O buraco

Vai ter de abrir, disse o encanador.

As duas mulheres se olharam. Cada uma em seu apartamento. Uma em cima, outra embaixo. Se não tem outro jeito, concordaram as duas, em uníssono, cada uma em seu universo.

No dia marcado ele chegou com uma máquina de formato estranho. Ameaçadora. Vai fazer barulho, avisou. Se eu fosse aos pouquinhos, levaria dias. Vai fazer barulho, mas em meia hora eu faço o buraco.

As duas em pé, cada uma em seu banheiro. O salto de uma na cabeça da outra. Quando o barulho começou, taparam os ouvidos e escutaram a correria do coração, os líquidos desmanchando o café da manhã no estômago. O barulho acabou.

Espiaram, tímidas. Pelo buraco. Encararam-se pela primeira vez. E assustaram-se com o que viram.

À noite, a de cima sonhou que caía no buraco quando se levantava para ir ao banheiro no escuro. E o buraco era a toca do coelho da Alice. E a de baixo sonhou que era sugada para cima e alcançava o céu. Mas era tudo ao contrário do que o padre dizia. No céu morava o diabo. E no inferno era deus.

Quando amanheceu, as duas se esgueiraram até o buraco. E como seus olhos se encontrassem, tiveram de dar bom-dia. A cada hora do relógio davam uma espiada pelo buraco, na ponta dos pés, com a esquina dos olhos. Azuis de uma, pretos da outra. Já não era possível ter sossego no apartamento de nenhuma agora que uma poderia alcançar a outra.

Desde que o vazamento se infiltrou pelo concreto, os alicerces do cotidiano de ambas foram abalados por aquela ligação indesejada em que a água suja da nudez de uma alcançava o corpo da outra. Aquele fino fluxo aquoso de cor indefinida forjando uma intimidade indesejada feita de células mortas.

No dia seguinte o encanador voltou. Examinou as entranhas do buraco. Descobriu onde está o vazamento, anunciou com sua voz de homem que resolve coisas que mulher não entende. Vou poder tapar o buraco hoje mesmo. Uma em cima da outra, uma embaixo da outra, suspiraram de alívio.

Quando o buraco foi preenchido e de novo estavam separadas por concreto, puderam voltar a dormir. No meio da noite acordaram com um soluço do coração. Souberam então que entre elas algo continuava aberto. E vazando.

Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite

Um filme da vida real que ninguém merece assistir. Ou merece?

Gostaria que o episódio “Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite” fosse ficção. Se fosse, seria muito engraçado. Uma coisa meio bufa. Tão absurda que corria o risco de parecer inverossímil, um defeito que a realidade é pródiga, mas a ficção não perdoa.

Vamos aos fatos, para quem perdeu o show. O cineasta José Padilha pediu autorização para gravar cenas do filme Tropa de Elite 2 na Câmara de Deputados. As cenas da ficção seriam ambientadas no conselho de ética e teriam um personagem de nome Fraga. No filme, Padilha faz relações entre segurança pública e financiamento de campanha.

Michel Temer (PMDB-SP), o presidente da Câmara de Deputados, negou autorização para as filmagens. Ele justificou: “De fato, não foi possível, sem nenhum antagonismo democrático, ceder o plenário, as dependências da Casa, para essa filmagem. Fizéssemos a autorização para essa matéria, haveríamos de fazer para toda e qualquer outra tentativa de filmar no plenário da Câmara. Este é o plenário do povo brasileiro. Não havia como autorizar essa filmagem”.

A negativa de Temer é questionável. Na condição de integrante do povo brasileiro, eu gostaria de compreender em que uma filmagem comprometeria “o plenário do povo brasileiro”. Justamente por ser “o plenário do povo brasileiro” seria legítimo poder usá-lo também como cenário de filme ou qualquer outra apropriação legal. Mas, vá lá. Padilha então filmou a cena em um conselho de ética improvisado na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro.

O que se seguiu a isso é que virou comédia. E, como não é um filme de ficção, para nós é uma tragédia. O deputado Alberto Fraga (DEM-DF) tomou a atenção do plenário na terça-feira, 11 de maio, para reclamar do roteiro do filme. Eu poderia enumerar dezenas de motivos vitais para o país que deveriam ser capazes de motivar a indignação do deputado Fraga. Mas não, sua preocupação era com o roteiro do filme. Ele queria que Temer enviasse o roteiro do filme para análise da procuradoria da Câmara. (!!!!!!!!!!)

Acompanhem o raciocínio do Fraga real: “Sou o artista desse filme, mas, o pior, o cidadão coloca que o deputado Fraga será o antagonista, ou seja, o bandido do filme, que vai lutar contra o Capitão Nascimento, contra as milícias assassinas”. E, mais adiante: “Ele poderia escolher qualquer nome: João, José, mas deputado Fraga nesta Casa só tem eu. E eu, numa campanha majoritária, no Distrito Federal, já imaginou o que vai acontecer comigo, o bandido na história do filme?”.

Recebeu de imediato o apoio do colega José Genoino (PT-SP). “Estão tentando colocar o parlamento como piada. A defesa do parlamento está em jogo, não podemos achar que isso é normal. Se a moda pega, a Câmara será colocada como uma instituição que não tem poder nenhum”, disse Genoino.

E, acreditem, Michel Temer afirmou que enviaria o caso para a procuradoria da Câmara.

Dá para acreditar?

A rigor, não dá para acreditar. Mas é preciso. Na “Casa” que vive uma crise moral de autoridade foi preciso apelar para o autoritarismo.

A Câmara que, junto com o Senado, vem protagonizando uma série interminável de escândalos de corrupção e impunidade acusa o cineasta José Padilha de tentar transformá-la em “piada”. Faça um rápido teste. Quantos escândalos você lembra nestes últimos quatro anos? E quantos projetos importantes para o destino do país debatidos e votados pela Câmara você recorda de imediato?

Eu sei. É triste.

A resposta do cineasta José Padilha, publicada na Folha de S. Paulo, lança alguns litros de lucidez no deserto de inteligência do episódio: “O filme Tropa de Elite 2 não tem nenhum deputado corrupto chamado Fraga. Existe, sim, um personagem com esse nome, mas ele não é um deputado corrupto. O deputado corrupto de ‘Tropa de Elite 2‘, totalmente fictício, diga-se de passagem, chama-se Guaracy. (Espero que não exista algum deputado corrupto com esse nome. Se existe, vou logo avisando que é coincidência!) Confesso que, até ler a matéria da Folha, eu nunca havia ouvido falar na existência de um deputado com o nome Fraga. Hoje, depois de uma rápida pesquisa na internet, aprendi que ele existe. É um deputado do DEM, considerado por parte da imprensa como membro da base parlamentar do ex-governador Arruda. Longe de mim querer denegrir a sua imagem. Deputado Fraga, pode ter certeza: você não tem nada a ver com o Fraga do meu filme! Também não posso deixar de comentar a declaração do deputado José Genoino, que, apesar de nunca ter visto o filme ‘Tropa de Elite 2‘, afirmou que o filme está ‘tentando colocar o Parlamento como piada (…)’. Ao nobre deputado quero dizer que, em uma democracia, tem que haver liberdade de expressão. Em uma democracia, se um artista quiser fazer piada com o Parlamento, ele deve ter liberdade para tal. De minha parte, não fiz piada alguma com a Câmara em ‘Tropa de Elite 2‘. Para mim, o Parlamento brasileiro e os inúmeros casos de corrupção que a imprensa associa a ele são um assunto sério demais para piadas. Finalmente, a ameaça que o presidente Michel Temer fez à liberdade de expressão, ao afirmar que ‘vai encaminhar para análise da procuradoria o fato de o filme ‘Tropa de Elite 2‘ ter cenas inspiradas na rotina da Casa e nos próprios deputados’, me fez pensar na época da ditadura. Será que a procuradoria da Câmara vai virar um órgão de censura cuja função é tentar proibir que artistas se inspirem na Câmara e em seus membros para fazer filmes? Espero que não!”.

Quando soube da polêmica, fiquei buscando mentalmente informações sobre o Fraga do espetáculo da vida real, não o do filme do Padilha: “Fraga, Fraga, Fraga….”. Me veio à cabeça uma vaga notícia de um deputado, coronel da Polícia Militar, membro da chamada “bancada da bala”, que atuou contra a aprovação do Estatuto do Desarmamento e, em 2006, teve parte da campanha financiada por fabricantes de armas. Também tinha lembrança de uma denúncia relacionada a uma empregada doméstica paga com dinheiro público. Fui checar. Sim, era este o Fraga. Que também foi secretário de Transportes do Distrito Federal na gestão do governador José Roberto Arruda, aquele que foi preso e cassado por acusações de corrupção. Durante o período em que foi secretário, o Correio Braziliense denunciou que Fraga empregou no governo a mulher, um filho, dois sobrinhos, um cunhado, uma cunhada e o namorado da filha.

Sim, sim, este é o mesmo Fraga da vida real que acredita que o filme pode manchar sua imagem e prejudicá-lo nas próximas eleições. O mesmo que disse em uma entrevista, para explicar sua preocupação com o xará de Tropa de Elite 2: “O que mais prezo em minha vida pública é meu nome”.

A vida real, no que já virou um clichê, é mesmo insuperável. Nem inventando muito um ficcionista consegue alcançar esse nível de licença poética.

Não, deputado José Genoino, cujas credenciais vêm rapidamente à memória, não é o cineasta que quer transformar a Câmara em piada.

Não vou nem falar da percepção do “povo brasileiro” sobre o Congresso. Mas dos próprios congressistas, deputados e senadores, numa pesquisa feita em 2009 pelo Instituto FSB, a pedido de ÉPOCA. Nela, quase 70% dos 247 entrevistados afirmam que a corrupção tem presença marcante no Congresso. Apenas 35% estão convencidos de que o Legislativo faz leis claras, concisas e inteligentes. E, claro, metade reclama que o salário é baixo.

O próprio Congresso, portanto, reprova a si mesmo. Este mesmo Congresso gasta, segundo pesquisa da organização Transparência Brasil realizada em 2007, R$ 11.545,04 por minuto. Comparado ao parlamento de 11 países (Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, México e Portugal), só perde para os Estados Unidos. O mandato de cada um dos 513 deputados federais custa R$ 6,6 milhões por ano. E o de cada um dos 81 senadores, R$ 33,1 milhões por ano. Nesse cálculo estão computados apenas os custos dentro da lei, não os gerados pela corrupção promovida por alguns membros do Congresso.

Os integrantes deste mesmo Congresso que reprova a si mesmo e é um dos mais caros entre as democracias do mundo apresentam um patrimônio com enorme disparidade na comparação com o do cidadão comum, segundo outra pesquisa da Transparência Brasil. Os números mostram a grande concentração de renda na classe política, mostrando o quão distante da realidade dos eleitores vivem seus representantes. No Ceará, uma pessoa comum precisaria trabalhar durante 1770 anos, sem gastar um centavo, para gerar o equivalente ao patrimônio de seus senadores. Em Alagoas, esse período seria um pouco menor: 1603 anos. No Maranhão, 751 anos. Cada paranaense teria de trabalhar durante 669 anos para gerar riqueza equivalente à média do patrimônio de seus deputados federais. Apenas em 11 Estados é preciso trabalhar menos de cem anos, sem nenhum gasto, para atingir patrimônio semelhante ao de seus representantes na Câmara dos Deputados. No Rio de Janeiro, Estado que apresenta a menor disparidade, são 31 anos.

Se o Congresso reprova a si mesmo, a nós cabe reprovar deputados e senadores que desrespeitaram nosso voto – ou aprová-los reelegendo-os no próximo pleito, daqui a alguns meses. E este é o ponto mais importante.

É muito fácil xingar deputados e senadores, falar mal de todos os políticos, afirmar que são todos da mesma laia. Primeiro, não são. Toda generalização é burra, como sabemos. E, sim, há políticos honestos e que pensam no bem público. Cabe a nós descobrir quem são e dar a eles o nosso voto. Cabe a nós dar mais valor ao nosso voto, não o dando a qualquer um. E valorizar um Congresso que não é deles – mas nosso.

Este Congresso que aí está não apareceu do nada. É o que é porque nós escolhemos esses indivíduos – e não outros. Fomos nós que colocamos essas pessoas em Brasília para nos representar. Pode xingar à vontade, mas esse Congresso é nosso espelho. Quando olhamos para ele, olhamos para nós. Gostando ou não, o Congresso é a nossa cara.

É duro se olhar no espelho sem autoindulgência. Você pode dizer: “ah, mas eu não votei nesses sujeitos. Os que eu votei…” Com toda honestidade, quantos de nós sabem o que o senador, o deputado federal e o deputado estadual que elegeu estão fazendo, se é que estão fazendo alguma coisa? Quantos de nós acompanham e fiscalizam aqueles que legitimaram com seu voto? Se não começarmos a fazer isso não amanhã, mas já, continuaremos cúmplices desses parlamentares que transformam a Câmara e o Senado em piada.

E a democracia não é piada. Um Congresso atuante é vital para o país. Quem torce para que vire piada, para alegar que a democracia não vale a pena, é irresponsável ou mal-intencionado. O que nós precisamos é aprender a votar, um direito fundamental que nos foi sequestrado durante anos pela ditadura militar. E que enxovalhamos sempre que votamos mal. Teremos uma chance daqui a pouco de eleger um Congresso do qual possamos nos orgulhar. E mandar todos aqueles que o transformam em piada e em caso de polícia para casa.

É fácil repetir que são os mais pobres e com menos acesso à educação dos rincões esquecidos que votam mal. Se perguntar a um cidadão urbano e com curso superior – ou a si próprio – o que seu deputado ou senador anda fazendo, que projetos propôs, como votou nas questões importantes, que empresas financiaram a sua campanha, será que a resposta é de um eleitor esclarecido? Você tem estas respostas?

Acho que somos muito complacentes com nós mesmos. Achamos que não precisamos acompanhar e participar da educação escolar dos filhos (até a educação dentro de casa muitos delegam com as mais variadas justificativas), que não temos de nos organizar para reclamar por melhorias no nosso bairro, que não cabe a nós reivindicar um transporte decente ou um sistema de saúde que não deixe pessoas com câncer esperando um exame por meses. Há quem discurse sobre o aquecimento global, mas acha que pode continuar com a torneira aberta, deixar a TV ligada enquanto vai fazer outra coisa e não reciclar lixo por preguiça. E, óbvio, se votou acredita que já fez toda a obrigação: não vai perder tempo fiscalizando seu candidato e cobrando o que ele deixou de fazer ou fez errado.

Boa parte das informações que precisamos para votar com consciência está nos sites oficiais, como os do TSE, Câmara e Senado. Outra fonte é o site da Transparência Brasil, que concentra vários indicadores em um banco de dados. Com alguns cliques, agora mesmo você descobre o que andaram fazendo aqueles que se elegeram com a ajuda do seu voto. Basta entrar em www.transparencia.org.br e clicar no ícone “Excelências: como se comportam os nossos parlamentares”. Você digita o nome do seu deputado ou senador e pronto, fica sabendo como ele vem se comportando, o que fez, como votou, se foi processado na Justiça, o que a imprensa publicou sobre ele, quem financiou sua campanha, qual é seu patrimônio declarado, se é assíduo ou um campeão de faltas. Alguns minutos do seu tempo e você pode avaliar se votou bem e se preparar para votar melhor nas próximas eleições.

A desfaçatez de parte dos parlamentares atingiu índices tão absurdos que já passou da hora de darmos uma resposta que seja mais do que falar mal dos políticos na mesa do boteco. Se parte dos parlamentares não se dá o respeito, nós que os elegemos precisamos ter vergonha na cara. Quero muito ver o filme do José Padilha. Mas não quero mais ter de assistir a cenas patéticas do Congresso real. Passou da hora de votar direito. E fiscalizarmos o que foi – e será – feito do nosso voto.

(Publicado na Revista Época em 17/05/2010)

“Tô mandando o Joaci!”

Terça-feira, 4 de maio, 9h50 da manhã. É quase impossível pegar um táxi em São Paulo nesse horário. Eu já tinha tentado quatro pontos diferentes da vizinhança e só ouvia tu-tu-tu…. Estava atrasada para uma consulta médica. Acordo às 5h da manhã, mas estou sempre atrasada. Na quinta tentativa uma voz atendeu:
— Tem táxi?, pergunto eu.
— Quantos você quer?, ele me devolve.
— Um tá bom.
— Só um, é. Então tô mandando o Joaci.
— Tá, pode mandar o Joaci.
Desço oito andares. Está lá o Joaci.
— Pra onde?
— Rua Duartina, no Sumaré.
— Não conheço.
— O senhor tem GPS?
— Tenho não. Não preciso.
— Então olha no guia.
— Sabe o que é, eu tenho o guia, mas não enxergo.
— Como assim, não enxerga?
— Sabe o que é, meu óculos quebrou. Aí um colega me arrumou esse do Paraguai, mas não funciona. Não enxergo nadinha.
— Como o senhor dirige, então?
— Ah, mas a maioria das ruas eu conheço, fica fácil, a gente vai ali meio no automático. Sabe como é, quase 30 anos de táxi. Sempre digo pra minha mulher, tenho mais tempo de táxi que de casamento.
— Hum.
— O problema é essa rua da senhora aí, que eu não conheço. Mas preocupa não. Vou ligar lá pro ponto e eles me dizem pra onde eu tenho de ir.
Procura o celular no banco. Acha. Começa a teclar.
— Não consigo enxergar os números aqui. Será que dá pra senhora ligar pra mim?
Pego o celular. Ele dita o número. Eu teclo. Devolvo para ele.
— Ô Josimar, tô com uma mulher aqui que vai numa rua que eu não conheço. Acha no guia aí pra mim.
Sacode o telefone. Bate nele.
— Ih, o Josimar não tá ouvindo. Esse celular tá ruim. Tenho de ir lá no meu amigo do Paraguai pra comprar um novo, mas não tô achando tempo.
Eu ligo no meu celular. Passo pra ele.
— Ô Josimar, olha a rua da mulher pra mim aí. Tô com aquele óculos que não enxergo nada. Como é o nome da rua mesmo?
— Duartina.
— É Duatina.
— Duarrrrrtina.
— Sim, isso mesmo. Duatina.
— Duarrrrrrrrrrrrrrrtina.
— E o que é que eu tô falando? A senhora é meio nervosa, né?
Desisto.
— O Josimar tá dizendo que não tem Duatina não.
Suspiro.
— Não é culpa minha não, moça. É do homem que me vendeu o óculos do Paraguai. Preocupa não. Vou dar uma paradinha ali na esquina e saio pra perguntar.
Desisto de novo.
— Moço, tô muito atrasada. Vou ter de procurar um taxista que conheça a rua ou que enxergue. Ou quem sabe hoje não é meu dia de sorte e eu consigo um que enxergue e conheça a rua?
— Tudo bem, se quiser procurar outro, abre a porta aí. Mas que a senhora tá muito errada, ah isso tá. Imagina eu saindo lá da fila do ponto, com a dificuldade toda desse óculos, e agora chego aqui e a senhora não quer a corrida. É o que eu sempre digo pra minha mulher. É muito difícil trabalhar com o público.

Socorro! Tem alguém aí?

Desventuras no admirável mundo novo

Não conheço uma única pessoa que tenha pronunciado alguma vez na vida: “Oba, o telemarketing da empresa tal me ligou oferecendo uma oportunidade maravilhosa!”. Ninguém.

Talvez exista, mas nunca testemunhei. Quase todos que conheço têm estratégias para não ser alcançado por ações desse tipo. E a maioria, quando capturado, é grosseiro com a voz do outro lado. Toda vez que um operador me liga, tento conter minha irritação e lembrar que há um ser humano ali, em algum lugar, ainda que seja num call center em Bangladesh. Esta pessoa possivelmente gostaria de estar fazendo outra coisa, quase certamente ganha muito mal e, mesmo que tenha sido treinada para agir como um robô, deve sofrer com as grosserias como qualquer humano.

Às vezes não consigo fazer esse exercício mental a tempo, sou ríspida e, assim que desligo, fico arrasada. Mas, em geral, consigo. E, já que fui pega de surpresa e não costumo desligar o telefone na cara de ninguém, tento conversar. Mas minha tentativa esbarra na impossibilidade de meu interlocutor entabular qualquer diálogo cujas perguntas e respostas não estejam no manual. Afinal, “para sua segurança, esta ligação está sendo gravada”.

Se, ao contrário, você precisa falar com alguém para reclamar de um serviço ou produto que não funciona ou funciona mal, a dificuldade é a mesma. Primeiro que, para chegar a um alguém, você aperta vários números antes. Você só vai falar “com um de nossos atendentes” se nenhuma das gravações anteriores conseguir resolver seu caso. Tudo desestimula você a isso. Os muitos números do menu principal levam a infindáveis menus secundários. Quando você chega àquele que o leva ao contato com alguém, o alguém demora uma eternidade para atender a ligação. E, quando atende, é como se você falasse com uma máquina.

Por tudo isso, fico pensando: como isso dá certo? De um jeito ou outro, deve funcionar. E ser lucrativo. Já que emprega milhares de jovens pobres que mal estrearam na vida e são treinados a anular sua singularidade para decorar um programa robótico de saudações, perguntas e respostas. Ainda vamos precisar responder pelo aniquilamento de uma geração nesses serviços de desumanização.

O mundo bem estranho em que vivemos nos coloca esta questão ética: como lidar no cotidiano com humanos que são treinados para se parecer com máquinas? Como é ser um humano que, para atingir a perfeição profissional, precisa se tornar o mais parecido possível com uma máquina? E, em seguida, se tornar obsoleto?

Vivemos (ainda) uma fase de transição entre as relações pessoais e as impessoais. Quando nos acostumarmos por completo a sermos atendidos por máquinas humanas, ninguém vai precisar de gente nesse tipo de serviço. Gente, por mais barata que seja, ainda é mais cara que qualquer sistema robótico. E se não faz diferença…

Vivemos uma espécie de versão pós-moderna do Tempos Modernos de Charles Chaplin. Não mais meros apertadores de parafusos de uma engrenagem, mas os próprios parafusos.

A tendência é que tudo se torne ainda mais desencarnado. Vivi um dia no admirável mundo novo neste início de mês, às voltas com o formato mais inovador de companhia aérea. Uma que você não vê, não toca, não alcança. Mas confia sua vida a ela. É considerada um dos maiores “cases” de sucesso da história da aviação europeia.

Foi assustador.

Eu estava em Madri, por razões profissionais, e queria conhecer Londres. Amigos disseram: “Aproveita, é barato viajar de avião dentro da Europa”. Eu pensei: “hum, boa ideia”. Entrei na internet e, especialmente para a volta, achei uma passagem muito barata. Voltar de Londres a Madri, onde pegaria o vôo de retorno para São Paulo, custaria quase o mesmo que viajar de ônibus de São Paulo à minha cidade natal, no Rio Grande do Sul. É supostamente barato porque todo o contato, exceto o avião e a tripulação, é virtual. Eu acabava de embarcar no sistema low cost (custo baixo).

Na véspera de pegar o avião, a bordo dessa novíssima configuração empresarial, li as instruções que recebi por email. Eu deveria fazer o check-in pela internet. Se só pudesse fazer no aeroporto, pagaria 40 libras esterlinas (111 reais). Teria também de pagar pela bagagem, que não poderia passar dos 15 quilos. Se passasse, mais taxa extra.

Entre uma lembrancinha e outra para a família e meia dúzia de livros, eu precisaria despachar uma mala. Fiz as contas. Sim, ainda valia a pena. Entrei numa lan house, para resolver tudo isso com alguns cliques no computador. Nada. Havia três maneiras de fazer o check-in. Tentei todas elas. Em todas aparecia uma mensagem na tela. Em resumo, ela dizia: “Seus dados não foram encontrados”. Eu não existia no sistema, ao que parece, embora o desconto no meu cartão de crédito fosse bem real.

Procurei um telefone de contato. Havia dois. Um deles para prioridades. Se for prioritário, é mais caro. A chamada era tarifada em 1 libra por minuto. Entrei na cabine. Disquei. Tu-tu-tu. Nada. Nem mesmo uma gravação do tipo: “por favor, espere um minuto”. Depois de muitos tututus, desisti.

Mais tarde, tentei de novo. Tudo igual. O sistema não encontrava meus dados e o telefone não atendia. Eu não conseguia encontrar ninguém, nem mesmo uma voz, que me ajudasse a resolver o problema. Nesse momento, eu implorava pela voz impessoal do telemarketing. Nada. Eu estava entregue à virtualidade. Se o sistema online não funcionasse – como não funcionou – eu virava refém. Virei.

A única alternativa era perder o último dia em Londres e chegar bem mais cedo ao aeroporto para resolver tudo isso direto no balcão da companhia. Quando cheguei, procurei o nome da empresa. Não havia nenhum balcão. Só uma moça no check-in, o nome da companhia atrás. Expliquei o caso. Ela disse: “Sinto muito, não posso fazer nada. Eu aqui só faço o check-in”.

Me despachou para outro setor, responsável por cobrar os valores de check-in e bagagem. Expliquei tudo de novo. A moça afirmou: “Sinto muito, aqui só somos intermediários”. Eu insisti: “Mas eu não consigo fazer o check-in. Passei o dia de ontem inteiro tentando fazer o check-in”. Ela: “Ainda dá tempo de a senhora fazer o check-in pela internet”. Eu: “Mas eu já tentei mil vezes fazer o check-in pela internet”.

Ela devia ser nova no setor, porque exibiu reações humanas e fez o impensável: tentou ela mesma fazer o check-in no computador. Não conseguiu. Disse à colega: “Eu mesma não consegui fazer o check-in. O que a gente faz?”. A colega: “Nós somos apenas intermediários. Não temos nada a ver com isso. Se não fizer o check-in pela internet, tem de pagar”.

Constrangida, a moça pegou um pedaço de papel com o telefone da companhia aérea: “Liga para este número”. Eu: “Mas ninguém atende!”. Neste momento, o colega da moça gritou. Outra reação humana. Ele estava furioso porque a colega tinha saído do manual e uma fila atenta se formava atrás de mim. Quando disse a ele que não havia necessidade de ser rude, ele voltou a se tornar um robô. Do gênero “robô intermediário”.

Voltei para a moça do check-in, só para constatar que ela também era intermediária. “Sinto muito, mas não posso fazer nada”. Ok, mas eu quero falar com alguém que possa encontrar uma solução! Não tem ninguém neste aeroporto inteiro que responda pela companhia? A moça voltou ao modo hibernação.

Eu havia deparado dezenas de vezes com esse comportamento pelos telemarketings da vida. Mas nunca tinha conversado com robôs humanos ao vivo. É chocante perceber que a pessoa olha para você com um olhar vazio. É a alienação do trabalho levada ao seu apogeu. Não há ninguém ali.

Ela só sabe repetir frases e não tem respostas que não estejam armazenadas no seu chip. Não tem autonomia para nada. Quando algo fora do roteiro acontece, ela fica repetindo a sua alienação como se esta fosse uma resposta. E parece não perceber o que faz consigo mesma. “Sinto muito, eu não posso fazer nada. Sinto muito, eu só sou uma intermediária. Sinto muito, eu não estou autorizada”. Sinto muito, eu não pertenço à companhia. Não pertence sequer a si mesma.

Todo o raciocínio humano, a capacidade de criar alternativas e resolver questões, todo o capital intelectual e simbólico que nos tornou o que somos de melhor é anulado. Nesse lugar de máquina humana, a pessoa competente é aquela que não faz nenhuma diferença. Será que, quando ela for definitivamente anulada, ou seja, substituída por uma máquina que não seja de carne e osso, mas de silício, vai se espantar?

É o único emprego que ela conseguiu, só está fazendo o que lhe mandaram fazer, não é responsável pelo modo como as coisas funcionam, alguém poderia ponderar. É verdade. Mas arrancar de uma pessoa a capacidade de resistir e criar alternativas para sua vida, ainda que seja difícil, é anulá-la por completo em tudo que é humano. É destituí-la de qualquer potência, é fazer a mesma sacanagem.

Se realizamos um trabalho pelo qual não nos responsabilizamos, aceitamos que nos reduzam a parafusos. E isso vale para qualquer trabalho. Talvez a grande diferença entre um humano e uma máquina seja a capacidade de fazer escolhas. Quando alguém abdica deste bem imaterial – ou reduz suas escolhas a qual marca de sopa industrializada vai comprar para o jantar – está abdicando de ser.

Segui minha desventura pela companhia virtual. Procurei um computador, tentei tudo de novo. Nada. Voltei ao check-in. Outra moça. Diante do meu relato, ela afirmou (adivinha!): “Sinto muito, não posso fazer nada”. Decidi pesar minha mala. Descobri que ultrapassava os 15 quilos. Como não pude pagar pela internet, fui informada de que despachar uma mala me custaria o equivalente a 35 libras (97 reais). Para cada quilo que passasse dos 15, cobrariam 20 libras (55 reais). Por sorte, eu não tinha uma segunda mala. Do contrário, teria de pagar mais 70 libras (194 reais): a segunda é o dobro do preço.

Pagar este valor pela bagagem me parecia absurdo, mesmo que eu tivesse conseguido pagar a taxa mais baixa, pela internet. Mas sobre isso eu havia perdido o direito de reclamar quando dei um clique com o mouse do computador. Quem mandou não ler as letras miúdas? Fiquei pensando em todos os “I accept” (eu aceito) que clicamos na internet, a cada programa baixado ou a cada compra consumada. O que será que eu já aceitei ou com quais absurdos concordei somente neste ano?

“Declaro que estou de ciente que o produto é cancerígeno e a empresa X não tem nenhuma responsabilidade sobre o melanoma que eventualmente desenvolverei no futuro”. Ou: “Declaro que estou ciente de que ao final do programa vou ser esquartejada e ter meus órgãos comercializados sem que meus familiares tenham qualquer direito a uma parte dos lucros obtidos com a transação”. Ou: “Declaro que tenho um desvio patológico de conduta e sou incapaz de gerir meus bens, que devem portanto ser transferidos para a empresa tal”.

Medo.

Paguei. Como eu continuava reclamando, a “intermediária” disse algo que, imagino, não estivesse no manual: “When you choose this company, you sign your life away”. O sentido, em português claro, é: “Quando você escolhe esta companhia, você vende sua alma”. Eu tinha assinado uma versão contemporânea de pacto com o diabo. E era assim que eu me sentia. A empresa era descarnada. Eu tentava alcançá-la, mas só agarrava fumaça.

Tive uma profunda sensação de irrealidade. E se o avião não existisse? E se não tivesse piloto? E se a manutenção da aeronave também fosse virtual? Eu não queria apertar cinto nenhum!

Passou. Apresentei no check-in o recibo da minha impotência. A fila tinha mais de cem pessoas. Quando chegou minha vez, o moço do check-in (outro intermediário) achou minha reserva no computador no primeiro clique. Sim, eu estava lá. Em algum lugar daquele mundo volátil havia um lugar para mim no avião.

Sentei-me aniquilada na sala de embarque. O que eu poderia fazer diante dessa criatura imaterial, mas que tinha ganhos bem concretos? A companhia não tem o menor interesse em resolver as panes eventuais de sistema em casos como o meu. Nem sequer me vêem como uma pessoa. Eu não sou um ser humano com nome, história, desejos. Sou apenas um número de cartão de crédito.

O cálculo é pragmático. Contratar funcionários capazes de resolver problemas numa estrutura própria é muito mais caro que acertar com uma empresa terceirizada, que faz serviços para ela e outras dez, e que se limita a faturar taxas e seguir o manual padrão de perguntas e respostas. Sem contar que qualquer prejuízo não será da companhia, mas do passageiro. Se X pessoas deixarem de viajar porque foram lesadas e não puderam sequer reclamar, tanto faz. Sempre haverá gente precisando viajar barato. Na ponta da calculadora virtual: custa menos dinheiro perder um número X de clientes do que estabelecer um escritório próprio. Pronto. A escolha está feita. Se tudo é fumaça, alguém espera que exista ética?

A companhia trabalha assim porque é má? Não. É a lógica do mercado. E o mercado, dirão os gurus de plantão, não é bom nem mau. Estes são atributos humanos. A longo prazo, o número de descontentes poderia colocar a companhia em risco? Esta é a parte que o marketing tem a missão de resolver.

A ausência física, com todas as violações aos direitos básicos do consumidor que acarreta, é transformada em “diferencial”. O que era ônus, em termos de imagem, vira bônus. Transforma-se num valor. “Usamos a internet para que você possa viajar pelo mundo pagando menos. Nós estamos pensando em você, que antes não podia viajar e, graças a nós, agora pode.” No final desse raciocínio, você quase agradece.

Mas por que tem de pagar pela bagagem? Também há uma sacada de marketing logo ali. É preciso fazer com que você não se sinta apenas um cidadão de terceira classe, viajando barato numa companhia que não responde pelos seus atos e que cobra até pela mala que você carrega. A médio prazo isso poderia trazer prejuízos significativos. Afinal, não se pode esperar fidelidade de clientes sem autoestima.

De fato, você está ali porque não consegue pagar a passagem de uma empresa com reputação, escritórios estabelecidos, onde você é atendido por pessoas que o ajudam a resolver eventuais problemas e viaja numa aeronave com o mínimo de conforto. O que você não sabia é que, ao escolher este inovador sistema de voar, abriu mão dos direitos mais básicos do consumidor.

De novo, é preciso transformar isso em atributo. Em vez de cidadão de terceira classe, você tem de ser convencido que é um cidadão do mundo. Com a ajuda do marketing publicitário, você finalmente compreende que viajar por esta companhia não é apenas pegar um avião, é embarcar num estilo de vida, um jeito despojado de estar no mundo. Se você for um de nós, você sabe que a principal bagagem que carrega está no seu cérebro. Ou no seu coração, para os mais românticos. Portanto, viaje leve. Você não é pobre, você é cool.

Estava neste ponto do raciocínio quando chamaram para o embarque. Chequei se o avião tinha o nome da companhia. Tinha. Achei melhor não investigar se o piloto era “intermediário”. Não tinha assento marcado, então era só dar cotoveladas, correr, saltar alguns obstáculos e sentar onde conseguisse. Se você quiser ser um dos primeiros a embarcar, precisa pagar uma taxa a mais. Claro. Os bancos não reclinavam, para que coubessem mais poltronas. Desconforto? Ganância à custa da sua coluna vertebral? Não. Estilo, claro. Banco reclinável é coisa de gente velha ou fora de forma.

Esta mesma companhia, em mais um lance inovador, vem estudando a implantação de um modelo em que os passageiros viajariam em pé, agarrados a barras de ferro e presos por cintos de segurança. Parece piada, mas não é. O termo usado para anunciar a possível “nova classe” ao público é primoroso: “sentados na vertical”. Numa enquete virtual, a opção foi aprovada por 60% dos participantes (!). A mesma companhia já estudou cobrar pelo uso do banheiro.

No início do vôo, recebi – de graça! – uma revista com os produtos em oferta, com a comodidade de poder comprar ali mesmo. Mais uma prova de que a companhia continuava pensando no meu bem-estar. Vi então a foto do big boss no editorial. Quase duvidei que existisse. Era a primeira imagem humana que eu tinha. Mesmo se fosse falsa, parecia uma pessoa, o que não deixava de ser um upgrade.

Estudei com atenção. A foto vendia o conceito. Nada de terno e gravata ou ambiente corporativo. Nosso “fellow” era um homem com o sorriso confiante do jovem empreendedor arrojado, exibia um bronzeado de surfista e parecia se divertir muito enquanto trabalhava e revolucionava o mundo com a ousadia de suas ideias. Afinal, não é qualquer feito. Ele havia inventado o primeiro pau-de-arara com asas da história da aviação.

Continuei lendo. Descobri que eu era muito importante para eles e que todos os clientes eram tratados como VIPs – very important persons. Os comissários de bordo eram todos jovens, descolados. Cantaram parabéns para um passageiro de aniversário. Xavecaram as meninas que viajavam sozinhas. Passaram o vôo inteirinho tentando vender produtos variados, na maior empolgação, como se fosse um programa de auditório. Parei de escutar quando anunciaram um cigarro que não fazia fumaça nem precisava acender, mas que podia me dar a dose de nicotina necessária para viver, ali mesmo no avião.

Os passageiros aplaudiam. Pareciam muito felizes viajando no desconforto. Porque, afinal, ao contrário de mim, eles sabiam que não era uma simples viagem. Estavam compartilhando e propagando um estilo de vida, um jeito despojado de voar. Tinham, visivelmente, uma sensação de pertencimento a uma tribo privilegiada (?!) de cidadãos do mundo.

Eu queria de verdade que o admirável mundo novo parasse para eu descer e embarcar no velho. Mas, pelo menos naquele momento, a sensação de estar no ar era bem real.

(Publicado na Revista Época em 10/05/2010)

As garotas hihihi

Se você já viajou por aí, deve ter visto uma garota hihihi. Em geral ela tem a constituição de um junco e, como ele, parece que vai quebrar. É branquinha, quase translúcida. Apresenta uns pequenos olhos orientais sempre meio esbugalhados, onde boiam toda a inocência do mundo. E um sorriso de dentes muito alvos que parece depositá-la inteira entre as mãos do interlocutor. A espécie hihihi só tem fêmeas. E ninguém ainda descobriu como se reproduz.

A bordo de sua aparente fragilidade, as garotas hihihi dão a volta ao mundo em passinhos de gueixa, mas enfiadas em tênis aerodinâmicos.

Desde as últimas décadas do século XX, há registro de espécimes hihihis nos cinco continentes. Deserto, mar, montanha. Sol de 40 graus, neve. Onde há viajantes, há também hihihis.

A espécie não se fixa. Está sempre de passagem, fazendo turismo. Tampouco anda em bandos. Seu comportamento é excludente com relação às iguais. Uma hihihi prefere estar sozinha entre nós. Precisa de um território circunscrito para exercer com desenvoltura seu modus vivendi.

Há poucos registros documentados de encontros de hihihis. Testemunhos afirmam que, quando dois espécimes se encontram, não fazem hihihi. Depois de alguma tensão, uma delas se afasta. Hihihis comportam-se como leões. Há apenas um por território. E um bando de não-hihihis ao redor. Nós.

Uma equipe de TV que percorria os caminhos motociclísticos do jovem Che Guevara pela América encontrou uma hihihi no deserto do Atacama. Acampando. Vinha de uma volta ao mundo, sozinha. Só falava umas poucas palavras de inglês, espanhol nem sabia que existia. Era capaz de montar a barraca em cinco minutos, com um bracinho nas costas. Mas quem seria maldoso de permitir que aquelas mãozinhas feitas para desenhar ideogramas pegassem no pesado?

Logo hihihi foi alimentada, afofada, protegida por todos. Diante das câmeras, o jornalista disse: “Você sabia que vai aparecer num programa de TV?”. E ela, com a mãozinha na boca: hihihi. E seguiu pelo mundo, sobre seus pezinhos, muito além do que Che jamais sonhou.

Em um dos muitos contatos documentados de uma hihihi com um membro masculino da comunidade local que ela visitava, na Andaluzia, as observações mostram que o homem a levou do aeroporto até o hotel de graça; carregou a sua mala; estrebuchou-se tentando falar espanglês. A garota hihihi respondeu a todas as indagações com aquele rosto de você-pode-fazer-tudo-comigo-porque-eu-nada-sei-do-mundo-mas-será-uma-covardia-porque-eu-sou-muito-fofa.

Aqui está meu telefone, disse o homem. Hihihi. Você pode me contatar a qualquer hora do dia ou da noite. Hihihi. Se você precisar de mim, é só ligar para este número. Hihihi. Você quer que eu carregue a sua mala de 40 quilos pelos cinco lances de escada? Hihihi.

E lá foi ela, segundo os registros, saltitando atrás do homem que parecia prestes a ter um enfarte. Quando chegou à porta do quarto do hotel, hihihi foi fechando-a na cara dele enquanto dizia docemente: hihihi.

Entrevistado logo depois, o homem se declarou encantado. Se tivesse chance, pretendia pedir a linda mãozinha da hihihi em casamento. Ela não precisaria nem entregá-la, já que as mãozonas do homem poderiam esmagar algo tão delicado. Ele já ficaria feliz para sempre se pudesse carregar a mala dela pelo mundo afora nas costas. Até que a morte (dele) os separasse.

Cinco minutos depois de o homem partir, hihihi saiu do quarto com sua câmera fotográfica e seus olhos esbugalhados. Era eu quem a observava. Em geral, são escolhidas fêmeas para a missão. Embora ainda seja um ponto controverso entre os cientistas, há evidências de que as mulheres sejam (um pouco) menos afetadas. Sobre mim, posso dizer que sou experiente. Ou era. Porque falhei miseravelmente.

Sempre priorizei a imparcialidade do meu trabalho e minha fama de durona. Por alguma razão — e não passa um dia sem que eu rememore a cena para tentar descobrir onde foi que me distrai —, deixei que ela me visse.

Hihihi. Foi tudo o que ela pronunciou.

Enquanto eu pensava se deveria me oferecer para carregar aquela câmera pesadíssima para ela, hihihi desapareceu junto com o elevador que eu tinha chamado. Ainda posso ouvir o som abafado e descendente que a levou para longe de mim.
Hihihi.

Desde então, não durmo mais. De saudades.

Página 14 de 22« Primeira...1213141516...20...Última »