Ana Hickmann e a humanidade sitiada

Quando tudo o que é humano vira tumor

Duas reportagens publicadas na Folha de S. Paulo na semana passada são chocantes pelo que revelam – e pelo despudor com que revelam. A primeira saiu na coluna de Mônica Bergamo. E conta sobre o “produto” Ana Hickmann. A outra é uma matéria sobre uma reunião do Conselho Comunitário de Segurança de Santa Cecília, em São Paulo, assinada por Afonso Benites. Nela, moradores e comerciantes anunciaram uma campanha oposta àquela com que Betinho uniu o país nos anos 90: a deles é para pressionar ONGs e restaurantes a parar de dar comida aos sem-teto que vivem nas calçadas. Nesta, que pode ser chamada de “campanha pela fome”, ou os mendigos morrem de inanição ou vão assombrar ruas fora das fronteiras do bairro.

Pelas reportagens, descobrimos que Ana Hickmann, a modelo e apresentadora da Record, é uma coisa, decidiu ser uma coisa. E que os bons cidadãos de Santa Cecília consideram os mendigos não uma coisa, mas gente. É por ser gente – e não coisas – que devem ser expulsos. Ou desinfetados, como anunciou uma comerciante. Com o despudor de quem tem a certeza de que está do lado certo da força, ela contou que lança desinfetante nos que vivem em frente à sua loja.

Olhamos para Ana Hickmann, fisicamente tão bela, tão perfeita, com pernas de 94 centímetros. “Uma elfa”, como diz um amigo meu que um dia a encontrou nos corredores da Record. E aí ouvimos Ana Hickmann falar sobre como vê a si mesma. Ela diz: “Sempre me considerei um produto. Parece cruel, mas é verdade”. Diz mais: “O Alê (marido e sócio) me chama de general. Fala que sou truculenta pra caramba. E sou mesmo. Exigente, como sempre foram comigo. Nunca me deram a chance de errar”. Alexandre Corrêa, o Alê, dispara uma sequência de frases antológicas sobre a mulher e sócia: “A gente vai entregar para o mercado uma Ana Hickmann diferente, sem esses problemas (referindo-se a dificuldades de dicção, que estão sendo corrigidos por uma fonoaudióloga)”; “A palavra ‘perder’ não está no nosso dicionário”; “A Ana Hickmann tem que ir para o domingo para matar ou morrer. Tem que acordar todos os dias com sangue nos olhos. Se não odiar o concorrente, você é um frouxo. Com mão mole, não machuca ninguém. Fere, mas não tira a pessoa de combate”. O romantismo foi deixado de lado, ele explica: “por um tempo pra gente investir e enxergar nosso crescimento sem deslumbramento. Porque com romantismo vêm férias em Paris, esquiar em Aspen, fazer compras em Nova York. E o trabalho e as obrigações ficam para trás. Se ficar com ‘mela mela’, todo problema profissional vira sentimental. O circo pegando fogo e você ‘amorzinho’, abraçando o outro para se lamentar? Ah, por favor!”

Ana Hickmann e seu sócio-marido falam sobre “o produto Ana Hickmann” sem nenhum pudor. Se dizem o que dizem para um jornal de âmbito nacional, é porque acreditam que estão dizendo aquilo que é certo dizer. Mais do que certo – já que o certo ou errado não parece ser lá uma questão muito relevante nesse contexto: dizem aquilo que é valorizado no discurso contemporâneo. Algo que deveria, no seu modo de ver o mundo, despertar admiração no público. Afinal, eles são “produtos” de um mundo em que tudo pode – e deve – ser coisificado para ser consumido. E tudo o que tem valor só tem valor porque é mercadoria.

Ao contrário de como Ana Hickmann vê a si mesma, os moradores e comerciantes de Santa Cecília não veem os mendigos como “coisas”. Se fossem coisas, teriam valor, nem que fosse o valor de vendê-las para a reciclagem. Como são gente, a solução é suspender sua comida. Sim, porque gente come. Ao decidirem interromper o acesso à alimentação, eles acreditam que encontraram a solução para seus problemas. E seus problemas resumem-se a gente que não serve para nada. Nem para virar coisa.

Se alguém contraria esse discurso, em ambos os casos, pode ser acusado de hipócrita. Ou ingênuo. Porque, afinal, é assim que o mundo funciona. Ou você produz, ainda que como mercadoria com alto valor agregado, como é o caso de Ana Hickmann, ou você deve ser eliminados dos olhos e do mundo de quem produz – com desinfetante ou por inanição. Em ambos os casos, o que é humano atrapalha. Tem de ser eliminado da vida do produto Ana Hickmann, tem de ser eliminado das calçadas dos moradores e comerciantes de Santa Cecília.

Na vida do produto Ana Hickmann, são os sentimentos que têm de ser eliminados – os ligados à gente frouxa, pelo menos, que atrapalham o sucesso, já que ódio, ambição, “sangue nos olhos” são valorizados. Devem ser eliminados o romantismo, o erro, a condição falível do humano, o que seu sócio-marido tão bem define como “mela mela”. Na vida cotidiana dos moradores de Santa Cecília, o que tem de ser eliminado é gente que não produz, que não toma banho, que não se veste bem, que faz sujeira, que às vezes é mal-educada, xinga e briga. Gente que pede coisas e não tem dinheiro para pagar pelas coisas.

Ninguém gosta de ver pessoas morando na rua diante de sua casa ou pedindo comida na sua porta. Sempre imaginei que fosse porque o sofrimento do outro, a indignidade desta condição, nos afeta. Ainda que não gostemos também porque algumas dessas pessoas façam sujeira na rua e não se espera que alguém aprecie sujeira diante da sua casa ou da sua loja, o que espanta é achar que não temos nada a ver com isso. Não se trata aqui de achar que todo morador de rua é bonzinho ou de que todo sentimento humano é agradável. Trata-se sim de pensar sobre o que faz com que se acredite que ambos devam ser exterminados – da vida cotidiana do bairro, da vida de cada um.

O que espanta é acreditar que pessoas e sentimentos são sujeira, lixo orgânico, lixo não reciclável – e, portanto, sem valor. O que espanta é que Ana Hickmann se anuncie como produto e isso seja confundido com sucesso. Que pessoas vivam sem condições mínimas e um grupo de pessoas acredite que o que pode fazer de melhor é lhes tirar a comida. Ou que se sinta tão impotente a ponto de acreditar que a fome pode ser a solução. Espanta também que na reunião estivessem presentes representantes de várias instâncias do poder público: polícia, subprefeitura da Sé e guarda civil. E também do hospital Santa Casa. E que nenhuma voz tenha se manifestado contra a proposta.

Descobrir que pessoas como Ana Hickmann se veem como coisas nos dá pistas para compreender o modo como os moradores e comerciantes de Santa Cecília veem os mendigos. É como coisa que Ana Hickmann vai para a TV entreter millhões todo domingo. Ela, que ganha R$ 300 mil por mês de salário, fora todos os produtos que derivam do produto maior, é um exemplo de sucesso, de self-made woman. Ou self-made thing. Se tudo der certo e nenhum sentimento humano indesejável atrapalhar a trajetória do produto, como diz seu sócio-marido, um dia ela será “a Oprah Winfrey do Brasil, loira e de olhos azuis, num país de gente parda”.

Tudo isso é revelado, Ana Hickmann diz que é um produto, os comerciantes de Santa Cecília anunciam que vão deixar os moradores de rua sem comida. Tudo isso é estampado no jornal e, fora uma ou outra repercussão, passa, vira a página. Se passa, sem grandes alardes ou questionamentos, o que isso diz sobre nós? Nós também perdemos o pudor? Por que isso não nos espanta? Significa que é assim que olhamos para o outro e para nós mesmos? Ou achamos que podemos nos safar sem nos posicionarmos diante do mundo? Que isso não nos diz respeito?

Se alguém acredita que essa forma de ver o mundo, a si mesmo e ao outro, com a qual compactuamos em geral por omissão, não afeta sua vida, cada minuto da sua vida, desde que acorda e vai para o trabalho até a hora de ir dormir, está bem iludido. Ou de onde viria toda essa dor de existir, que transformou a depressão numa epidemia mundial? Em algum lugar desse corpo materializado em coisa, reduzido à mercadoria, há um resquício de humanidade. E é essa ínfima porção latejante, encarnada, mas desligada de toda carne que não seja a própria, que dói.

Concordar com Ana Hickmann e com os cidadãos de Santa Cecília é acreditar que nossa humanidade é um tumor que deve ser extirpado de nosso corpo coisificado. Uma sujeira que, como os mendigos, deve ser eliminada por fome e esterilizada com desinfetante. De fome, acho que muitos de nós estão se matando mesmo. Não a fome que vem da falta de comida, mas a que vem da falta de espírito, de transcendência, de sonho, de projeto coletivo, de potência transformadora, de tudo que não é estranho ao humano – só às coisas. Mas a esterilização ou anestesia por medicamentos, esta parece que não está adiantando muito.

A Ana Hickmann e ao seu sócio-marido, desejo que um dia tenham tempo para o que não é da ordem das coisas, mas do humano. Para o romantismo, o sentimento sem serventia ou controle, o vacilo. Que quando o que há de humano em Ana Hickmann errar, a agenda lhe permita se encostar ao ombro do marido e fazer o que chamam de “mela mela”. Aos bons cidadãos de Santa Cecília, peço emprestada a fala de um homem sábio que conheci. Ele se chama Muhammad Ashafa e é um líder muçulmano da Nigéria. Uniu-se a um líder cristão num país onde adeptos das duas religiões costumam se matar entre si. Juntos, estes homens que no passado quase mataram um ao outro têm defendido pelo mundo um “dia do perdão”. Contei sua história nesta coluna há quase um ano.

Deixo sua mensagem como sugestão de pauta para a próxima reunião do Conselho de Segurança de Santa Cecília, quando pensarem numa alternativa para o seu vizinho da rua que não seja lhes tirar o acesso à comida, uma que inclua ver moradores de rua como gente não descartável, mais parecida com eles mesmos do que gostariam: “Nossa segurança não está baseada nas armas, mas no quanto respeitamos o nosso próximo. Quando meu vizinho está com fome, eu vivo com medo. Se meu filho vai para a escola e o filho do meu vizinho não vai, a segurança do meu filho está em risco. Então devo investir na educação para que o filho do meu vizinho também tenha acesso a uma boa escola, para que ele não vire um marginal, forme uma gangue e queira ferir o meu filho. Devo fazer isso e não me armar e erguer muros entre mim e meu vizinho. Isso vale para as comunidades, para os governos, para cada um de nós. Quando você consegue fazer isso, você consegue dormir em paz. Porque seu vizinho tem condições de se reerguer por conta própria. Enquanto não fizermos isso, o mundo não será um lugar seguro para ninguém”.

Um tempo atrás, eu levava minha filha para o aeroporto numa das muitas manhãs cinzentas de São Paulo. Estava frio e garoava. Nós íamos caladas no banco de trás do táxi. De repente, o carro foi obrigado a parar por causa do trânsito. Testemunhamos então uma cena que guardei para a minha vida como um diamante da memória, daqueles que não podem ser comprados ou vendidos. Debaixo da marquise de uma loja, meio encoberto por papelões, um morador de rua erguia um bebê para cima com tanta alegria e tanto amor no olhar que o tempo parecia ter parado com o trânsito. Era um homem mais velho ou parecia mais velho pela brutalidade das ruas. Mas ele estava alheio ao mundo ao seu redor, à sua situação de rua, ao frio e à garoa, a tudo o que aconteceria depois. Seus olhos, seu rosto inteiro, brilhavam a ponto de chamar a atenção de quem passava. Seus olhos brilhavam de alegria pela criança que tinha nas mãos. Naquele momento, ele era um homem sem idade, sem classe social, sem classificação. Naquele momento, ele era só um homem diante do milagre da vida.

O trânsito avançou, o carro seguiu. E a cena ficou encarnada em mim. Desde aquele dia, meses atrás, eu queria contar essa história aqui, mas não encontrava jeito. Lembrei dela agora, diante de tanta gente bruta, com acesso à casa, à educação e a tudo o que o dinheiro pode comprar, mas que perdeu o acesso a si mesma. Nos cantos de mundo, nos cantos da rua, nos cantos de cada um de nós a humanidade resiste. Resiste onde menos se espera, resiste mesmo contra a nossa vontade. Resiste até mesmo quando supostamente atrapalha nossa produção, nossa performance ou nossa “coisicidade”.

(Publicado na Revista Época em 07/06/2010)

Dentes

O sonho se repetia desde que tinha dez anos. Acordava pela manhã e, diante do espelho do banheiro, descobria que lhe faltava um dente. Apalpava o buraco e outros dentes começavam a cair. Um após outro. Os dentes eram arrancados como flores ordinárias, daquelas que crescem no vão do concreto. Logo, já eram folhas de outono que se despregavam de sua gengiva sem aviso. Até que ela não tivesse mais dentes. Sentia enorme vergonha de sua boca despida, gengiva rosada e exposta. Acordava gritando.

Fora sempre assim. Pelo menos uma vez por semana tinha aquele mesmo sonho. Tão real que permanecia acordada na cama até que a manhã chegasse e a encontrasse com a mão em garra sobre a boca. Arrastava-se até o banheiro com medo de se olhar no espelho e descobrir que era verdade. Naquele dia carregava pelo mundo um par de pernas bambas. E uma sensação de nudez e de vergonha. Naquele dia não sorria. Apenas sussurrava, entre dentes.

Agora adulta, o marido conhecia a matéria de seus terrores. E quando o pesadelo vinha, ele a abraçava forte. E a obrigava a apalpar cada um de seus dentes, começando pelos molares, para ter certeza de que tudo não passava de um sonho ruim. Ela então fingia adormecer, para que ele pudesse voltar a dormir. Mas dentro dela sabia que os dentes não estavam onde deveriam estar. Que sua mordida era falsa.

Com a desculpa de problemas de digestão, passou a comer apenas sopas, purês e gelatinas. Para não ter de mastigar. Começara a ter pavor daqueles dentes que ora estavam lá, ora não estavam. Tivera dentes seus um dia, mas aqueles eram alienígenas. Mais certeza teve quando o dentista demitiu a assistente depois de descobrir que sua ficha só podia ter sido trocada. Dentro de sua boca não havia mais aquelas dez restaurações e dois tratamentos de canal marcados no papel. Ela tinha uma dentadura espantosamente saudável para alguém da sua idade.

A partir desse momento, seu horror aumentou. Era como se o inimigo habitasse sua boca como um parasita agressivo. Começou a definhar porque tinha medo de alimentar os dentes. Arrastada para o médico pelo marido, lhe foi receitado ansiolíticos e remédios contra a insônia. Ela dormia com o peso de vários corpos agora, mas uma vez por semana o sono era interrompido por gritos seus.

Foi o que aconteceu nesta noite. Ela despertou aos berros, molhada de um suor frio e pegajoso. Vou tomar um banho morno para me acalmar, disse ao marido para sossegá-lo. Estremunhada de pavor e de sono, arrastou-se até o banheiro e com as mãos em concha jogou água no rosto. Olhou-se então. Tremendo, foi abrindo a boca bem devagar. Não havia nada ali.

Só um buraco negro que parecia querer aspirá-la. Surpreendeu-se com o alívio que sentiu. O pesadelo de toda uma vida era agora a sua redenção. Os dentes que não eram dela haviam finalmente partido.

Jogou mais água no rosto. Quando olhou de novo para o espelho, mal teve tempo de ver os dentes avançando sobre sua nuca.

Vida de photoshop

O que a Lisbeth Salander de Hollywood não dirá sobre nós

Assisti na semana passada ao filme baseado no primeiro livro da trilogia Millennium, do sueco Stieg Larsson: “Os homens que não amavam as mulheres”. Como milhões de pessoas no mundo inteiro, fui capturada por Lisbeth Salander, a perturbadora (e perturbada) hacker que desvenda nossa sombria humanidade (e alguns crimes) em parceria com o jornalista idealista Mikael Blomkvist. Sou fascinada por literatura policial e li os três volumes quase de uma vez só. O autor, um jornalista que morreu de enfarte antes de ficar milionário, conseguiu criar algo que poderia ser considerado um dos primeiros romances policiais pós-modernos. Ao começar a assistir ao filme, porém, tive um estranhamento. E foi um ótimo estranhamento.

O filme, falado em sueco, é uma produção conjunta da Suécia, Dinamarca e Alemanha. Logo de cara, eu me surpreendi com o ator que interpreta Blomkvist. O ator Michael Nyqvist é charmoso, mas tem cicatrizes de acne no rosto e barriguinha de sedentário. Em seguida, estranhei as rugas de Erika Berger, a sócia (e amante) de Blomkvist na pequena e combativa revista Millennium. Na sequência, me espantei com a acanhada redação da revista. Eu imaginava um conjunto pequeno, mas estiloso e muito moderno. E assim segui, de estranhamento em estranhamento. À primeira vista, só aprovei Noomi Rapace, a atriz que interpreta Lisbeth Salander, muito jovem no livro e no filme. E bem mais bonita no filme do que sua descrição no livro.

Até que compreendi (por sorte no início do filme). Era isso! Enquanto lia os livros, eu havia imaginado os personagens. Normal, nunca será como a gente imagina. A questão é que minha imaginação está condicionada pelos blockbusters de Hollywood. No livro, fica claro que Blomkvist está fora de forma. Que a revista luta com dificuldades financeiras. Que Erika é uma mulher que passou dos 40. E assim por diante. Mas eu imaginava um filme de Hollywood, onde os heróis têm barriga tanquinho, as mulheres chegam aos 60 com carinha de 30 e a pobreza tem estilo. Até as marcas, quando existem, são estetizadas.

Vejo muitos filmes que não atendem à estética dos blockbusters de Hollywood, óbvio. E até alguns de Hollywood que não se curvam ao modelo vigente. Mas são filmes que versam sobre outros temas. Quando vou assistir a um filme francês, alemão, japonês, coreano, iraniano, israelense, brasileiro etc, sei que vou ver gente normal, gente com marcas. Mas uma história policial com vocação de blockbuster, hoje, é quase sempre produzida por Hollywood. Neste escaninho do filme policial, de suspense, de ação, as imagens já vêm à minha cabeça no formato Hollywood.

Foi assustador perceber o quanto esta estética condiciona a minha imaginação, está entranhada no meu cérebro, apesar do meu constante questionamento. Eu já tinha um filme de Hollywood na minha cabeça quando fui assistir a um filme sueco, baseado num livro que se passa na Suécia, escritor por um autor sueco, com personagens que são cidadãos suecos.

Desconfio que o filme não fez tanto sucesso por aqui por causa desse estranhamento. Achei o filme bastante bom. Acompanho agora, nos sites e blogs especializados, a expectativa pela produção hollywoodiana da trilogia, com comentários como: “agora sim, a obra terá a adaptação que merece” ou “a trilogia está salva”. Para o papel de Blomkvist, especula-se com os nomes de Brad Pitt e George Clooney, entre outros. Agora sim, teremos um jornalista mais sedentário do que gostaria, fumante, passado dos 40, sem marcas e sem barriga, com muitos músculos e todos no lugar. Para encarnar Lisbeth Salander, uma garota de 20 e poucos anos com corpo de 12, esquisita, desajustada, muito longe de qualquer padrão de beleza, já foram cogitados os nomes de Kristen Stewart, Natalie Portman, Anne Hattaway, Carey Mulligan e até Scarlett Johannsson, entre outras. Com certeza, quando for lançada, a versão hollywoodiana fará muito mais sucesso que a sueca. A maioria de nós terá a sensação de que finalmente está tudo no seu lugar.

Mas a verdade é que está tudo fora do seu lugar – e não da forma que nos leva a algum lugar, mas da forma que nos deixa na mesma.

A estética que impera em Hollywood tem o mesmo sentido da que domina as novelas brasileiras e as revistas de celebridades. Vivemos em um país de gente cheia de cáries e falhas nos dentes ainda hoje. Mesmo quem cuida bem da sua boca – e tem dinheiro para bons dentistas – não envelhece sem ver seus dentes se gastarem e amarelarem. Mas atores e atrizes, jornalistas e apresentadores, todos que aparecem na TV, exibem uma dentadura de comercial de creme dental. Minha dentista me conta que as pessoas aparecem no consultório com capas de revista na mão, dizendo: “Eu quero dentes iguais a estes”.

Fico imaginando um historiador, no futuro, revirando os arquivos da imprensa do início do século XXI. Ele vai ler uma tonelada de páginas, impressas e virtuais, sobre celulite, por exemplo. Mas vai ter muita dificuldade para descobrir por que a celulite era uma questão para as mulheres desta época, já que não vai encontrar uma única criatura do sexo feminino com celulite. Quem aparece é linda, magra e mantém o corpinho liso, “sem o famoso efeito casca de laranja”, à custa de um pouco de malhação e alimentação saudável. Algumas nem gostam de fazer ginástica, é puro dom da natureza. O historiador do futuro vai estar diante de um enigma digno da esfinge do mito de Édipo: a celulite é uma grande questão para a mulher do início do século, mas nenhuma mulher tem celulite.

As celulites só aparecem quando se trata de “denunciar” uma celebridade que foi flagrada por um paparazzi em estado natural. Neste caso, para ser ridicularizada. Ahá, te peguei, você é igual a mim. Vingança. De novo, um pesquisador que analisar nossa época vai ter problemas, porque não vai saber qual é a imagem verdadeira: a que passou pelo photoshop e está em todas as capas – ou esta, que se apresenta como um flagrante.

Os documentos que deveriam ser testemunhos do nosso tempo estão quase todos “photoshopados” desde que as fotografias se tornaram digitais e passaram a ser manipuladas, retocadas para eliminar marcas e imperfeições ou alteradas para imprimir determinado efeito. “Tratadas”, no eufemismo do jargão. Até as fotos de políticos, empresários e jogadores de futebol em geral passam pelo photoshop, para melhorias aqui e ali. Embora existam uns poucos órgãos da mídia que resistem, a maioria se rendeu aos retoques da realidade.

Basta conversar com colegas em diferentes redações – e não apenas nas de revistas de celebridades – para descobrir que o tamanho da foto e o espaço do personagem na matéria são definidos cada vez mais em função de sua beleza e juventude. Para um feio ou velho virar capa, em boa parte das publicações ele tem de ter feito um sucesso estrondoso. Ou ser tão famoso ou tão rico que se tornou bonito ou sem idade. E os bonitos e jovens ficam mais bonitos e jovens ainda por obra do photoshop.

Alguns jornalistas contam que chegam das entrevistas e o editor lhes pergunta: “Mas fulana é bonita, rende abertura de matéria ou capa?”. Ou, depois de conferir a foto: “É muito feia, não dá para botar na matéria. Não resolve nem com photoshop!”. E, se não for bonita, “não vende”. Em algumas redações, criou-se inclusive a exigência de que o repórter faça uma foto do entrevistado com seu celular, para que o editor possa avaliar se está dentro dos padrões de beleza e juventude exigidos. Alguns desses colegas entram em crise quando percebem que já introjetaram o modelo e começam filtrar os entrevistados também pela aparência – e não apenas pela relevância do que têm a dizer.

Estou falando agora não mais de Hollywood ou de telenovelas, mas de jornalismo, cuja busca da verdade é um dos pilares mais fundamentais. E poucas coisas podem ser mais verdadeiras – ou falsas – que a imagem e a escolha da imagem. Tive a sorte de nunca ter sido pressionada a fazer esse tipo de escolha – e a serenidade de saber que, se fosse, não aceitaria.

Tudo isso revela alguns caminhos por onde um tipo de olhar vai impregnando nosso modo de ver o mundo, aos outros e a nós mesmos. A cada dia nós vamos às ruas e enxergamos a realidade e as pessoas como elas são. A cada manhã nos olhamos no espelho e encaramos nossas marcas. Mas cada vez mais acreditamos e esperamos que exista uma outra imagem do mundo – e uma outra imagem de nós mesmos. Uma que não tem marcas, não engorda e não envelhece. E começamos a acreditar que esta é a imagem mais verdadeira.

Sofremos não pelo que somos, mas pelo que deveríamos ser e nunca seremos, por mais caros que sejam os cremes, mais sofisticadas e invasivas as cirurgias plásticas. Mesmo assim, passamos a medir nossa vida – ou nosso sucesso na vida – por essas duas imagens que jamais se tornarão uma. Passamos a acreditar que o que deveríamos ser – e não o que somos – é nossa versão mais verdadeira. Emprestamos verdade à imagem “photoshopada” dos homens e mulheres das capas das revistas. E falsidade ao nosso rosto no espelho. Como não inventaram um photoshop da vida, sofremos. E nos vemos sempre aquém do melhor de nós mesmos.

O que nem todos percebem é que, por mais que a indústria do entretenimento, a publicidade e, em alguns casos, também o mau jornalismo, tentem nos convencer do contrário, só há um jeito de não ter marcas: não viver. O vivido se inscreve em nós pelas marcas, as físicas e as psíquicas. Elas são o inventário de nossa vida. A prova de que vivemos.

Por isso temo pela versão de Hollywood da trilogia Millennium. Não tenho a menor dúvida de que será bem produzida. Mas, talvez, bem demais. A curta obra de Stieg Larsson conquistou o sucesso que tem porque o escritor criou personagens com muitas marcas da vida. Que ecoam em nós porque nos perturbam, porque nos reconhecemos neles. A mais jovem desses personagens, Lisbeth Salander, tem tantas marcas psíquicas na alma, que precisou tatuar no corpo marcas com as quais pudesse se identificar e, então, pertencer mais a si mesma. Ela, que foi violada e arrancada de si mesma de tantas maneiras, a ponto de não ter nem a tutela da própria vida.

Assim, é sempre possível apaziguar a alma à espera da próxima redenção de Hollywood. É como tantos de nós têm vencido os dias. Mas, se quisermos ter uma vida de photoshop, só há um jeito (e não é o bisturi): morrer ao nascer.

(Publicado na Revista Época em 31/05/2010)

Quentinho

Fazia um frio de geladeira quando entrou no apartamento. Nos últimos tempos aquele frio parecia fazer parte dela. Tanto quanto o sangue, a saliva. Mais do que os dentes. Havia sido um dia de nada. Ela se sentia um nada. Um nada que doía. Desconfortável dentro de um corpo que envelhecia, um corpo que engordava e produzia protuberâncias em lugares estranhos. Olhava para seu rosto e não reconhecia aqueles olhos bovinos. Quem era aquela? Sabia pela dor. A dor a encarnava.

Era tudo tão pequeno e doía. Aquele chefe com remela no canto do olho que a ignorava. Aquele colega que riu quando ela passou. O cobrador do ônibus que não respondeu ao seu bom-dia. O cabelo que não se ajeitava. Ela passara o dia inteiro se obrigando a sorrir um sorriso ignorado por todos. Até o porteiro do prédio não olhou para ela, nem mesmo diante de seu esforço para fazer um comentário sobre a seleção de Dunga. Ela que não entendia nada de futebol. A comédia romântica que pegara na locadora para o final de semana pesava vazia na sua bolsa. Era isso, então, ser adulta?

Pior que sentir tanto frio era senti-lo não por avalanches de neve, mas pelo granizo vulgar da rua. Ela sonhara ser uma mulher de altitudes e atolava em pequenezas de ralo. A cada final do dia, quando voltava para casa, percebia que o frio tinha encolhido ainda mais o comprimento dos seus ossos e ela agora era quase uma anã.

Abriu a porta do apartamento com uma chave hesitante. Do outro lado estava o homem que a amava. Ele olhou para ela e sorriu um sorriso que era só para ela. O homem que a enxergava. O homem quentinho. Ele a abraçou e ela sentiu o gelo estalar. Mais nada. Quero ficar grudada em você, falou. Fica, ele disse. Quero entrar em você, morar dentro de você, no verão de você. Vem, ele disse.

Quando acordou, a cabeça enterrada dentro da cavidade torácica dele, ele estava morto.

Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento

Uma conversa com o psicanalista Mário Corso sobre o politicamente correto

Era uma vez um mundo de gente muito chata. E um tanto perigosa. O Saci estava ali, na dele, pulando numa perna só e aprontando umas e outras, quando… zás! Sequestraram seu cachimbo. O Saci olhou para um lado, olhou para o outro, e viu umas criaturas de olhos estalados e cara de melhores intenções. O Saci não tem medo de quase nada, mas descobriu que morre de medo de seres com cara de melhores intenções. É para o seu bem, disseram os entes desconhecidos. Fumar faz mal. E dá mau exemplo. Se você for bem bonzinho, a gente lhe dá uma prótese aerodinâmica para você saltitar com duas pernas. O Saci disse que estava muito bem obrigado com uma perna só há alguns séculos e ficaria bem satisfeito se pudesse pitar seu cachimbo sem nenhum enxerido apitando no seu ouvido. Não adiantou. Aqueles seres só tinham certezas – e uma delas era saber o que era melhor para ele.

Desde então, vem aparecendo uns sacis sem cachimbo – e sem magia – por aí. Não bastassem lobos que em vez de avós comem cenouras, crianças que não atiram pau no gato e madrastas da Cinderela com doutorado em pedagogia, resolveram mexer com o Saci.

O ataque mais recente foi denunciado no Rio Grande do Sul, semanas atrás. O Internacional, time gaúcho de futebol, está sutilmente escanteando o Saci, símbolo do clube. E substituindo-o por um macaco chamado Escurinho. Na condição de gremista, eu achei até bom. Porque o Saci, bem invocado, poderia piorar bastante a situação do clube que não só lhe arranca o cachimbo nas poucas imagens em que ele ainda aparece, como o renega pelas beiradas. Mas o Saci está acima das rivalidades futebolísticas. E tudo tem limite nessa vida.

Diante do questionamento de torcedores, o diretor de marketing do clube, Jorge Avancini, respondeu ao colunista Wianey Carley, de Zero Hora, que o Saci continua sendo a mascote do clube, “o Escurinho é a mascote dos projetos sociais”. Ah, bom. Um ponto da resposta é particularmente interessante. Na tentativa de ser politicamente correto, Avancini escorregou. Não um escorregãozinho qualquer, mas um que foi de Porto Alegre a Uruguaiana.

Para mim, coisa do Saci. Ninguém diria isso de livre e espontânea vontade. Confira: “O Saci hoje tem rejeição por parte das crianças, pelo fato de não ter uma perna, isso é visto como perdedor, e por fumar cachimbo, além de ser politicamente incorreto, as crianças estão associando este ato ao ato de fumar Crack. Se observares onde temos usado o Saci, ele já aparece sem o cachimbo”.

Dá para imaginar uma criança olhando para o Saci e pensando: “Bah, vou fumar crack!”? Ou um dirigente de clube dizendo a um jornalista que as crianças rejeitam o Saci porque não ter uma perna é coisa de perdedor? Pois é.

O fato é que o Saci é apenas mais uma vítima. (E eu, aqui no meu canto, quero continuar sua amiga.)

É natural que os personagens dos contos, do folclore e também das fadas, sofram mudanças ao longo do tempo. Eles podem mudar, como tudo, mas não sofrer um processo de limpeza que arranque deles a sua essência, o que de melhor têm a nos dizer. E, no caso da patrulha politicamente correta, arranque deles os conflitos, as diferenças, o estranho e o incômodo. Tudo aquilo que há séculos cumpre a função de nos ajudar a elaborar nossos mais fundos temores. Não é a toa que as crianças pequenas pedem para repetir sempre a mesma história – e sempre do mesmo jeito. Ali, elas podem controlar o final, administrar o medo, começar a aprender a lidar com a violência, os conflitos e o estranhamento inerente a toda vida.

Para além do bizarro destas intervenções, há algo sério em curso. Algo sobre o qual precisamos pensar. E que não é coisa só do Brasil, mas vem se esparramando pelas democracias ocidentais, já que nos regimes totalitários a censura é de outra ordem e sem nenhuma sutileza. Em 2008, por exemplo, uma agência educacional do governo britânico proibiu uma versão da história dos Três Porquinhos nas escolas, porque ela poderia ofender os muçulmanos. Outro fator que pesou foi o fato de que o conto seria uma ofensa aos pedreiros e construtores, ao tratá-los como “porcos ignorantes, que constroem casas que podem ser derrubadas pelo vento”. Só para ficar claro que a ausência de pensamento não tem limites geográficos.

É importante que o cravo continue a brigar com a rosa (e não tenham uma vida de flores de plástico), a madrasta seja uma bruxa má (e não vá para a balada de mão com a Cinderela) e o lobo devore a avó (e não seja vegetariano ou, infâmia das infâmias, prefira tomar refrigerante, como numa história que li dias atrás). A fantasia – e a arte – é o território onde lidamos com nossas verdades mais profundas. E não podem ser enquadradas pela cartilha de uma pseudo-pedagogia que tem pavor de conflitos e do lobo mau.

Para nos ajudar a pensar sobre o furor politicamente correto e os efeitos sobre nossa vida e a de nossas crianças, procurei o psicanalista Mário Corso. Ele é autor de dois livros imperdíveis: Monstruário – inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros (Tomo Editorial, 2002) e Fadas no DivãPsicanálise nas histórias infantis (Artmed, 2006), este último escrito em parceria com a também psicanalista Diana Lichtenstein Corso. É uma conversa longa, como todas as boas conversas.

EU – Assistimos há alguns anos a uma espécie de “purificação” dos personagens infantis, tirando deles tudo o que é diferente, incômodo ou revelador de conflitos. Mais recentemente, começaram a implicar com o cachimbo do Saci. Ele seria um mau exemplo para as crianças e também para os adultos. Faz algum sentido um Saci sem cachimbo?
Mário Corso – O Saci é um dos raros trickster do nosso folclore. O trickster é um ser enigmático, nunca sabemos o que esperar dele. Afinal, ele pode ser bondoso ou maldoso, nos ajudar ou nos atrapalhar, nos dar um presente ou nos roubar, enfim, a sua essência é ser imprevisível. Além disso, o Saci é um ser do ar, provoca e vive nos redemoinhos. É natural que seu alimento, por excelência, seja a fumaça. Vão é matá-lo de fome se tirarem o cachimbo!

EU – Um Saci sem cachimbo é ainda um Saci? Ou é outra coisa? Daqui a pouco vão colocar uma prótese nele… O que acontece quando a gente esvazia estes personagens daquilo que os constitui?
Corso – Acontece como aconteceu a outras figuras: a gente se esquece delas. Como elas vão cada dia nos dizendo menos, elas caducam e desaparecem. A gente ainda conhece a Mula-sem-cabeça, mas a sua prima Cumacanga não. A gente vê filme com Zumbi, mas não conhece o Corpo Seco, figuraça de horror que assombrava nossos avós. Mas com o Saci acho difícil. Creio que o Saci ficou tão popular porque representa as três raças. Ele é negro, mas usa um barrete vermelho, bem ao velho estilo português, que é, aliás, a fonte de seu poder. E usa o fumo, que é um dos “presentes” que a América deu à humanidade. Ou seja, o gosto pelo fumo é o seu elemento índio. Sem cachimbo, ele perde um pouco da sua força, mais ainda é um saci. Quem sabe dias melhores virão, quando o tabagismo e o crack não sejam os demônios a serem domados e lhe restituam seu cachimbo.

EU – O Saci não é a primeira vítima desta ânsia purificadora. Os contos de fadas foram sendo alterados ao longo dos séculos, para se tornarem mais palatáveis às sensibilidades do momento. Especialmente a partir do século 19, quando viraram histórias para crianças. Há algum tempo, passam por uma nova mudança, com releituras politicamente corretas. O que acontece com as histórias e com as crianças que ouvem as histórias, quando é promovida esta “limpeza”?
Corso – Na verdade, os contos foram se adaptando ao público. Existem três migrações importantes e cada uma deixou uma marca. Não necessariamente elas seguiram uma ordem, mas podemos sistematizá-las assim: 1) os contos de fada provêm da tradição folclórica oral e, naquele momento, não pertenciam a nenhum público específico; 2) as histórias mudaram de veículo e ganharam um registro escrito, modificando então seu habitat, já que não eram contadas mais nos serões de trabalho e sim nas cortes, ou seja, deixaram o campo e vieram para a cidade; 3) por último, foram destinados às crianças. Cada mudança implicava uma adaptação a uma sensibilidade diferente. Perderam, portanto, certa crueza e rudeza camponesa.

Além disso, depois que ficaram exclusivamente infantis – e na medida em que se acredita na influência educadora de tudo o que se ministra à infância –, é natural que tenham ganhado um filtro adicional, especialmente nos aspectos que remetem à questão sexual. Mas houve também a limpeza de várias outras arestas, como passagens mais violentas, francamente incestuosas, canibalismo, esquartejamentos, tortura de vilões, filhas entregues a monstros, adultério e outros eventos mais espetaculares que divertiam seu público original, que pedia mais emoção. Quem se preocupa com os filmes violentos e o gosto dos contemporâneos por emoções fortes não se dá conta que os camponeses daquele tempo achariam Tarantino uma florzinha.

EU – Estaríamos então passando por mais uma mudança nos contos de fadas e no folclore brasileiro, com o politicamente correto? O quanto é relevante esta intervenção de certo tipo de pedagogia nos contos de fadas e no folclore? Isso no caso de podermos chamar de pedagogia uma intervenção que busca eliminar os conflitos em vez de trabalhar a partir deles…
Corso – Existem coisas que se pode dizer e coisas que não se pode dizer, esta é a lógica do politicamente correto. Aplicado a questões raciais e sexistas, o discurso de correção política pode ser muito bem-vindo. Por exemplo, eu mesmo fico muito contente em não escutar mais as piadas racistas que escutava na minha infância. Nunca gostei de escutar esse lixo, me fazia mal. Mas chegando à discussão política, aos temas amplos contemporâneos, é um desastre.

O politicamente correto na política já não é só uma escolha de palavras, mas é uma forma de não pensar. Ela pressupõe certos axiomas, especialmente o “coitadismo” e a vitimização do cidadão. E, como contrapartida, a responsabilidade total do Estado: se as coisas chegaram aonde chegaram é por que o Estado em algum momento falhou. As pessoas, os cidadãos, não falham. Eles são sempre bons e oprimidos por forças superiores.

A questão aqui é definir o que se entende por um discurso politicamente correto. Se você está pensando em algo como “1984”, de George Orwell, eu concordo. Ou seja, ele projetou nesse livro um mundo em que o totalitarismo venceria – e para quem viveu no século XX foi um pesadelo bem possível. Uma das consequências do totalitarismo seria a “novilingua”. Esta língua teria um número mínimo de palavras, feitas para diminuir a capacidade de pensar e, consequentemente, a de manifestar críticas ao governo. A lógica era a de que só corrompendo a linguagem era possível corromper o pensamento. Os fascismos e o stalinismo e várias ditaduras nos deram demonstrações práticas de um vocabulário oficial como este. É bom lembrar que os governos autoritários são muito atentos às palavras – mais do que as democracias.

Porém, a questão que nos interessa: seriam sociedades ditas democráticas imunes à corrupção da linguagem? Será que nestas sociedades democráticas encontraríamos a plena expressão? Escutando certas pessoas, eu penso que, infelizmente, não. Estamos utilizando novas formas de “novilingua”. Isso tanto na política quanto na linguagem empresarial, nos discursos sobre marketing.

Também poderíamos dizer que andamos falando “Jerkish”. Ivan Klima, um romancista tcheco, usou essa palavra para designar a linguagem oficial da cortina de ferro. Na origem, “Jerkish” quer dizer uma linguagem desenvolvida para falar com chimpanzés, portanto sem possibilidade de metáfora, onde tudo é direto. Pão-pão, queijo-queijo – ou então banana-banana. Na verdade, trata-se de um vocabulário oficial baseado em clichês e que nos faz falar sem dizer nada. Não sai nada além da informação mais banal e esperada. Quem fala com esse vocabulário dá voltas e mais voltas nas questões, diz o que é previsível, o óbvio ululante, e estamos conversados.

A questão principal é que o “Jerkish” não pede a marca singular de quem fala. Dessa forma, todos ficam iguais, independentemente se enunciado por um ou por outro. O que é dito será a mesma coisa, já que essa linguagem não permite um estilo próprio. O resultado é um empobrecimento da linguagem, e, em decorrência, o esvaziamento do pensamento.

EU – O politicamente correto é um fenômeno da nossa época?
Corso – Quem acha que a correção política é nova não é atento à História. Depois da Revolução Francesa, por exemplo, houve um surto de correção política. A abelha rainha tornou-se abelha poedeira (abeille pondeuse). E também houve trocas nos baralhos e nos jogos de xadrez. Nada de reis, rainhas, valetes, bispos… Os baralhos vinham com “liberdade, igualdade, fraternidade”. O “vous”, que supunha uma certa assimetria social, foi trocado pelo “tu” ou “tois”. A esperança revolucionária era substituir todo “vous” por “tu”. “Monsier” e “Madame” viraram “Cidadão” e “Cidadã”. Hoje, a gente pode até rir disso, mas os revolucionários achavam isso uma grande questão.

Mas, voltando. Sim, podemos dizer que os contos de fada, as histórias e canções para as crianças, podem estar ganhando mais uma “limpeza”.

“Ao tentar proteger os filhos, os deixam sem armas para o pior”

EU – Que mundo é este que precisa “limpar” os contos de fada e as histórias do folclore brasileiro? Não sei que palavra você usaria para o que está acontecendo já há algum tempo… Censura? De onde vem essa necessidade?
Corso – É um pouco de tudo, algo entre uma nova sensibilidade e a censura. Um conto muito popular até o século XIX era Bicho Peludo (ou Pele de Asno). Ele tem como mote o desejo incestuoso de um pai por sua filha. Ora, isso não é bem visto hoje, logo a história não é mais contada. Certamente Disney não vai fazer uma versão. E olha que ela era tão popular como Cinderela! Vivemos tempos psicológicos, sabemos ou intuímos o que as histórias mais transparentes nos dizem e temos uma convicção interior de que as obras de arte ou ficção mobilizam elaborações e sentimentos importantes. Portanto, passamos a evitar a evocação de assuntos polêmicos quando nos dirigimos às crianças. Talvez na esperança mágica de que o conflito não se estabeleça.

EU – Quem perde com isso?
Corso – Quem perde com isso são as crianças. São os adultos que censuram, mas são elas que deixam de dispor de excelentes histórias, que poderiam ajudar a dramatizar os conflitos que vivem. Ou alguém acredita que uma menina vai deixar de se apaixonar por seu pai e querer que a mãe suma do mundo só por que não escutou uma história infantil?

EU – Esta ânsia de eliminar os conflitos, como se os conflitos fossem ruins e incompatíveis com os bons valores da vida, é movida por qual desejo?
Corso – O que está por trás de tudo é proporcionar uma “boa educação” para as crianças e não poluí-la de maus exemplos. O mesmo serve para a violência, como se a violência fosse fruto não das relações reais que a criança vive, mas do mundo da imaginação. O que esse pessoal que acredita nessa pedagogia cor-de-rosa demonstra é que conhece muito pouco de seus filhos e esqueceu totalmente da sua infância. Esqueceu os fatos, mas de certa forma é traumatizado pela infância, tanto que quer evitar que seus filhos tomem contato com as fantasias que eles viveram e não elaboraram.

O que temos aqui é uma transmissão do medo que eles sentiram na infância. Ao tentar proteger seus filhos os deixam sem armas para o pior. Serão crianças que, sem trânsito mais aberto pelo mundo da fantasia, o que poderia treiná-las para o mundo real, vão viver os golpes do destino da forma mais dura. E ninguém pode viver sendo poupado.

Portanto, mais do que exercer uma atividade de censura, no sentido de julgamento moral, a transformação dos contos de fadas em histórias mais suaves ou mesmo didáticas provém muito mais de uma condição neurótica de pais e educadores. Eles tentam criar condições para uma infância livre de conflitos, como se isso fosse possível.

Cada novo indivíduo que nasce está fadado a ter seus sofrimentos neuróticos, que são normais e dão consistência à personalidade que ele está construindo. Seus adultos, porém, gostariam que ele fosse livre de tudo isso. O ideal dos adultos é o transcurso de uma infância e adolescência que sejam leves, uma vida de puro prazer e liberdade, uma onde eles imaginam que seria bom terem crescido.

Não estamos defendendo que se mantenha a versão da Chapeuzinho Vermelho na qual o lobo a convida a comer a carne do corpo da vovó assassinada, mas que se mantenham as histórias com direito a dramas mais encorpados, onde a complexidade do destino e da personalidade não fiquem tão abafados. Os pais e escolas de hoje “escaneiam” os livros em bibliotecas e livrarias buscando eliminar qualquer coisa que possa angustiar os pequenos. Mas eles se angustiam igual, porque a infância é uma época difícil de viver, e não há outro jeito de atravessá-la. Sentir coisas fortes sozinho é pior. A criança se sente maluca, estranha.

EU – Há algum risco dessa “reforma” nos contos de fadas e outras histórias infantis vingar? O cinema, os games e a literatura continuam produzindo vilões. Do contrário, provavelmente teriam prejuízo. Não dá para imaginar Harry Potter sem o Voldemort, por exemplo. Até mesmo “Up – altas aventuras” tem um vilão interessante….
Corso – Vinga e não vinga. Uma coisa é o que a intenção pedagógica reinante quer, outra é o que as crianças vão buscar. Existe um sem número de livros infantis e programas de crianças que são falidos, ficaram pelo caminho. As crianças cheiram o cavalo de tróia da vontade moralizadora e nem o deixam entrar. Os grandes estúdios, as grandes editoras e especialmente os games, que movem um montante de dinheiro incrível, sabem do gosto infantil por sentir medo, por temer vilões, e fabricam esses pequenos diabos para deleite dos pequenos. Não é a indústria cultural de produtos para a infância que tem essa visão moralizadora. É o espírito da nossa época, dos pais e mestres contemporâneos que acreditam que é possível e necessário educar também através das obras e personagens da cultura infantil. Invadem então o território da fantasia com tarefas escolares e tentam usar a ficção como veículo para seus sermões subliminares.

EU – Nos contos de fadas, em geral os vilões são bem populares. Por quê? Imagino que nenhuma mãe precise ficar preocupada se seus filhos gostarem do lobo mau ou da bruxa da Branca de Neve…
Corso – O mundo é muito perigoso, até para os adultos. Imagine então para as crianças, que são frágeis, pequenas, dependentes, e que não entendem metade do que está acontecendo. Como é que elas não vão querer brincar e fantasiar com o elemento do medo? O medo na fantasia é controlado, a criança pode evitá-lo, se aproximar, se afastar, ter a ilusão de controle. Enfim, ela dialoga com algo que lhe é importante. Por isso o vilão é importante. Ele é o mal, e cada um quer saber como se defender dele. O mal é um grande assunto.

O mundo não vai ficar melhor se privarmos as crianças da violência dos games, das histórias, que não é nada mais do que um aprendizado para uma violência que um dia ela vai ver na realidade. Ninguém fica violento porque joga games, eu diria até o contrário. Salvo raríssimos casos de crianças gravemente perturbadas, todas as crianças têm muito claro o que é fantasia e o que é realidade. O nosso mundo é que é violento, esses produtos são só um reflexo disso. Não adianta tentar arrumar a violência real pelo cerceamento da violência virtual. Isso é uma bobagem.

“Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice”

EU – É possível educar para a não-violência?
Corso – Eu acredito em uma educação para a não-violência, mas esta deve ser feita nas relações reais que essa criança tem, na forma como ela deve tratar os outros, os seus semelhantes, a funcionária que trabalha em sua casa, o porteiro do prédio, os colegas da escola que são mais tímidos, os velhos. Como os pais não educam seus filhos onde devem educar, ficam tentando o caminho mais fácil, imaginando que é nos seus brinquedos e fantasias que está a chave para a formação do caráter.

Educar dá muito trabalho, mas muito trabalho mesmo. Essa é a chave, e nem todos estão preparados para isso, pois é preciso ler um pouco, sair do senso comum, cultivar-se. Os pais não preparados para a função projetam no mundo, em especial na mídia, a responsabilidade pela formação moral dos seus filhos. Por isso essa histeria com a violência e a sexualidade nas histórias infantis, na TV, nos games.

EU – Se as crianças procuram o medo, usam as histórias para elaborar suas questões, faz sentido histórias em que todo mundo é bom, se dá bem e não há nenhum conflito? Para que serviria uma história como essa?
Corso – Histórias assim tão chatas só servem para tranquilizar pais medrosos. Por outro lado, esse tipo de obra, que no fundo é paradidática, presta um desserviço para a literatura. Através desse tipo de narrativa – que era para ser literária e na verdade é pedagógica – afasta-se a criança da experiência estética, que é a de se emocionar com uma narrativa, com uma imagem que as traduza poeticamente, que as faça entender algo além da compreensão racional. A arte pode ser nossa melhor tradução, ou talvez a tradução do melhor de nós. Ao reduzi-la à educação, como tanto se tentou nos regimes totalitários, mata-se ao mesmo tempo a obra e seu público.

EU – E histórias como a do Shrek, em que os lugares são embaralhados… O monstro é o herói (ainda que como anti-herói), a princesa arrota e prefere ser ogra etc. Continua tendo vilões, mas o vilão maior é o príncipe encantado e a fada madrinha… Histórias como esta têm espaço para a elaboração, na medida em que, embora embaralhem a identidade de vilões e heróis, reproduzem os conflitos clássicos?
Corso – Shrek é um exemplo perfeito da atualização possível dos contos de fadas, que têm sido umas dos raros elementos da tradição que apresentam eterna vitalidade em nossa sociedade tão fascinada pelo novo. Para isso, porém, precisam se reciclar a cada nova geração de crianças. Para as atuais, um herói tem que ter consistência emocional, o antigo e simples maniqueísmo é pobre para elas. O ogro verde tem conflitos interiores, para se socializar, para aceitar os outros e se aceitar. E isso é muito compreensível para as crianças, que se vêem psicologicamente retratadas nele, que também é tão deliciosamente humano em seu corpo gordinho e produtor de todo tipo de gases.

Além disso, há o humor, que é um pré-requisito de crítica e inteligência da qual nem as crianças nem nós, adultos, abrimos mão. O humor é o grande herdeiro artístico de todas as revoluções que já protagonizamos e vivemos. Enquanto ele sobreviver, nenhuma ditadura será eterna.

Para as crianças, há poucas idealizações disponíveis. Nem seus pais, nem mestres, nem governantes, nem mesmo deuses estão disponíveis para serem admirados irrestritamente. A irreverência chegou para ficar entre os humanos e isso é bom. Por isso, devemos acrescentar atributos aos elementos imaginários disponíveis, como o ogro e o Saci – e não tirar os que eles já têm. Ziraldo já fez do Saci um bem humorado personagem. E este é o caminho, já que se trata de arranjar oportunidades para as criaturas mágicas. E não relegá-las ao desemprego, alegando que estão fora de moda.

EU – O politicamente correto nos é vendido embalado nas melhores intenções. Mas, como você disse, contém nele um germe totalitário. Como podemos nos contrapor a isso, como pais e pessoas que vivem nesse mundo?
Corso – Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice mesmo. A gente usa totalitarismo com muita leviandade. Se o discurso politicamente correto for totalitarismo, teremos de inventar outra palavra para dizer como funcionava o nazismo ou mesmo a vida hoje no Irã. Lá sim é que o bicho pega. Que um iraniano ouse em um lugar público discordar do que diz um Aiatolá e veja onde vai parar…

Ou seja, o discurso politicamente correto é a versão ligth do discurso totalitário. Afinal, vivemos num estado democrático. Eles se parecem na essência porque ambos são armadilhas do pensamento, são formas de suprimir e atalhar pensamentos complexos. Ambos usam um jargão pré-estabelecido sobre todos os assuntos polêmicos, tapando as questões ou os seus desdobramentos. Ambos falam em nome do bem comum. E falar em nome do bem comum funciona como um escudo. É como os religiosos que falam em nome de deus. A partir dessa premissa não há mais questionamento possível. Eles se acham certos e pronto, estão do lado do bem.

Todo valor pode ser transformado em uma espécie de mercadoria esvaziada do seu papel. Quanto mais estratificado nosso mundo se torna, mais falamos em igualdade e tolerância. E mais falamos em igualdade e tolerância justamente quando estamos quase totalmente desprovidos de pensamento utópico, da esperança de um mundo diferente, norteado por valores realmente igualitários. Quanto mais imersos numa cultura de mercado, onde a produção de lixo se dissemina e é democratizada, mais ecologia ensinamos aos pequenos. As intenções são boas, mas a coerência é que está em falta.

“Ninguém diz mais o que pensa, e sim o que é certo dizer”

EU – O que nos leva a esse discurso vazio?
Corso – O que leva ao clichê, ao discurso vazio, é a falta de sinceridade. Ninguém diz o que realmente pensa e sim o que é certo dizer. E, com o tempo, de tanto insistir no que seria correto dizer, convencemo-nos de que aquilo é o que realmente pensamos. Só que isso não é mais um pensamento: sendo uma repetição de fórmulas esquemáticas, é justamente a ausência de pensamento. Aqui a preguiça contribui de fato: é mais fácil não pensar.

A utilização da linguagem politicamente correta, ou seja, o policiamento do que é dito em busca de que a tolerância seja um enunciado universal, baseia-se justamente nessa premissa: de que o modo de falar daria forma ao modo de pensar – e não o inverso. A intenção é das melhores, mas o resultado foi esse saneamento da linguagem, visando expurgá-la dos preconceitos a partir de uma esterilização dos enunciados.

Eu sempre fui envolvido com a questão da reforma psiquiátrica. Estudei muito a questão, estive presente em momentos políticos e desdobramentos práticos desse movimento. Especialmente na questão de formação de pessoas com um arsenal teórico para dar conta desse novo momento. Mas não consigo usar o famigerado “portador de sofrimento psíquico” para dizer “louco”. Acho que eu sempre fui atento aos loucos, cuidei de muitos deles, milito para que os escutemos na sua singularidade, que sempre que possível não se abafe seus delírios com medicamentos. Enfim, para que sejam tratados como iguais. Não acredito que eu vá mudar dizendo isso – “portador de sofrimento psíquico” –, nem eles. Posso mudar de idéia, mas até agora ninguém me convenceu.

EU – Não me parece que essa “limpeza” esteja acontecendo na produção cultural para adultos. Não é o que a literatura e o cinema nos mostram. Já no mundo das crianças tiraram até o pau que elas atiravam no gato. Por que essa preocupação com o mundo infantil? Há aqui uma nova idéia de infância em curso?
Corso – Não há nova idéia sobre a infância, o que existe é uma neo-ignorância sobre a infância. Estamos esquecendo o que já sabíamos.

EU – Por que estamos esquecendo? E por que agora?
Corso – Talvez com um exemplo fique mais claro. É fácil encontrar mães que não cantam canções de ninar para seus filhos do tipo “a Cuca vem pegar…” O que elas dizem é que a Cuca criaria uma fobia na criança. E elas têm razão, a Cuca serve para isso mesmo. A questão é que é melhor um objeto fóbico do que uma angústia difusa. Se é a Cuca que vem me pegar, eu posso me defender, eu nomeio um mal-estar. Além disso, se é a Cuca que me quer não é a minha mãe. Ela está do meu lado e não quer me botar para dentro de seu corpo, de onde eu saí. Ou seja, elas raciocinam corretamente, mas não conhecem o psiquismo de um lactente. Pensam nos seus medos.

A tradição, neste caso, é mais sábia que essas mães que, tentando defender seus filhos, os deixam mais desprotegidos, mais ansiosos. A eliminação de figuras como a Cuca empobrece uma cultura. Abandonamos a tradição e colocamos no lugar um pretenso saber científico que, na verdade, é um senso comum rasteiro.

O que se perdeu é a continuidade entre as gerações. As mães não recorrem às suas mães – ou pensam que elas não sabem de nada – para criar filhos. Então, entra a figura do especialista. O médico, o pediatra, o psicólogo, o psiquiatra… Cada um falando de um saber técnico sobre a criação dos filhos. Ou seja, tudo fragmentado e, não raro, superficial.

Bom, não vou ficar com saudades dos tempos dos palpites das comadres, mas se jogou muita coisa fora com o afastamento das gerações. Ou ainda, dizendo de outra forma, são pais que não mais confiam no seu nariz para criar seus filhos. Não se posicionam, estão perdidos sobre o que fazer e como fazer.

Como você disse, só falta proporem uma prótese para a perna do Saci. Ou, em vez de prendê-lo numa garrafa, para que nos sirvamos de suas travessuras, a gente se penalize de seu defeito físico e as crianças sejam chamadas a incluí-lo em suas brincadeiras, como se fosse um amiguinho cadeirante.

O Saci só tem a perna esquerda. Ele é assimétrico, como ocorre com várias criaturas mágicas, que mancam de um pé. Ou é assimétrico como sinal de sua passagem pelo mundo dos mortos. Tudo na natureza tende ao simétrico. Logo, o sinal de pertencer ou ter passado pelo outro mundo é a assimetria. Essa simbologia é muito antiga. Portanto, o Saci recebe seu poder do seu contato com o outro lado da força. Essa é uma tradição imaginária cuja profundidade não nos cabe julgar nem compreender, só deixar que ela se revele em nós e reverbere em nossas fantasias.

As maiores maldades vêm das menores almas”

EU – O Saci é um personagem bem menos popular hoje do que foi na minha infância. Me parece que ele já vem perdendo prestígio há mais tempo. Como, em geral, os personagens do folclore brasileiro. Por que você acha que isso acontece?
Corso – Eu acredito que muito dos nossos monstros estão desaparecendo. Creio que a responsabilidade por isso é da incompetência dos nossos escritores para escrever e reinventar boas histórias sobre nossos personagens folclóricos. Descreveram com maestria nossa realidade, mas se esqueceram da nossa alma mágica, supersticiosa, nossos medos arcaicos. Não é a toa que temos uma invasão, especialmente da cultura de língua inglesa, nesse assunto. Harry Potter, o Senhor dos Anéis... Mais recentemente, a atenção dos mais jovens têm se polarizado em torno das sucessivas séries que reciclam os vampiros. Há ainda os livros americanos da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, que proporcionaram uma nova visada na mitologia grega. Seus autores, todos de língua inglesa, prosperam porque usam uma faixa que está livre. No Brasil, depois de Monteiro Lobato, poucos se aventuram nessa trilha. Nós deixamos o terreno baldio, não podemos reclamar se outros ocuparam.

EU – Há algumas semanas se estabeleceu uma polêmica sobre o fato de o Internacional (time gaúcho de futebol), cujo símbolo é o Saci, estar progressivamente limando o personagem, apagando o Saci…
Corso – Sim, acompanhei um pouco a discussão e me entristeço tanto por ser colorado como por ser sacizista. Não está bem definido isso ainda. A questão é que o cachimbo do Saci poderia lembrar o cachimbo do crack. Não podemos esquecer que estamos vivendo o pesadelo dessa droga. Mas acho que isso é pegar o problema pelo lado errado. Ninguém vai começar no crack porque viu um saci com cachimbo, vamos ser sérios!

De novo esquecemos a vida real da pessoa, seus laços ou a ausência deles, sua família e geralmente a omissão e a ausência dela. É aí que está a porta do crack, não em qualquer coisa que ele viu na TV ou no pátio da escola.

EU – Tudo isso só revela nossa confusão com relação à violência?
Corso – Acredito que há uma confusão sobre a gênese da violência. E ela revela o tipo de relação que temos com os outros humanos e com os limites que a vida nos impõe. Mas lidamos com o assunto como se ela fosse apenas a gênese de um aprendizado, como se pudéssemos eliminar a violência apenas com educação, sem mexer no mundo real. Somos violentos porque estamos pouco preparados para pertencer a uma sociedade. Dependemos de códigos sociais muito rígidos para ter um mínimo de capacidade de conviver em sociedade, pois a cada passo imaginamos que o outro pisou em nosso território, invadiu e baniu nossa individualidade.

O dramático em nossa sociedade é justamente a exigência da individualidade, o valor que damos a ser únicos, ímpares, e ter que conviver numa sociedade a cada dia mais massificadora. A individualidade é vendida como algo natural – e não como uma construção social de alguns séculos. Dá muito trabalho e é fonte de um bate-cabeça eterno com nossos semelhantes.

É complicado de compreender, já que nossa subjetividade nasce dessa interação: é o olhar da mãe, é o modo como nossa família fica dizendo o que somos e o que seremos que nos constitui como alguém que acabamos nos tornando um dia. Mas passamos o resto da vida tentando lidar, nos digladiando com a importância superlativa que esse olhar do outro tem sobre nós. Precisamos partilhar a vida com outros seres humanos, amar e ser amados, mas odiamos depender tanto, e acabamos mesmo odiando todos aqueles cuja presença no mundo parece ocupar o mesmo lugar da nossa ou mesmo excluí-la.

Vivemos em camadas onde o círculo da intimidade, das classes sociais, das culturas, nada disso dialoga entre si. Temos pavor de todo tipo de diferença e questionamento. Portanto, não adianta treinar as crianças para a tolerância se estamos tentando abafar nelas, e em nós, tudo aquilo que nos impede de compreender o contexto maior da nossa vida, a repercussão de nossos atos e pensamentos individuais sobre o lugar e o tempo em que vivemos. Nosso isolamento alienado faz com que tudo seja vivido como ameaça à nossa integridade. Tendemos, então, a sermos defensivos como cães em seu jardim.

EU – As crianças são mais violentas hoje ou é a nossa sensibilidade para a violência que mudou, como você costuma dizer?
Corso – É muito engraçado. Minha geração era muito cruel com animais. Na minha infância assisti a todo tipo de morte e maus tratos com passarinhos, gatos, cães, sapos, morcegos. Os animais eram um suporte para a crueldade humana. Os adultos pouco se inteiravam do fato, ou não davam a mínima. As crianças de hoje são muito melhores com os animais. Não consigo imaginar hoje bodocadas em passarinhos. Mas nós achamos que elas é que são violentas por causas de seus desenhos animados ou games.

Existe uma mudança na sensibilidade. Mesmo o bullying, que hoje é tão falado – parece que descobriram a América! – era muito pior, pois incluía o racismo e a homofobia. Eu creio que nós não vivemos tempos tão violentos, o que mudou é a sensibilidade. Toleramos menos a violência, o que é ótimo. A questão, insisto, é onde estaria a gênese da violência. A confusão vem disso.

EU – E onde está a gênese da violência?
Corso – As crianças, deixadas à própria sorte, sem a presença de adultos, podem desenvolver pequenas e grandes tiranias umas com as outras. Elas podem ser especialmente cruéis e violentas, justamente porque são frágeis, inseguras, pequenas. A violência sempre está acompanhada da impotência e/ou da ilegitimidade. As maiores maldades vêm das menores almas.

Quando uma criança apela para isso, quer fazer valer um espaço, um valor que simbolicamente não tem, e então usa do ato violento, da intimidação, para “crescer” frente ao grupo. A resposta para a violência e o bullying é que as crianças estejam acompanhadas, que seus adultos responsáveis – incluindo os professores, que geralmente e infelizmente têm de se ocupar de um número excessivo de alunos – zelem por elas. E isso, eu insisto, dá muito trabalho. E é caro. É mais fácil botar a culpa nos games e no cinema.
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Ou no cachimbo do Saci.

(Publicado na Revista Época em 24/05/2010)

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