Testamento vital

CFM prepara documento para garantir dignidade na morte

Nos dias 26 e 27 de agosto, o Conselho Federal de Medicina (CFM) realiza em São Paulo um evento que poderá ser um marco na humanização não só da saúde, mas da vida: médicos e juristas vão discutir a criação do testamento vital. Previsto em vários países do mundo, o documento expressa o desejo do paciente diante de uma doença sem possibilidade de cura. Enquanto está consciente, a pessoa determina, por escrito e com testemunhas, quais são os limites do seu tratamento. Tem, assim, a possibilidade de encerrar sua vida com autonomia, respeito e dignidade. Como um ser humano ativo. E não como um objeto passivo amarrado a tubos numa unidade de terapia intensiva – sozinho, sem voz e sem afeto.

Explico melhor dando meu próprio exemplo. Tenho um pacto com meu irmão do meio. Quem sobreviver terá a responsabilidade de garantir o cumprimento da vontade do outro no encerramento de sua vida. Para nós, é muito importante morrer com dignidade, porque entendemos que morrer é o último ato da vida. É, portanto, viver. E queremos viver até o fim com respeito e coerência, na integridade do que somos. Se for eu que tiver uma doença sem chances de cura, caberá ao meu irmão garantir que eu não sofra intervenções cirúrgicas ou invasivas. Em resumo: não quero ser submetida a exames nem procedimentos desnecessários. Aquilo que hoje é chamado de “tratamento desproporcional” ou “obstinação terapêutica”.

Da equipe de saúde, espero que cuide para que eu me mantenha consciente, não sinta dor física e tenha o maior conforto possível até que minha hora chegue – nem prolongada nem abreviada. Pretendo aproveitar o tempo que me resta para revisitar minhas lembranças, conversar com aqueles que amo, acertar o que tiver de acertar. Quero morrer de preferência na minha casa, perto das pessoas importantes. Se possível, contando histórias da minha vida. Se por algum motivo estiver inconsciente, que alguém conte histórias para mim, coloque as músicas que eu gosto, leia os trechos de meus livros preferidos, ria e chore lembrando da melhor vida que pude ter. Se tiver que ser num hospital, só aceito encerrar minha vida numa enfermaria de cuidados paliativos.

Esta é a minha vontade. E tenho convicção de que só eu posso decidir sobre como quero me despedir da vida no caso de uma doença sem cura. Apesar da clareza da minha decisão, mesmo que eu escreva um documento, assine, arrole testemunhas e registre em cartório, não há hoje nenhuma garantia de que eu seja respeitada no meu desejo de morrer com dignidade – coerente com o que é dignidade para mim.

Diferentemente de outros países, como Estados Unidos, Uruguai e várias nações europeias, no Brasil o testamento vital ainda não existe na legislação. Assim, caso eu hoje tenha uma doença que se revele incurável, corro o risco de morrer sozinha, amarrada aos tubos de uma UTI, naquilo que para mim é uma cena de filme de terror e contraria minhas crenças mais profundas. Basta que o médico decida que é dono da minha vida ou, pior, que sabe o que é melhor para mim. E, pronto, estou condenada à morte que nunca quis.

O respeito à dignidade da vida humana é a preocupação que motiva o Conselho Federal de Medicina a promover este debate e propor a criação do testamento vital. O documento poderá nos dar a garantia de sermos respeitados também no último ato de nossas vidas. O psiquiatra espanhol Diego Gracia, um dos maiores nomes da bioética mundial, está entre os conferencistas convidados a debater a questão em agosto.

Para nos ajudar a compreender a importância do debate que se inicia publicamente no Brasil, entrevistei para esta coluna o cardiologista José Eduardo de Siqueira, 68 anos, doutor em medicina, professor de clínica médica e bioética da Universidade Estadual de Londrina e membro da comissão de cuidados paliativos do Conselho Federal de Medicina. Eles nos fala sobre o que está em jogo na discussão do testamento vital. E também sobre a paisagem na qual este debate se desenrola.

É uma conversa sobre os limites e equívocos da medicina, a deficiência do currículo das faculdades e a premência de se formar um novo médico – um que trate não as doenças das pessoas, mas as pessoas com doenças. José Eduardo de Siqueira, um médico com larga formação humanista, nos mostra que o testamento vital não é apenas um documento, mas uma discussão profunda sobre o que é ser médico e o que é ser paciente, sobre a morte e, principalmente, sobre a vida.

ÉPOCA – Vivemos um momento histórico onde a prática médica é determinada por um aparato altamente tecnológico, os médicos são especializados em pedaços cada vez menores do corpo e a prática corriqueira é estender a vida o máximo possível, com todo o tipo de tratamento, ainda que seja invasivo e doloroso para o paciente e mesmo que ele esteja além da possibilidade de cura. Por que, justamente neste momento, o Conselho Federal de Medicina decide propor um documento que coloca limites no tratamento e que respeita a autonomia e o desejo do paciente?

José Eduardo de Siqueira – Tudo o que você falou sobre o exercício da medicina hoje é verdadeiro. Estamos vivendo um momento em que há um fascínio pela tecnologia. Este fascínio levou a uma situação de medicalizar a vida e medicalizar a morte. A tecnologia chegou a tal ponto que podemos dizer que o indivíduo que está na unidade de terapia intensiva (UTI) de um hospital de ponta, se os médicos quiserem, pode ter sua vida prolongada por muito tempo. Até a primeira metade do século XX o domínio que tínhamos sobre a morte era muito pequeno. A partir dos anos 60, a tecnologia passou a se desenvolver muito. E nós perdemos a noção. Não só os médicos, mas a sociedade toda perdeu a noção da finitude da vida. Há um texto muito bonito no qual Rubem Alves (psicanalista e escritor) diz que antes nós sabíamos ouvir a voz da morte. E, portanto, éramos sábios na arte de viver. Agora que nosso poder cresceu de uma maneira enorme com a tecnologia nós imaginamos que estamos imunes ao toque da morte. E perdemos a possibilidade de aprender com ela. Isso é muito verdadeiro. Há um livro chamado “A arte perdida de curar”, do Bernard Lown, que talvez seja o maior cardiologista do século XX. Ele diz que nós estamos, nas escolas de medicina, formando “gerentes de biotecnologias complexas”. Veja que coisa forte isso. Profissionais que perderam a noção do que é a arte da medicina. Bernard Lown diz textualmente: “A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do ato de morrer”. A preocupação que nos move agora é a seguinte: é preciso ter bom senso. E é complicado este debate porque, se você olhar a grade dos cursos de medicina, vai constatar que estamos formando pessoas especializadas em doenças: sabem tratar doenças de pessoas, mas não sabem tratar pessoas.

ÉPOCA – Me parece que a maioria dos médicos hoje só vê corpos ou, pior, pedaços de corpos…

Siqueira – Exatamente. É uma visão biologicista. Perdemos a noção do ser humano completo. Aí você coloca o doente na UTI, oculta tudo dele. Existe uma coisa que se chama “conspiração do silêncio”. Fica o médico conversando com os familiares. E o paciente sozinho na UTI. A morte hoje é realmente uma coisa fria, sofrida e que não corresponde à dignidade humana. Nossa preocupação neste momento é resgatar a nossa dignidade. E isso de alguma maneira é uma mudança de paradigma. Porque o paradigma imperante é o da tecnociência. E a tecnociência não só por parte dos médicos, mas da população de um modo geral. Eu estou cansado de testemunhar isso no meu consultório. Depois de uma longa entrevista com o paciente, eu não peço exames ou peço poucos exames. Aí o paciente diz: “Mas, doutor, você não vai pedir um ecocardiograma?”. Ou seja. O fascínio pela tecnologia é muito grande. E está disseminada entre a população, também, a ideia de que se você está colocando o doente numa UTI e fazendo tudo até o último suspiro, você está fazendo um benefício. E, na realidade, você está fazendo um malefício. Está realmente tratando aquele ser como objeto – e não como sujeito.

“Precisamos admitir que estamos equivocados e
que temos usado a tecnologia de forma insensata.”

ÉPOCA – De que incômodo surge esta necessidade de discutir um documento que possa dar mais dignidade à morte? Para você, por exemplo, de que incômodo surge a sua necessidade de colaborar para este debate?

Siqueira – Eu comecei a dar aulas nos anos 70. E eu tive esta trajetória fortemente cartesiana. A minha experiência docente nasce nos anos 70 já herdeira das primeiras unidades de terapia intensiva. A visão que nós tínhamos era a de olhar o monitor. Não víamos a cara do doente. Olhávamos a sonda urinária para ver quanto tinha de xixi, olhávamos as variáveis bioquímicas. Com o tempo a coisa se transformou em algo macabro. Se você entrar hoje em qualquer unidade de terapia intensiva desse país, vai ver que um grande percentual dos leitos está ocupado com doentes que não têm possibilidade de cura. É dramático, porque você vê o indivíduo numa decadência progressiva e tudo o que você faz por ele é simplesmente intervir com tecnologia. E o médico sabe que não tem condições de mudar aquilo. Os cuidados paliativos vieram para demonstrar que não, que podemos fazer muita coisa por este paciente. Mas podemos fazer numa unidade de cuidados paliativos, onde ele é respeitado naquilo que é. Nossa preocupação, se eu tiver de resumir numa palavra, é, em primeiro lugar, admitir que estamos equivocados. Que o uso da tecnologia está sendo feito de maneira inadequada, insensata. Segundo, que nós temos de dar o protagonismo de nossas ações ao nosso paciente. Terceiro, que temos de ter respeito pelo ser humano. Em quarto, eu acho que privar o ser humano deste momento decisivo da vida dele é uma coisa cruel. Porque neste momento a pessoa tem muita coisa para contar, para perdoar, para acertar. Há um texto do (Rabindranath) Tagore, um poeta indiano, lindíssimo. Ele diz que morrer pertence à vida, assim como nascer. Para andar você tem de dar um passo. Levanta o pé e o abaixa até o chão. A vida é um movimento. Nascer e morrer. E nós, médicos, temos cortado esse movimento de maneira abrupta, inadequada e desumana, privando as pessoas de viver isso. E o que damos em troca? Damos em troca simplesmente uma coisa que é esta obstinação pelas variáveis biológicas.

ÉPOCA – O que é uma morte digna?

Siqueira – A Elisabeth Kübler-Ross (psiquiatra suíço-americana que se tornou uma referência na abordagem da morte na segunda metade do século XX) fala disso. Morrer com dignidade é morrer com os meus valores, cercado das pessoas que eu amo. Na unidade de terapia intensiva você morre absolutamente anônimo, morre sozinho. Eu cansei de entrar numa UTI e um doente me agarrar a mão e não largar. Aí eu chego perto dele. Ele diz: “Por favor, fica para conversar comigo alguma coisa”. Chegamos a um ponto que percebemos que estamos fazendo a coisa errada. Não estamos tratando o indivíduo como ele deve ser tratado. Como diz a Elisabeth, eu quero morrer com os meus valores, com a minha dignidade, cercada pelos que eu amo. Tem um livro que é muito interessante, escrito por duas enfermeiras americanas que fazem cuidados paliativos em atendimento domiciliar nos Estados Unidos. Em português, o título é “Gestos finais”. Em inglês, é “Final Gifts”, ou seja, “Presentes finais”. Elas contam casos onde fica muito clara a incrível capacidade deste momento, de perdoar, acolher, rever a vida. E as pessoas estão sendo privadas disso.

ÉPOCA – Sendo roubadas do último ato de suas vidas. Porque é um roubo, não?

Siqueira – É um sequestro e muito cruel. Vou contar um caso que eu vivi. Tive um doente que tinha uma traqueostomia e não conseguia falar. Todo dia que eu ia à UTI, eu dava uma tabuinha para ele escrever. E um dia ele escreveu: “Doutor, vamos parar com isso? E vamos fazer o meu descanso?”. É isso. Agora, a maioria dos doentes não tem a possibilidade de ter com quem conversar. Sobretudo os da UTI. Primeiro, o médico não tem formação. A educação dele é para curar. Durante todo o curso ele imagina que isso é possível. E isso só é possível eventualmente. Nós curamos, mas há um aforismo antigo que diz assim: “O dever do médico é curar às vezes, aliviar e confortar sempre”. E nós estamos fazendo só a primeira parte. Ensinamos os meninos a fazer o diagnóstico. E imaginamos que ensinando esta tecnologia de ponta estamos fazendo grande coisa. E não estamos fazendo grande coisa. Por outro lado, há trabalhos que demonstram claramente a pobreza da grade curricular do curso de medicina, no que se refere a conversar sobre a morte: não a biológica, mas a de um ser humano. Há, portanto, muito que fazer para mudar essa situação.

ÉPOCA – Me chama a atenção quando você fala em “nós”. A “nossa preocupação”. Mas quem são este “nós”, já que não me parece que essa seja uma preocupação central para a maioria dos médicos?

Siqueira – Você tem razão. O “nós” ao qual me refiro é uma geração como a minha, que viu essa coisa avançar, que viu o nascimento das primeiras unidades coronárias. E a gente lutava… Você percebe como a palavra “luta” é uma coisa curiosa nesse contexto? Porque o médico, quando perde um doente, acha que perdeu uma batalha. Aliás, há outras palavras curiosas referentes a isso. Eu tenho um “arsenal” na UTI… Arsenal é aquela coisa tremenda, de guerra…

ÉPOCA – É verdade. E o elogio que dão ao paciente é de que é um lutador. Fulano lutou até o fim, foi um guerreiro… Mas, às vezes, é mais sábio aceitar os limites, parar de “lutar” e viver o melhor possível o tempo que ainda tem.

Siqueira – Minha geração viu o nascimento e o apogeu da utilização inadequada da tecnologia e teve a possibilidade de fazer um exercício crítico. Sobretudo porque nós formamos os atuais médicos que estão na unidade de terapia intensiva. Nós somos culpados pelo que está aí. O aparelho formador, às vezes, é deformador. Há vários estudos mostrando que, quando o indivíduo entra no curso de medicina, ele entra imbuído de um altruísmo, da ideia de ajudar o próximo. E na medida em que o curso vai passando, nós vamos colocando cada vez mais informações técnicas dentro dele. E, no final, aquele indivíduo que entrou altruísta sai um técnico frio, que só sabe olhar como um gerente de tecnologias complexas. Depois da nossa, há uma geração primorosa, na faixa dos 50 anos, de paliativistas como Maria Goretti Maciel e Cláudia Burlá, que tiveram a possibilidade de conhecer essa realidade fora do país. A Cicely Saunders (enfermeira inglesa) começou o movimento de cuidados paliativos nos anos 60. A Elizabeth Kübler-Ross publicou seu primeiro livro em 1969. Eu acho que esta geração que eu citei começou a tomar conhecimento de que existe uma outra medicina, uma outra maneira de abordagem, que existe a possibilidade de tratar o indivíduo com dignidade, respeitando o momento da morte. E isso não tem nada a ver com aquela história com que alguns fazem confusão, de que se não há nada para fazer vamos entregar ao paliativista. Não, os cuidados paliativos são uma prática ativa. Os paliativistas dão qualidade de vida aos pacientes.

“O testamento vital é um documento que expressa a vontade da pessoa no momento
em que ela está lúcida. Não pode ser descumprido nem pelo médico nem pela família.”

ÉPOCA – Como você definiria o testamento vital?

Siqueira – Testamento vital é o nome mais popularizado. Surgiu na Califórnia, nos Estados Unidos, em 1976: “living will”. Estamos pensando em chamar de “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”, mas ainda estamos discutindo. Terminal é um termo, por exemplo, que não me agrada muito. É uma herança do raciocínio cartesiano de que é o fim. Sim, é o fim, mas é um fim que pode durar meses, anos. E há muito o que fazer com esse paciente, que merece todo o nosso cuidado.

ÉPOCA – Mas como é, na prática, o testamento vital ou a “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”?

Siqueira – É um documento escrito, tem de ser obrigatoriamente escrito, por um paciente maior de idade e capaz. E com testemunhas. Esse documento deve conter orientações a respeito dos cuidados médicos em situação de terminalidade da vida. Especificando, também, se no caso de tornar-se incapaz de expressar esta vontade, o doente terá um procurador. É um documento para especificar que aquele paciente está descartando o tratamento desproporcional.

ÉPOCA – E como determinar o que é “tratamento desproporcional”?

Siqueira – Tratamento desproporcional é a intervenção médica efetuada em pacientes terminais, que consiste na utilização de métodos diagnósticos ou terapêuticos cujos resultados não trazem benefício ao paciente. Ao contrário, podem trazer mais sofrimento. São inúteis, pois não promovem alívio e conforto nem modificam o prognóstico da doença. Ou seja, o benefício almejado é muito menor que os inconvenientes provocados. Os profissionais de fala hispânica a denominam de “encarniçamento terapêutico”. E os anglo-saxões, mais comedidos, de “futilidade terapêutica”.

ÉPOCA – Vocês pretendem especificar o que são tratamentos desproporcionais no testamento vital?

Siqueira – Alguns juristas acham que deveríamos especificar o que é desproporcional, mas é complicado. O que é desproporcional para um paciente, pode não ser para outro. Depende do caso. Acredito que vamos fazer um texto mais genérico. E a definição será feita com o paciente, com os profissionais que fazem cuidados paliativos ou com o médico do paciente, e com a família. Deverá ser uma decisão deste núcleo. Outra questão, a do prazo. Os americanos, por exemplo, determinam que o documento seja válido por cinco anos e então precisa ser refeito. Nós achamos que não é necessário ter um prazo de validade. No texto podemos deixar claro que ele pode ser revogável a qualquer momento, caso o paciente mude de ideia.

ÉPOCA – O testamento vital é mais importante para os casos em que a pessoa perde a consciência?

Siqueira – Não só. De um modo geral os pacientes passam por um longo período em que estão conscientes. É neste momento que o testamento vital dever ser feito. Ele deve ser uma expressão da vontade da pessoa, feita no momento em que ela está lúcida, especificando o que ela quer. No documento dos americanos está dito, inclusive, que ninguém pode tomar decisão contrária: nem o médico, nem a família. Eu insisto que é importante especificar que nem o médico pode decidir o contrário porque não há uma visão homogênea. Existem médicos – e acho que é o caso da maioria – que consideram a ortotanásia adequada. Mas existem médicos que consideram a ortotanásia um tipo de eutanásia. Acho importante determinar no testamento vital que ninguém poderá botar uma cláusula diversa daquela que o indivíduo estabeleceu no momento da declaração.

ÉPOCA – Acho que seria importante definir aqui o que é ortotanásia, para nenhum leitor ficar com dúvidas…

Siqueira – Ortotanásia refere-se aos cuidados ativos aos pacientes portadores de enfermidades que não respondem a qualquer tratamento curativo.Tem como objetivo controlar a dor e outros sintomas,assim como oferecer atenção médica ao ser humano enfermo e sua família,expressando-se por cuidados de ordem física,psicológica,social e espiritual.Consiste em um sistema de apoio prestado por equipe multidisciplinar de saúde empenhada em ajudar o paciente a viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua morte,prestando adicionalmente apoio à família do paciente na elaboração do luto. A ortotanásia se contrapõe ao que a gente chama de distanásia (o prolongamento da vida do paciente sem chances de cura por meios artificiais).

“Estamos diante de uma faculdade de medicina paquidérmica, imobilizada.”

ÉPOCA – Imagino que a resistência, entre os médicos e também fora, é muito grande. E será grande nesse debate sobre o testamento vital. Qual é a sua avaliação?

Siqueira – Há muita resistência, com certeza. A estrutura curricular no curso de medicina é extremamente rígida. Aqui em Londrina conseguimos implantar, desde 1998, um ensino baseado em problemas. Nesta metodologia, o aluno passa a ser o protagonista, e o professor o auxilia a buscar o conhecimento. Mas a maioria das escolas ainda segue aquele modelo tradicional de que vai um professor lá e fala “a verdade”. Ainda estamos diante de uma universidade que é paquidérmica, imobilizada. Para você introduzir alguma coisa nova, demanda tempo. Cuidados paliativos, por exemplo, ainda não tem espaço na grade curricular. Nós conseguimos um espaço para bioética. Mas ainda insatisfatório.

ÉPOCA – E a resistência, no geral? Imagino que, mesmo dentro do Conselho Federal de Medicina, não deve ter sido uma discussão fácil, até chegar a um evento sobre testamento vital. E, é claro, sempre aparecem aqueles que usam de má fé e tentam distorcer dizendo que, no fundo, o que vocês propõem é uma autorização para eutanásia. O que você diria a quem tentar relacionar o debate com eutanásia?

Siqueira – Eutanásia ativa é pegar e injetar cloreto de potássio ou outra coisa no paciente. Eutanásia passiva é você deixar de tratar a pessoa. Ora, nos cuidados paliativos você trata a pessoa, é ativo. A ortotanásia não está nem na categoria da eutanásia ativa nem da passiva. Simplesmente não é eutanásia.

ÉPOCA – De onde você espera maior resistência, dos médicos ou da sociedade, em geral?

Siqueira – Talvez tenhamos de enfrentar uma resistência generalizada, a começar pelo poder judiciário. Explico. O que está acontecendo hoje é uma coisa dramática. Se nós medicalizamos a vida, também estamos jurisdicionalizando a morte. Não todos os operadores de direito, claro, mas parte deles. O que eu quero dizer com isso é o seguinte. A gente teme que os operadores de direito comecem a colocar tantas regras que vai ficar impossível fazer um testamento vital. Vou te dar um exemplo: no sistema brasileiro, teria de ser feito com um cartório, um notário. Isso obrigaria o indivíduo a ir a um cartório, com duas testemunhas. Temo que, se burocratizar o testamento vital, ele vai se tornar um documento complicado. Espero estar equivocado. No conselho estamos cercados de juristas extraordinários, que dizem que operadores de direito vão compreender, mas não sei.

ÉPOCA – Como você imagina que deva ser colocado em prática?

Siqueira – Acredito que a forma como eu vejo não vai vingar. Mas, para mim, o ideal seria que no prontuário do doente no hospital tivesse um documento chamado testamento vital ou outro termo que vamos definir. Faria parte do prontuário, em casos de doenças que ameaçam a vida. E teria de ser apresentado ao paciente. Isso envolveria um avanço cultural muito grande, porque é o médico, e não o assistente social, que vai ter de fazer. O médico conversando com o doente. Ele se sentaria com o doente e, com todo o tempo necessário, explicaria aquele documento. E o doente o preencheria, com duas testemunhas, como parte do prontuário.

ÉPOCA – Isso seria uma mudança de paradigma muito grande, já que, para fazer isso, o médico teria de realmente olhar para o paciente e escutá-lo.

Siqueira – É um salto muito grande. O médico teria de sentar com ele, conversar o tempo que for necessário, segundo o ritmo do doente e não o do médico. Não é: “Vamos preencher agora, eu tenho dez minutos”. Não. O médico vai ao paciente para conversar não uma, mas muitas vezes, sem o papel na mão. No momento em que perceber que o indivíduo está em condições de mexer com esta questão, então preenche. Se isso se passar no consultório do médico do paciente, estaria lá, no prontuário dele. Ficaria uma cópia com o médico, outra com o paciente. Depois precisa reunir a família e dizer: “Olha, isto aqui é a vontade dele, vocês podem conversar, mas é a vontade dele”. Porque esta coisa de deixar a família resolver é, no meu ponto de vista, muito complicado. Nós vivemos situações em que os filhos de pessoas idosas querem mandar na decisão, decidir pelo paciente.

ÉPOCA – E como evitar a burocratização, especialmente com os pacientes do SUS? Ou seja, o médico passa correndo pelo leito do paciente, usa uma linguagem técnica e diz que precisa preencher em cinco minutos e assinar para que ele possa permanecer no hospital e seguir sendo tratado… Mais difícil ainda quando sabemos que muitos brasileiros têm dificuldade de ler e escrever e alguns documentos médicos são indecifráveis até para quem tem pós-doutorado…

Siqueira – É uma preocupação absolutamente pertinente. Por outro lado, temo burocratizar demais a realização do testamento vital, se formos pelo caminho cartorial. Temos de encontrar um meio termo. Por isso este evento em agosto, onde discutiremos com excelentes juristas. Espero que encontremos um meio termo que garanta um documento que revele a verdade, que proteja a autonomia daquele ser humano, mas sem burocratização demasiada, para não se tornar inviável. Sabemos que, no Brasil, ainda estamos no Casa Grande e Senzala. O Brasil tem ilhas em que o ser humano é respeitado na sua autonomia e dignidade, mas muito mais gente não tem a possibilidade de exercer sua cidadania. É difícil. Mas acho que temos de fazer isso. Colocar essa questão na pauta.

“Um estudo mostrou que 33% dos pacientes do SUS não são
chamados pelo nome e 30% nem sequer são examinados”

ÉPOCA – Como fazer a discussão do direito de ter uma morte digna numa sociedade que não consegue falar sobre a morte, que acredita que deve ser jovem para sempre e não morrer nunca? Esta é uma barreira difícil de transpor, não?

Siqueira A sociedade capitalista induziu as pessoas a pensar na juventude eterna. A morte é um tabu e ninguém quer pensar nela. A sociedade de mercado incluiu dentro dos valores esta coisa de que “consigo adiar minha morte” ou “eu não quero discutira a morte, eu quero discutir a vida”. Porque permanece este hedonismo, esta coisa de “não vou envelhecer porque velho é feio”. Ou seja. Nós temos várias barreiras, culturais, de formação profissional etc. Vivemos numa sociedade absolutamente individualista, na qual não existe ouvir o outro, a alteridade, aquilo que diz (Emmanuel) Lévinas (filósofo francês): “Quero olhar o rosto do outro e me curvar diante dele”. Isso não existe. E me deixa muito triste. Fizemos um estudo em Londrina com 324 pacientes, comparando o atendimento de um convênio e do SUS. Foi apresentado no VI Congresso Mundial de Bioética, em Brasília, no ano de 2002. Mostramos que, no SUS, a pessoa fica esperando um absurdo de tempo por uma guia. Em algumas especialidades, seis meses. Então recebe um papel e vai a uma sala onde há um banco de cimento, com um monte de gente. Descobrimos que 53% esperam lá por mais de uma hora. E constatamos que 33% dos pacientes não são chamados pelo nome. Não são chamados pelo nome! Cerca de 70% deles permanecem dentro do consultório menos de 10 minutos e 30% nem sequer são examinados.

ÉPOCA – O que você está dizendo – e que pode ser paradoxal para alguns profissionais – é que cuidar é respeitar o desejo do paciente e que ajudar a morrer também é um ato médico. É isso?

Siqueira – Sem dúvida. Cuidar é ter a percepção do ser bio-psíquico-social-espiritual. Ter na sua frente todas estas dimensões. O problema é que hoje prevalece a fatia biológica. Eu aprendo a tratar um fígado doente, um coração doente, mas não aprendo a tratar o ser humano em toda a sua dimensão. E um ser humano é essa realidade complexa. Cuidar significa atender esta pessoa com os valores dela, com a história, a biografia, as crenças dela. Cuidar é isso. É dizer: “Você é o protagonista e eu vou te auxiliar neste momento difícil da tua vida. Mas é você quem vai determinar quais são os passos que vamos dar. E não eu”. O médico paternalista hipocrático já era. Precisamos formar um médico habilitado para ver essas dimensões todas. E não simplesmente a dimensão biológica.

ÉPOCA – Como você explicaria para um estudante de medicina que ajudar a morrer também é um ato médico?

Siqueira – Hoje, com a formação que nós temos, é muito difícil. Você não vai encontrar um médico capaz de acolher esta argumentação porque ele acha que esta não é a missão dele. A missão dele é salvar. O que temos de fazer? Temos de criar condições para que este indivíduo tenha educação continuada e tenha possibilidade de refletir sobre outros valores. Na situação atual, talvez o conselho tenha de fazer isso. Tenha de se desdobrar para ir a todos os lugares do Brasil para conversar sobre o que queremos fazer, para conversar com os médicos. Porque a realidade do Brasil é muito diferente da que está na nossa cabeça. É um trabalho muito grande, mas é um trabalho que vai significar algo importante na medicina. A medicina precisa aprender a tratar o ser humano como ele é, no seu sofrimento, no que Cicely Saunders chamava de “dor total”. Os médicos precisam ser preparados para a iminência da morte. Se você conversar com a (Maria) Goretti (Maciel) sobre os que fazem estágio na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo, ela vai te contar que eles não sabem o que fazer, porque não tiveram no curso ninguém que conversasse com eles sobre isso. Com frequência entram em parafuso porque percebem que não estão preparados e não conseguem fazer aquilo. Temos esperança de que, com o tempo, os paliativistas consigam fazer com que essas pessoas se motivem. Porque é muito gratificante. Quando você visita uma unidade de cuidados paliativos como esta, você sai de lá com a certeza de que a medicina é o que eles fazem lá – e não lidar com aparelhos. Ali está o exercício mais digno da medicina. Isso implica ter a consciência de que tratar de um ser humano é também reconhecer que o que você pode fazer é limitado. Nesta limitação você vai acolher, olhar e cuidar. Mudar esta mentalidade para que os médicos possam entender isso demanda tempo, é um horizonte para nós. Ao longo dos anos é enfiado goela abaixo do médico uma coisa de formação técnica. Mas dentro dele ainda vive o menino altruísta que entrou no curso porque queria ajudar o ser humano. Sócrates (filósofo grego) dizia algo mais ou menos assim: “Eu não ensino nada a eles, o que eu faço é simplesmente provocar, para que tirem de dentro deles a coisa mais bonita, o parto das almas”. Acho que a gente vai conseguir. Tenho convicção de que é um caminho longo, mas vamos conseguir.

ÉPOCA – Vou dar um exemplo pessoal. Eu e meu irmão temos um pacto para cuidar um do outro quando chegar a nossa hora de morrer. Nosso compromisso mútuo é garantir que a vontade do outro seja cumprida, no sentido de que não queremos estar numa UTI nem amarrado a aparelhos nem ter nossa vida prolongada artificialmente. Estamos preparando este documento e vamos registrá-lo, com testemunhas. Hoje, este documento seria aceito? Ou, perguntando de outra maneira, conseguiríamos que nosso desejo de uma morte digna, a partir do que é digno para nós, fosse respeitado?

Siqueira – Hoje, seu irmão teria de ter um poder de persuasão muito grande para que os médicos aceitem isso. Não há nenhuma garantia porque não está expresso em lei. Não existe ainda este documento no Brasil, esta figura do testamento vital. Eu mesmo tenho um trato com um amigo meu, médico também, neste sentido. Mas não existe nada que hoje nos garanta que nosso desejo será respeitado. Se você e o seu irmão registrarem em cartório e um dos dois levar esse documento ao médico, tenho a impressão de que o médico vai ter sensibilidade para acolher. Mas ele não é obrigado a isso. Ele pode dizer: “Você vai me desculpar, mas isso não está previsto, e eu não posso ser acusado de omissão de socorro. Eu acho que seu irmão precisa de uma intervenção assim e assado, e vou fazer o que eu acho. Se você quiser entrar na justiça, entre”.

ÉPOCA – Mas, se eu tenho o direito constitucional de viver com dignidade, eu também tenho o direito de morrer com dignidade, na medida em que o morrer faz parte da totalidade da vida, é o ato final da vida, está abarcado dentro da vida. E só eu posso dizer o que é dignidade para mim. Não seria inconstitucional me privar disso?

Siqueira – Enquanto nós não tivermos um reconhecimento através de legislação de que o indivíduo tem efetivamente este direito, que está prevista a figura do testamento vital, o médico pode dizer não ao seu desejo. Não digo que vá dizer não, mas digo que pode dizer não. Este é o objetivo do debate que estamos iniciando. Precisamos de um documento que ampare a autonomia do paciente também nesse momento final.

ÉPOCA – Em que países existe o testamento vital e como funciona?

Siqueira – Na Califórnia, o “living will” existe desde 1976. Em 1991, foi estendido a todos os estados americanos e chamado de “Patient Self Determination Act” – ou, traduzindo, “Ato de Autodeterminação do Paciente”. Vários países da Europa possuem algo semelhante. Aqui na América do Sul, o Uruguai é um dos poucos países que tem a figura do testamento vital.

“Quando chegar a minha hora, eu não quero um técnico
dizendo que vai prolongar minha vida com aparelhos.”

ÉPOCA – Como é o testamento vital acertado com seu colega?

Siqueira – Este colega é cardiologista também. E conversamos muito. Estamos vivendo isso há muito tempo e testemunhamos as barbaridades que são feitas com doentes terminais. Nós combinamos que, na situação em que um de nós tenha uma doença que ameace a vida, o outro vai procurá-lo e vamos fazer o documento naquele momento. Eu não quero ser internado numa UTI, a não ser que tiver uma doença aguda. Mas, se eu tiver uma doença que vai acabar com a minha vida, eu não quero ser internado numa unidade de terapia intensiva. Eu não quero receber suporte com aparelhos, eu não quero receber nada além do cuidado de tirar a dor, de aliviar a minha respiração, algo que me ajude a ter consciência, lucidez, pra fazer o que tenho de fazer. E que isso seja feito no ambiente que eu escolher. Ou numa unidade de cuidados paliativos ou na minha casa, com cuidado ambulatorial. Vou querer receber cuidados paliativos. E não quero um técnico me dizendo que vai fazer isso ou aquilo, que pode prolongar minha vida com aparelhos.

ÉPOCA – Este é o mesmo testamento do seu amigo?

Siqueira – É a mesma visão do meu amigo. Na realidade, ele é um hemodinamicista. Lida com situações agudas de infarto do miocárdio. Tem essa mesma percepção: vamos nos livrar desta coisa que estamos vendo e que está sendo cruel, de desrespeito grave à dignidade, à vontade, à personalidade daquela pessoa.

ÉPOCA – Você já viveu isso com algum paciente?

Siqueira – Eu tive um doente que tinha uma coronariopatia muito grave. Isso aconteceu uns oito anos atrás. A possibilidade cirúrgica dele era pequena. Este paciente era um dentista, um professor, muito meu amigo. Estava separado da mulher, com uma parte da família em Londrina, outra em Brasília. Veio conversar comigo, queria saber de sua doença. Eu falei: “Acho que, do ponto de vista cirúrgico, as chances são pequenas”. Ele perguntou sobre os números. Eu disse: “Olha, não tem números, só posso dizer que é uma chance pequena”. Ele perguntou: “Quanto tempo de vida eu tenho?”. Eu disse: “Não sei, não sou Deus. Mas posso te dizer, pela literatura médica, que a gente consegue que você tenha pelo menos seis meses de vida”. Ele decidiu não fazer nenhuma intervenção cirúrgica. Queria resolver seus problemas existenciais, com a família que teve, com a família que tinha. Um de seus filhos, dentista também, soube que nós tínhamos conversado. Ligou para mim: “Você está louco? Meu pai tem de ser operado, ele tem chance”. Tentei explicar para ele, mas ele ficou muito bravo. Achava que não podia ser decisão só do paciente. Filhos e netos começaram a pressionar meu amigo para que se submetesse à cirurgia, mas ele se manteve firme na sua decisão. Acabou morrendo em Brasília, numa morte súbita na casa de uma filha, nessa peregrinação de acertar suas coisas. Hoje, passados oito anos, seu filho, aquele que havia ficado muito bravo, me agradece. Ele disse: “Olha, naquela época eu tinha uma visão muito equivocada. Eu tinha uma visão egoísta. Eu queria que o meu pai estivesse vivo de qualquer jeito porque eu não concebia a morte dele. Eu não conseguia imaginar a morte dele. Agora que passou esse tempo todo acho que tudo aconteceu da melhor maneira. Se ele tivesse passado por uma intervenção cirúrgica teria sofrido muito mais”.

ÉPOCA – Sempre achei que deixar algo por escrito ajudaria minha família a ter tranquilidade no momento tão difícil da minha morte, porque teria a serenidade proporcionada pela certeza de estar cumprindo a minha vontade. Mas a família pode ser um grande problema, não é?

Siqueira – Pode ser muito complicado, porque entramos num universo meio freudiano. O ser humano também não é uma ilha, tem estes vínculos todos. Minha experiência é a seguinte: o problema mais difícil é abordar isso com a família. Vivemos essa cultura de que as pessoas acham que podem determinar o que o outro tem de fazer. E, às vezes, o que parece ser um benefício é, na verdade, um malefício. Testemunhei um caso na UTI de um rapaz de 28 anos de idade, que tinha o vírus HIV. Ele já tinha tido todas as evoluções possíveis e estava com uma broncopneumonia. Chamou a médica que o atendia e disse: “É o seguinte, doutora, eu sei que meu negócio é grave. Eu quero deixar claro: eu não quero ser entubado e eu não quero traqueostomia. Se eu começar uma crise quero que a senhora apenas me alivie, tire a dor, use máscara de oxigênio se for o caso”. A médica disse que sim. Aí chegou a hora da visita da família e ela disse: “Olha, eu preciso conversar com vocês. Ele está em tal situação e acabou de me dizer que não quer isso e aquilo”. Os pais disseram: “Negativo, doutora, a senhora vai fazer. Se tiver que entubar, vai entubar. E se não fizer, vamos dizer que a senhora omitiu socorro”. Esta médica me procurou para perguntar o que ela deveria fazer. Eu disse: “Acho que você tem de se curvar diante da vontade do paciente. Se você entubar, depois vai ter de fazer traqueostomia e este cara vai sofrer”. Ela me disse: “Muito bem, mas você vai lá tomar essa decisão, porque eu não vou tomar”. Lamentavelmente esse rapaz foi entubado, traqueostomizado e ficou mais ou menos uns 20 dias assim até morrer. Teve a morte que ele não queria, a morte que, quando lúcido, disse claramente que não queria ter.

ÉPOCA – O testamento vital o salvaria desta morte?

Siqueira – Exatamente. Se tivesse o documento a médica poderia dizer: “Vocês vão me desculpar, mas está escrito aqui e eu vou cumprir a vontade do paciente”. No texto da Califórnia está dito que esta instrução não será desobedecida nem pelo médico nem pela família. Será respeitada por ser expressão da vontade do paciente. Nós podemos incluir um item como este, que tem de ser cumprido. Acho que temos de fazer isso porque, em um número muito grande de casos, a família poderá intervir no sentido de que não seja cumprida a vontade do paciente. Por dificuldades emocionais do tipo: “Puxa, nós não fizemos tudo”. Por isso essa discussão é tão importante, para que todos possam começar a compreender a importância da dignidade na morte. Para que essas famílias possam entender o que é uma morte digna, que aquilo que parece um benefício pode não ser e que o paciente tem de ser respeitado no seu desejo.

O maior problema das UTIs hoje é que uma parte significativa de
seus leitos está ocupada por pacientes que não deveriam estar lá.”

ÉPOCA – Falando em família, seu filho é um intensivista, trabalha na unidade de terapia intensiva de um grande hospital. Como é a sua relação com ele?

Siqueira – Este filho está em São Paulo, é um intensivista muito bom. Quando comecei a fazer bioética encontrava com ele, e ele falava assim: “Pai, você largou de ser médico, não gosta mais da medicina?”. Naquela época, ele achava que esta era uma reflexão de abstração, que não tinha nada a ver com a realidade, que realidade é a doença que tem de tratar. Agora, ele me diz o seguinte: “Olha, pai, acho que estamos fazendo muita coisa equivocada na UTI”. E ele tenta conversar com os colegas. Mas o ambiente de UTI ainda é de muita tecnologia. Se chegar a um hospital acadêmico e começar a argumentar, chamam um psiquiatra. Neste ano meu filho está se formando também em direito e o tema da monografia dele é: “Os direitos dos pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva”. Mas ainda é difícil para a maioria dos intensivistas. Eles estão vivendo uma coisa dramática. Tem médico que cuida do doente e, quando começa a complicar, manda para a UTI. Aí alguém liga do pronto-socorro dizendo: “Olha, chegou aqui um cara com infarto do miocárdio, que está com pressão 3 por zero, e eu preciso que você me arrume um leito com monitor, com tudo”. E o intensivista tem de dizer: “Isso eu não tenho”. Dizer isso dói, mas dói muito, porque o cara sabe que ele poderia ter aquele leito e não tem. Ou seja. Os leitos de UTI estão sendo usados de maneira inadequada.

ÉPOCA – Há estudos mostrando que um percentual significativo dos leitos das UTIs está ocupado com pessoas sem possibilidade de cura, que deveriam estar em unidades de cuidados paliativos. Como é isso?

Siqueira – Este é um problema muito sério hoje. Pacientes que sofreram um acidente vascular hemorrágico, por exemplo. Vão entrar num estado vegetativo e vão viver muito. Estão na UTI, mas a UTI não é o lugar deles. O neurologista, claro, quer que ele fique lá, porque é muito mais confortável para ele. E a família também quer, porque a UTI, de alguma maneira, dá uma segurança equivocada de que o doente está sendo cuidado. E não está. É duro isso. A rigor existe um número muito expressivo de leitos ocupados indevidamente. Este talvez seja o maior problema das UTIs hoje, o número de doentes que não deveria estar lá. Por prolongamento da vida a qualquer preço e por uso indevido da tecnologia.

ÉPOCA – Nesta visão que vocês estão propondo, com o testamento vital, os médicos perdem o poder de decidir sobre a vida e a morte do paciente, o que é, desde sempre, uma ilusão, mas muito difundida na categoria. Como é esta relação horizontal que você defende?

Siqueira – É difícil para os médicos, mas acho que toda decisão deve ser dialogada com o paciente. Não só perto da morte, mas toda. E se o paciente entender que deve ser feita uma coisa que não é a decisão que eu, como médico, tomaria, eu tenho de me curvar diante disso. Claro que para o médico isso é difícil. Porque o médico tem a arrogância do saber: “Eu sei que o melhor para você é isso”. Ele não sabe nada, quem sabe é aquela pessoa.

ÉPOCA – Proporcionar dignidade na morte é uma espécie de causa da sua vida?

Siqueira – Olha, a bioética mudou minha vida. Eu comecei a trabalhar com ela em 1996. Estou com 68 anos. Tive um momento da minha vida muito cartesiano, muito arrogante, achava que sabia e resolvia tudo. Na medida em que o tempo vai passando, o cabelo vai ficando branco, começamos a ter a percepção de que o que Sócrates falava é de uma solidez tremenda: “Só sei que nada sei”. E aí o que eu fiz foi começar a estudar filosofia, essa coisa toda. Entrei num mundo muito curioso, porque comecei a observar que os textos dos grandes pensadores me falavam muito mais como médico do que os textos médicos, propriamente ditos. Eu preferia ler Foucault, ler Heidegger, ler Habermas do que ficar lendo textos que, meu deus do céu, só falavam de coisas técnicas. E acho que agora é isso mesmo que vou fazer. Eu não acredito nessa coisa de missão na vida, acredito que a gente tem tarefas. Acho que posso colaborar no sentido de fazer com que exista uma reflexão sobre as coisas erradas que vi na medicina. Posso colaborar para que possamos fazer uma medicina que respeite o ser humano, que tenha como núcleo central olhar aquela pessoa na totalidade do sofrimento dela, com um médico que saiba que ela é vulnerável e que proponha um relacionamento o mais horizontal possível. Embora tenha crescido muito o fascínio pela tecnologia, cresceu também a percepção de que o médico precisa ler filosofia, ler outras coisas, precisa ter sensibilidade e não simplesmente achar que tratar uma pessoa é tratar uma doença. Eu acho que esta é a nossa tarefa e acho que estamos conseguindo. Eu sou otimista.

(Publicado na Revista Época em 12/07/2010)

Flores

Maria Romanesco plantava uma flor a cada morte.

Uma azaléia quando o pai bateu nela por ter perguntado por que ele chorava quando o Brasil perdeu a copa do mundo de 82. Uma margarida quando o pai bateu na mãe que perguntou por que ele estava em casa numa tarde de segunda-feira. Violetas quando bateu nas duas por algo que nenhuma delas lembrou ter perguntado. Magnólias quando a professora disse que devia estudar porque era feia demais para qualquer outra coisa. Um girassol quando menstruou e avisaram-na que agora era mulher. Miosótis quando perdeu a virgindade no carro e passou uma semana sem caminhar direito, mentindo que havia torcido o tornozelo. Rosas quando casou sem ter certeza que amava Juvenal, mas com a certeza de não ter o amor de Alceu. Camélias quando perdeu seu primeiro bebê numa tarde em que se sentia particularmente contente. Copos de leite quando o segundo nasceu com síndrome de Down. Gérberas quando o terceiro nasceu perfeito e mesmo assim ela se sentia vagamente indiferente. Begônias quando sua mãe perdeu a fala por um câncer na boca. Jacintos quando o pai foi atropelado no acostamento depois de deixar o bar cambaleando. Lírios quando o médico disse que o filho perfeito tinha uma doença degenerativa nos ossos. Crisântemos quando o câncer arrancou-lhe o seio direito. Dálias quando descobriu que Juvenal era amante de sua melhor amiga Rosaura. Narcisos quando a filha com síndrome de Down engravidou do porteiro da associação beneficente. Gerânios quando descobriu que estava ficando cega por causa de um glaucoma não diagnosticado. Petúnias quando o reumatismo nas mãos transformou seus dedos em garras.

Com os anos, Maria Romanesco tinha o jardim mais variado e bonito de sua cidade. Depois, do seu estado, o país, o mundo. Que um dia ganhou a capa de uma revista especializada de São Paulo. Quando a jornalista perguntou a ela qual era o segredo de ter conseguido ali naquele fim de mundo uma variedade tão ampla e harmoniosa e tão cheia de um viço que ofuscava os olhos, justo ela que mal e mal tinha completado o ensino médio e nunca havia passado nem perto de um curso de paisagismo, Maria Romanesco foi sincera menos por honestidade mais por não saber que podia mentir. Ela disse: “tristeza”.

A repórter contou à editora que disse que algo assim não podia publicar. Que aquela era uma revista de gente bonita e feliz para gente bonita e feliz. Despacharam então o melhor fotógrafo da renomada publicação para o jardim de Maria Romanesco. E um mês mais tarde ela aparecia quase bonita ou não tão feia na capa, com um amplo sorriso acima da manchete: “Felicidade é o segredo”.

No mesmo dia em que a revista foi para as bancas e Maria Romanesco nela se enxergou sem se reconhecer, ela plantou uma muda de zínia. Antes de se deitar sobre a terra e morrer, porque agora sabia que tinha a obrigação de ser feliz e ela só sabia viver sendo triste.

Hustene chorou baixinho

A saga de um brasileiro que luta pela vida

Ao se deitar na noite de 28 de junho, Hustene Alves Pereira, mais conhecido pela família e amigos como Pankinha, chorou baixinho. Estava a dois dias de completar 51 anos e se sentia humilhado.

Para compreender o sentimento de Hustene, é preciso saber que espécie de homem ele é. Eu o encontrei pela primeira vez numa reportagem no início de 2002. O país era castigado pelo desemprego, e eu buscava um brasileiro que contasse este momento histórico pela vida, não pelas estatísticas. Um que estivesse no parapeito do abismo. Não quando acabamos de perder o emprego e a possibilidade de conseguir outro logo é uma promessa que quase tocamos com a mão. Nem aquele outro período, anos depois, em que a esperança já se foi e manter a cabeça erguida em cima do pescoço é um esforço grande demais. Eu buscava o momento que me parece o mais trágico, quando percebemos que o abismo se descortina como vertigem e nos agarramos aos capins da borda conscientes de que não impedirão nossa queda. O instante em que os filhos começam a sustentar a casa sacrificando o próprio futuro, os produtos anunciados na televisão são para outros e nos escondemos durante o dia para ocultar dos vizinhos que não temos para onde ir. Quando descobrimos que não há lugar para nós no projeto do presente, que nossa vida é para a geração seguinte, reduzidos a gráficos que os especialistas explicam sem precisar manchar as mãos com nosso sangue.

Hustene vivia este exato instante. Continha nele todas as estatísticas, mas nele elas eram carne. Morava, como ainda mora, na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, quatro filhos e uma mulher que ama. Numa casa de sala, cozinha e quarto, além do terraço e do banheiro, num terreno que divide com parentes. Quando o conheci, era um homem com brilho nos olhos, discurso articulado, esperneando contra todo um país que falhava com ele. Tentava compensar os estudos que não pôde terminar lendo tudo o que lhe caía nas mãos e buscando na TV programas que pudessem lhe ensinar alguma coisa. Com um senso tão grande e tão particular de honestidade que preferia andar a pé dezenas de quilômetros por dia em busca de emprego a aceitar passagens de ônibus da prefeitura. Hustene achava que tudo que não ganhava com trabalho era esmola.

Acompanhei-o por um tempo em sua peregrinação, dividi com sua família o feijão que sua mulher, Estela, tornava saboroso com pouco além de um tempero que só podia ser amor. E depois que a reportagem foi publicada continuamos nos acompanhando mutuamente, às vezes perto, às vezes mais longe. Nos últimos oito anos testemunhei Hustene lutar pela sua vida de todos os modos, com uma força que quem o visse pela primeira vez não adivinharia naquele homem tão franzino. Lutando pela literalidade de sua vida que a precariedade do sistema público de saúde solapava, pela dignidade de sua vida sem a qual ele não admitia seguir existindo.

Se me perguntassem um dia o que para mim é mais triste testemunhar como repórter, como gente, eu diria que é o desperdício da vida humana. Não apenas pela morte em si, mas pela vida que não pôde se tornar tudo o que poderia ter sido. O desperdício do potencial de homens e mulheres. As tantas pessoas com uma capacidade extraordinária, mas que não tiveram as condições mínimas para desenvolvê-las. E, o pior, com a consciência do que poderiam ser se tivessem nascido em um país com uma desigualdade menos abissal que o Brasil. Vidas roubadas porque o Brasil está aquém de seus sonhos.

Hustene é um destes homens que sonhou mais com o país que o país com ele. E o Brasil foi triturando-o como o moinho da música famosa de Cartola. Nos mais de três anos em que ficou desempregado, apalpou o desespero sem cair no comportamento clássico de tantos. Não se embebedou em bares que não podia pagar, nem levantou a voz para a mulher ou bateu num filho. Em vez disso, desenhava e escrevia furiosamente em folhas de papel. Fazia bicos pagos aos trocados, carregando caixas enquanto uma bursite lhe arrancava lágrimas. Mas seguia acreditando na trindade em que havia assentado suas melhores esperanças: Che Guevara, Corinthians e Nossa Senhora de Fátima. E agarrado à sua carteira de trabalho. Ensinado que fora pelo pai, retirante nordestino, metalúrgico, que este é o documento mais importante na vida de um homem.

Quando já havia consumido todas as unhas para se manter agarrado às paredes do precipício, em 2005 Hustene conseguiu um emprego com carteira assinada e tornou-se o “porteiro Pereira”. Não era um trabalho à altura de sua capacidade, mas nunca, nunca mesmo, vi alguém tão feliz trabalhando por pouco mais que um salário mínimo. Às 4h20 da madrugada ele já estava dentro do primeiro ônibus, com um orgulho que só ele entendia, e cumpria turnos estafantes de 12 horas sem uma queixa. Hustene achava que tinha escalado o despenhadeiro. Mas em outubro do ano seguinte ele sentiu-se mal e Estela o levou ao posto de saúde. O médico garantiu que era “só” uma crise de diabetes e o despachou para casa, onde ao chegar ele teve um AVC (acidente vascular cerebral) que paralisou o lado esquerdo de seu corpo.

Hustene reaprendeu a falar e a andar. Em 14 de abril de 2008 estava tão ou mais feliz que nas vitórias históricas do Timão: tinha arriscado seus primeiros passos sem bengala. Mas em janeiro de 2009 teve o segundo AVC. Agora ele se desequilibra mais, a força lhe escapa, sente náuseas. Esquece dos acontecimentos recentes. Nem sempre se lembra de tomar água. É Estela quem precisa avisá-lo para tomar os 16 comprimidos do dia além das três doses de insulina com que tenta manter o diabetes mais ou menos domado. Com o segundo derrame também se apagou dentro dele o dom do desenho.

Mas Hustene não perdeu sua lucidez. Ele ainda segue escrevendo no computador que ganhou, em diários com papel e caneta, sem perder um documentário na TV. Tão honesto como sempre, em sua casa nunca admitiu nem mesmo os “gatos”, as ligações clandestinas de eletricidade, TV por assinatura, etc. Nem mesmo nos piores momentos, ele fraquejou em fazer a coisa certa. A honestidade, tão fácil para quem pertence às classes mais favorecidas, ainda que não muito praticada, para os da estirpe de Hustene é uma conquista arrancada de cada um dos dias. Com tudo o que é, apesar de tudo que lhe tomaram, Hustene continua acreditando. De sua trindade, mantém a crença em Nossa Senhora de Fátima e no Corinthians, esmoreceu um tanto de Che Guevara. Em nenhum momento perdeu a fé no Brasil.

Há um ano começou a perceber que sua visão piorava. Descobriu-se que ele tinha uma doença grave e degenerativa. Mas os exames demoravam, assim como o tratamento. Uma amiga pagou-lhe um médico particular para obter um diagnóstico preciso. O profissional alertou que era muito sério e não dava para esperar. Se não se tratasse logo, ficaria cego. Mas não havia dinheiro para tratamento privado. Hustene voltou ao sistema público de saúde.

Mais de seis meses se passaram enquanto ele ainda espera por tratamento. Agora testemunha a acelerada ruína de sua visão. Tento imaginar o tamanho da impotência e do pavor que é acompanhar dia após dia a corrosão dos olhos sem conseguir a assistência médica necessária, a mercê de um sistema em que cada exame crucial demora meses para ser feito e, quando a data da consulta médica finalmente chega, já é necessário fazer outro que levará mais alguns meses. Não alcanço.

Mas ainda não foi por isso que na noite de 28 de junho Hustene chorou baixinho ao se deitar, a dois dias de completar 51 anos. Naquela segunda-feira ele levou uma hora e 50 minutos até alcançar o posto do INSS. Era dia do jogo do Brasil X Chile. Trêmulo, instável, com náuseas e enxergando mal, ele apresentava-se na hora marcada desde maio para que um perito comprovasse a necessidade de renovação do seu benefício. Nas mãos, Estela tinha os laudos médicos exigidos. Para cada um deles, uma correria, muitos ônibus e muita fila. Como se dissesse algo como “hoje não temos brioches, volte daqui a dois meses”, uma funcionária informou-lhe que os peritos estavam em greve. E remarcou a perícia para 19 de agosto.

Junto com outros desesperados, Hustene voltou para casa. Os laudos médicos perdem a validade em 30 dias, só servirão para virar lixo reciclável. Mais ônibus, novas filas, para que outros sejam feitos, dificultando ainda mais uma existência sofrida e sobrecarregando também um sistema já deficiente. Enquanto não passar pela perícia, Hustene nada ganha para sustentar sua família. Meses sem dinheiro para o supermercado e as contas. Era por isso que ele chorava. Pelo pouco caso com a sua vida, uma vida que lhe custa tanto manter dentro dele.

Não me cabe julgar se a greve dos peritos do INSS é justa ou não. O que posso afirmar é que a situação de Hustene e de todos como ele é injusta. O que escrevo não é um relato sobre um acontecimento pontual, mas sobre uma vida roubada aos poucos, de várias maneiras diferentes. Igual a de milhões nos percalços, diversa de todas.

Nos chocamos com a destruição causada pelas guerras declaradas, quando a vida de um povo está seguindo seu curso e de repente tudo acaba, tudo se perde, sonhos destroçados junto com braços, cabeças e pernas. Aqui escrevo sobre as guerras invisíveis, em que tantos ainda morrem sem alarde e bem mais perto, pela omissão do Estado e de todos nós, mesmo quando o país começa a melhorar alguns de seus índices e diminuir sua fome. O massacre silencioso e persistente que se desenrola à margem dos que podem pagar por saúde e educação de qualidade, dos que têm rede de proteção quando ficam desempregados e dos que ao serem desrespeitados em seus direitos sacam o iPhone e acionam seus advogados.

Há um país que morre aos poucos e a cada dia ao nosso redor. Ao contrário de Hustene, que perdeu a saúde e agora perde também a visão por descaso, que é condenado a meses sem dinheiro para sustentar a família pela força de uma única frase pronunciada por uma funcionária pública, nós enxergamos bem, mas escolhemos ser cegos. Para ele, porém, não existe esta opção. É sua a vida que escapa como água entre seus dedos. São seus os sonhos triturados. É sua tragédia tudo o que poderia ser – e não será apenas porque nasceu no lado errado do mundo.

Acho curioso quando especialistas de todo tipo transformam a miséria do outro em parâmetros lógicos. Nos gráficos e análises destes técnicos e acadêmicos tudo faz sentido e nada purga. Eu gostaria de saber como eles encarariam se fossem eles a não ter a chance de ser – e seus os filhos sem chances. Histórias como a de Hustene são tão corriqueiras que nem sequer viram notícia. Agonias como a dele acontecem sempre, é por isso mesmo que deveríamos nos indignar. Em vez disso, nos anestesiamos. Temos voz, mas preferimos calar.

Tenho 44 anos, muito e pouco, dependendo do ângulo de quem olha. O suficiente para testemunhar a perda de indignação que vem nos corrompendo. A impossibilidade cada vez maior de vestir a pele do outro. Tão confinados e com tanto medo dentro de nossa própria pele que a dor do outro é encarada como uma ameaça ao frágil equilíbrio de nosso mundo cada vez menor. Então nos escondemos no cinismo, que é a pele sintética dos covardes.

Se um dia Hustene ficar cego, sei que seus olhos ainda vão brilhar com a mesma febre. Eu não sei como ele faz, porque há nele uma sabedoria que não existe em mim. Mas ele resiste. Ainda que claudicante, sem forças, espoliado o tempo todo, ele me assegura que é feliz. Pergunto a ele como, por que, de que matéria é feita essa força que o faz levantar a cada rasteira, ainda que restando no chão em alguns pedaços. “Eu vejo meus filhos em casa nos fins de semana, o riso da minha neta, ao meu lado a mulher que amo e que escolheria em quantas vidas tivesse. E há ainda uma viralatinha linda que eu cuido chamada Pantera. Nunca precisei visitar um filho na prisão porque eles são honestos como eu. Sei que para eles sou espelho. Vou seguir lutando. Acredito no meu país, ele já foi pior para os pobres, está melhorando.”

Naquela noite, quando chorou baixinho, Hustene se sentia humilhado. Mas não só. Tinha dentro dele também revolta. Me escreveu para que sua voz me alcançasse e, através de mim, ele pudesse dizer que essa indiferença com a sua vida dói. Que essa indiferença pode matá-lo. E a morte para brasileiros como Hustene nunca vem como metáfora.

Depois, escreveu para dizer que segue acreditando. E lutando. E esperneando. Escreveu para dizer que não vai desistir de brigar pela vida.

(Publicado na Revista Época em 05/07/2010)

O atum

Para João

Acordou decidido a cometer uma extravagância. Passara a vida com o dinheiro contado. Agora que estava aposentado, tinha de contar mais cada vez menos dinheiro. Mas desde que vira na revista uma receita de atum, não conseguiu tirar a imagem da cabeça. “A carne tenra e crocante desta iguaria provoca uma transcendência….” Não conseguia esquecer a frase do crítico de gastronomia. Ele não sabia o que era “transcendência”, mas queria ter uma. Intuía que era bom.
Transformara-se numa obsessão. O atum era a última imagem antes de pegar no sono, a primeira quando acordava. Logo não podia mais dormir. Queria experimentar a transcendência antes de morrer, a carne tenra e crocante do atum.

Naquele dia acordou obstinado. Ele havia sido sempre um homem reto, cumpridor dos seus deveres. Uma vez até havia sido elogiado pelo chefe da repartição por devolver uma nota de 100 reais que havia encontrado no banheiro. O chefe disse que era dele e a embolsou. Ele não tinha certeza de que era do chefe. Mas, como disse para a mulher, naquele tempo ainda ignorante do câncer que viria a matá-la, o que importava era que ele tinha feito a coisa certa.

Agora, gastaria a mesma quantia para comprar aquele atum. Nem que tivesse de atrasar a conta da água e da luz, comer sopa pelo resto do mês, adiar a aquisição de um cobertor mais grosso para o inverno que chegava. Ele queria aquela transcendência mais do qualquer coisa que tivesse desejado em toda a sua vida.

Vestiu seu melhor casaco, passou no caixa eletrônico do banco, raspou tudo o que ainda lhe restava na conta e entrou pela primeira vez na Casa Santa Luzia porque não queria porcaria. Queria aquele atum. Não o criado em cativeiro, entupido de hormônios para aumentar o peso. Mas o capturado em mar aberto por barcos equipados com a mais avançada tecnologia, o que o jornalista disse que provocava transcendência.

O atendente perguntou quem era seu patrão. Ele não entendeu. Depois, percebeu que havia ali muitos mordomos ou coisa parecida, como nas novelas. Homens como ele, mas mais bem vestidos que ele, que faziam compras toda semana ali, que comungavam de uma soberba que os irmanava. Disse com uma satisfação secreta: é para mim mesmo.

Caminhou cinco quarteirões para que não o vissem pegando o ônibus. Sentia-se diferente. Como se tivesse feito algo importante na vida. Sentia-se até mais alto. Mesmo a gastrite que o atormentava desde os 24 anos parecia ter sumido.

Em casa retirou com cuidados de pai a página da revista que havia guardado bem dobrada na gaveta da cozinha. Leu e releu a receita com os óculos de vista cansada comprados na farmácia. Ele sempre fora um bom cozinheiro. Tinha mais mão para a cozinha que a mulher, que sempre queimava o feijão. Talvez convidasse a filha que não o visitava havia meses, sempre com a desculpa de que o marido estava trabalhando aos domingos. Não, aquele atum era dele. Pela primeira vez na vida, ele teria algo só dele. Lavou bem as mãos, passou álcool-gel e abriu o pacote sobre a mesa. Sentou-se diante do atum. Ficou olhando para ele.

Sentiu um calafrio, como se tivesse estabelecido uma conexão com o peixe. Mas ele estava ali, bem morto. Aquele atum em cima da sua mesa de fórmica descascada pelos anos, pela miséria da sua vida de assalariado, atravessara oceanos e conhecera profundezas. Tinha sido capaz de vencer 170 quilômetros de mar aberto num só dia. Aquele atum havia comido mais peixes que ele em toda a sua existência. Experimentara uma vida selvagem. Aquele atum ali tinha sido livre. Que jornadas ele não empreendera, que maravilhas não vislumbrara no fundo do mar, que aventuras com certeza vivera.

Aquele atum ali tinha brigado pela sua vida e sido subjugado não por resignação ou por passividade ou porque não cogitara que havia outro jeito de existir que não a obediência. Aquele atum ali fora subjugado apenas pela força. E morrera lutando.

E agora estava ali, na mesa de fórmica descascada de sua cozinha, para ser comido por ele. Entre seus dentes gastos por carne de segunda e maltratados por dentistas de subúrbio. Para lhe dar transcendência. E ele nem sabia o que era transcendência.

Sentiu náuseas. A gastrite voltara. Ou era algo mais. Vomitou na pia da cozinha.

No dia seguinte, recolheu os últimos trocados e se enfiou num ônibus para o Guarujá. Trazia o atum nas mãos. As pessoas olhavam para ele, mas ele não as via. A mulher sentada ao seu lado no ônibus tentou puxar conversa, mas ele não a ouviu. Ela então reclamou do cheiro, mas ele parecia tão alienado de tudo que os passageiros concluíram que era retardado. E na segurança de suas certezas, o deixaram em paz.

Quando desembarcou na rodoviária, caminhou até a praia com seu atum. E foi entrando no mar com ele. Um homem vestido pobremente com um atum nos braços mar adentro. Naquele momento, se pudessem enxergar seu pensamento, descobririam que ele só tinha um lamento. O de não ter conhecido a transcendência.

Cartas de amor

Por que sempre adiamos o momento de dizer o que sentimos?

Meu pai fez 80 anos. Queríamos dar a ele um presente que fosse mais do que algo que ele pudesse usar. Um que não servisse para nada, a não ser para a vida. Decidimos fazer um livro com cartas de amor. Não as cartas do passado, trocadas entre ele e minha mãe, mas as cartas do presente, que todos escreveriam. Cartas de amor dos filhos, dos netos, da companheira de toda uma vida. Dos sobrinhos mais próximos, dos amigos mais queridos, dos alunos e companheiros de trabalho com quem compartilhou seus ideais mais caros. Cartas de amor, enfim, escritas por quem havia testemunhado sua vida – e se transformado pela sua vida. Só havia uma regra para as cartas de amor: elas tinham de ser ridículas.

Para que ninguém se sentisse desconfortável com o desafio de escrever cartas de amor ridículas, ficamos na companhia ilustre de Fernando Pessoa, com a poesia famosa de Álvaro de Campos: “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor./ Como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas./ Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas (…)”.

Encomendar cartas de amor ridículas era um jeito de escapar das cartas laudatórias e de estimular os mais ariscos na demonstração de sentimentos a escrever com o coração ou mesmo com o fígado. Não era um campeonato de quem escrevia mais bonito, mas uma oportunidade imperdível de dizer para o meu pai o quanto cada um o amava, do jeito único que cada um podia dizer, numa história com o meu pai que era só sua.

As reações foram as mais diversas – e bem divertidas. Enquanto uns se desincumbiram bem rápido da missão, outros tinham certeza de que não conseguiriam até o último instante. Meu sobrinho, o mais jovem da família, achava que carta não era coisa da geração dele, para a qual até email já era ultrapassado. Acabou descobrindo que é do tempo das cartas e escrevendo uma bem bonita. Meu irmão do meio, que é físico, sofreu e sofreu e sofreu – e quase na prorrogação enviou uma criativa carta com duas vozes. Fez até desenhos! Finalmente a gente descobria que aqueles mais xucros, os que cumprimentam meu pai com um aperto de mão e uns tapas nas costas, porque homem que é homem só abraça mulher, deixariam Fernando Pessoa orgulhoso.

Conto essa história para que, quem sabe, mais gente se decida a escrever cartas de amor ridículas. Acho que a maioria de nós tem muito a dizer para as pessoas da sua vida, mas adia para algum momento que talvez nunca chegue. Cumprimos horários para tudo, inclusive para o que é bem supérfluo, mas parece que sempre podemos deixar para amanhã dizer às pessoas importantes que, sim, elas são importantes para nós, que trazemos um pouco delas em nossos gestos, nas nossas escolhas, na porção imaterial de nossas células. Só que é arriscado adiar, porque o amanhã é incerteza, só o que temos é o hoje.

Dá para deixar para amanhã a academia, a manicure, a balada com os amigos, a compra de um jeans, um sapato, um computador ou um carro novo. Dá para deixar quase tudo para amanhã, menos dizer a quem amamos – que amamos. Não apenas no caso do amor romântico, mas em todo tipo de amor. Se pararmos para pensar, muito do que achamos inadiável é passível de prorrogação ou até mesmo desnecessário. Já o essencial, tanto protelamos, perdidos nos muitos supérfluos, que um dia pode ser tarde.

Tenho feito o exercício de reconhecer no traçado da minha vida as pessoas que me tornaram o que sou. Não apenas meus pais, mas gente que nem imaginava que tinha sido tão substantiva para mim, como a moça da livraria de Ijuí, para quem escrevi uma de minhas primeiras colunas – A história de Lili Lohmann.

Não somos em si. Somos para o outro. Só sabemos quem somos porque alguém nos reconhece. Quando olham para nós, mas não nos enxergam, é destruidor. Este olhar é violento porque nos atravessa. Já o olhar que nos reconhece faz com que nos tornemos melhores do que somos, para estar à altura de quem já nos vê melhores. Quando dizemos a alguém que é importante, que nossa vida é mais viva porque esta pessoa existe, ela também se redescobre pelo nosso olhar amoroso. E estas redescobertas de si mesmo são transformadoras – para quem vê e para quem é visto. Acho que vale a pena identificar quem são as verdadeiras celebridades da nossa vida – aquelas que podem ser anônimas para o mundo inteiro, mas não para nós.

Esta é uma época em que se fala muito. Quase todos falam o tempo todo. É difícil encontrar alguém para entabular uma conversa de silêncios. Muitas vezes as pessoas falam e falam, mas não é um diálogo. Não há uma troca, um dizer para o outro, para depois escutar o que o outro tem a dizer. Ao contrário, parece uma fala sem endereço. Mais um ato desesperado de manter-se falando para ter certeza de que existe. Acho que falamos tanto, nisto que a psicanálise chama de “fala vazia”, por falta de olhar que nos reconheça na singularidade do que somos. Algo como: já que ninguém diz que sou importante, então fico repetindo ao infinito que sou importante, para todos e para ninguém. Quando mais duvido, mais preciso falar.

Mesmo hoje, quando tantos escrevem na internet, em blogs e outras ferramentas, ainda que se fale por meio de símbolos gráficos, é uma fala – não uma escrita. Em muitos casos, a mesma verborragia para ninguém. Por isso acho importante que reabilitemos as cartas. Escrever é um exercício profundo de elaboração dos sentimentos e das ideias. Quando começamos, nunca sabemos para onde a escrita vai nos levar. Vamos nos descobrindo em letras, nos constituindo em palavras. E sempre, sempre mesmo, nos surpreendemos com o que escrevemos.

As cartas são sempre para alguém. Para existir uma carta é preciso que haja um endereçamento, é necessário nomear aquele para quem escrevemos. Ainda que em certo sentido sempre escrevamos para nós mesmos, a carta é obrigatoriamente para um outro. Pressupõe um diálogo. E é um diálogo de reconhecimentos mútuos.

Outra qualidade das cartas é que são para todos. Podemos não saber escrever um livro, um artigo, uma tese de doutorado, uma reportagem, poesia. Mas quem se alfabetizou sabe escrever uma carta. Porque na carta, mais importante que a habilidade com as palavras, é a capacidade de ser verdadeiro. A carta que nos emociona não é aquela que tem o melhor estilo, mas aquela que expressou com mais sinceridade os sentimentos de quem escreveu. É aquela que nos faz identificar o cheiro, os gestos, a voz e também as palavras de seu autor. A melhor carta é a encarnada. Para isso, não é preciso tornar-se um mestre das palavras, mas talvez algo tão ou mais difícil, mas que depende apenas de uma decisão interna: é preciso ter a coragem de ser.

É curioso como há livros de cartas para todos os gostos. Trocas de cartas entre intelectuais, antologias de cartas de amor de todos os tempos, cartas de fulano para beltrano, até no primeiro filme baseado no seriado americano Sex in the city, as cartas de amor faziam parte do enredo. Se há tantos livros é porque as pessoas gostam de cartas. Então por que não as escrevemos? Será que preferimos continuar falando sozinhos?

O computador e a internet estão aí para tornar ainda mais fácil a operação mecânica do processo. Não a efêmera e loquaz troca de emails, mas aquilo que faz de uma carta uma carta: a disposição de se abrir para o outro. Não qualquer outro, mas aquele que escolhemos como alguém importante o suficiente para dizermos algo a ele. Não o supérfluo, mas o essencial. É possível escrever uma carta por email, como é possível escrever uma carta por qualquer meio. Mas, em geral, usamos o email para falar tudo e qualquer coisa. Nas cartas, só escrevemos aquilo que precisa ser dito. Enviamos emails para qualquer um – cartas só escrevemos para os inscritos na nossa vida.

Eu mesma, que ganho a vida escrevendo, me surpreendi com minha carta de amor para meu pai. Penso sobre a relação com ele desde que me entendo por gente. E estou sempre me questionando sobre tudo. Descobri, porém, que “desconhecia” vários de meus sentimentos – e havia me “esquecido” de histórias capitais. Elas estavam em algum lugar de mim, mas até então eu não havia tido oportunidade de trazê-las à superfície e torná-las verbo.

Escrever ao meu pai foi um reconhecimento de sua importância na minha vida. Não no sentido laudatório, mas em tudo o que há dele em mim. Inclusive naquilo que preferia não carregar, até mesmo naquilo em que quero ser diferente dele. Afinal, todos sabemos – ou deveríamos saber – que só nos tornamos adultos quando superamos nossos pais para nos tornarmos nós mesmos.

Nascemos pelo desejo de nossos pais – e crescemos para buscar nosso próprio desejo. Ou, dito de outra forma, existimos por causa do desejo dos pais, mas só alcançamos uma existência autônoma quando assumimos o risco de nossa própria busca. Estes são os bons filhos. E os bons pais são os que esperam ser superados – e não apenas imitados. Superados não no sentido de que os filhos tenham de ser mais bem sucedidos nisso ou naquilo, mas no sentido de que os filhos descubram e construam seu próprio caminho no mundo.

Em minha carta ao meu pai, reconheço tudo o que há dele em mim, a extraordinária importância dele em mim. Mas, ao mesmo tempo em que foi um exercício de reconhecimento, também foi um exercício de diferenciação. Este é você e amo o que você é, até mesmo seus defeitos. Esta sou eu, grata por tudo o que há de você no meu percurso, mas autônoma na medida em que criei outras possibilidades a partir do que aprendi com você. Só podemos ser diferentes – algo muito valorizado em nosso tempo – quando assumimos que viemos de um determinado lugar. Para sermos diferentes temos de admitir a referência, já que só é possível ser diferente em comparação a um outro. Quando identificamos a originalidade do que somos podemos identificar com mais serenidade e justiça a herança de nossos pais. E brigamos muito menos com eles.

Cartas de amor existem para isso. Para reconhecer o outro, elaborar nossos sentimentos pelo outro, dizer aquilo que é importante o suficiente para ser dito. Mas, como todo diálogo verdadeiro, é uma troca. Quando conseguimos dizer ao outro de sua importância numa carta, damos muito – mas também ganhamos muito. Ser capaz de amar melhor tem um efeito fabuloso sobre a vida.

Quando começamos a pensar numa festa para comemorar seus 80 anos, meu pai não estava certo de querer celebrar. Disse isso em uma frase profunda: “Quando eu olho para trás, fico feliz com o que vejo. Mas, para frente, é incerteza”. Ele tem razão. Amanhã é incerteza. Para todos, mais ainda para quem completa 80. Na verdade, acho que, no caso de todos, e também no de meu pai, o que dá medo não é a incerteza – mas a certeza. É por causa da certeza da morte que tecemos a teia de sentidos da nossa vida. É por causa da delicadeza com que teceu sua vida que meu pai vai para o amanhã com a certeza de que amou bem – e é amado com o melhor do que somos.

Encerrei minha carta de amor ridícula ao meu pai na esperança de que ele compreenda que todo ponto final é chegada, mas também é partida: “Use este livro como ponto de chegada, um itinerário amoroso de sua vida pelos olhos nossos. Mas, depois, esqueça-o numa gaveta. E, como Fernando Pessoa, nasça mais uma vez para a eterna novidade do mundo”.

(Publicado na Revista Época em 28/06/2010)

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