A história dentro da história

Eliane Brum conta como acompanhou a família Costa Pereira ao longo de todo o governo Lula

Quando propus a ÉPOCA contar a trajetória da família Costa Pereira, do final do governo Fernando Henrique Cardoso ao final do governo Lula, algumas pessoas da redação ficaram intrigadas com este testemunho de nove anos. Apresentei duas vezes, oralmente, a história desta família no exterior, em eventos sobre o Brasil em Ferrara (Itália) e em Madri (Espanha), e a curiosidade se repetiu. Jornalistas estrangeiros me perguntavam se eu continuaria acompanhando os Costas Pereiras no governo de Dilma Rousseff. Sim, claro que sim, eu respondia. Mas não exatamente pelas razões que eles supunham. Penso que preciso explicar como esta reportagem aconteceu – a história dentro da história.
Na virada de 2001 para 2002, eu fui incumbida de encontrar um brasileiro da Grande São Paulo que desse carne às estatísticas de um momento difícil para o Brasil. Buscava um chefe de família que, como tantos naquele contexto, tivesse perdido o emprego há tempo suficiente para compreender que seria muito difícil conseguir outro. Eu buscava um homem no instante da queda para contar um momento histórico específico do Brasil.

Tentei vários caminhos, como as listas dos cadastros de benefícios da prefeitura e do Estado de São Paulo. Consumi alguns dias perambulando pelas periferias sem encontrar o que procurava. Desempregados e pobres havia muitos. Mas eu buscava um momento muito específico, entre o final do seguro-desemprego e o início da percepção de que o controle da vida escapava pelo vão dos dedos. E buscava um homem capaz de dimensionar sua perda. Depois de alguns dias atravessando a Grande São Paulo de várias maneiras, num carro sem ar-condicionado e no auge do verão paulistano, o motorista perguntou: “Afinal, o que exatamente você procura?”. Eu esmiucei em detalhes. “Ah!”, disse ele. “Você procura o meu vizinho!”

E ele tinha toda razão. Como em geral têm os bons motoristas de imprensa – hoje infelizmente quase extintos, com a terceirização do serviço. No momento em que fui apresentada a Hustene Alves Pereira, no Jardim Veloso, na periferia de Osasco, eu soube de imediato que era ele. Seus olhos queimavam no quarto mês de desemprego. Ele era um homem vivo – com medo de ser esmagado pelo Brasil e pelo discurso da exclusão.
Nos reconhecemos ali. Tenho convicção de que toda reportagem é um encontro entre personagem e jornalista. Só acontece quando este encontro é de verdade. Para isso, é preciso existir um movimento de entrega de ambas as partes: eu me abro para ouvir a sua história sem preconceitos e você se abre para contá-la com tudo o que ela é, o feio e o bonito. Com Hustene e sua família foi assim.

Passamos dias juntos, Hustene e eu, vencendo quilômetros em busca de emprego, a pé porque ele não tinha dinheiro para o ônibus. Nestas longas caminhadas Hustene me contava da angústia do seu presente, dos sonhos de seu passado e do futuro que não mais enxergava. Testemunhei do meu canto a delicadeza com que sua mulher, Estela Costa, tecia com o que lhe restava de linha não só tapetes para vender, mas uma rede para que sua família não se afogasse. Seus quatro filhos, alguns com mais intimidade do que outros, me falavam de seus anseios. E às vezes eu apenas ficava ali, observando sem nada dizer.
Repartiam comigo também o seu feijão com arroz. Algumas pessoas, ao saber que eu comia em sua mesa, ficavam indignadas porque o que eles tinham já era tão escasso. Este é um tipo de conclusão de quem pouco entende de gente e pouco pisou em favelas e periferias. Nada seria mais ofensivo para Hustene e Estela do que minha recusa em compartilhar o que tinham – mesmo que fosse quase nada. E eu nem cogitei tal desfeita.

A reportagem, com o título de “O Homem-Estatística”, foi publicada em fevereiro de 2002, no último ano do governo FHC e também no ano em que Lula, depois de três tentativas, finalmente venceria a quarta eleição. É neste momento que começa o capítulo mais surpreendente da história dentro da história.

Há uma pergunta recorrente que estudantes de jornalismo costumam fazer quando dou palestras em universidades: “Você se envolve com as fontes?”. Minha resposta é sempre a mesma: “É claro que sim!”. Se não me envolvesse, para que viveria? Deixando sempre bem claro que este envolvimento inclui um profundo respeito pela história que conto e que pertence ao outro – e isto significa escutar sem julgar e interferir o mínimo possível.

Hustene e eu criamos um vínculo. E um que hoje, quando olho para trás, penso que era muito mais claro para ele do que para mim. Eu era a contadora de sua história. E foi assim que Hustene continuou narrando fatos e sentimentos mesmo depois da reportagem publicada. Ele, por sua vez, passou a acompanhar a minha vida de repórter. Assim que a situação financeira melhorou um pouco, em meados da primeira década deste século XXI, Hustene assinou a ÉPOCA para poder ler e recortar minhas reportagens. Meus livros também estão na prateleira do seu novo escritório, figuras humildes entre vistosos best-sellers.

Seguidamente sou mencionada em seus diários – ele não esquece jamais nem o dia do jornalista nem o dia do escritor. E há uma foto minha perto de Nossa Senhora de Fátima para me proteger do risco de algumas reportagens. Especialmente se viajo a trabalho de avião, uma criatura alada da qual Hustene tem pavor. Cada vez que descobre que vou embarcar em algum, ele reza.

Segui acompanhando os principais acontecimentos da vida da família, às vezes mais de perto, em outras mais de longe. As contas de luz e água cortadas, os empregos e desempregos dos filhos, os Natais tristes, a volta da carteira assinada depois de Hustene amargar três anos e sete meses sem trabalho, a felicidade de ser o “Porteiro Pereira”, a doença de Hustene, o péssimo atendimento do SUS, a decepção com a educação pública e, finalmente, a vida melhorando e as portas do consumo se abrindo. Perpassando tudo isso, a profunda identificação com Lula, primeiro como decepção, depois com orgulho. E uma visão de mundo muito particular.

Hustene e sua família seguiram fazendo a narrativa da sua vida. E eu segui escutando com atenção e cuidado. Primeiro por telefone, depois por email. Hustene escreve muito – e escreve com verdade. Sobre fatos, sobre sentimentos, sobre sua percepção do país. Tenho uma coleção de emails de uma riqueza extraordinária sobre sua visão do governo Lula e do Brasil – e de sua família no governo Lula e no Brasil. Hustene organiza a sua existência tantas vezes por um fio escrevendo diários a Nossa Senhora e, antes, também escrevia a Che Guevara. A mim concede o privilégio de escrever sobre a trajetória de sua família e sobre sua própria escritura. Sou o olhar externo – de dentro.

Sempre tive clareza do meu lugar na casa da família Costa Pereira. E tento estar à altura do meu posto de “escutadeira” de uma história de vida. Mas este também é um lugar amoroso. E foi muito difícil vê-los passar Natais de penúria, como aquele em que Estela serviu apenas farinha com cebola, sem interferir. Foi Hustene, mais do que eu, que teve a sabedoria de riscar os limites e assim manter o mais importante a salvo. Como quando fiquei – e fico – muito angustiada com a deterioração de sua visão por uma doença degenerativa causada pela diabetes. Ele não recebeu até hoje nenhum tratamento. A (des)assistência do SUS é desesperadora. Me ofereci para pagar um tratamento privado. Não consigo imaginá-lo cego – não por falta de assistência. Ele recusou na hora, enfaticamente. Entre nós, não pode existir dinheiro nem favores.

O que eu mais gosto na vida é escutar, ler e escrever. Acompanhei a história da família Costa Pereira sem nenhum propósito de publicá-la. Mas sempre guardei tudo o que Hustene me enviou por escrito por aquele amor que a gente tem pelo testemunho histórico. E, no meu caso, porque tenho especial apreço pela grandeza das vidas supostamente – e só supostamente – comuns. Fiz apenas mais uma pequena reportagem sobre a interpretação de Hustene do primeiro ano do governo Lula, já que ele gravara todas as promessas de campanha e escrevera uma carta “ao amigo presidente”, e contei seu sofrimento em minha coluna no site da revista quando os peritos do INSS fizeram greve e ele ficou sem benefício, como milhares de brasileiros.

Só em 2010 percebi que tinha algo precioso e inédito nas mãos: a trajetória de uma família no governo Lula, a ascensão da pobreza à “nova classe média” contada pelo particular, um retrato íntimo e privado dos personagens mais importantes deste momento histórico. Pedi então licença para contar sua história e fiz várias entrevistas com todos os membros da família. Posso afirmar que só compreendi grande parte do significado, das nuances e das contradições do governo Lula quando pude enxergá-lo pelos olhos da família Costa Pereira. Espero que tenha conseguido transmitir este olhar aos leitores na reportagem publicada nesta primeira edição de 2011, logo após a posse de Dilma Rousseff – e da despedida (oficial) de Lula.

Como foi possível testemunhar a história da família Costa Pereira nos últimos nove anos? Porque Hustene Alves Pereira é um personagem que escolheu seu autor. E, para minha sorte, este autor sou eu.

(Publicado na Revista Época em 29/12/2010)

O pequeno esquimó

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Dizem que a gente não lembra os primeiros anos de vida. Eu lembro. Acho que nasci com a porta da memória aberta. Por isso lembrava aos três anos de cada briga do meu pai com a minha mãe. Não sei se eles se amavam. Eu não entendia de amor. Quando as discussões começavam eu tentava escapar colando as costas na parede, mas em algum momento eles se lembravam de mim. “Você nem ao menos cuida do seu filho”, dizia meu pai. “E você nem lembra que tem um filho”, respondia a minha mãe. E imediatamente esqueciam que eu estava ali.

Não tive tempo de saber se me amavam. Mas naquele Natal eu achei que sim. Embaixo do pinheiro empoeirado de papel brilhante havia um pacote que eu desembrulhei com um pouco de medo. Foi a primeira vez que o vi. O pequeno esquimó. Foi um tal de Noel que me deu. Pelo que eu entendi, um outro Papai. Eu gostei mais deste pai e senti uma pontada de culpa porque nessa hora o meu me olhava ansioso pela minha reação. Não entendo de amor, mas acho que amei aquele pequeno esquimó. Naquele verão que fazia minha mãe reclamar do suor embaixo do braço de seus vestidos, ele era um frio quente.

Quando as brigas recomeçavam eu agora encostava minhas costas na dele e nós dois deixávamos de ouvir. E à noite, na cama, eu o apertava bem forte e ele me dava a sua mão. Estava sempre com muita roupa, mas dizia que não sofria com o calor. Mas eu sentia que não era verdade porque ele tinha uma cara triste. Achei que ele não ouvia os gritos como eu, mas comecei a perceber que talvez ele continuasse ouvindo mas não me contava porque eram palavras ruins.

Não era uma casa bonita a minha. Era escura. E em alguns dias as paredes escorriam como se a casa tivesse inchado e começasse a explodir de dentro para fora como vi acontecer com uma ameixa que minha mãe esqueceu no fundo de um prato. Eu perguntava ao pequeno esquimó se ele estava chateado comigo por morar naquela casa e ele negava. Comecei a achar que ele mentia para mim, assim como mentia sobre os gritos. Tive medo de que ele me abandonasse e voltasse para o seu mundo de silêncio branco.

Tomei uma decisão. Não era justo que ele se sacrificasse por mim. Já era o suficiente o sacrifício da minha mãe. Às vezes ela chorava dizendo que a vida dela tinha acabado. Falava que por minha causa tinha de viver naquele lugar nojento. Parece que eu fiz algo ruim ao nascer e agora ela tinha uma barriga deformada. Eu não queria o pequeno esquimó deformado. De manhã bem cedo, eu disse a ele. Vamos embora para o seu mundo onde só se ouve o gemido do vento. Eu falava assim já naquele tempo. Depois descobri que fabulava.

O pequeno esquimó arregalou os olhinhos pretos. Mas você não vai ficar com saudades do seu pai e da sua mãe? Eu parei um pouco para pensar. Não, acho que não. Eles ficarão melhor sem mim. Poderiam fazer aquelas coisas todas que queriam e que eu não deixava, embora eu nunca tivesse dito nada.

Eu nem precisava arrumar uma mala. Não havia nada que eu quisesse levar. Deixei uma pequena flor de plástico que tinha vindo num doce em cima da cômoda da minha mãe. E uma figurinha do Shrek para o meu pai. Ele achava o Shrek engraçado. Você tem certeza?, me perguntou o pequeno esquimó. Eu tinha. Então nos demos as mãos e apertamos bem forte.

Eu não imaginava que o mundo do pequeno esquimó fosse o congelador da geladeira da minha casa. Sempre tinha achado que ficava muito mais longe. Levei um susto na primeira vez que minha mãe abriu a porta para tirar de lá uma lasanha congelada. Mas ela não nos viu entre o pacote de carne moída e uma caixa de hambúrguer de frango. Brincamos tanto naquele dia ou pelo menos eu acho que era dia porque ali dentro não sabíamos se tinha sol ou lua. Era sempre igual e eu gostava de saber que nada mudaria.

Acho que dormi. Acordei assustado com a mãozona do meu pai vindo na minha direção. O pequeno esquimó me agarrou com força, mas meu pai era muito maior. Ele não me reconheceu quando me dissolvi no seu copo de uísque.

A literatura é capaz de transformar o seu mundo?

Descubra em 2011

Não sou muito dada a inícios convencionais de ano. Recomeço tantas vezes num ano só e sempre em datas imprevistas que não vejo muito sentido em festejar um dia específico do calendário. E o fato de não encontrar sentido na comemoração da data não me torna nem melhor nem pior do que ninguém. Mas como de algum modo a maioria das pessoas para – ou é parada – nessa época para pensar na vida e promover um recomeço simbólico, quero dar uma sugestão. Além das metas de sempre – parar de fumar, perder uns quilos, se matricular na academia de ginástica etc etc –, minha proposta é que cada um de nós se arrisque a descobrir a literatura. Tenha a coragem de chutar para o ano que passou a surrada desculpa do “não tenho tempo para ler” e se carregar para o futuro com espaço para o novo que vem das letras. Por quê? Por nada de útil. Por tudo o que importa.

No Paiol Literário, um evento que leva a Curitiba escritores para uma entrevista pública, há uma pergunta clássica e recorrente: “A literatura é capaz de transformar o mundo?” Ela vem entrelaçada a uma outra: “Qual é a importância da literatura na vida cotidiana de cada um?”. Quem criou essas duas perguntas no início do projeto, em 2006, foi José Castello – jornalista, crítico literário, escritor e uma das pessoas mais gentis que andam por esse mundo. Depois, Luís Henrique Pellanda, também jornalista e escritor, seguiu com elas ao substituí-lo no posto de entrevistador.

Perguntei a Pellanda se ele poderia emprestar algumas respostas colecionadas ao longo dos anos para publicar aqui nesta coluna. E ele, que também é um homem muito gentil, me enviou sete. Eu escolhi as três que mais me cutucaram com um dedo delicado, mas incisivo, para compartilhar com vocês nessa conversa de virada de ano. Acho que são respostas que dão coceira na alma. E coceiras da alma, na minha opinião, só se resolvem com arte. Com literatura.

Sérgio Sant’Anna, autor, entre outros, de Um Crime Delicado e O Voo da Madrugada, ambos publicados pela Companhia das Letras, respondeu que a literatura dá ao leitor uma possibilidade imperdível: “Ler não é só adquirir conhecimento ou experiência de vida. É também a possibilidade de ter outra vida, de viver o imaginário. E não é só o escritor que tem isso. O leitor também tem. Ele é um cara que vive dupla ou triplamente”.

E, em seguida: “A literatura é um ato de prazer, que não deve ter segundas intenções. Ela dá aos leitores um espaço muito maior. Se você está lendo um livro, se vê obrigado a criar junto com ele — algo que, na televisão, não existe. Na TV, você pega as coisas mais mastigadas, uma torrente de anúncios e de segundos interesses. É muito ruído.”

Silviano Santiago, autor, entre outros, de O Falso Mentiroso e Anônimos, ambos editados pela Rocco, diz que todo leitor é também escritor. Ele afirma: “É inegável que a literatura tem uma função, assim como todas as artes têm. O primeiro cuidado a ser tomado, se a gente fala da função da literatura, é não fazer uma divisão entre produtor e consumidor. Ou seja, não fazer distinção entre escritor e leitor. Acho que a literatura tem a mesma função para ambos. Não existe um escritor que não seja leitor. Todo leitor é, por sua vez, um produtor de texto. Nós, escritores, escrevemos em uma folha de papel ou na máquina ou no computador, enquanto o leitor escreve naquilo a que os jesuítas chamavam de ‘folha de papel em branco da mente’”.

Santiago diz também que, ao ler, o leitor se apropria daquele mundo e o torna seu. Não apenas seu por estar dentro dele, mas seu como ele mesmo. “O processo de leitura é um exercício de alteridade. É você entrar em um determinado mundo que não é o seu, no qual se entra muitas vezes por um processo de surpresa. Você não esperava aquilo de maneira alguma e, de repente, entra e se encanta com aquele mundo. Quanto mais se entra naquele mundo, mais se apropria dele, mais torna aquele mundo você mesmo. O leitor sensível, inteligente, sempre conseguirá ver as relações estreitas entre aquilo que está lendo e a possibilidade de transformação, seja da realidade imediata, a realidade do mundo, seja ainda e, sobretudo, de si próprio.”

A literatura nos dá muito. Mas não promete nada. É o que disse Luís Henrique Pellanda, autor de O Macaco Ornamental (Bertrand Brasil), ao trocar de lado e responder a uma pequena entrevista para esta coluna. “A literatura não promete felicidade alguma — pelo menos não do tipo clássico, ou seja, o tipo imaginário — e não nos oferece garantias de finais felizes, nada disso. Ela nos amplia a vista de casa, nos mostra o outro — igual e diferente de nós — e exige que nos comparemos a ele, que nos analisemos e, de alguma forma, promovamos reformas internas”.

Ao responder à sua própria pergunta sobre o poder de transformação da literatura numa crônica recente, Pellanda disse lindamente: “Literatura, para mim, pode ser simplesmente a maneira como reordenamos, há milênios, as mesmas histórias, fabulação sobre fabulação, mentira sobre mentira, verdade sobre verdade, e o uso pessoal — íntimo, social, político, intelectual, espiritual — que fazemos delas. Se a literatura é capaz de mudar o mundo? Eu diria que o mundo em que vivemos, bom ou ruim, já é o mundo da literatura. Só ela dá conta das nossas histórias de amor”.

Beatriz Bracher, autora, entre outros, de Antonio e Azul E Dura, ambos publicados pela Editora 34, respondeu à mesma pergunta em duas etapas. Na primeira, no Paiol Literário, ela disse: “A arte pode transformar o mundo ou não, como muitas outras coisas, como as ideias e a política. Mas não acho que ela tenha uma proeminência nesse aspecto. Ela pode transformar o mundo simplesmente por fazer parte dele. Ela está aí. Agora, essa crença de que a arte transformaria radicalmente o mundo, que criaria um novo homem, que nos traria uma espécie de iluminação — não acredito nisso”.

“Por que é importante ler?” – ela pergunta a si mesma. “Não sei. Acho que ler um livro é importante para você não estar aqui nem agora. Para você não ser você por um tempo. Para você ser os outros e habitar outros lugares durante o tempo em que estiver lendo. E, quando você voltar ao aqui e ao agora, a você mesmo, voltará com os olhos muito mais aguçados. Eu saio de um livro sempre muito comovida, ou tocada, ou agressiva. Sempre me transformo de alguma maneira. Fala-se muito que temos uma grande afeição ao caos, que o mundo é informe e que a arte daria forma às coisas. Na verdade, temos pânico do caos. Nós não conseguiríamos viver sem alguma ordem na nossa história. E o que a literatura faz é desordenar um pouco isso, mostrar outras maneiras de organizar nossa vida”.

Beatriz foi para casa e continuou provocada pela pergunta. Enviou então um email a Pellanda. E um bem bonito: “Por que é importante ler? No nono e último círculo do Inferno, de A Divina Comédia, estão os traidores de seus hóspedes. Dante conta que eles estão perpetuamente imersos no gelo apenas com a cabeça de fora e os rostos voltados para cima, impedidos de continuarem a chorar, pois as lágrimas do ‘primeiro pranto, qual viseira de cristal’, congelam-se depois de inundar ‘do olho a cava inteira’. Fiquei pensando se a literatura também não é a possibilidade de abaixar o rosto e chorar de olhos fechados. Desprender-se de uma só dor e poder chorar, inclusive, a dor de muitos outros”.

Como se pode abrir mão de algo assim? Viver sem essa possibilidade? É Pellanda quem nos sacode: “Não ler, em muitos casos, é sintoma de preguiça e falta de condicionamento. Um mal prosaico. Muita gente não lê por levar uma espécie de vida mental sedentária. Aceitam que sua fome tão humana de fabulação seja alimentada pela TV ou pelos blockbusters e, com isso, apenas engordam sua passividade. Digo, de cara, que quem não lê perde a chance de se mostrar ativo em relação ao seu mundo e ao seu tempo. Perde vitalidade. Perde uma ótima oportunidade de se treinar para uma vida mais rica e, quem sabe, feliz”.

No Brasil, um país onde se lê tão pouco e onde metade dos adolescentes tem dificuldades para interpretar um texto, acredito que é preciso profanar a literatura. Aprendi isso com o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, o maior sarau de poesias do país. Os livros precisam deixar de ser sagrados e virar matérias das ruas, tocados por muitas mãos, marcados por lágrimas, suor e gordura. Antes de iniciar a leitura, é preciso apalpar, cheirar, bolinar o objeto que contém a história – ainda que isso seja feito virtualmente. É importante perder o medo dos livros, um excessivo respeito. Incinerar para todo o sempre a ideia de que a literatura é território restrito dos que supostamente sabem mais e torná-la matéria permanente das nossas vidas. Espécie de feijão e arroz da alma.

Não importa o que você lê nesse primeiro movimento, importa que você comece a ler. Leia por prazer. Leia por temor. Leia por coragem e por inocência, fingindo desconhecer que não será o mesmo depois do ponto final. Ninguém precisa começar lendo Proust – nem mesmo precisa ler Proust alguma vez na vida, embora eu ache que vale a pena. Leia aquilo que lhe dá prazer – ainda que seja um prazer vindo do incômodo – e crie uma história só sua com os livros, movida pela sua própria busca. Vá à livraria ou à biblioteca como se fosse a uma festa de gente desconhecida – e até esquisita – e veja com quem tem afinidade, quem lhe sorri, mostra a língua ou um naco da coxa.

O melhor da literatura é que ela não nos dá nenhuma resposta. Nos dá algo muito melhor: nos dá novas perguntas. Perguntei a Pellanda de onde veio a indagação que motivou este texto. Ele respondeu: “De onde vem uma pergunta? De nossa compulsão por saber das coisas, uma compulsão imortal, que nunca será saciada, pois jamais saberemos de nada. E não é ela, essa incerteza sedutora, que nos leva a escrever e a ler? Já se tornou um clichê dizer que a boa literatura não nos responde coisa alguma, e que somente nos faz mais perguntas, apenas perguntas, e irrespondíveis. É um lugar-comum, ok, mas está correto. A última frase de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, é uma pergunta e a usei como epígrafe de meu primeiro livro de ficção. Depois de mais de oitocentas páginas, não se conclui nada, e o narrador de Mann se pergunta: ‘Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?’. Será? Não sabemos. Não há resposta possível, nunca houve. E a literatura é isso, fazer as perguntas difíceis, às vezes as constrangedoras. Como aquelas que as crianças nos fazem”.

Para mim não há vida sem literatura. E mais tarde, num outro dia, darei minha própria resposta à pergunta maior do Paiol Literário. Por enquanto, desejo a você que, em 2011, se arrisque mais. Leia. Se já tem intimidade com os livros, aprofunde-a. Tente um território novo. Fale sobre livros em vez de falar mal do chefe, do vizinho, do colega. Faça um favor a si mesmo: prometa que, no novo ano, jamais dirá que não tem tempo para ler.

Talvez a gente nunca saiba se a literatura é capaz de transformar o vasto mundo de fora. Mas podemos nos arriscar a descobrir – e esta é uma tarefa pessoal e intransferível – se a literatura é capaz de transformar o nosso mundo. O meu, o seu. Acredito profundamente que sim. Se tivermos a coragem de tentar, o mundo de dentro vai se alargar. E andaremos por aí carregando nosso próprio horizonte.

Termino com mais algumas ótimas frases de Luís Henrique Pellanda. E as pego emprestadas como meus votos de Ano-Novo:

– Quer dizer, você sabe ler e não lê? Onde é que você está com a cabeça? Achou seu espírito no lixo? Leia. Aproveite.

(Publicado na Revista Época em 27/12/2010)

Retardados

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Em 14 horas de voo não ouvi a voz do marido.

Já ela, falou a noite inteira no banco atrás de mim. Chamava a todos de “retardado”. Era a palavra preferida dela. Retardado, retardado, retardado. A companhia aérea era retardada, a aeromoça era retardada, o piloto era retardado, nós todos éramos retardados.

— Eu não acredito que aquela mulher retardada vai ficar falando alto a noite inteira com aqueles dois retardados do lado dela. Como é que eu vou dormir? Eu nunca mais viajo nesta companhia de retardados. Nunca mais, ouviu bem?

— (….), respondeu o marido?

— Olha que mala, a retardada nunca mais vai parar de falar.

— (…), respondeu o marido?

— Aquela retardada atrás de mim roubou o meu travesseiro. Se eu não estivesse com as pernas presas ia me botar de joelhos no banco e ia armar o maior barraco.

(….), respondeu o marido?

— É claro que foi a retardada aqui atrás de mim. Ou desde quando travesseiro tem pernas?

(….), respondeu o marido?

— Olha aquele retardado lá reclamando que o sanduíche dele veio com presunto. Quer ser bem tratado ele que pague primeira classe. Classe econômica é para pobre. Poooobreee.

— (….), respondeu o marido?

— Pobre, sim. E pobre é tudo retardado. Agora acham que são classe C, os retardados!

— (….), respondeu o marido?

— É. Ainda bem que eu moro fora. Se tivesse continuado no Brasil, ia ficar assim, retardada.

— (…), respondeu o marido?

— Mas tenho de vir no Natal, ai que saco. Aquela família de retardados. Só venho porque minha mãe está velhinha. Depois que ela morrer, nunca mais boto o pé neste país retardado.

— (…), respondeu o marido?

De repente, a voz dela se suavizou.

— Olha a filhinha da mamãe, você não acha que ela está abatida?

— (…..), respondeu o marido?

— Será que ela está respirando?

— (…..), respondeu o marido?

— Fala com a mamãe, meu amor. Será que demos uma dose muito alta de sonífero?

Meu Deus, eles doparam o bebê. E agora, o que eu faço?

— Me ajuda aqui a arrumar cabecinha dela. Vem, segura por baixo.

— (…..), respondeu o marido?

Mataram o bebê?

— Olha o peito dela, ressonando. Quem é o bebê da mamãe?

Ufa. Acho que não morreu. Não ainda.

— Siiiissssi, dá um sorrisinho para a mamãe. Sissiiiiiiinha.

— (…..), respondeu o marido?

— A retardada aqui de trás vai querer roubar o meu cobertor também. Estou te dizendo, vou botar a Sissinha no teu colo e vou quebrar o pau. Eu sou fina, mas também sei rodar a baiana. No Brasil a gente tem de ser meio casca grossa, senão os retardados tomam conta da gente.

— (….), respondeu o marido?

Dormi.

No café da manhã, ela deu queijo para o bebê.

— Filhinha, come aqui o queijo do sanduíche da mamãe.

— (….), respondeu o marido?

— Olha que bonitinha. Comeu todo o queijo.

— (…), respondeu o marido?

— Pega o guardanapo que ela sujou o focinho.

Meu Deus, o bebê tem focinho!

Ah! Não é um bebê. Meu Deus! Tem um cachorro atrás de mim!

— Não tem problema eu dar meu sanduíche a ela. Este avião é um chiqueiro! Você não entendeu ainda que são todos retardados?

— (….), respondeu o marido?

Aterrissamos, todos os retardados, ela, o marido e a Sissi. Nem bateu na pista.

— Até que o piloto não é tão retardado.

— (…), respondeu o marido?

A família pulou rápido para o corredor. Finalmente eu os via. Ela, (….) e uma cadelinha branca, peluda, com um laço cor-de-rosa no cabelo. Ops, pelo. Praticamente a Rommy Schneider. Mas dava para perceber que Sissinha estava vivendo uma viagem digna da Janis, Janis Joplin. O que tinham dado para ela que não deram para nós? As portas não tinham ainda sido abertas e ela já gritava enquanto ninava a filha no colo.

— Andem, seus retardados, que eu não aguento mais ficar neste avião.

— (…), respondeu o marido?

E para a senhora que se despedia dos companheiros de viagem.

— Se despede lá fora que eu quero sair deste avião. Passaram uma noite juntos e já viraram melhores amigos? Brasileiro é tudo retardado!

— (….), respondeu o marido?

Sissi totalmente indiferente. Devia estar vendo ossos azuis e voadores. Hum, acho que estes cachorros de avião não gostam de ossos. Mentalizei. Colei meus olhos nos da Sissi. Você pode. Você pode. Você pode. Yes, you can, baby.

Sissi podia. Cravou os dentes.

— Fiiiiilha, por que você fez isso com a mamãe? Mas Sissi já corria pelo meio das nossas pernas com um dedo de unha vermelha na boca. E nós, os retardados, aplaudíamos.

É tudo verdade. Menos este final feliz. Quando olhei bem dentro dos olhos da Sissi, percebi que ela também me achava uma retardada.

Mau humor natalino

Cadê??? Alguém roubou meu espírito de Natal!

Eu não tenho espírito natalino. Hoje mesmo acordei, enfiei a cara dentro de mim, botei até os óculos para enxergar melhor, e não, decididamente não. Não encontrei nem mesmo uma meia furada que o Papai Noel pudesse ter esquecido em algum Natal anterior. Vasculhei cantos remotos, zonas obscuras, e não topei nem com uma guirlandinha. Me sinto uma pária por causa disso. Eu deveria estar feliz, saltitante até, abraçando pessoas na rua, mas não consigo fingir. Só a palavra Natal já me dá vontade de grunhir. Grrrrrhuuuuuunft. Lembram do Clint Eastwood em “Gran Torino”? Sou eu no Natal.

Vocês pensam que minha família se comove com a minha situação? Nada. Me ignoram solenemente. Vão ler esta coluna e revirar os olhos antes de pregar uma bola de Natal na minha testa. Há anos tento convencê-los a marcar o Natal para janeiro, quando os aeroviários não ameaçam greve, as lojas já estão liquidando pela metade do preço e não há vizinhos rompendo com todos os paradigmas musicais ao cantar Noite Feliz em ritmo de pagode. Ainda que exista gente na minha família que realmente celebra o nascimento de Cristo, não há nenhuma garantia de que Jesus tenha nascido nesta data. E, convenção por convenção, podemos criar a nossa.

Neste ano, foi por pouco. Estavam motivados pela coluna que escrevi aqui no Natal passado. E talvez, é uma possibilidade, o fato de eu ter chamado a polícia na semana do Ano-Novo possa ter influenciado. Quase os convenci. Mas depois, algo aconteceu, algum complô secreto, e retrocederam. Liguei para saber se estava tudo bem lá para os lados de Ijuí e minha mãe me deu a notícia à queima-roupa. “Mudamos de ideia! Decidimos passar o Natal na tua casa em São Paulo!”. Demorei uns cinco minutos para recuperar a capacidade da fala, minha mãe preocupada do outro lado que eu pudesse estar sofrendo um ataque epiléptico.

Deixa eu explicar melhor. Eu assumo que não tenho espírito natalino, mas filha, mãe, irmã desnaturada não sou. Vivo tentando sequestrar meus pais para uma temporada na minha casa. E sempre esbarro na resistência do meu pai, cuja viagem mais longa que admite empreender é até a cancha de bocha nos finais de semana. Gasto horas tentando convencer minha filha que o trânsito de Porto Alegre se tornou insuportável e o melhor a fazer é se mudar já para São Paulo. Ninguém sequer me escuta.

Meu problema é com o Natal. Desde o telefonema da minha mãe, toda vez que ouço a palavra Natal eu bebo. Virou uma piada entre os amigos. Eles falam, só para me sacanear: Natal! E eu saio correndo atrás de uma dose de cachaça. Depois de um tempo, meu marido ficou com medo que eu me tornasse alcoólatra e inverteu o processo. Eu levanto para ir ao banheiro do restaurante e ele avisa que não devem tocar no assunto para eu não me exceder na bebida. Volto e está todo mundo com cara de culpado. Sim, sim

Desenvolvi uma fobia natalina. E a cada ano ela piora, até porque o Natal começa cada vez mais cedo. Mal acaba o Dia das Crianças e já começa o Natal. Em outubro! Tenho enjôo quando vejo decoração natalina e calafrios quando ouço músicas natalinas. Eu, que sou uma militante do desarmamento e nunca tive nenhuma arma mais letal que uma faca de cortar pão, quando vejo um Papai Noel tenho vontade de metralhá-lo. E não, não estou criticando o comércio. Eu acredito no livre arbítrio. Se enquadra quem quer. Se eu fosse comerciante e existisse um monte de gente com dinheiro no bolso disposta a pagar o dobro pelo que vendo, eu encontraria um sentido para o Natal. Possivelmente estaria sorrindo.

A esta altura já devo ter chateado alguns leitores. Sim, porque quando digo que não gosto de Natal, que odeio Natal, que tenho horror ao Natal, a primeira pergunta é se fico deprimida. Os deprimidos de fim de ano recebem toda a compreensão. E até um olhar compungido. Mas não, me recuso a mentir. Eu não fico deprimida no Natal. Nem dou a mínima para o Ano-Novo. Eu apenas não consigo encontrar nenhum sentido. Nem um bem pequenininho.

Para não cometer o pecado do etnocentrismo, empenhei parte deste mês de dezembro na tentativa de compreender o espírito natalino dos outros. Descobri que, em geral, o espírito natalino é o que há de pior! Pode ser que na sua cidade seja diferente, mas em São Paulo é o mês mais antissocial do ano. A maior parte das pessoas está à beira de um ataque de nervos. E algumas têm um ataque de nervos. Você esbarra sem querer em alguém, pede desculpas e a criatura xinga gerações da sua família que ainda nem nasceram.

Os ônibus estão lotados em horários novos, é preciso se humilhar para conseguir um táxi, o trânsito para a qualquer hora do dia e há gente quase se estapeando nos shoppings. Ontem mesmo um taxista me xingou de “maldosa” porque a corrida custou R$ 30 reais e eu dei duas notas de R$ 20. “Você acha que eu tenho obrigação de ter troco?”, reclamou bem desaforado. Sim, eu achava que ele tinha de ter R$ 10 de troco. E quase rolamos na sarjeta. Depois, perdoei o motorista maluco. Coitado, ele não sabe o que faz nem o que diz. É só mais uma vítima do espírito natalino.

A verdade é que a maioria de nós está exausto, gostaria de ir para casa botar os pés para cima e assistir a algo bem idiota na TV. Mas não: está lá, comprando. Gastando todo o décimo-terceiro, comprometendo os próximos meses de salário e pegando fila para pagar. Se duvida, sente-se num banco de shopping se encontrar lugar em algum e apenas assista: casais falam coisas cruéis um para o outro, crianças choram e batem pé (ai que vontade de torcer o pezinho!), é um desfile de gente com olheiras no umbigo e dentes trincando, loucas para arrumar uma confusão e desabafar seu fel em algum incauto.

Por que, então? Não sei. Perguntei a vários desconhecidos com que topei nas últimas semanas em situações diferentes. Boa parte deles disse a mesma frase, com uma ou outra variação: “Se eu pudesse dormiria no final de novembro e acordaria em janeiro, quando este pesadelo tivesse passado”. Outro taxista, ao adivinhar em mim uma alma irmã, chorou ao volante enquanto subia comigo a Teodoro Sampaio em primeira. Aos soluços, disse que além de passar um mês dirigindo no pior trânsito do mundo, ouvindo desaforo de clientes estressados, chegaria à ceia do Natal e encontraria uma sogra que o odiava e um cunhado folgado. “E meus filhos vão reclamar que não ganharam o tal do Playstation 3!” Dei batidinhas nas suas costas. “Tap, tap. Pronto, pronto. Coragem, irmão! Tamo junto misturado!”

Se você me lê há mais de um ano, pode estar se perguntando: “Mas de novo ela vai falar mal do Natal?” Sim, no ano passado eu já disse que tinha medo de chester. Depois, destilei ódio contra meus vizinhos de praia nas festas de fim de ano. Mas é o seguinte. Eu poderia estar roubando Papais Noéis de loja, poderia estar matando renas na Paulista, poderia estar arrancando línguas de canarinhos de corais natalinos ou empalando duendes. Mas não. Estou aqui, civilizadamente, apresentando meu ponto de vista. Para mim, falar mal do Natal é um ato político.

Até porque sou uma vergonha. Peco pela incoerência. Falho miseravelmente em minha própria casa. Assim que colocar o ponto final aqui, vou correr para disputar um chester no supermercado. Sim, sim, minha família recusou minha proposta de fazer uma ceia natalina de feijoada e exigiu tradição. Desde quando chester, esta coisa inventada em laboratório, se tornou uma tradição eu não sei. Mas joguei a toalha. Nem mesma sou eu. Quem escreve aqui é um clone. Eu mesma estou de pés para cima, balançando na rede de uma ilha deserta. Sim, ho ho ho. Feliz grrrrrrunfthzt@%$ para você também!

(Publicado na Revista Época em 20/12/2010)

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