A tosse

Ilustração:  Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Um dos dogmas do bom jornalismo diz que um repórter nunca deve começar um texto por: “Quando fulano acordou naquela manhã, não imaginava que…” ou “Quando fulana embarcou naquele avião, não poderia saber que…” E aí, fulano ou fulana jamais previram que levariam um tiro, seriam raptados por alienígenas ou morreriam num acidente. Os “big boss” do jornalismo morrem de rir dos “focas” que começam um texto assim. Porque, com certeza, ninguém pode adivinhar o que vai acontecer quando acorda pela manhã. Especialmente se vai chegar até o fim do dia.
Tenho dúvidas, porém.

Acho que não há nada mais real, mais concreto e portanto jornalístico, pelo aterrorizante que é, do que a certeza de que você não sabia. Não podia prever. Não tinha como alterar o rumo da tragédia. Esta é uma consciência que, em retrospectiva, e sempre escrevemos em retrospectiva, é quase paralisante. Por isso, talvez, jovens repórteres insistam neste início. Porque ao começar a cobrir a tragédia da vida, é difícil não se sentir tomado pela impotência.

É nisso que penso agora. Podia pensar no que aconteceu de tantas maneiras, mas é apenas nisso que penso. Eu também quando acordei hoje pela manhã, com a musiquinha chata do despertador me avisando que tinha de levantar, não imaginava que duas horas depois eu também não poderia ter adivinhado. Detesto acordar com despertador e em geral não acordo, mas tinha marcado uma bateria de exames no laboratório, exames de rotina, adiados há tempo demais. Tinha jurado a mim mesma que não terminaria o ano sem fechar esta conta com a minha saúde. E com a médica que não para de me atormentar porque há anos esqueço as requisições em alguma bolsa que depois perco.

Me enfiei num táxi sem reparar se faria sol ou chuva no dia que amanhecia. Levei o jornal, a revista Piauí que tinha acabado de chegar e uma biografia que preciso ler. Faria cinco exames diferentes. Na sala de espera havia apenas outras duas pessoas. As chances eram de 1 em talvez muitos milhões, mas uma delas era conhecida. Por coincidência, eu a tinha encontrado numa festa no final de semana. Nem sei por que, mas tivemos uma conversa mais densa do que costuma caber numa sala de espera de laboratório. Falamos sobre a consciência, lá pelos 40 e poucos anos, de que o tempo é tudo o que temos. E cada vez temos menos. E por isso percebemos que a vida precisa ser plena já e tudo o que era adiável se torna urgente. Estávamos neste ponto quando fui chamada para o primeiro exame.

A cada exame que terminava, eu perguntava, mais por hábito: “Está tudo bem?”. Estava. Eu sabia que estaria porque sempre tive saúde de vira-lata. Mas no quarto exame a médica demorou e eu já estava impaciente. Ela passeava e passeava o aparelho sobre o meu seio esquerdo. Ia e voltava. Está tudo bem?, perguntei. Ela não disse que sim nem que não. Você está vendo lá, no monitor, aquela mancha escura, ela disse. Não, eu não via nada. Para mim, a imagem do monitor podia ser a de um rinoceronte. O que é?, perguntei. É um nódulo. Se você tivesse trazido os exames anteriores, eu poderia afirmar com mais precisão se você deve ficar pouco ou muito preocupada. Como você não trouxe, eu não posso saber se a alteração surgiu de repente.

Neste momento eu comecei a odiá-la. E meu ódio costuma ser forte. Se fosse um dia como deveria ter sido, eu diria a ela o que pensava sobre a sua maneira de contar algo tão delicado para uma mulher. Mas tinha acabado de deixar de ser um dia normal. Eu estava ali, numa camisola ridícula, deitada numa maca, com uma profissional perfeitamente profissional me dizendo que talvez eu tivesse uma doença que talvez me matasse. Para mim, que perdi duas pessoas de câncer só nos últimos dois anos. E várias outras ao longo da vida. Qual é o tamanho?, perguntei. Qual é o tamanho mesmo?, ela perguntou para a assistente. Um vírgula seis centímetros.

E agora?, eu perguntei. Nós vamos analisar, comparar o ultrassom e a mamografia, e daremos o resultado. Mas o procedimento, se você fará uma punção ou uma cirurgia, é a sua médica que vai decidir, ela disse, sem alterar o tom. E quando eu vou ter o resultado? , perguntei. Quando ela vai ter o resultado?, ela perguntou para a assistente. Em quatro dias. A médica me alcançou toalhas de papel para que eu me limpasse. E se despediu desculpando-se: “Peço desculpas pela minha tosse. Tenha um bom dia”.

Isso mesmo. “Peço desculpas pela minha tosse. Tenha um bom dia”. É verdade, ela tossia. Tinha comentado algo sobre um resfriado mal curado. Como ela podia se desculpar pela tosse e me desejar um bom dia? Eu poderia enumerar vários motivos para ela me pedir desculpas. Mas a tosse? Quem são estas pessoas? Como elas vivem? Como são capazes de dizer “Peço desculpas pela minha tosse, tenha um bom dia”?

Eu queria ter vontade de matá-la. Mas já estava obcecada pela possibilidade de talvez morrer antes de envelhecer. Então eu respondi: “Imagina, não se preocupe. Obrigada”. Eu agradeci! Deveria ter enfiado uma faca nela, mas agradeci. Porque me sentia frágil e tinha vontade de chorar. E a solidão daquele ambiente asséptico e daquela crueldade de branco me estrangulava. Me vesti e desci as escadas até a última sala, o último exame. “Como está o meu coração?”, perguntei ao médico. Está bem. Você tem prolapso da válvula mitral, mas isso não significa nada, não tem nenhuma consequência, ele garantiu. Me lixei para o prolapso. Que me importa se meu coração sopra?

Sinto uma dor imaginária no seio esquerdo. Me apalpo e me apalpo. E não encontro. Onde você está? Tenho pena e ódio deste corpo que me trai. Quatro dias sem saber se vou envelhecer ou talvez não. Como não suporto a impotência, fico imaginando não o bicho que pode estar me corroendo neste instante, mas a minha vingança.

Amanhã, amanhã a médica vai acordar pensando na tosse e nada mais. E eu vou sequestrá-la por um momento. Vou amarrá-la numa cama e mostrar a faca. Você vê esta faca? Talvez ela seja de brinquedo, como as do circo, e quando eu enterrá-la em seu seio esquerdo ela vai apenas provocar uma coceira. Mas talvez não. Talvez ela alcance o seu coração e para você seja o último Natal. Mas não se preocupe. Em quatro dias eu volto para te dar a resposta. Eu saio da sala em passos leves de gueixa. E volto por um momento, com um sorriso de Mona Lisa: “Peço desculpas pela tosse da minha alma. Tenha um bom dia”.

Tapas e beijos

Podemos chamar de amor uma relação violenta?

O novo filme de João Jardim, “Amor?” (Prêmio do Júri Popular no Festival de Brasília), narra histórias reais de violência nas relações de casal. Depois de ouvir 60 depoimentos de homens e mulheres anônimos que cometeram ou foram vítimas de agressões, o diretor escolheu oito para serem interpretadas por atores famosos. Quando assisti à “Amor?”, numa sessão especial promovida pelo Instituto Avon e Copacabana Filmes, em São Paulo, deixei a sala pensando ter visto um filme bom com alguns momentos excepcionais, como as interpretações de Lilia Cabral e Julia Lemmertz. Depois, o filme colou em mim. Passei dias me interrogando a partir de questões suscitadas por ele. A força de “Amor?” está em fugir da simplificação tão mais fácil para todos nós: a da pobre mulher submissa espancada por um homem mau.

Os depoimentos nos envolvem e falam com partes mais ou menos invisíveis de nós. Os papéis de vítima e algoz têm contornos menos definidos do que gostaríamos. É nos detalhes que vamos pressentindo a aproximação da violência. Acho difícil que em algum momento, diferente para cada um, quem assiste não se identifique com alguma frase, algum ato, deste laço entre amor e violência que prende duas pessoas adultas.

É aí que o filme acerta mais. Ao fugir dos casos que viram manchete de jornal, aqueles com os quais podemos nos horrorizar e respirar aliviados porque jamais seríamos os protagonistas, ele fala de algo mais insidioso, de uma violência que também é nossa. Com isso, não permite que, ao assisti-lo, permaneçamos descolados, achando que aquilo é de um outro e acontece a um outro que nada tem a ver com a gente ainda bem.

Como disse a atriz Silvia Lourenço, durante o debate: “O filme mexe com o nosso lado sombrio. Me fez pensar sobre o quanto eu me submeto nos meus relacionamentos. Todo mundo tem o lado A e o lado B. Quem assiste ao filme se identifica com ele. Por isso é poderoso e transformador”. Silvia vive uma mulher numa relação homossexual em que o amor vai se tornando violento. Como o depoimento é longo, é dividido com outra atriz. Mas ambas vivem a mesma personagem.

Quando um homem agride uma mulher está cometendo um crime. A Lei Maria da Penha, que criou mecanismos mais eficientes e penas mais rigorosas para reprimir a violência doméstica contra a mulher, é uma grande conquista. Disso todos sabemos. O que é pouco discutido, me parece, é a contribuição da vítima para a violência. Aqui não me refiro a psicopatas que perseguem ou colocam suas vítimas em cárcere privado nem a casos extremos como o da própria Maria da Penha. Me refiro a histórias muito mais frequentes do que costumamos admitir e que permeiam a vida de amigos próximos, quando não a nossa.

Em um casal não existe agressor sem que exista uma vítima. Sabemos disso, mas nem sempre lembramos. Em algum momento agressor e vítima tiveram um encontro – e os encontros só acontecem quando um tem o que o outro busca. Entender o que permitiu este encontro – e, principalmente, o que faz com que ambos permaneçam numa relação destrutiva – é essencial para poder quebrar o ciclo de violência ou criar uma outra identidade na relação que não seja a de vítima nem de agressor.

Ao me referir à contribuição da vítima não estou dizendo que a mulher é culpada, “pediu”, como dizem tantos cretinos por aí. Estou falando sobre algo mais importante que a culpa. O que de meu engatou no que é do outro e permitiu que uma relação amorosa se tornasse também uma relação violenta. E o que me fez permanecer apesar da violência já desvelada.

É ruim para a mulher se ela só for vista como vítima – e só se enxergar como vítima. É verdade, ela foi vítima. Mas ser vítima não é tudo o que ela é. Me parece fundamental que cada mulher metida numa relação violenta consiga buscar dentro de si – e tenha ajuda para buscar dentro de si – qual é ou foi a sua parte nessa arapuca. Acho difícil conseguir romper com a violência se não encontrarmos o que há de ativo mesmo na nossa passividade. Ao se apropriar do que é nosso é possível nos tornarmos mais inteiras – mulheres melhores para nós mesmas. É possível também criarmos enredos mais interessantes para a nossa vida afetiva.

No filme, em pelo menos dois depoimentos de homens, aparece o que poderia ser chamado de “violência da vítima”. Em um deles, um dentista que hoje espanca as mulheres e namoradas, conta que sua mãe era espancada pelo seu pai. Mas que antes de o pai levantar a mão pela primeira vez, a mãe o humilhava diariamente. Este filho – entre o pai e a mãe possivelmente até hoje – justifica a violência física do pai com uma violência anterior da mãe, psíquica e verbal. Em outro depoimento, o homem que tinha esfaqueado uma namorada, fala de sua humilhação. Diz que gostaria de criar uma lei com o nome dele para proteger os homens da violência da mulher.

Nos casos denunciados é comum este tipo de justificativa. Não serve como atenuante. Nada justifica um espancamento ou qualquer outra agressão física. Quem pratica a violência tem de ser impedido, denunciado, julgado e punido. Mas acredito que seja importante escutar o que dizem os agressores – e escutar para além do pensamento que descarta narrativas como esta como mera canalhice.

Existe uma violência que se não se expressa fisicamente. E ela também é destruidora. Algumas mulheres costumam manipular com maestria esta arma subjetiva que não deixa hematomas visíveis. Raramente um homem espanca uma mulher no primeiro dia. Em geral há um longo balé protagonizado por ambos até a primeira vez. E aí as seguintes ficam mais fáceis e, em geral, mais frequentes e violentas.

O primeiro depoimento do filme é interpretado por Lilia Cabral – extraordinária. Ela conta como o casamento se transformou e recomeçou a partir de um rompimento provocado por uma agressão física. Ao contar a história, ela enxerga a violência que é do marido, mas também assume a violência que é sua. E talvez por isso tenha se tornado possível, depois de algum tempo, reinventar a relação. A anterior tinha acabado no momento em que ela foi jogada contra a parede pelo marido. A nova, depois de muita reflexão e namoro, só se tornou viável porque ambos criaram um casamento onde era possível mudar identidades cristalizadas que sufocavam a ambos. Mas, para que isso pudesse acontecer, foi preciso primeiro romper, separar.

Ao abrir com um depoimento fora do padrão da vítima tradicional e do desfecho mais ainda, o filme já inquieta e mostra que não veio para repetir clichês ou apontar culpados. São vários os méritos neste sentido. Um deles é o de retratar histórias de classe média, contrariando a falsa crença de que a violência doméstica é coisa de pobre. Pode ser que ela seja mais visível nas periferias e favelas, até pelo tipo de moradia e a proximidade dos vizinhos. Mas a violência doméstica está em toda parte. E também nos palácios, de onde às vezes é mais difícil escapar e onde os gritos são abafados pelos muros e pelas convenções. Outro mérito é contar a trajetória de agressões em uma relação entre duas mulheres, embaralhando a crença de que a violência pertence aos homens. Poucas coisas são tão perniciosas para a vida das mulheres, aliás, do que a crença de que não somos violentas. Esta é uma das grandes mentiras que, incrivelmente, se sustentam até hoje.

Amor?” é uma boa pergunta em forma de filme. A primeira manifestação da plateia, assim que as luzes se acenderam, foi de uma mulher, uma psicanalista, afirmando que aquelas histórias não tratavam de amor, mas da “patologia da paixão”. Achei muito significativo. É muito reveladora a necessidade de definir se é amor ou não é. E deixar claro que não é. Desqualificando assim o discurso de homens e mulheres envolvidos em relações violentas quando dizem que, mesmo ao bater ou apanhar, ainda amam. Ou que permanecem na relação “por amor”.

Minha opinião é que amor é como arte. É muito difícil definir o que é. E o senso comum ou mesmo o dos “especialistas” vai mudando ao longo do tempo. Dizer que uma relação não é amorosa porque contém violência ou que quem ama não bate é querer tornar o amor algo da esfera do sagrado, limpinho e imune às contradições humanas. Este discurso, pelo avesso, legitima a violência. Se fosse amor, então, a violência estaria justificada, porque o amor é maior do que tudo ou vence tudo, por ele valeria qualquer sacrifício, até apanhar. É colocar o amor, de novo, no âmbito do sagrado, que nos eleva mesmo quando é ruim. E por isso teríamos de suportar qualquer coisa, inclusive agressões.

Não. Sendo amor ou não, pouco importa. Caia fora o mais rápido possível. A violência aniquila a vida. Quando não acaba, literalmente, com ela.

(Publicado na Revista Época em 13/12/2010)

Gigi, a gravidez e as cidades

Sou rodeada de militantes do parto natural. Volta e meia sou convidada a rituais como enterro de placenta e fico lá, lacrimejando enquanto a dita é enterrada com solenidade debaixo de alguma árvore raquítica da rua ou em algum vaso da sala. Tive uma amiga, inclusive, que comeu a própria placenta. Bateu no liquidificador com morangos e comeu de colher. Nunca mais aceitei nenhum convite para almoçar na casa dela. E quando passo lá recuso até o cafezinho com uma desculpa de gastrite. Copo d’água só se eu mesma abrir a torneira. Não, não. Eu sou praticamente uma avestruz. Engulo sementes de melancia porque tenho preguiça de tirar, sou louca por dobradinha, rabada, mocotó e meu estômago fez ola quando vi pela primeira vez uma buchada de bode no bodódromo de Petrolina. Em caso de sobreviver a um acidente aéreo nos Andes tenho certeza de que não teria problemas com uma boa coxa. Mas placenta é demais até para mim.

Minha amiga Gigi, porém, é do contra. Anunciou com a maior desfaçatez que vai marcar hora e dia para a cesariana de seu bebê. Ohhhhhhhh, abrimos nossa bocona, eu e todas as outras amigas da natureza. Não faço nenhuma questão, acrescentou. Como assim?, pergunto. De dor, não vejo nenhuma razão para ter dor se posso simplesmente receber uma anestesia e pronto, o bebê sai de lá sem nenhum trauma. Sim, para nos confundir ela defende a ideia de que é ótimo também para a criança, que não precisará sofrer, empurrar, se apertar ou até se esgoelar no cordão umbilical. Imagina, ela diz, nascer já é tão complicado. Ela (sim, é uma menina) já vai ser obrigada a deixar o luxo da minha deliciosa barriga onde está com todo o conforto degustando boa gastronomia e relaxando durante nove meses, praticamente num SPA, e você ainda quer que eu faça minha filha ter de arrombar a porta?! Não, não, muito obrigada. É deselegante.

Diante da argumentação, eu apelo para técnicas terroristas. Você é quem sabe, começo, fingindo distração. Mas lembre-se de que o corpo volta muiiiiiiiito mais rápido à boa forma se o parto for natural. Se for cesariana, um ano. Mas, parto natural, três meses e você já está com a barriga que a Claudia Leitte tinha 15 segundos depois. Cirurgia é cirurgia, apelo, malvada. Nunca se sabe o que pode acontecer.

Gigi arregala por um momento seus olhos de cartum. E, esperta, não se entrega. Imagina, vai ser ótimo ter uma filha sem nenhum trauma de origem. Vou economizar horrores na conta do psicanalista. Ela não vai ter um motivozinho que seja para culpar a mãe por sofrer à toa. É por amor, entende?, diz ela, cínica, enquanto dobra um tip-top de oncinha cor-de-rosa.
Gigi é assim, incorrigível. Não tenho a menor dúvida de que, antes de ir ao hospital, ela vai fazer depilação, unhas e cabelo. E depois, vai calmamente dirigir até a maternidade na data marcada, de salto alto e pretinho básico, com ares de Audrey Hepburn. Eu, que sou uma defensora do parto natural e faço discursos veementes contra a indústria da cesariana e os obstetras preguiçosos, vou ter de engolir. Já sei que minha afilhada vai pedir um espumante quando nascer em vez de leite. No formato de peito, no máximo a taça que, diz a lenda, foi esculpida no formato dos belos seios de Madame de Pompadour.

Em represália por ignorar totalmente meus bons conselhos e melhores intenções, eu, que sou vingativa, descobri um ponto fraco na originalidade de minha amiga Gigi. Obviamente, ela não enjoaria com coisas prosaicas. Nada de feijão com arroz ou banana prata. Nos primeiros três meses, enjoou de queijo mascarpone, vejam só. Roquefort, brie e pecorino, também, não podia nem pensar. Por fim, superou sua rejeição a queijos de três dígitos o quilo. E no quarto mês ela anunciou que estava enjoando de cidades. Sim, eu também fiz esta cara.

Em se tratando da pessoa em questão, achei que não poderia ouvir falar em Paris ou Nova York. Mas não. Seu problema era com o Planalto Central. Cite as cidades-satélites da capital federal na sequência e ela desmaia. A bucólica Pirenópolis obriga Gigi a correr para o banheiro. Mas nada se compara a Brasília. Basta ouvir o nome que não tem tempo para nada. Vomita onde está.

Eu adorei. Comecei pronunciando lentamente: Bra-sí-lia. Agora, virou um jogo. Você viu a última cena do Tropa de Elite 2? Quaquaquaquaquá. Sabe quanto vai custar a festa da posse da Dilma em….? Quiquiquiquiqui. Em seguida, depois que ela vomita no colo, peço desculpas, compungida. Desde ontem passei a ligar em horários diferentes do dia. Não dou nem oi. Só falo, numa voz cavernosa. Brasíííííííília. E ouço o baque do aifone ao atingir o chão.

Tropa de Elite em 3D

Há influência do Capitão Nascimento no apoio da opinião pública às operações no Rio?

As operações policiais na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão têm sido chamadas de “Tropa de Elite em 3D” no twitter. Como se Tropa de Elite, o filme, tivesse passado das telas para a vida real, na menção de mais de um repórter ao relatar o que via. O público previsto para assistir à Tropa de Elite 2, que deverá se tornar o filme mais visto da história do cinema nacional, foi menor do que o esperado no último final de semana de novembro. Segundo alguns sites especializados, teria sofrido a concorrência de seu homônimo em 3D, na transmissão ao vivo das operações no Rio pelas equipes de TV. É apenas uma alegoria ou há algo mais profundo nesta relação entre realidade e ficção?

Acho que vale a pena pensar sobre o efeito de Tropa de Elite 1 e 2 na apreensão dos acontecimentos do Rio pela opinião pública. Não apenas pelos cariocas, mas pela população brasileira, boa parte dela sem nenhuma familiaridade com a realidade do tráfico nas favelas do Rio nem com os policiais do Bope. É possível supor que um dos maiores fenômenos de público da história do cinema nacional possa ter tido um efeito significativo na aprovação massiva (e quase sem ressalvas) à ação policial – no Rio, 88% da população, segundo o Ibope. Minha pergunta aqui, que talvez só possa ser respondida daqui a alguns anos, é em que medida o Capitão Nascimento está presente na decodificação dos fatos da vida real.

Amigos de diferentes Estados e regiões do Brasil, que costumavam assistir ao noticiário do Rio, incluindo operações anteriores, com uma curiosidade distraída, agora acompanham e discorrem sobre o Complexo do Alemão e o Bope como se tudo estivesse acontecendo no bairro vizinho ao seu. O que os “engatou” na realidade e os aproximou de algo que antes soava distante parece ter sido o tanto que gostaram do filme e o tanto que admiram o Capitão Nascimento, a quem enxergavam no rosto anônimo de cada policial nas imagens de TV. Ao buscar dentro de si instrumentos, memória, para compreender a realidade exibida no noticiário, é Tropa de Elite que aparece primeiro.

Nunca ouvi tão poucas críticas aos já comprovados abusos policiais na ocupação dos morros ou tão poucos questionamentos sobre a eficácia e o resultado efetivo deste tipo de operação. Existem, claro. Mas num volume bem menor. Conhecidos que eram os primeiros a levantar a voz para falar da violação dos direitos humanos confessam que estão acuados. Toda vez que abrem a boca para fazer uma ressalva no seu local de trabalho ou na mesa do bar são tratados como “defensores de bandidos”. Outros, que sempre olharam qualquer operação policial – ainda por cima com Exército a tiracolo – com desconfiança máxima, ensaiam discursos maniqueístas. Há não muito tempo me enviavam emails coletivos de campanhas contra o Caveirão. Agora, chegam a repetir o discurso fácil da luta do bem contra o mal. O que mudou?

Desde sempre há gente, muita gente, favorável ao pega e arrebenta. Assim como defensores do uso do Exército no combate ao tráfico, como havia sido tentado no passado. A diferença que percebo é a perda do pudor. Era complicado defender a polícia sabidamente corrupta em sua maioria e intimamente ligada à criminalidade que fingia combater. Era espinhoso falar do Exército na favela com poder de polícia depois dos 21 anos de ditadura militar. Quem compartilhava estas ideias, fora os motoristas de táxi, não saía por aí as bradando em qualquer meio. Agora, parece que inverteu. Criticar, duvidar, questionar, verbos que fazem parte do exercício da cidadania, têm sido rechaçados com alguma – ou até muita – violência. “Ah, lá vem você defender os pobres e oprimidos…”. Ou pior: “Lá vem você e a sua culpa…”. Como se querer que a lei seja cumprida dentro da lei fosse um defeito de caráter. E o autor do comentário já estivesse, a priori, desqualificado.

Vale a pena perguntar se há, nesta espécie de autorização para disparar ideias até então tachadas como “reacionárias”, um dedo engatilhado do Capitão Nascimento. Não o Capitão Nascimento contraditório, atuando em zonas cinzentas na maioria do tempo, aquele dos realizadores do filme. Mas o de cada um, aquele que virou uma espécie de herói no imaginário nacional.

Estamos vivendo dias em que mesmo um reacionário folclórico como o deputado federal Jair Bolsonaro vai ter tantos competidores que precisará mudar de tática se quiser garantir ao menos uma nota de rodapé nos jornais para suas frases bombásticas. Vejam só o que disse o ex-capitão do Bope e atual comentarista de TV, Rodrigo Pimentel, em debate sobre as operações no Rio promovido na quinta-feira (2/12) pela Folha de S.Paulo. “Muita gente se perguntou por que a polícia não deu tiro em todo mundo e matou aqueles 200. Confesso que era o meu desejo. Não tenho a menor vergonha de dizer que gostaria que eles morressem. Era uma situação de beligerância, de guerra”.

Pois é, ele não tem “a menor vergonha de dizer”. Ninguém mais parece ter. Posso ser meio antiquada, mas acho importante ter vergonha. Assim como pudor. Especialmente quando se tem uma expressão pública, o que sempre aumenta a responsabilidade. Capitão Pimentel, como é conhecido o autor do comentário, é tido como a versão encarnada do personagem da ficção Capitão Nascimento. É também um dos autores dos dois volumes do “Elite da Tropa”, livros nos quais se basearam os filmes. Ele costuma explicar que Nascimento é um personagem totalmente fictício, construído a partir de histórias vividas por ele e por outros colegas do Bope.

Aqui há outro capítulo dos mais interessantes sobre a intersecção entre ficção e vida real. Neste mesmo debate, participaram também o cineasta José Padilha, diretor de Tropa de Elite 1 e 2, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança do Estado do Rio e coautor dos livros “Elite da Tropa”, e Marcelo Freixo, segundo deputado mais votado do Rio no qual foi inspirado o personagem do parlamentar Diogo Fraga, central no segundo filme. Os três estão entre as principais vozes críticas às operações no Rio e ao que Soares chegou a chamar em seu blog de “pastiche da mídia”.

Não perdem a oportunidade de lembrar que aquilo a que assistimos pela tela das TVs não é uma mera luta de mocinhos contra bandidos nem vai resolver o problema da criminalidade no Rio. E que, sim, a maioria dos policiais continua sendo corrupta e a situação só chegou a esse ponto por causa disso. E que não, não é o tráfico o maior problema hoje, mas as milícias compostas por policiais, bombeiros e militares, pelo Estado portanto, que criaram hoje um modelo de negócio mais eficiente, variado e adaptado ao momento histórico. E que não, as Forças Armadas não devem continuar nas favelas. E sim fazer o seu trabalho determinado pela Constituição, como impedir que as armas sejam contrabandeadas para dentro das fronteiras do Brasil e alcancem os morros.

Entre os méritos de Tropa de Elite 1 e 2 está o de mostrar o que muita gente parecia ter esquecido: a existência de policiais bons e honestos que arriscam a sua vida por um péssimo salário. Mostrou também que estes policiais bons e honestos constituem uma minoria no conjunto da força policial do Rio. A maioria está implicada, por parceria ou por omissão, como não se cansa de dizer Soares, em todas as modalidades de crime. Tropa 1 e 2 mostrou, portanto, que o mal está nos dois lados, na polícia e no tráfico. E apontou a necessidade urgente de distinguir a polícia do crime – hoje indistinguíveis.

Mas, quando Tropa de Elite vira Tropa de Elite em 3 D, a história é outra: a polícia é o bem, os bandidos são o mal e, como bem e mal, mocinhos e bandidos, estão em lados opostos e bem delimitados. Ao anular as diferenças entre o bom policial, uma minoria que precisa ser identificada e reconhecida, e o mau policial, a maioria que também precisa ser identificada e reconhecida, a opinião pública passa a tratar todos como mocinhos. Depois há de sair explicando como boa parte dos traficantes conseguiu fugir ou por que é necessário proibir os heróis de subir os morros com mochilas para evitar que saqueiem as casas e os bolsos dos moradores. Efeitos colaterais da simplificação grosseira da realidade.

A vida real não cabe no preto e no branco. Algo de cinza sempre vaza pelas margens. Neste sentido é que acho importante, além de todas as outras perguntas, tentar entender como Tropa de Elite – o duplo fenômeno cinematográfico – acabou emprestando um suporte simbólico às operações do Rio. Não exatamente por aquilo que disse, mas pela forma como foi decodificado e reelaborado pela população. Ou, dito de outra forma, sempre vale a pena pensar sobre a verdade da ficção e a falsificação do real.

É bem significativo que os criadores do espetáculo mais importante da década – e talvez da história do cinema brasileiro – sejam aqueles que tentam lembrar a toda hora em debates, entrevistas e artigos que o que assistimos na vida real não é espetáculo. Mas os criadores não têm mais domínio da criatura, que na boca do povo, dos políticos e de parte da imprensa vira o que cada um quer ou precisa. Uma pena que as zonas cinzentas de Tropa de Elite 1 e 2 – muitas e ricas – tenham sido deixadas de lado em favor do preto e do branco, sempre mais fácil. E também mais longe das verdades todas.

Por coincidência, enquanto escrevo esta coluna há um aniversário de criança no salão de festas do prédio que dá fundos para o meu. Da janela do meu quarto vejo meninos e meninas, acompanhadas por suas mães e babás, pulando loucamente ao som de: “Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você/ Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você”.
Pegou?

(Publicado na Revista Época em 06/12/2010)

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