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Delícias e tormentos de uma tradutora do Brasil

Alison Entrekin é uma mulher singular de várias maneiras. Por exemplo. Um dia ela acionou a secretária eletrônica do seu telefone e ouviu a voz que todas as mulheres do Brasil sonham ouvir no seu aparelho. Sim. Ele. Chico Buarque de Holanda. Ligou para dar seu telefone a Alison. E pediu que ela ligasse de volta. Tinha assuntos urgentes a discutir com ela. Alison pensou no que eu e você e até mesmo um leitor seguro de sua masculinidade pensaria? Não. Alison vislumbrou aqueles olhos de ardósia? Não. Cantarolou “O meu amor tem um jeito manso que é só seu/E que me deixa louca quando me beija a boca/A minha pele toda fica arrepiada/E me beija com calma e fundo/Até minh’alma se sentir beijada…”? Também não. Alison quase morreu? Sim. Mas não como eu e você e mesmo o leitor seguro de sua masculinidade. Alison quase morreu de medo. Alison é uma mulher que quando ouve a voz de Chico Buarque na secretária eletrônica só pensa em vírgulas. E ponto final.

A australiana Alison Entrekin era dançarina profissional. Machucou a coluna quando dançava nos Estados Unidos e foi obrigada a encerrar a carreira. Pensou então no que mais gostava depois de dançar. E lembrou os cem anos de solidão do colombiano Gabriel García Márquez. Voltou para a Austrália para fazer curso universitário de criação literária e depois virou professora. Queria ser escritora quando atravessou o mundo e encontrou o Brasil no seu caminho 14 anos atrás. Sentiu-se dentro de um romance de realismo fantástico nos primeiros anos em que viveu no país. Casou-se com um brasileiro e mora em Santos. Tornou-se uma tradutora obstinada pela busca da palavra exata ao verter a literatura brasileira para o inglês. Budapeste. Cidade de Deus. O Filho Eterno. Eles eram muitos cavalos. Alison traduziu algumas das obras de sintaxe mais complexa da literatura contemporânea brasileira.

Vista de perto ela é uma mistura de Nicole Kidman com Olivia Newton-John. Do tamanho da última. Mas depois de conhecê-la a gente tem vontade de se referir a ela sempre com aumentativos. Trabalha de segunda a segunda em uma quitinete defronte à sua casa. É lá que moram seus 45 dicionários e um cachorro chamado Patão. Uma mistura de pincher e fox paulistinha que resultou proporcionalmente quase tão mignon quanto ela. E também com uma personalidade superlativa.

Na mesa de trabalho de Alison há uma estátua do deus indiano Ganesha. Ela passa a mão em sua cabeça de elefante quando está com algum problema intrincado como um recado de Chico Buarque. Perto dela há um antúrio que chegou ali com três folhas e agora está com oito. É com ele que Alison treina seus discursos antes de discutir pontuação com os escritores que traduz. Na estante é possível encontrar tudo sobre palavras em português. Até mesmo um dicionário de candomblé e um de portoalegrês. Mas o que Alison queria mesmo era um dicionário de maconha. Logo mais ficará claro o porquê.

Conheci Alison em um encontro literário na Casa de Cultura de Paraty promovido pelo Itaú Cultural neste início do mês. Ela desvelou a língua portuguesa de uma forma que mudou o meu jeito de olhar para sempre. Eu jamais havia imaginado que traduzir pudesse ser algo ao mesmo tempo tão fascinante e tão enlouquecedor. Alison percebeu detalhes em livros que li que a mim tinham passado despercebidos. Pelos olhos dela adivinhei belezas que haviam me escapado. Percebi que ao despir a língua os tradutores descobrem uma nudez do país invisível para nós que aqui nascemos. Ampliam nosso olhar sobre nós mesmos. E nos provocam.

De imediato quis compartilhar esta experiência com vocês aqui nesta coluna. E pedi uma entrevista. Conversamos mais de uma hora na mesa do café da manhã. E quando eu tinha capturado todas as palavras meu gravador digital (ah que saudades das fitas!) saltou da minha mão e eu perdi Alison inteira na queda. Gentilmente ela aceitou ressuscitar todas as suas frases e ainda aumentá-las em uma hora a mais de conversa. Só fomos interrompidas pelos latidos de ciúme do Patão. E por uma tentativa dele de suicidar-se comendo uma abelha.

Esta é uma entrevista para ser lida sem pressa. Foi feita como um presente para quem ama as palavras e a língua portuguesa. Em homenagem a Alison Entrekin fiz este texto de apresentação sem usar uma única vez a diminuta figura que lhe provoca pesadelos com suas enormidades.

Quando você ouviu a língua portuguesa pela primeira vez?
Alison Entrekin – Havia uma festa da comunidade brasileira na minha cidade (Perth, Austrália). Uma amiga tinha vindo ao Brasil e aprendido a dançar lambada. Na festa não teve lambada, mas teve muita música. Achava que o português era algo mais próximo ao espanhol e descobri que não era nada disso. Me lembrava o francês, pelo som. Quando você escuta uma língua e não tem ligação com o sentido, só escuta a musicalidade. Achei uma língua lindíssima, com uma sonoridade diferente. As mulheres falavam num tom mais alto. E depois de muitos anos notei que falo inglês num tom mais baixo e português num tom mais alto. As palavras parecem não terminar, na sonoridade do português. Quando você escuta línguas asiáticas, elas parecem sílabas picadas. Quando você escuta o português parece uma palavra interminável, porque as ligações entre palavras são suaves. Isso me encantou.

ÉPOCA – Se a língua fosse um personagem, como você o descreveria?
Alison – Vejo o Brasil e a língua portuguesa como uma coisa tão múltipla que não consigo enxergar como uma coisa só. Eu traduzo gente do país inteiro e parece que toda vez estou aprendendo uma nova língua. Um novo dialeto, novas gírias, um novo jeito de falar a língua. Estou sempre lidando com estas pluralidades, não consigo dar uma identidade só. São vários personagens ao mesmo tempo, mulheres e homens.

Você diz que o inglês é mais homogêneo, pelo menos na Austrália. É um inglês só. E no Brasil são vários brasis e várias línguas. O que isso revela do Brasil?
Alison – A Austrália particularmente é um lugar que não se nota tanta diferença de sotaque. E é um país quase tão grande quanto o Brasil. De um lado a outro, quase 5 mil quilômetros, não dá para saber se a pessoa é de Sidney ou de Perth. Você pode perceber que é do interior, mas é uma diferença muito ligeira. E a condição social é mais ou menos igual, então a língua não precisa se desdobrar para representar estas realidades todas. O Brasil é geograficamente vasto, teve muitas colonizações, em ondas de imigrantes, e tem muita diferença social. A palavra otário, por exemplo, que aparece em Cidade de Deus, livro do Paulo Lins. Era a gíria que usavam para os caras com emprego fixo, que tinham de bater cartão todo dia e cumprir horários. Acho fantástica, porque sublinha a rebeldia e o ponto de vista dos malandros, que achavam um absurdo serem subordinados a alguém, trabalhar duro para não sair do lugar, para continuar na miséria. Então, para eles, os otários eram os trabalhadores, aqueles que não viviam do crime. Mas não era uma gíria usada pela classe média, que encara o trabalho de forma diferente, por causa de todo um contexto de vida diferente.

Você diz que o tradutor tem de desconfiar do sentido das palavras o tempo todo. Como é isso? Me conta a história de uma palavra intrigante.
Alison – O tradutor trabalha com o desconfiômetro ligado o tempo todo. É necessário fazer as perguntas mais bestas, mas é necessário. Se faço dez perguntas bestas e, se uma delas evita um erro de tradução, valeu a pena. A palavra trampar, por exemplo. Apareceu em Cidade de Deus. Eu conhecia trampar como gíria para trabalhar. Neste contexto me parecia que não cabia. O livro falava de um malandro que mora no morro, se sustenta roubando, e o irmão travesti aparece por lá. E ele não gosta que apareça, tem vergonha porque o irmão é travesti e quer que ele vá embora. Pega então coisas que ele roubou e dá para o irmão. Dá o relógio. E fala: “É pra tu ir trampar lá no Estácio”. Pensei: “Mas o que o travesti vai fazer trabalhando no Estácio?”. Comecei a perguntar para algumas pessoas ao meu redor se trampar podia ter outro significado. E todo mundo falava: “Não, é trabalhar”. E aquilo estava me incomodando. Finalmente fui perguntar para o autor, o Paulo Lins. Ele explicou que não, naquele contexto, naquele momento histórico, significava vender. Faz todo sentido. Dá um relógio pro irmão travesti vender e ganhar uma grana. Mas este tipo de coisa leva horas, dias, às vezes semanas e até meses.

Como fica este incômodo na tua vida cotidiana? A palavra fica ali, te incomodando o tempo todo?
Alison – Geralmente aparece quando estou lavando louça ou lavando o cabelo. Sempre estou com as mãos ocupadas e envolvida com algum tipo de produto de limpeza. São as horas em que estou mais relaxada. Só com meus pensamentos e fazendo alguma coisa realmente banal. É aí que me vêm as melhores respostas, as melhores soluções.

Me conte alguma resposta que surgiu assim.
Alison – Em geral é quando o autor fez uma brincadeira linguística e eu estou atrás de algo para fazer o encaixe. Tem uma no Leite Derramado, do Chico (Buarque). É bonitinha esta palavra. Bulício. Ele usa uma palavra no começo e depois volta a ela muitos capítulos depois. Cria um eco. E conforme o livro vai indo há cada vez mais ecos, as repetições vão ficando maiores. Todas as vezes em que os personagens vão se amar, ele usa a palavra bulício. A empregada sabia que era hora de sair para o armazém ao pressentir nosso bulício. Ou em outro momento, leva a criança para a praia porque também pressentiu o bulício deles. Não é uma palavra ordinária, é uma palavra especial, colorida, que dá uma ideia muito legal. Aí fiquei pensando que palavra vou usar em inglês. Usei bedlam. É caos, comoção, e o legal é que embutido nesta palavra tem bed, que é cama. Encontrei esta palavra tomando banho.

Quando você olha para a palavra, já sabe que ela vai te dar trabalho?
Alison – Às vezes não. Elas me pegam de surpresa. Quando leio o livro em português, sou incapaz de entender o tamanho da encrenca. Sempre leio primeiro como leitora, acho que tenho de entender o que me provocou como leitora e não como tradutora, porque são coisas muito diferentes. Tradutor é chato, tradutor vai pegar em cada vírgula, cada nuance da palavra. Quando li O filho eterno, do Cristovão Tezza, achei um livro lindíssimo e foi uma leitura rápida, uma leitura que flui. Tive uma sensação de vertigem… Aonde ele vai agora, com estas frases imensas? Eu lia e ia seguindo. Quando comecei a fazer a tradução, nem tinha pensado na questão do presente histórico que ele usa o tempo inteiro. Em português funciona, em inglês não. Então metade do livro já foi traduzida para outro tempo verbal, o que já é uma baita de uma diferença. E também todas as outras questões linguísticas muito particulares da sintaxe dele ficaram desencaixadas, por causa desta grande mudança. E eu não tinha nem atinado pra isso lendo o livro.

Foi o seu livro mais difícil?
Alison – Foi. Quando encontrava uma solução para uma coisa, esta solução atrapalhava outra que tinha encontrado antes.

O desafio maior do tradutor é encontrar as palavras que levem à mesma sensação que o autor quis dar em sua própria língua? Como esta vertigem, por exemplo, que você sentiu lendo O filho eterno?
Alison – A questão é a sintaxe, é a pontuação. Acho que as emoções humanas e as sensações são muito iguais de um lugar para o outro. E acho que todas as línguas têm palavras adequadas. A questão é de sintaxe, de estrutura da língua, das orações, das ligações que se faz entre uma oração e outra. E eu vou me deparando com isso em cada autor que traduzo. Os autores contemporâneos brasileiros brincam com a pontuação, não obedecem à norma culta. Nos lugares onde pela norma culta deveria ter um ponto final, eles põem uma vírgula e continuam. Pela minha experiência, 90% dos autores de ficção que traduzo fazem isso, continuar onde deveria ter um ponto final. Acho que o português se presta mais a isso. Se todo mundo brinca de uma forma ou de outra com a pontuação, isso cria uma geração de leitores que relaxam quando encontram esta pontuação. Não se espantam com isso, nem estranham. Mas se eu, na tradução, obedecer a esta pontuação, crio um estranhamento tão maior em inglês do que em português que, nas poucas vezes em que tentei fazer isso, os comentários do editor são de que é muito estranho. Teoricamente, se um autor quebra uma regra numa língua e existe a mesma regra na outra língua, por que eu não posso obedecer isso? Faz sentido. Só que fui descobrindo que quebrando a mesma regra não criava o mesmo efeito. Isso me fez pensar. Meu dever como tradutora é reproduzir a experiência de leitura acima de tudo. E fazendo uma coisa aparentemente igual, na verdade criava-se outra experiência para o leitor. E se cria outra experiência, então não fiz meu trabalho direito.

A língua portuguesa é mais flexível que a inglesa?
Alison – Poder colocar o sujeito antes ou depois do verbo dá uma grande flexibilidade à língua. As palavras podem mudar de lugar de uma forma bem elástica na construção de uma oração. Em inglês o sujeito tem de estar antes do verbo. Eu fiz a tradução de uma oração do português para o inglês em que o sujeito que estava no final da frase vai para o início. Só que este sujeito que estava no final também servia como o sujeito da próxima oração. Em inglês não pode. O natural seria colocar um ponto final ou fazer um desdobramento maluco para que tudo possa caber de outra forma. Aí vai tomando outro formato e nisso podemos perder a fluidez do original.

Quando você começou a traduzir e percebeu o tamanho da encrenca, como você diz, como se virou?
Alison – Lembro que fui atrás das traduções dos livros do (José) Saramago, porque ele tem uma pontuação muito particular, muito dele. Mas ele é tão consistentemente assim em tudo que o tradutor não teve escolha, teve de obedecer. E funciona porque depois de uma página o leitor já está acostumado, ele passa a sentir assim. Meu problema é que eu trabalho com autores que não são sempre assim, são às vezes ou pela metade do tempo. O exemplo que mais me lembro é o Budapeste, (de Chico Buarque), onde há muitas orações ligadas por vírgulas. Esta foi a primeira vez que eu realmente parei para pensar: “Meu Deus, o que eu vou fazer com esta pontuação?”.

Como foi este primeiro contato com o Chico Buarque?
Alison – Isso foi antes de eu conhecê-lo. Ele deixou um recado curto na secretária eletrônica. Passou o telefone dele. Disse que tinha alguns capítulos traduzidos e queria falar sobre a pontuação: “Você usa ponto final onde eu não usei”. Eu morri de medo: “Meu Deus do céu, ele quer falar de pontuação comigo!”. Agora eu sei que o Chico é uma pessoa muito legal, que dá para conversar. Mas na época eu só pensei: “Jesus, vou morrer agora”. Aí eu expliquei para ele este estranhamento que causava. E ele me disse que não pretendia nenhum estranhamento no original. A solução que eu achei na época foi usar de duas maneiras. Havia momentos no livro em que José Costa (o personagem narrador) ficava obcecado por alguma coisa e os pensamentos vinham se atropelando. Nestes momentos, achei que usar uma vírgula onde no inglês usamos ponto final transmitia esta angústia dele. E não criava estranhamento pelo contexto, porque todo o contexto era uma coisa alucinada, confusa. Nestes trechos eu mantive uma pontuação muito mais fiel ao original. Em outras partes, onde ele estava contando a história com mais calma, às vezes usava ponto e vírgula, às vezes deixei passar algumas vírgulas que estruturalmente não causavam tanto estranhamento, e nos momentos em que faria o leitor parar por um estranhamento vindo da pontuação, aí sim, ponto final. Porque o ponto final, para nós de língua inglesa, é invisível. Quando autores de língua inglesa brincam com a pontuação, brincam mais com o ponto final, com frases curtas. Visualmente, se você tem uma página que é uma única frase cheia de vírgulas numa língua e, na outra, são 20 frases curtas, com um monte de pontos finais, a coisa fica muito diferente. Não é pra tanto. É preciso encontrar uma maneira de andar sobre esta corda bamba.

Você ainda fala de vírgulas com Chico Buarque?
Alison – Depois que tive contato com ele, deixei o medo de lado. É um autor generoso, bem humorado. Acompanha a tradução com olhos de águia, mas não atrapalha em nada. Ele entende as dificuldades de tradução e está sempre disposto a ajudar. E, de vez em quando, ainda pergunta sobre vírgulas. É impossível não perceber o quanto ele se importa com os mínimos detalhes e, como eu também me importo com os mínimos detalhes, acho ótimo. Adoro os livros dele e me divirto com a pessoa também.

A grande questão da tradução é a vírgula, então?
Alison – Eu tenho pesadelos com vírgulas. Fico muito feliz quando consigo dar o tom certo e achar as palavras certas. Porque é possível manter a graça do original na maioria das vezes. Mas nesta coisa da pontuação eu estou há anos batalhando com isso e não acho uma solução. Por isso toda vez que vou traduzir um autor que trabalha com a pontuação desta maneira eu tenho de passar por tudo isso de novo. Uma vez que você sai da norma culta, em qualquer língua, você está num campo subjetivo, que não pertence a ninguém. Que pertence ao mesmo tempo a todos e pertence ao indivíduo. Então não há mais regras para a tradução, é muito da cabeça de cada um. Pego um novo texto que tem isso, vírgulas, e fico analisando o texto. Que efeito estas vírgulas criam, por que o autor fez assim e não do jeito tradicional. Depois de compreender a intenção do autor, preciso encontrar um jeito de manter este efeito para que o leitor de língua inglesa possa ter esta mesma experiência, sem maior ou menor estranhamento que o leitor do original.

Você ama ou odeia as vírgulas?
Alison – Atualmente odeio. (ri muito)

O que esta liberdade dos escritores com a pontuação, com as vírgulas, revela sobre o Brasil?
Alison – O brasileiro tem uma relação mais relaxada com regras e com leis. Ele obedece ao que ele acha bom obedecer e não obedece a aquilo que ele acha que pode não obedecer, que não vai ser pego. Eu vejo isso pela sonegação, pelos motoristas passando pelo semáforo vermelho no meio da noite.

Você acha que este comportamento é similar no uso da língua?
Alison – Acho que é uma hipótese, não tenho certeza.

Mas há um lado bom nesta flexibilidade? O que você citou não é muito bom…
Alison – O próprio jeito do brasileiro viver é assim. O brasileiro não entra em pânico. Acho que porque historicamente passou por tudo. Economicamente, com ditaduras, com o (Fernando) Collor. De forma geral, é um povo que vive muito o hoje, é um povo menos tenso, menos preocupado. Eu cheguei aqui no Brasil e logo fui para a praia. Queria conhecer esta praia linda. Aí coloquei um chapéu grande, coloquei um maiô, peça única, coloquei uma saia, porque na Austrália a gente não mostra a bunda, coloquei óculos e coloquei uma sandália. As mulheres estavam só de biquíni e um biquíni bem pequeno. Tanta gente olhou pra mim como uma criatura no zoológico que eu comprei um biquíni no dia seguinte.

Um bem pequeno…
Alison – Fui para a praia e me senti pelada naquele biquíni, mas ninguém me olhava, sinal de que eu estava dentro da norma. Aquela coisa de regra, de se preocupar em fazer tudo certinho, a gente tem muito isso. Se eu desobedecer a uma regra de trânsito, se eu sem querer passar por um sinal vermelho, na Austrália já estaria cortando os pulsos. E brasileiro deixa pra lá.

O que este contato profundo com a nossa língua te mudou?
Alison – A língua é um meio de a cultura chegar à pessoa. Conforme fui vivendo, estou há 14 anos no Brasil, fui relaxando com relação a certas coisas, nesta preocupação com regras. Outro dia tive de ir à Polícia Federal avisar da minha mudança de endereço. Eu não sabia, mas estrangeiro tem 30 dias para avisar que mudou de endereço. Aí fui lá já meio brasileira, quis dar uma de que não entendia esta regra de 30 dias e ver se conseguia não pagar a multa. Passei o comprovante do endereço novo. A funcionária perguntou: “Há quanto tempo você se mudou?”. Eu não aguentei e tive de falar: “Há três anos”. Depois contei para o meu marido e virei a piada do final de semana entre todos os amigos: só gringa para pagar multa.

Como você conta o Brasil para seus amigos?
Alison – No começo foi um momento de deslumbramento com a beleza física do país. Todo gringo fica um pouco louco quando vem pra cá. Essa liberdade das pessoas, esse jeito relaxado de levar a vida, de tomar uma saideira e não se preocupar com o dia seguinte. Isso é encantador porque é uma liberdade que a gente não se dá, pelo menos no meu país e em outros países de língua inglesa. Me encantei muito com a beleza. Santos é uma ilha, fica no meio de uma enseada cercada de ilhotas e é cheia de mato. Eu sou de um país muito seco, um deserto. E lá todas as plantas são mais para o marrom que para o verde. E aqui tem este verde descendo a serra. Quando cheguei esta coisa de emails ainda estava no comecinho. Então comprei um fax para escrever cartas a mão e passar por fax para as pessoas. Em meus primeiros anos vivendo no Brasil tive uma sensação de estar vivendo uma aventura de um livro. E não de uma coisa real.

Que tipo de livro?
Alison – Alguma coisa do Gabriel García Márquez. Na época estava fascinada pelo realismo mágico. Eram tantos absurdos e coisas tão impensáveis para a gente. Acho que esta expressão veio para nós como a descrição de todo um gênero de literatura. Mas, conforme eu fui vivendo aqui no Brasil e vivenciando o país e as suas peculiaridades culturais, passei a perceber que metade das coisas que estes escritores escreviam poderia acontecer aqui. Sabe, o Collor, o que ele fez, é uma coisa tão surreal para a gente, mas podia acontecer aqui, como aconteceu. E outras coisas deste tipo. Passei a perceber que estes escritores estavam descrevendo a sua realidade. Não era mágico. Não que isso diminua a qualidade do que escrevem ou o seu talento. Escrevem livros maravilhosos. Mas passei a perceber que tudo aquilo que eu achava que era imaginado não era. Vinha da realidade deles.

O que é um tradutor, afinal? Ele também é um autor?
Alison – Eu não sou daqueles tradutores mais militantes, que insistem que o tradutor é coautor. Acho que o tradutor merece o reconhecimento pelo que faz, não pelo que não faz. O autor criou um enredo, criou personagens, criou seu jeito de falar, criou várias coisas ali que eu não posso mexer. Eu não posso fazer nada a não ser traduzir estas coisas. A criatividade do tradutor se dá no momento em que cria soluções, procura maneiras de expressar aquelas coisas em outra língua. Mas você está criando a partir de um precedente, criando para refletir algo que já existe. Não é criação no sentido de criar do zero um texto. Eu não curto muito a palavra coautor por causa disso. Não que eu ache que o que eu faço não mereça reconhecimento. O tradutor é o tradutor – e não aquele ser invisível que ninguém se lembra de citar o nome. Acho que podia existir um esforço maior por parte das editoras para lembrar o tradutor, colocar o nome na capa ou pelo menos na primeira página.

Mas, para você, a competência do seu trabalho como tradutora parece estar ligada a um respeito radical à voz do autor e não a uma recriação pela sua própria voz. É isso?
Alison – Por isso eu gosto de citar pequenos trechos. Acontece muito com o Chico (Buarque), porque ele é um autor que além de contar a história, ele ama a língua, é evidente no que ele faz. Ele brinca com as palavras. E eu tenho muita preocupação em reproduzir as brincadeiras linguísticas que ele faz. Se eu apenas traduzir as palavras, perde a graça. Por exemplo. O José Costa (personagem narrador de Budapeste) diz a mesma coisa em três frases diferentes no seguinte trecho: “A lourinha era abusada, me apontava às gargalhadas e gritava para o fotógrafo: é bom saber que eu vou para a cama com esse cara, ou: comigo na cama esse cara vai saber o que é bom, ou: saiba que eu vou é com esse cara bom de cama, ou coisa que o valha; eu já me considerava prestes a dominar a língua húngara, quando falada em alto e bom som.” A graça está nestas três frases que dizem a mesma coisa, com as mesmas palavras, mas mudando a sua posição em cada frase. Se fosse apenas traduzir, faria três frases completamente diferentes, com nenhuma semelhança entre si. Tive de pensar o que era mais importante ali: traduzir apenas o sentido ou traduzir toda esta brincadeira linguística que faz a gente dar risada quando lê. Para mim não havia possibilidade de apenas traduzir estas três frases. Aí é preciso vestir a camisa do poeta e recriar outra frase que contenha esta possibilidade de se desdobrar de três maneiras diferentes, mas obedecendo todas às mesmas regras. Ficou assim: “The blonde was insolent and pointed at me in fits of laughter, shouting at the photographer: I’ll get this good-time guy in bed with me, or: with me this guy’ll get it good at bedtime, or: it’s time I got this guy’s goods into bed, or something of the sort.”

Há outro exemplo em Budapeste que consumiu dias até você encontrar uma solução?
Alison – Sim. O personagem é um ghostwriter (escritor fantasma, que escreve livros e textos que serão assinados por outros). Ele escreveu um livro chamado “O ginógrafo”, publicado em nome de um alemão. Aí ele vai embora do Brasil, mora uma década ou mais fora e, quando volta, vê um livro na vitrine da livraria e acha que é o dele. Ao chegar mais perto descobre que o livro se chama “O naufrágio”. A beleza disso em português é que as duas palavras possuem quase as mesmas letras, mas organizadas de forma diferente. Embaralharam a vista dele. Em inglês, ginógrafo virou “gynographer“, mas naufrágio seria, numa tradução literal, “shipwreck“. Nada a ver entre si. Tive de vasculhar o Oxford English Dictionary página por página, palavra por palavra, até achar uma que tivesse os mesmo atributos: “hypnologist“. Ela não tem tantas letras em comum, mas as mais marcantes estão todas ali. É nestas horas que sinto que estou brincando de palavras cruzadas.

Traduzir, para você, é similar a fazer palavras cruzadas?
Alison – Acho que é a coisa de achar o encaixe perfeito. Principalmente nos autores que têm uma preocupação lírica com a linguagem, que criam um eco repetindo a mesma frase. Tem de funcionar num contexto e em outro. Não é qualquer palavra que se presta a esta duplicidade. Quando faz palavras cruzadas, você tem aquela palavra, o significado e sempre há vários sinônimos. Mas só uma vai se encaixar ali cortando todas as outras. O tradutor tem de ter sensibilidade para todas estas coisas e tentar trazer todas elas para a sua língua. E esta é a criatividade do tradutor. Eu queria que as pessoas reconhecessem isso, meus fracassos e meus sucessos. E não me chamassem de coautora. São duas artes diferentes.

Qual é a sua palavra favorita na língua portuguesa?
Alison – Orelhudinho.

Sério? Por quê?
Alison – É como o meu Patãozinho (nome do seu cachorro) aqui. É muita informação embutida numa palavra só. Acho isso maravilhoso. Esta elasticidade da língua portuguesa. Dos diminutivos e dos aumentativos.

Quando você ouviu “orelhudinho” pela primeira vez?
Alison – Eu estava dando aula de inglês e uma professora falava de um aluno que tínhamos em comum, mas eu não lembrava o nome. Aí ela disse: “Sabe aquele orelhudinho…” Eu morri de rir e identifiquei na hora. É incrível que uma pessoa possa ser grande e pequena ao mesmo tempo. Esta contradição embutida na palavra é maravilhosa.

Por que você acha que existem tão poucas traduções da literatura brasileira para o inglês?
Alison – Aqui no Brasil cerca de 50% dos livros publicados são traduzidos de diversas línguas. Em muitos países europeus, como a França, também. Mas, nos países de língua inglesa, a estatística corrente é de apenas 3% de livros traduzidos de todas as línguas para o inglês. Acho que as culturas têm suas próprias estéticas. Isso se aplica a tantas coisas. O que o brasileiro acha bonito em uma mulher é diferente do que é bonito no meu país. Aqui gostam de mulheres com bunda, coxa, carnes, e no meu país gostam de magricelas, mulheres que são feias para os padrões brasileiros. Acho que acontece o mesmo em outros aspectos da vida, inclusive na literatura. Acho que as preocupações literárias são diferentes. Lá as editoras gostam muito de publicar livros que contam uma história, que tenham começo, meio e fim, que não tenham tantas divagações filosóficas. Se você pegar um livro francês, muita coisa da literatura é mais devagar, contempla mais as coisas. E há editores de língua inglesa que não gostam de publicar as coisas da França por causa disso. Acho que o Brasil tem um pouco em comum com a França neste sentido. É uma estética diferente. Esta questão da pontuação, por exemplo, não é sempre aceita de braços abertos pelos editores de língua inglesa porque não é a estética deles.

Você teve uma discussão com o editor de O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, sobre isso, não?
Alison – Ele queria reescrever um monte de coisas na edição em inglês. Eu achei que era facilitar um pouco demais, deixar as coisas mais claras quando o autor não quis ser tão claro. O autor quer que você trabalhe um pouco para chegar num sentido, então não dá para deixar tudo tão mastigadinho. É claro que há concessões necessárias numa tradução, porque a pessoa pode não entender o raciocínio de um brasileiro. Há momentos em que é preciso dar condições para que o leitor em inglês possa entender, mas isso não significa simplificar demais. Eu defendo o livro, sempre. Uma vez um editor me pediu para explicar uma metáfora. Não, pelo amor de Deus, a metáfora se explica sozinha. O autor não quis explicar aquilo. Então, de jeito nenhum vou explicar uma metáfora. Mas tenho de ficar brigando. Por outro lado, um autor pode ter um domínio bom da língua, mas às vezes tem uma visão parcial. Afinal, a gente nunca tem uma visão total nem da nossa própria língua. Às vezes o autor pode não perceber a estranheza que ele não sente, mas que um nativo vai sentir. Então às vezes eu também tenho de brigar com o autor. Sempre brigo pelo livro.

Cidade de Deus, de Paulo Lins, consumiu dois anos para ser traduzido. Você poderia contar um pouco de suas dificuldades com esta tradução?
Alison – Eu imaginava que seria difícil, mas não tinha noção de que o buraco estava muito mais embaixo. O livro se passa nos anos 60, 70 e 80, e o Paulo Lins vai refletindo estas mudanças no livro pelo tipo de droga, pelo tipo de arma, pelo tipo de gírias que usavam em cada época. Então eu tinha de encontrar soluções em inglês que não fossem anacronismos. Eu não podia usar o termo de uma droga que apareceu nos anos 90 e que ninguém tinha conhecimento nos anos 70. Muitas destas coisas não estão nos dicionários. Eu não sei se existe um dicionário de maconha. Se existir eu preciso ter na prateleira (risos). Então eu consultava pessoas que fumavam maconha naquela época, sobre como falavam a palavra baseado. E quando vendiam cocaína, qual era a palavra para a unidade vendida. É difícil achar quem compartilhe estas informações. E também é difícil para as pessoas se lembrar de quando começaram a usar a expressão que falam hoje. Então me falavam coisas muito modernas e insistiam que tinham falado isso sempre. E eu sabia que não tinham. Eu tinha também outro problema, que o era o fato de o livro estar sendo traduzido simultaneamente para o inglês britânico e o americano. Quando você fala em registro linguístico, quanto mais acadêmica a linguagem mais parecida fica. Linguagem acadêmica dá para publicar nos dois lados do Atlântico sem grandes problemas. Quanto mais coloquial, porém, mais específica. As gírias pertencem a um pequeno número de pessoas. E como Cidade de Deus é coloquial e tem gírias do começo ao fim, não tinha como fazer uma tradução que satisfizesse os britânicos e os americanos. Se eu fizesse apenas para o inglês britânico e a mesma coisa saísse nos Estados Unidos, os ingleses achariam muito natural e se entregariam à leitura. Mas os americanos não iriam se entregar porque toda hora se deparariam com palavras que soariam britânicas. Isso poderia levar o leitor americano a imaginar uma história se passando na Inglaterra e não no Brasil. Da mesma forma que não posso usar as gírias de um bairro pobre de Nova York para falar da realidade de uma favela no Brasil, porque os leitores vão entender aquela realidade como sendo a de Nova York e não a do Brasil. É bem complexo.

Era uma missão impossível, então?
Alison – Impossível. Sem saída. Fiz para o inglês britânico, mas pedi que houvesse uma revisão para o inglês americano, feita por um editor americano, para ajustar estas gírias, para fossem naturais para este leitor, já que uma única versão não satisfaz todo mundo.

Mas como foi a sua pesquisa para o Cidade de Deus?
Alison – Há, por exemplo, todo um trecho que se passa na prisão. Um dos personagens da favela vai preso e tem toda uma questão de mulher de prisão. Na verdade, a “mulher do xerife”, sendo que o xerife é o presidiário que manda lá dentro. E havia outros presidiários que eram as mulheres dos amigos do xerife. Estes presidiários que eram as mulheres tinham de usar calcinha, fazer sexo, lavar as cuecas. Era isso ou a morte. A crueldade humana é ubíqua, está em todo lugar, e eu achei que tinha de ter uma realidade correspondente. Aí fui atrás para tentar achar as expressões e gírias. Para encontrar, entrei num site de apoio a ex-presidiários na Inglaterra. Comecei a trocar emails com um deles. Senti que era extremamente humilhante para ele falar disso, mas ele me deu as palavras. Só que depois desta pesquisa toda, acabei traduzindo mais ao pé da letra. Embora na Inglaterra possam não chamar de xerife, achei que refletia algo daqui, pelo fato de terem escolhido chamar de xerife. Às vezes a gente faz toda esta pesquisa para jogar fora depois. Toda a pesquisa para Cidade de Deus levou muito tempo. Drogas, prostituição, armas. Nunca segurei uma arma na minha vida nem quero segurar, mas aprendi o que era cada parte da arma, tive de saber as mínimas coisas.

O alemão Berthold Zilly, tradutor de Euclides da Cunha e Machado de Assis, diz que há diferença entre o número de opções, de sinônimos, para algumas palavras entre uma língua e outra. Por exemplo, há muitos sinônimos em português para “carícia” e poucos em alemão. E isso diz da cultura de cada país. Você deparou com algo assim?
Alison – Em Leite Derramado (de Chico Buarque) há um trecho de mais ou menos uma página em que o Chico usa muitos verbos diferentes para “chicotear” e muitos sinônimos para a palavra “chicote”. Ele fez questão de não repetir a mesma palavra. Descobri então que português tinha uma ligeira vantagem sobre o inglês na questão do chicote. Acabo de verificar a palavra “chicote” em dois dicionários analógicos em português. Um traz 44 sinônimos e o outro, 30. No entanto, meu dicionário de sinônimos em inglês só tem 12 sinônimos para “chicote” e 17 jeitos de “chicotear”. Não sei de onde vem essa riqueza em matéria de flagelação em português. Só sei que a língua e as palavras nascem de realidades. Mas pode ser que estejam na língua há muito tempo, antes de o Brasil ser o Brasil, talvez tenham vindo de outras línguas. Não sei te dizer os porquês, infelizmente. Mas adoraria saber.

Quais são as impossibilidades de tradução? Você sofre muito com o que chama de seus “fracassos”?
Alison – O sotaque é uma destas impossibilidades. Jamais vou conseguir manter um sotaque mineiro, de Cataguases, por exemplo, como o dos livros de Luiz Ruffato. Assim como não dá para recriar na língua inglesa a diferença entre um sotaque carioca e o do sul. Dói, mas sei que tradução é uma coisa incompleta. Eu sei que é impossível, então tenho de aceitar. É possível explicar em nota de rodapé, mas aí esbarra na fluidez, em não querer quebrar a suspensão da descrença do leitor. Há autores em que sinto que a perda é maior. Luiz Ruffato é um deles. Ele trabalha com toda uma classe social e representa as pessoas de uma forma que, lendo, você acha que conheceu um cara exatamente assim. Mas ele fala de coisas tão brasileiras, de uma condição social. Isso está ali na tradução, como no original, mas, sem conhecimento do Brasil o leitor não vai enxergar. Vou dar um exemplo concreto, de um trecho: “Às onze, encostou junto ao meio-fio do bar do Auzílio, a charanga surdo-repinique-tamborim-zabumba-pandeiro-apito choramingando por favor, vai embora,/minha alma que chora,/está vendo meu fim./ Fez do meu coração a sua moradia,/ já é demais o meu penar…” A gente já escuta o barulho só lendo a frase. Mas a sonoridade vai embora na tradução porque os instrumentos não têm tradução, e mesmo que tivessem, a maioria das pessoas de língua inglesa não faz idéia do som que cada um faz. Sem falar na letra dessa música tão conhecida, que todo mundo que lê já põe para tocar na cabeça. Até tentei recriar a corrente de palavras com sons, em vez de instrumentos, mas achei que perdeu a graça totalmente, e acabei tendo de aceitar a perda. Foi uma derrota. E fiquei triste.

(Publicado na Revista Época em 16/08/2010)

Encontros literários

1)
A mulher de saia floreada olha para mim. Estou encostado numa esquina colonial. Parado, porque cansei de olhar para o chão. Ela está indecisa. Eu, estranho. Nunca fui um homem bonito a ponto de capturar olhares desconhecidos. Os olhos da mulher me apalpam o corpo. Vasculham meus bolsos, bisbilhotam o título do livro que carrego embaixo do braço. Constrangido, eu volto a olhar para o chão. Estudo a forma das pedras, que me assustam menos. Ela então ataca. Como é seu nome? Eu digo. Você é escritor? Eu penso que ela me reconhece, mas onde. Explico que estou terminando meu primeiro livro de contos, mas ainda procuro editora. Ela fecha a cara. Mais do que fecha. Ela é agressiva. Por um instante a janela do mundo se abre. Ela me odeia agora, porque meu ninguém revela o ninguém dela. Me enganei, diz ela. Achei que você fosse outra pessoa. Um alguém. E me deixa ali, sem se despedir. Quase torce o pé na pedra do segundo passo.

2)
A mulher abraça a todos efusivamente. Organiza um evento literário não sei onde. Estanca em mim. Ela tem pouco tempo. Precisa saber se sou importante. Em alguns segundos ela calcula que, se estou perto de pessoas importantes, talvez eu tenha alguma importância. Mas seu sorriso em minha direção é tenso. Ela ainda não tem certeza se vale a pena gastar um sorriso comigo. Um amigo gentilmente se adianta e me apresenta. Só o primeiro nome. Um primeiro nome é péssimo, a não ser que você se chame Chico ou Lula. Agora, os olhos dela são súplices. Outro amigo solícito capta as ondas de desespero que emanam da mulher e se apressa a dar o nome completo. Quase consigo enxergar os movimentos peristálticos de seu cérebro. Ela agora roda um programa de busca no disco rígido enquanto seus olhos se fixam em um ponto minúsculo entre meu lábio superior e o buço. Não, nada, nenhum registro. Ninguém. Ela não precisa se importar comigo. Vira as costas para conversar com alguém. No movimento, prende o pé entre duas pedras.

3)
O jornalista tem óculos azuis. E um crachá. Press. Está no café da tenda do jornal bacana. Eu me aproximo. Peço um expresso simples. A moça não me ouve. Sinto que a vergonha se esparrama em vermelho pelo meu rosto. Salvo apenas pela barba que não tive tempo de fazer antes da primeira palestra no telão. Não importa. Nenhum alguém olha para mim. Ninguém também. Penso que um expresso talvez não seja uma boa escolha. Tento um capuccino. Ela me encara um pouco impaciente, mas serve. Sabe que viemos do mesmo lugar e não gosta. Parte do líquido se esparrama quando ela bate o copo de plástico no balcão. Ela não pede desculpas. Tento limpar com um guardanapo. Não entendo por que fazem guardanapos que não absorvem, divago. Ao meu lado o jornalista bacana fala sobre a sintaxe de alguém. Penso que sintaxe é uma palavra poderosa, mas não tenho bem certeza do significado. Ensaio algo para dizer. Sobre Crumb, talvez. Crumb é bacana. Ou aquela menina que tira a roupa. Agora estamos lado a lado. Se ele estender o braço me toca. Um suor frio desce pelo meu pescoço e tropeça em algumas espinhas. Percebo que se ele estender o braço vai me atravessar. Deve ser meu sapato novo. Ninguém ali usa sapatênis. É ridículo. Nem sei como escrever. Sapa-tênis. Sapato-tênis. Sapatenis. Agora eu sei. Meus pés estão enfiados na palavra errada.

4)
Volto a olhar para o chão. O suficiente para me esgueirar até a esquina onde escondo meus pés. Assisto ao meu vômito chocando-se contra as pedras. E depois escorrendo quase amorosamente pelos vãos. Finalmente um encontro literário.

A vida se faz nas marcas

Vivemos por causa de nossas marcas – e não apesar delas

Para mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas na Casa de Cultura da Flip (Festa Literária Internacional), em Paraty. Promovida pelo Itaú Cultural, esta programação era gratuita. O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas marcas. E penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem ser assinaladas pela vida.

Vivemos numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas – algumas delas bem violentas. Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las.

É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade – as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora – o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica.

Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático. Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática para quase todos – e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão não é o trauma – e sim o que cada um faz com ele.

Há algumas semanas participei de um debate com psicanalistas no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, sobre o excelente documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro, Sobreviventes, sobre o qual já escrevi uma coluna quando foi lançado. Em minha fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A palavra sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver por causa do vivido.

Em mais de 20 anos contando histórias de pessoas – e também minha própria história –, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa vida só. Cada existência é uma sucessão de pequenas mortes e renascimentos desde este primeiro corte que nos separa de nossas mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só imaginando nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele, afinal, que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do corpo materno.

É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível – e o pior, que é desejável – ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.

É claro que alguns acontecimentos são devastadores – e lutamos para que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com esta marca. Transformando-a em algo que possa viver.

Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89 anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”), de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz. Quem não tiver assistido, pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a artista australiana Jane Korman, quando diz: “Esta dança é um tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”.

Poder dançar no palco em que quase foi assassinado – e onde milhões de pessoas foram exterminadas – é fazer algo vivo em vez de fazer algo mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você – na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma nova memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama das gerações. É mais do que uma magistral vingança – é uma dança.

Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho – e a maioria dos caminhos não aparece no You Tube. Mas acho uma prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui. Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.

Quando as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início – ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar fixado no trauma – enxergar a marca como uma morte que não renasce, como um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” – e o sentido que ela tem no senso comum – me incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não pudesse se quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobre-vida. Me parece, ao contrário, que a matéria da vida é justamente esta sucessão de quebras – e viver é dar sentido a elas.

Esta ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele que nos leva a anestesiar uma vida. Este equívoco tem transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha que repete sempre o momento mortífero e não consegue seguir adiante.

Ser – é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a ideia de que exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar algo vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na festa literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados, doces, móveis, dribles de futebol.

Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.

(Publicado na Revista Época em 09/08/2010)

Burca

Acordei em carne viva. Toquei minha pele, mas ela não estava lá. Me olhei no espelho e só vi as órbitas dos olhos e o buraco da minha boca por onde apontavam os dentes. Tudo em mim queimava. Não pelo contato do ar sobre a pele que não existia. Era um latejar de dentro para fora, em ondas que atingiam a superfície de mim. A dor alcançava a margem de mim e borbulhava como sangue invisível. Esbarrei na porta do armário que ele esqueceu aberta e não me feri. Eu estava sem pele, mas só sangrava por dentro. Precisava sair de casa para trabalhar e não queria. Tinha medo de que os de fora chegassem até dentro e me tocassem lá onde o coração desmancha. E se eu ficasse, se eu apenas desistisse. O mundo não seria afetado pela minha desistência. Eu apenas ficaria ali, no meio do caminho da minha vida, mas fora do caminho de todos. Apenas mais uma entre tantos que tombam espontaneamente todo dia porque a pele se desfez ao longo dos anos. Ou se esfarinhou em uma noite só, células epiteliais apodrecendo entre lençóis.

Mas havia ele e todos os outros que ainda se importavam comigo a me impedir de me enrolar na carne minha e finalmente dormir um sono sem sobressaltos. Abri as gavetas da cômoda e vasculhei até achá-la. Vesti a burca e desci pelo elevador com a moça do cachorro. Ela me olhou e baixou os olhos diante do meu não olhar. O cachorro latiu sem convicção para o nada de mim. Caminhei até o ponto de ônibus onde o meu eu escondido afastava a todos. Olha a mulher-bomba, disse um. A única bomba que há em mim explode há tanto tempo que nem sei dizer se havia um eu antes dela. A multidão não suporta não me ver. O policial vem e me pergunta da minha religião. Moço, eu não tenho religião alguma, mas queria ter. O senhor me empresta seu deus?  Ele não entende e então fica furioso pelo que eu não disse. Eu lhe estendo a carteira de identidade que exigiu e ele olha para a mulher que não existe mais em mim. Tire a burca, ele diz, para eu saber que você é você. Moço, eu estou vestindo uma burca justamente porque eu sou tão eu que ninguém vai acreditar em mim. Ele fica mais furioso e me avisa que vai tirar a burca à força. Agora já há uma multidão em torno de nós. A primeira pedra é atirada. Você vai ser linchada se não arrancar a burca, alerta o policial, agora bem nervoso. Não há pedra que me alcance, moço. Já tenho todas que cabem em mim.

A boneca inflável de cada um

Será que precisamos destruir tudo o que é diferente?

Lars mora na garagem da casa de seu irmão mais velho. Tem 27 anos, mas não gosta de sair, nem mesmo para tomar café coma família, apesar dos esforços quase acrobáticos de sua cunhada. Só sai para ir ao trabalho e à igreja. Mas um dia ele aparece na casa do irmão e avisa que vai trazer Bianca, sua namorada, para o jantar. Explica que, como ela é meio brasileira, meio dinamarquesa, não fala inglês. Bianca não caminha e precisa de uma cadeira de rodas, já que a sua foi roubada. Lars pergunta ainda se ela pode se hospedar na casa deles porque, como ambos são religiosos e solteiros, não acham certo ficar sob o mesmo teto. O irmão e a cunhada, que se preocupam com a solidão de Lars, ficam exultantes. Muito animados, arrumam o quarto de hóspedes e preparam o jantar. Em seguida, Lars aparece com a namorada. E eles descobrem que Bianca é uma boneca daquelas feitas sob encomenda para sexo.

Este é o enredo de um filme que pega a alma da gente pelo pescoço e bota ela no colo para um diálogo de delicadezas. Dirigido com sutileza pelo estreante Craig Gillespie e marcado por atuações excepcionais, foi quase ignorado pelo Oscar 2007 (apenas uma indicação para melhor roteiro original), passou meio batido pelos cinemas brasileiros aonde chegou com muito atraso no ano passado e agora pode ser encontrado em qualquer locadora. Acaba também de estrear na TV a cabo nos canais telecine. Como o título em português é muito, mas muito ruim (“A garota ideal”), a gente passa por ele nas locadoras ou na programação e pensa que é mais um daqueles filmes descartáveis meio abobados. Eu mesma passei por ele dezenas de vezes na prateleira da locadora sem uma segunda olhada. Só aluguei porque foi muito bem recomendado. Então assisti – e fiquei com vontade de ser rica para distribuí-lo pelas ruas como presente de utilidade pública. Como não sou, escrevo.

A grande história do filme é como a família, a médica e a comunidade da cidadezinha lidam com a suposta maluquice de Lars naquele inverno. Depois do jantar de apresentação, a cunhada sugere que Bianca possa estar estressada com tudo o que viveu nos últimos tempos. Deveriam levá-la a uma médica conhecida, que também é psicóloga, para um check-up. Depois de examinar Bianca com o estetoscópio e auscultar a situação com os olhos e os ouvidos, esta médica diz que não lhe parece que Lars tenha uma doença mental que o leve a uma internação. Do jeito dele, Lars leva a sua vida, trabalha e não machuca ninguém. Para ela, Bianca chegou por algum bom motivo. Lars criou Bianca para ajudá-lo a resolver um conflito. Quando o conflito for solucionado, Bianca poderá partir.

Neste caso, diz ela, o melhor a fazer é acolher Bianca. “Mas ela é uma fantasia”, diz o irmão. “Não”, diz a médica, “ela é real”. Está bem ali, na sala de espera do consultório. Para Lars ela é real – e este é o título traduzido do inglês (“Lars e a garota real”). “Mas vão rir dele”, retruca o irmão. A médica dá uma olhadinha e afirma: “E de vocês também”. Na manhã seguinte , o irmão não se contém e diz para Lars que Bianca “é só uma coisa de plástico”. Lars dá um sorrisinho, cochicha com Bianca e explica: “Bianca diz que Deus a criou assim para poder ajudar os outros”.

A partir deste momento, o filme conta como a cidade acolheu a Bianca de Lars. Ou melhor, como acolheu Lars. Embora a realidade dele parecesse bizarra para todos – e para cada um à sua maneira – não o julgaram. Apenas o acolheram. Esvaziaram-se de seus preconceitos para alcançá-lo, ainda que não pudessem entendê-lo. Não podiam entendê-lo nem ver o que ele via, mas podiam amá-lo. Em vez de destruí-lo porque não podiam entendê-lo, como acontece habitualmente, o amaram mais.

Se um Lars aparecesse perto de nós – e a verdade é que volta e meia aparece algum –, o mais provável seria enquadrá-lo no escaninho de alguma doença mental e dopá-lo. Antes da luta antimanicomial, os hospícios estavam cheios de gente parecida com Lars. Malucos, lunáticos, delirantes, loucos, fora da casinha. Gente que, mesmo não tendo nenhum traço de violência, nos perturba porque ouve vozes que não ouvimos, considera real o que para nós é fantasia, desafia nossa suposta normalidade. Gente que, com a sua diferença, nos perturba tanto que só conseguimos dar uma resposta violenta: a rejeição.

Dias atrás eu ouvia uma amiga contar sobre um primo que desde que perdera uma pessoa querida passara a se comunicar com ETs. Ele toca a sua vida, continua sendo um jovem doce, mas conversa com extraterrestres como se fossem velhos conhecidos. A família está perdida, sem saber o que fazer. Minha amiga está preocupada porque teme que ele perca os amigos, o emprego, a vida que construiu. Ao escutá-la, percebi que a angústia dela não se dava pelo fato de o primo conversar com ETs, ainda que não acredite que eles existam neste mundo. O problema é o que as pessoas ao redor farão com alguém que não faz mal para ninguém, mas jura conversar com alienígenas. O problema é a capacidade de destruição daqueles que acreditam em coisas aceitas como “normais” quando se descobrem diante de quem acredita em coisas consideradas “anormais”. Sejam elas uma boneca inflável ou um ET.

Talvez o primo da minha amiga converse com ETs pelo resto de sua vida, talvez um dia os ETs partam para outras galáxias onde existam outros garotos doces precisando ser escutados por criaturas verdes. Ou talvez o primo mande os ETs embora porque encontre alguém do próprio planeta para ocupar este lugar. O problema será, enquanto isso, sobreviver às pessoas que escondem seus ETs no armário.

É uma pena que precisemos tanto de julgamentos sobre o que é um comportamento normal ou não – sempre esquecendo que a “normalidade” muda conforme a cultura e o tempo histórico. Esquecendo também de olhar para a própria vida, com a honestidade necessária, para perceber que cada um de nós acredita em coisas muito estranhas e bizarras. Apenas que são coisas que mais gente também acredita. Este, aliás, é um exercício bem interessante, capaz de alargar os limites sempre estreitos de nossa tolerância.

É triste viver num mundo onde diante de qualquer diferença, mesmo que de opinião, seja preciso cair matando. Que gente tão insegura e pobre de espírito nos tornamos para temermos tanto aqueles diferentes de nós? Sempre que vejo alguém desqualificando um outro por suas ideias e suas crenças, fico pensando: será que esta pessoa tem uma vida tão sensacional que todas as outras precisam ser esculhambadas? Desconfio que seja exatamente o contrário. Não custa nada olhar para dentro e apalpar um pouco a matéria dos nossos dias antes de sair por aí cimentando regras para a vida de todos. Torço muito para que o primo da minha amiga não encontre gente que se sinta ameaçada pelos seus ETs. Mas sei que vai encontrar. E temo por ele.

Acho que, em alguma medida, temos todos nós ETs ou bonecas infláveis que nos ajudam na tarefa complicada que é viver. Especialmente quando esta tarefa fica muito difícil. Seria tão bom que conseguíssemos amar melhor e, mesmo ao ver os outros agarrados a ETs bem pequeninos, fôssemos capazes de deixar passar sem sacarmos nossas armas de extermínio. Quantas vezes não vemos gente bem próxima que está segura apenas por um fio à sua vida por causa de alguma tragédia ou mesmo de uma fragilidade maior diante das agruras do mundo. Em vez de escutar, aceitar e acolher, nosso comportamento habitual é sair logo cortando, com uma tesoura bem grande, o fio que aquela pessoa teceu com a maior dificuldade. E sem oferecer nada em troca para botar no lugar.

Estou bem cansada de gente que adora dizer, apoiada por sua metralhadora de certezas: “Fulano está perdido”. Ou “sicrano nunca conseguiu fazer nada decente na vida”. Ou, os que acham chique falar em inglês: “Beltrano é um loser”. Será que estes arautos do sucesso estão tão perdidos que pensam que se acharam na vida? Bem, talvez esta crença seja o único fio que os mantêm acima do abismo.

Lars e a garota real” (ou “A garota ideal”), o filme, é uma fábula. Não por causa de Lars, mas por nossa causa. Naquela cidade as pessoas são muito melhores do que nós. De repente percebi, assistindo ao filme, que o mais estranho ali não era Lars e sua boneca, mas todos os outros. Porque, NESTA vida real, não há nada mais distante do normal, não há nada mais bizarro ou fora da casinha, do que gente que, em vez de julgar, catalogar e descartar aquele que é diferente, escuta, aceita e acolhe. Este – e não o de Lars – é o comportamento mais lunático do filme. Uma pena não para os Lars da vida, mas para todos nós.

(Publicado na Revista Época em 02/08/2010)

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