minha tia tinha nome de anjo. Talvez tenha sido parecida com um querubim no parto, antes de ser contaminada pelas coisas do mundo. Ou melhor, pelo casamento. Nós, seus sobrinhos-netos, sempre a conhecemos empertigada, ela inteira uma carne de pescoço. Era louca pelo marido. Ou havia sido. Ele, porém, era um bom homem da sua época. Acreditava piamente que a esposa era um útero. Procurou-a, como se dizia, apenas o necessário para fazer um trio de filhos. Depois só a usava na cama para esquentar seus grandes pés avermelhados e de unhas compridas porque sofria com encravamentos. Jurava que era sinal de respeito. Voltava para casa perfumado com a pele de outras mulheres a quem podia desrespeitar à vontade. E o fazia com empenho. O cheiro das outras todas entrava pelas narinas abertas da minha tia e lhe empestava a alma. Me desrespeita, ela dizia. Ele a olhava com olhos enfadados. Esposa é esposa, mulher é mulher. Você é a mãe de meus filhos, oras. Tome tento, criatura! Virava para o lado e entregava-se à produção de roncos de leão.

No dia seguinte a despachava a rezar para a virgem na igreja matriz. Para aprender o seu dever. Minha tia engolia o desaforo como se fosse arsênico e alimentava com ele uma vingança que lhe crescia nas entranhas como um cachorrinho de estimação. Um Rotweiler. Enquanto sua vagina ganhava a virgindade do abandono, ela acariciava este tumor que lhe crescia por dentro. E a cada vez que o marido voltava tonto de luxúria ou de perfume doce, ela jurava: “Um dia eu me vingo”.

Quando o pinto do meu tio tornou-se apenas pele murcha entre suas pernas artríticas num tempo em que o viagra ainda não fora descoberto, ela remoçou. Seu rosto de uva passa ganhou um viço de menina e uma de minhas primas ficou dois dias sem falar, levada a todos os médicos sem sucesso depois de flagrar-lhe um sorriso. No interior daquela casa enfeitada com chinelinhos de porcelana pelas paredes e arranjos de flores de plástico sobre guardanapinhos de crochê, meu tio purgava. Sem poder andar por uma doença de velho, assistia impotente de tudo à minha tia sentada diante dele com um banquete no colo que devorava lambendo com desvergonhas os lábios e os dedos. E lhe atirava os restos no colo como se ele nada fosse além de um guaipeca sem fundamento. Esquecia-se de levá-lo para cama, e o homem antes tão garboso agora tinha o formato da poltrona em que ela o sentara havia anos. Só o tirava para um banho gelado, especialmente se os dias amanhecessem com geada.

Meu tio que ainda conseguia falar se queixava de todas estas atrocidades quando era visitado pelos filhos e parentes. Mas ela sacudia seus macios cabelos de merengue e sussurrava. Coitado, está variando das ideias. Um homem tão bom, tão inteligente. Ah, a velhice não poupa ninguém. E lá se ia a fritar uns bolinhos de chuva para as visitas. É uma pena que ele não possa comer, o meu querido. Qualquer fritura lhe desgraça o fígado, vejam só como está magro como um passarinho. E como lá estava ele cheiroso por tantos banhos, bem acomodado na poltrona, ninguém o escutava. Ao contrário. Ao sair de lá minha mãe e minhas tias comentavam. Esta mulher é um anjo. Tal qual o nome. E ele a maltratou tanto… Nem merecia este tratamento de príncipe.

Eu e minhas primas, que gastávamos boa parte de nossos dias espionando esta tia que nos aterrorizava desde o nascimento com beliscões e puxões de orelha, aplicados com ganas e sempre escondidos de nossas mães, nunca cogitamos contar o que se passava. Temíamos. Numa manhã especialmente fria, com a rádio da cidade prevendo neve a qualquer momento, meu tio amanheceu morto. Foi preciso quebrar-lhe as juntas para caber em linha reta no caixão que ela comprou suntuoso, engalanado de leões dourados e forrado de cetim marfim. Para o bem-estar do falecido no além ela não pouparia esforços nem economias. Causou certo mal-estar e comentários sussurrados a visão daquele agora pequeno homem metido num terno xadrez de verde e rosa como se fosse um passista da Mangueira. E a gravata não menos espalhafatosa em sua estampa de corações. Era um desejo antigo dele, ela garantia, as lágrimas abrindo sulcos no pó de arroz.

As dúvidas, se as havia, se dirimiram ao testemunharem sua devoção ao falecido, já que não houve nunca uma viúva mais dedicada. Toda manhã ela empreendia com sua sombrinha preta e um buquê de gérberas colhidas do jardim a subida da lomba do cemitério. Só nós sabíamos que ela distribuía as flores pelos túmulos vizinhos e ao chegar ao do marido protagonizava uma cena que nos emudecia. Trepava em cima da tinta prateada com uma agilidade de acrobata e, entre figuras de flores e querubins, acocorava-se de pernas bem abertas e mijava no falecido. Descia a solitária lomba do cemitério cantarolando uma marchinha antiga de carnaval.

Como uma autômata eu a seguia a cada dia, sem conseguir me libertar do ritual. Penso que ela adivinhava minha presença. E apreciava uma plateia para sua vingança. Numa manhã, enfiada numa saia preta de viúva, vi seu rosto se contorcer e pensei que ela estava tendo uma síncope enquanto urinava no seu homem. Logo depois, porém, ela desceu de lá um pouco trôpega e mais tarde mandou entregar-me um prato com bolinhos que joguei para as galinhas no quintal.

No dia seguinte um quadro de moldura dourada de exageros com um retrato de meu tio nos tempos em que se dava ares de Rodolfo Valentino encimava a lareira da casa. Daquele dia em diante minha empertigada tia se tornou uma mulher expansiva e sorridente, entrou para um grupo de carteado e passou a frequentar bailes da terceira idade. Se não me engano, ganhou até um título de miss num concurso regional. Nunca mais a segui. Só fui entender aquele dia muito, muito mais tarde, quando deixei de ser menina.

Rir de si mesmo é ato civilizatório

Por que o humor é essencial para as eleições e para a vida

“Nunca vi um fanático com senso de humor”. A frase foi dita pelo escritor israelense Amos Oz, numa série de conferências sobre o mundo pós 11 de setembro de 2001, na universidade de Tübingen, na Alemanha. Ele prossegue: “Nem nunca vi uma pessoa com senso do humor se transformar num fanático, a não ser que ele ou ela tenham perdido o senso de humor”.

Lembrei deste ensaio quando vi os humoristas brasileiros promoverem, como disse Marcelo Tas, esta coisa seriíssima de ir às ruas para protestar contra a proibição de fazer humor com os candidatos em programas de rádio e de TV, como aconteceu neste domingo no Rio de Janeiro. “Humoristas são criaturas que não nasceram para organizar passeatas. Mas, diante de tamanha palhaçada no processo eleitoral brasileiro, alguém tinha que fazer alguma coisa. Mesmo que seja uma passeata de palhaços.” Numa entrevista à BBC de Londres sobre o tema, Tas, que comanda o programa CQC nas noites de segunda-feira na TV Bandeirantes, afirmou que não é simples lutar contra ignorância. Não é mesmo.

Mas, pensando em Amos Oz, me parece que pode ser ainda mais complicado: esta é uma luta contra a intolerância. Ainda que a intolerância e a ignorância possam ser feitas da mesma matéria. E que ambas venham disfarçadas, como muitas outras coisas que estão tentando nos impingir, pela embalagem cor-de-rosa do politicamente correto.

A resolução aprovada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) estabeleceu que, desde 1º de julho, as emissoras estão proibidas de “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido político ou coligação, bem como produzir ou veicular programa com esse efeito”. A decisão se baseia no artigo 45 da lei 9.504, de 1997. Quem a infringir, pode ser multado em até R$ 106.410 – valor que dobra em caso de reincidência. A norma serviria supostamente para, entre outras coisas, evitar que características e fragilidades de toda ordem dos candidatos fossem usadas com finalidades de humor em qualquer programa. E, assim, evitar que fossem “difamados” e, como consequência, “prejudicados” pelo riso dos eleitores.

Consigo entender facilmente por que uma ditadura teme o humor, a ponto de encarcerar, torturar e até matar quem o pratica. Mas por que razão uma democracia decide proibir o humor com candidatos a um cargo eleitoral? Afinal, de que estes legisladores têm medo? Por que seriam os candidatos a um cargo eletivo os únicos intocáveis? Qual é a ameaça que justifica a proibição de rir?

Engana-se quem pensa que o humor é algo trivial. Se fosse, aliás, não haveria tal proibição. Engana-se também quem pensa que possamos prescindir dele. O humor não é supérfluo, é essencial. Quando se consegue transformar uma tragédia em humor estamos consumando um ato de profunda subversão. Nos apropriamos de uma verdade para, pelo riso, torná-la ainda mais nua. Feito por homens e mulheres mascarados, por uma maquiagem de palhaço ou pelos trejeitos de um personagem, o humor é aquele que arranca as máscaras. Seja das grandes vilanias, seja das pequenas mazelas da vida cotidiana.

Rir de si mesmo é um ato civilizatório. Em qualquer eleição, talvez uma das informações mais importantes sobre um candidato é justamente se ele é capaz de rir de si mesmo. Se não for, pense bem.

Não ser capaz de rir de si mesmo é ser capaz de muitas coisas. A maioria delas bem ruins. Quem se considera imune ao ridículo, se coloca acima de todos os outros. Acredita que tudo o que faz é tão sério, é tão certo, é tão importante que, ao estar tão abarrotado de razão, não sobra espaço nem para dúvidas nem para piadas. Todos nós somos patéticos em alguma medida – e esta consciência é parte do que nos torna humanos. Quem não consegue rir de si mesmo, quando tropeça no tapete – sim, porque todos nós enrolamos os pés uma ou muitas vezes em diferentes tapetes ao longo da vida – manda demitir algum suposto responsável pela queda que acredita não lhe pertencer. Ou matar, conforme o nível de tirania do lugar onde vive.

Quem não consegue rir de si mesmo acredita que suas crenças – sejam elas ideológicas, morais ou religiosas – são mais certas que as de todos os outros. E se são mais certas devem ser impostas sobre as de todos os outros. O raciocínio seguinte é que, se as suas crenças têm mais valor, logo ele, a pessoa ou grupo que detém estas crenças, é melhor que todos os outros. E se é melhor que todos os outros a sua vida vale mais do que a de todos os outros. Logo todas as outras vidas valem menos e são sacrificáveis.

Ser capaz de rir de si mesmo é um upgrade civilizatório. Você consegue imaginar Bin Laden achando graça de alguma bobagem que fez, de algum escorregão na caverna? Você é capaz de conceber Adolf Hitler se olhando no espelho e achando seu bigodinho um pouco ridículo ou pensando que afinal suas pinturas não eram mesmo tão boas assim? Você consegue imaginar algum destes facínoras que infelizmente progridem no mundo em todas as épocas se perdoando pelo seu ridículo? Não, claro que não. Mas é fácil imaginar o que fariam com quem risse deles.

E nós? Somos capazes de rir de nós mesmos, seja na vida privada ou na pública? Não custa lembrar que o Brasil tem grandes dificuldades quando é alvo do humor alheio. Quando a família Simpson desembarcou no Rio de Janeiro no episódio “O Feitiço de Lisa”, houve uma avalanche de protestos. Na animação, o personagem Bart era atacado por pivetes e Homer sequestrado por um taxista. Em seguida, levado até a Amazônia, que ficava bem ao lado. Ao tirar o saco da cabeça de Homer, um dos bandidos diz: “Aproveita pra olhar porque estamos queimando ela toda”. Há cobras e macacos no Rio, sem contar que apresentadoras de TV balançam os peitos num programa infantil chamado “Telemelões”. Na época, a Riotur ameaçou processar a Fox, produtora do seriado de animação, e por causa disso virou piada na imprensa mundial.

Mais recentemente, o ator e comediante americano Robin Williams causou polêmica ao fazer uma piada no programa de David Letterman com a escolha do Rio de Janeiro para sediar os jogos olímpicos de 2016. Depois de dizer que Chicago, sua cidade natal, entrou em “desigualdade de condições” na disputa, brincou: “Espero que ela (Oprah Winfrey) não esteja chateada de perder as Olimpíadas. Chicago enviou Oprah e Michelle (Obama). O Brasil mandou 50 strippers e meio quilo de pó. Não foi justo”. Há quem nunca mais tenha visto os filmes de Robin Williams depois de tal ofensa à imagem nacional.

Alguns de nós – ou a maioria, como parece ter sido o caso nos dois exemplos citados – podem achar as piadas de mau gosto, preconceituosas ou mesmo injustas. Ninguém é obrigado a achar engraçado. E daí? Será que os estereótipos vieram de Marte e não contêm nada próximo de alguma verdade? Será que os humoristas do mundo inteiro teriam de passar por uma censura prévia para analisar se seus esquetes e sátiras são agradáveis para os brasileiros? O humor é necessariamente do contra. Querer que o humor seja politicamente correto é matar qualquer possibilidade de humor. Não deixa de ser curioso que num país tão gaiato em muitos sentidos seja bem difícil aceitar piadas com nosso umbigo. Já quando o assunto é o outro, aí adoramos. E achamos que está tudo bem.

A questão é que talvez não seja tão por acaso que uma lei estapafúrdia destas, proibindo de satirizar os candidatos de uma eleição, esteja aí há mais de dez anos. Sempre vale a pena olhar um pouco para dentro para perceber o quanto estamos aptos – seja como povo, seja como indivíduo – a rir de nós mesmos. Ainda que seja como princípio de uma reação a verdades que tantos nos incomodam. Talvez esta lei tenha mesmo algo a ver com a gente – e não apenas saído de cabeças mirabolantes. Neste quesito, temos muito a aprender com os Estados Unidos, onde qualquer um – e especialmente o inquilino da Casa Branca – é alvo de todo o tipo de humor como parte da convivência democrática.

Como afirmou Gustavo Binenbojm, professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ao jornal O Globo: “A atual lei eleitoral é própria de sociedades que passaram por períodos de ditadura militar e ainda não atingiram a maturidade da liberdade de expressão. O que é essa maturidade? Defender a liberdade de expressão ainda que, circunstancialmente, ela possa se voltar contra você”.

Fazer humor com os políticos, com os governantes e com os poderosos é obrigatório. É imprescindível. Isso faz com que sejam lembrados que, como todos os mortais, eles também são ridículos. Iguala-os. Pinça-os das estratosferas da vaidade e da bajulação onde vivem e devolve-os ao rés do chão. Os humoristas, garantidos pela liberdade de expressão existente em qualquer democracia que mereça o nome, ajudam os políticos, governantes e poderosos a se manterem no seu real tamanho – nunca muito diferente daquele do mendigo da esquina. Ou do seu eleitor. E nos ajudam a lembrar que eles pertencem ao mesmo mundo que nós. Ao mesmo ridículo.

Não é pouca coisa o que nos tiraram nestas eleições ao blindar os candidatos contra o humor. Ainda assim, não fosse o barulho dos humoristas, estaria passando batido. Isto também é bem assustador: parece que estamos ficando cada vez mais passivos diante de tantas proibições. Ninguém está apedrejando ou executando um humorista que ousa fazer humor com um candidato, como poderia acontecer nos regimes totalitários, mas criaram uma lei para nos impedir de humanizá-los com nosso riso. De lembrá-los, a eles e a nós, que somos todos patéticos em alguma medida. Esta, aliás, é uma grande qualidade do humor: ao diferenciar sua vítima, a iguala.

Neste mesmo ensaio sobre a natureza do fanatismo, Amos Oz afirma que a melhor maneira de imunizar os povos contra o germe da intolerância seria distribuir “pílulas humorísticas” às populações do mundo, caso isso fosse possível. Como não é, acho que no nosso caso poderia valer a pena lembrar que vivemos numa democracia duramente conquistada e nos somar aos humoristas para reivindicar a devolução do nosso direito de rir dos candidatos. E do direito de lembrá-los de que devem rir de si mesmos todos os dias. Assim, quem sabe, eles não transformem o país numa piada sem graça depois de eleitos.

Não deixa de ser curioso que, ao se lançar seriamente como candidato nestas eleições, o palhaço Tiririca faça sua campanha com os seguintes bordões: “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”. Ou: “Vote no Tiririca, que pior que tá não fica”.

(Publicado na Revista Época em 23/08/2010)

Coração pesado

Acabo de almoçar quando sinto o peso. Foi o chuchu. Restaurante natural não me faz bem. Nunca passei mal depois de comer bacon, mas basta um chuchu ou uma beterraba para a digestão se arrastar. É um arroto. Vou dar o maior arroto do mundo. Meu arroto vai cobrir o mundo com o cheiro das minhas tripas. Mas se fosse o mundo, esta convenção vaga, tudo bem. Meu mundo é menor e cheio de divisórias. Se eu der um arroto, vou perder o emprego. Não já, mas daqui a pouco, por um motivo qualquer, afinal não há lei proibindo a discriminação por gases. Engulo o arroto. O peso no meu peito aumenta. Tem uma pedra dentro de mim. Meu deus, é o meu coração. Vou enfartar. Começo a suar gelo. Os cabelos empapam na minha cabeça. Eu morrendo e ninguém repara. Virgem Maria. Meu coração está em expansão. Como o universo. Tento me levantar para me esconder no banheiro. Mas meu coração pesa tanto que não consigo mais carregá-lo.

Me espicho todo, mas o coração fica ali, no chão. Grito. Sai apenas um grunhido de mim. A menina se vira, incomodada. Então me vê caído no chão. Você está bem? Estou ótimo, só estou amontoado neste carpete podre desta sala metida a besta da Vila Olímpia por gosto. Estou tentando ver o mundo de outro ângulo para ter um insight. Não sai nada. O peso aumenta. Tenho agora um meteoro dentro de mim. Ela pede ajuda, só aparecem os office-boys. Tentam me levantar, eu levanto todo menos o peito que fica colado no chão. Minha pele vai arrebentar. Ele tem um alien dentro dele, grita um. Cala a boca e chama os bombeiros. Bombeiros? Ele precisa de uma ambulância. Ou de uma mãe de santo. Agora uns 20 homens do escritório tentam me carregar. Como é mesmo o nome deste cara? Não tô lembrado. E você? Acho que é Claudio ou Luís. Mas você não trabalha do lado dele? Eu trabalho, não sou amiga dele, ora. Ele não fala muito. O peso do meu coração abre agora um rombo no carpete e avança para baixo rumo ao inferno. Atravessa o concreto entre o décimo-segundo andar e o décimo-primeiro. Sinistro, mano, sinistro, diz o garoto do almoxarifado. Este cara foi sempre esquisito, a menina garante. Eu tinha medo de sentar do lado dele. Saca tipo freak, o cara é o maior freak. Meu coração despenca no andar de baixo. Como a minha pele aguenta sem arrebentar? Será que é assim que as mulheres grávidas se sentem? Mais um pavimento destroçado. Meu coração perfura agora a mesa dos irmãos Campana de um CEO que se salva apenas por estar numa conference call. Quase não enxergo mais meu coração, só a poeira de concreto e estilhaços que ele provoca na queda. Entre o térreo e o subsolo, decido nunca mais comer chuchu.

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