Prima Loreci

Ela chegou à minha casa com uma saia comprida demais e duas mãos que se mexiam sem parar. Tinha nascido trabalhando a prima Loreci. Só se sentia segura no mundo se os dedos agarravam a panela para arear ou se fechavam sobre o cabo da vassoura ou o pescoço da galinha. Era com as unhas encardidas por uma limpeza impossível que ela se agarrava ao mundo, à vida e à morte. Ensinada que fora que a virtude está em manter as mãos sempre ocupadas para que não escorreguem para geografias proibidas. Chegara à minha casa da cidade para, como outros primos antes dela, aprender a ler e a escrever.

Prima Loreci olhava desconfiada para o lápis que minha mãe lhe estendia. Antes de agarrá-lo passou uma mão terna sobre ele, surpresa com a textura nova. Depois o apertou suavemente entre o polegar e o indicador. E arriscou um risco assustado sobre o caderno apenas porque sabia que esperávamos dela uma ação. Cabia a mim ajudá-la com os estudos, eu que a admirava pelos tantos mistérios que possuía. E que sempre a tinha ao mesmo tempo temido e invejado pela precisão fatal com que torcia o pescoço estreito das carijós. Prima Loreci sabia que a morte está servida na mesa quando agradecemos a Deus pela comida, mas não sabia escrever o próprio nome.

Digo que segure o lápis sem medo. Ela me olha desconfiada. Não está convencida de que o cilindro negro a obedecerá. Na experiência da prima Loreci tudo morde ou reage de alguma maneira potencialmente perigosa. Ela não conseguia entender a reação de causa e efeito da coisa com o papel. Explico a ela que com o lápis pode criar um mundo inteiramente novo. Ela não entende, mas nada diz. Colocando minha mão sobre a dela desenhamos juntas um L na folha em branco. É a primeira letra do seu nome, explico. Ela não se reconhece.

A cada dia avançamos uma letra a mais que a faço desenhar cem vezes no caderno. A cada dia há uma parte de você aqui, eu explico. Ela me olha agora visivelmente assustada. E implora a minha mãe que a deixe esfregar as panelas. Quando nos distraímos lá está ela sobre o tanque batendo a roupa que poderia estar na máquina de lavar. Eu preciso fazer alguma coisa ela diz à minha mãe agoniada com o que os parentes vão pensar se descobrirem que a sobrinha faz o serviço pesado na casa dos tios da cidade. Prima Loreci arregala seus grandes olhos de corça e se atira sobre o esfregão.

No sexto dia eu a ensino a desenhar o “i” final do seu nome. E digo a ela que está ali, naquela folha de papel. Que acaba de renascer. Ela me olha em pânico. Sim, é você aqui. Leia juntando as sílabas como eu te ensinei. E ela soletra primeiro em silêncio depois com uma voz que vem da garganta. Lo-re-ci. Sou eu? Ela me pergunta. Eu aquiesço. Sou eu aqui? Eu confirmo. E você pode escrever quantas vezes quiser. E naquele dia ela não pede para lavar a louça e percebo que minha mãe fica um pouco decepcionada.

No dia seguinte meu irmão diz que sua letra é muito feia e começa apagar seu nome do caderno. Prima Loreci lhe dá um safanão tão violento que ele bate a cabeça na parede. Ela não quer ser apagada. Alisa a folha de caderno e acaricia seu nome enquanto crava no meu irmão seus olhos de matar galinha. Não quer mais escrever a lápis agora. Me promete primazia na árvore das laranjas do céu quando a estação chegar se eu lhe arrumar uma caneta. Eu surrupio duas da metódica arrumação do escritório do meu pai, uma azul e outra vermelha. Prima Loreci agora escreve seu nome sem parar e ao se preparar para dormir carrega-se toda para a cama.

Quando ela dá as costas para o caderno para obedecer a uma ordem que agora minha mãe lhe dá, meu irmão rasga o tanto de páginas que consegue agarrar. Dezenas, talvez centenas de Lorecis jazem despedaçadas no chão. Minha prima dá um grito e agarra o estômago com suas unhas negras como se para segurar as tripas. O que vi nos olhos dela me deixou paralisada de terror e de pena. Não consegui me mover da esquina entre a cozinha e a sala. Apenas a vi saltar sobre meu irmão com a faca com que descascava batatas para o almoço como num filme que ninguém filmou. Ela o furou muitas vezes. Não para matá-lo, apenas o suficiente para que o sangue dele se misturasse aos pedaços dela no chão.

Meus pais não deram queixa. Meu irmão foi atendido em casa pelo médico de sempre como convinha às famílias de bem que protegiam suas vísceras com a vida se preciso fosse. Prima Loreci foi despachada com seus trapos de volta para a roça onde levaria uma surra que lhe aleijaria o braço direito. Não o suficiente para que não pudesse mais pegar na enxada porém. Antes que partisse eu enfiei na garra da sua mão a caneta vermelha. Escreva, sussurrei. É só escrever tudo de novo. Para renascer. Ela me olhou com seus grandes olhos de corça. Apertou meus dedos com suas unhas gastas de mortes.

Duas semanas depois ouvi meus pais cochichando no quarto. Prima Loreci havia fugido de casa e desaparecido no mundo. Não levou nem as roupas, disse minha mãe numa voz aguda. Eu sabia que ela tinha levado tudo o que tinha. E que era suficiente. Desde então, vejo seu nome em todos os muros, nas portas dos banheiros, nas paredes das cavernas com pinturas rupestres, na pedra do coliseu romano, na superfície da torre Eiffel, na bolsa de úbere de cabra do beduíno do Sahara, na cabeça branca de Nelson Mandela.

O dia seguinte é hoje

É hora de o Brasil ter fome de educação – e isso depende de nós, eleitores

Ao participar na semana passada de um debate sobre o Brasil na cidade de Ferrara, na Itália, fui surpreendida por uma pergunta. O encontro era parte da programação do Festival da Internazionale, famosa revista italiana que publica reportagens de todos os cantos do mundo. Antes do início do encontro, tive dúvidas se o Brasil despertaria interesse suficiente para preencher o Teatro Comunale, um espetacular prédio do século XVIII. A plateia e o primeiro andar de camarotes lotaram, o que diz muito sobre o momento vivido pelo Brasil. Ao final do debate, uma jovem italiana, que recentemente viajara pelo país, perguntou se o povo brasileiro era realmente alegre ou apenas resignado. É uma boa pergunta – e não tem uma resposta só nem uma resposta fácil.

Tive a sorte de andar muito pelo país em mais de 20 anos de reportagem. Conheço vários Brasis. E sempre me pareceu que o povo brasileiro, apesar das muitas e profundas diferenças regionais, é unido por algo de muito seu: uma tristeza que ri de si mesma. Nessa alegria triste há na fundura dos olhos que sorriem uma melancolia que vem de muitas dores, das cicatrizes de uma vida arrancada com dificuldade dia após dia, seja nos confins do sertão nordestino, na floresta amazônica ou na periferia de São Paulo. E o que me surpreende, sempre, é que a intensidade desta alma se manifeste como alegria, ainda que triste. Que as pessoas tentem sorrir, ainda que chova salgado nos olhos que sorriem.

Tentei contar isso à garota italiana, não sei se consegui, porque para mim é muito mais fácil escrever do que falar. Contei a ela também que acredito que vivemos um momento muito rico no país, que pode ser traduzido como um resgate da esperança. Apesar das críticas que faço a Lula e a seu governo, especialmente no campo da ética na política e da ética no tratamento do patrimônio público, a vida do povo brasileiro melhorou. São quase 30 milhões de brasileiros que deixaram a pobreza para ingressar no que tem sido chamado de “nova classe média” ou a tal da classe C. Como me disse uma mãe de família da periferia de Osasco, na Grande São Paulo, dias atrás: “Para nós, que somos pobres, o importante é comer bem. E pela primeira vez minha família come bem”. E ela acrescentaria mais tarde: “E hoje eu tenho uma geladeira nova e uma máquina de lavar roupa”. Para parte da tradicional classe média brasileira, que nunca passou fome e sempre teve acesso aos bens de consumo, pode parecer pouco. Mas não é pouco. É grande.

Seja Dilma Rousseff ou José Serra quem governará o Brasil, o que hoje é significativo passará a ser pouco a partir de janeiro de 2011. Nos últimos oito anos o governo Lula melhorou as condições concretas da vida da população, especialmente as dos mais pobres. Para isso, foi fundamental o controle da inflação iniciado lá atrás, com Itamar Franco, e a estabilidade econômica assegurada por Fernando Henrique Cardoso. Mas só seremos o país que sonhamos se o presidente ou a presidente eleita no próximo dia 31, aliados aos governos estaduais que acabaram de ser eleitos ou ainda serão, tiver o mesmo empenho para melhorar radicalmente a qualidade da educação no Brasil. E, assim, ampliar a definição, também do ponto de vista das políticas públicas, do que é viver com condições de viver.

Fazer as três refeições do dia, ter máquina de lavar roupa e até crédito para comprar uma TV de tela plana ou um computador é muito importante. Só quem nunca teve nada disso pode dar a dimensão do que significa. Mas, a partir deste novo patamar, passa a ser pouco. Pouco não só do ponto de vista do que se espera do novo governo, mas pouco para o que esperamos de nós mesmos.

Espero que neste segundo turno, ao contrário do embate de palavras vazias e promessas de ocasião que assistimos no primeiro, Dilma Rousseff e José Serra discutam com a seriedade que se espera de um candidato a presidente o projeto de cada um para o país. Para mim, como cidadã brasileira, o mais importante é a educação. Se quisermos continuar tendo chance, só podemos educar ou educar. Quero saber, concretamente, como cada um dos candidatos pretende dar qualidade ao péssimo ensino público deste país – já.

Se a educação não for de fato uma prioridade dos governos e dos cidadãos, nossos sonhos serão apenas sonhos, porque não teremos sequer mão de obra qualificada para garantir nossa inserção na economia mundial. E se a educação não esteve antes ou não estiver agora no centro do debate eleitoral que começa hoje é porque nós também não ligamos para ela tanto quanto deveríamos – o que apenas demonstraria a indigência da nossa formação e a pobreza de nossas expectativas. Será que precisamos de um Betinho, o homem que nos apontou a fome como uma indecência que nos envergonhava a todos, para acordar para o fato de que esta tragédia causa danos maiores e mais permanentes do que qualquer terremoto?

É verdade que o acesso à universidade foi ampliado pelo ProUni do governo Lula e pelas cotas sociais e raciais. Mas é igualmente verdade que, em 2009, apenas 21 das 2 mil instituições brasileiras de ensino superior tiveram nota máxima na avaliação feita pelo Ministério da Educação. E somente seis universidades brasileiras aparecem na lista das 500 melhores universidades do mundo numa avaliação anual feita pela Universidade de Comunicações de Xangai: USP, entre as 150 melhores; Unicamp, entre as 300; UFMG, UFRJ e Unesp, entre as 400; e UFRGS, entre as 500. Todas as seis públicas. O que significa que a maior parte de suas vagas pertence aos filhos de pais que podem pagar pelas poucas e caríssimas escolas privadas de boa qualidade nos ensinos fundamental e médio.

Nunca entendi por que não é exigido daqueles que se diplomam em universidades públicas que, depois de formados, retribuam o investimento com um período previamente determinado de trabalho gratuito em zonas estratégicas e carentes do país. Há uma ideia de direito sem a necessária complementação do dever no Brasil que atravessa toda a sociedade. Percebo que os estudantes das universidades públicas não parecem ter a consciência de que têm um privilégio, de que sua educação é gratuita apenas para eles, mas paga por todos os brasileiros, inclusive por aqueles que nunca terão a chance de estudar de graça numa boa escola. Parece-me óbvio, necessário e educativo que, depois de formados, os novos profissionais tivessem de retribuir com trabalho o investimento que a sociedade fez na sua formação, a confiança que a sociedade depositou neles como fiadora de sua educação. Além de ser uma retribuição que o país precisa, seria um complemento importante para a formação desta elite intelectual que, em sua maioria, nunca pisou numa favela ou na periferia, no sertão nordestino ou no que nos resta de floresta amazônica. Por que isso não acontece para mim é um mistério – e uma deformação de caráter.

Mas o ensino superior e a ausência de reciprocidade é apenas o reflexo de uma perversão que começa muito antes. É verdade que a escola fundamental vem se universalizando, num processo iniciado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Mas também é fato que entre 36% e 58% dos estudantes brasileiros que chegam ao oitavo ano de estudo (e boa parte não chega até aí!) não conseguem entender o que lêem. Seu (des)conhecimento da leitura, segundo o Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, da Unesco, compromete a continuidade dos estudos e a inserção no mercado de trabalho. O desempenho de nossos estudantes nas áreas de ciências, matemática e português é um dos piores do mundo nas pesquisas internacionais. Não dá para construir um país verdadeiramente grande com uma população tão mal educada.

Durante as últimas décadas a classe média deu uma solução individual ao problema coletivo da deficiência progressiva da escola pública, pagando educação privada para seus filhos. Nesta opção pelo próprio umbigo, entregou os mais pobres à própria sorte. Minha expectativa é de que a melhoria real da renda no governo Lula, que incluiu uma parcela significativa da população na economia de mercado, sirva também para que estes brasileiros comecem a pressionar por educação pública de qualidade. Será triste se copiarem a velha classe média e optarem por saídas individuais, já que não faltam as classes D e E para quem deixar o pior.

Aposto a maior parte da minha esperança nesta população que nos últimos anos pôde comprar carne, geladeira e máquina de lavar. Que ela agora pressinta que a verdadeira emancipação só se dá pela educação e pela cultura, que são estes os caminhos que levam à ampliação da experiência humana. Que descubra que tem direito a mais do que escolas ruins e professores mal pagos. Que, como na pergunta da jovem italiana, tenha menos resignação e mais alegria. É a qualidade do desejo de seus cidadãos que determina a grandeza de um país. Por isso, é fundamental que nosso desejo se alargue.

Ainda que as condições de vida tenham melhorado, o Brasil segue entre as dez nações mais desiguais do mundo e isto se deve em grande parte à baixa escolarização da população e à má qualidade do ensino público. Em educação não vejo nenhum governo, nem federal nem estadual, para ficar no que esteve e estará em jogo nestas eleições, que possa realmente se orgulhar do que fez nas últimas décadas. Ainda que tenham existido avanços – e efetivamente existiram –, continuamos no prejuízo. O buraco é tão grande que tudo o que foi feito é pouco. E sabemos que todos os governos – todos – poderiam ter feito muito mais se a educação fosse tratada de fato como prioridade.

É preciso fazer o máximo, porque na situação que estamos o máximo será pouco. É preciso fazer com mais ênfase, com mais urgência e com mais recursos. E isso só vai acontecer se, como eleitores e como cidadãos, fizermos a nossa parte para reverter esta tragédia nacional. A educação não tem sido a prioridade que deveria ser nas várias instâncias de governo porque nós também ainda não conseguimos compreender que é a nossa vida que está em jogo. Mesmo a sua, que paga o colégio mais caro para o seu filho na esperança de salvação individual.

Tudo o que seremos vai depender da qualidade que conseguirmos dar ao ensino público nos próximos anos. A educação é também determinante para baixar a criminalidade e melhorar a saúde preventiva. Não temos nenhum tempo a perder, pelo contrário. Por isso, vamos exigir de Dilma Rousseff e de José Serra que digam claramente o que vão fazer – e quanto do PIB vão investir – para que a educação seja de fato prioridade. Precisamos saber o quanto compreendem que a educação depende de professores bem pagos, bem formados e constantemente avaliados. E vamos valorizar o nosso voto.

Voltando à pergunta do início desta coluna, a melhor resposta que eu não dei à estudante italiana é que talvez interesse menos saber, neste momento específico, se os brasileiros são alegres – e mais saber se vão se resignar ou continuar desejando mais. Não apenas acesso a bens de consumo, mas à riqueza imaterial que ninguém nos tira e que nos faz sonhar com uma vida que valha a pena num país verdadeiramente grande. Construído com a qualidade do nosso desejo, a consistência do nosso sonho e o valor do nosso voto.

A medida do Brasil será determinada cada vez mais por uma outra fome: a de livros.

(Publicado na Revista Época em 04/10/2010)

A bunda

Tinha uns 11 anos quando descobriu que a bunda era algo além do lugar por onde saía o cocô ou um mero aparador de palmadas. O homem velho, devia ter uns bons 30 anos, a espalmou inteira quando espiava uma vitrine no caminho da escola. Até doeu. Gostoooosa, ele disse. E ela sentiu uma mistura de repulsa e desejo. E saiu correndo de ambos os sentimentos. Com os meses, até os tios olhavam disfarçadamente para a sua bunda. E os primos e os colegas de escola e talvez o pai, mas ela não queria pensar nisso. Se trancava no quarto e se olhava no espelho. Tentava alcançar a bunda que os outros apalpavam com olhos úmidos.

Aos 12 anos foi feliz com a bunda. Em sua ingenuidade de menina achava que fazia parte dela e eram para ela os assobios nas ruas, a sedução dos homens e a inveja das mulheres. Aos 13 a mãe ficava brava porque as calças não duravam muito. Num mês serviam, no seguinte eram rasgadas pela bunda que crescia em círculos. Aos 15 só usava saias porque duravam mais. Aos 17 os meninos todos queriam namorar com ela, mas só prestavam atenção na bunda. Só apalpavam a bunda, só queriam a bunda, só se dedicavam à bunda. Nenhum pensamento para ela nem para os pensamentos dela. Ela era a mulher acoplada à bunda, descobriu. Aos 18 começou a odiar a bunda e cometeu o primeiro atentado contra ela que não era mais ela. Enfiou uma faca de churrasco na nádega direita. A bunda sangrou um pouco, mas logo cicatrizou e mais bunda veio e apagou a marca. A bunda era invencível.

Aos 20 anos já precisava de duas cadeiras para a bunda. E amigos e familiares se referiam à bunda e a ela como seres diferentes. Nesta época acreditava que a bunda queria se livrar dela e quase não dormia à noite, temerosa de que a bunda a expulsasse de si. Quando finalmente dormia, imediatamente o medo a acordava. Se no passado tivera dúvidas se a bunda era ela, agora não tinha mais. O olhar externo a esquartejara da bunda e o que antes havia sido sua carne agora crescia como um bicho à espreita. Emagrecia pelo terror que a condenava à vigília e à falta de apetite. Diante de sua pequenez, a bunda se tornava maior, mais forte e mais irredutível.

Aos 22 anos ela se casou com um homem que jurava amá-la para além da bunda. Aceitara seu assédio porque ele havia sido o primeiro a descobrir que ela tinha olhos cor de mel. E uma covinha na bochecha direita quando sorria. E uma pinta logo abaixo da axila esquerda. Descobriu no altar que era tudo fingimento quando ele enfiou a aliança e o dedo no lugar errado e ela precisou sofrer uma cirurgia de emergência, arruinando a lua de mel. Quando deixou o hospital não se olhava mais no espelho porque também ela agora só enxergava a bunda.

Aos 25 anos sentou-se em três cadeiras de uma clínica de cirurgia plástica e implorou ao cirurgião que arrancasse 90% daquela coisa. Ou a coisa inteira, ela até preferia. Nessa época ela ouvia vozes que diziam que a bunda a engoliria viva. Ou morta. Tinha deixado de tomar banho e vagava pela casa enrolada num lençol encardido. O cirurgião cobrou uma fortuna, mas na hora da cirurgia não conseguiu. Aos prantos a pediu em casamento. Ela saiu batendo a porta, meio grogue da anestesia, e deu queixa dele no PROCON.

Aos 29 anos quase não conseguia andar porque parte das pernas tinha virado bunda. A família já perdia objetos dentro das crateras de celulite e toda vez que algo sumia ela era vasculhada sem cerimônia. Sua vida agora era espacialmente limitada e a única proposta de trabalho que recebera tinha sido para se tornar atração de um cirquinho mixuruca. Ainda era desejada pelos homens, mas já deixava que apalpassem a bunda e se enfiassem nela como se não lhe dissesse respeito. Tinha se desconectado. Não sabia mais da bunda nem dela, abdicara do corpo e do medo. Sem limites definidos, esbarrava nos móveis e causava enormes prejuízos materiais à família.

Aos 32 anos tomou 32 comprimidos para dormir, um para cada desgraçado ano. Sentiu uma comichão na bunda 20 minutos depois. Num lampejo de assustada lucidez percebeu que a vida toda havia sido um monumental engano. Era tarde para tudo, menos para morrer inteira.

“Nada é só bom”

A felicidade pode ser uma mercadoria ordinária, vendida e não entregue

Ao assistir ao novo filme de Arnaldo Jabor, “A Suprema Felicidade”, fiquei desesperada porque não tinha uma caneta e um bloquinho. Eu nunca ando sem uma caneta e um bloquinho. Mas assisti ao filme na abertura do Festival de Cinema do Rio, na quinta-feira (23/9), vestida para festa e com uma daquelas bolsas ridículas onde mal cabem o batom e o dinheiro do táxi. Um problema quando ouvimos uma frase realmente ótima e tudo o que encontramos para retê-la é um bastão com algum nome bizarro como “beijo fatal”. Tive de apelar para a minha péssima memória porque há no filme algumas frases imperdíveis. Daquele tipo essencial, tão boas que parecem simples e até óbvias e você quer morrer por nunca tê-las escrito. Estas frases unem as memórias do cineasta, que vão emergindo no filme do mesmo modo que as lembramos na vida – sem linearidade e só aparentemente descosturadas. Fiquei repetindo-as durante toda a sessão para mim mesma. Consegui que sobrevivessem razoavelmente ilesas. E a primeira delas é a do título desta coluna: “Nada é só bom”.

Virou meu mantra desde então. Vejo tanta gente sofrendo por aí, achando que sua vida está aquém do que deveria ser, porque tudo deveria ser só bom. Não sei quando nos enfiaram garganta abaixo esta ideia absurda de um estado de felicidade absoluta. Uma espécie de nirvana a ser alcançado em que nada mais nos perturbaria e que seríamos felizes para sempre. Na verdade, só há um jeito de isso acontecer: podemos ser felizes e mortos. Porque este estado imperturbável, imune à vida, só se alcança na morte.

Acho que a grande causa atual de infelicidade é a exigência da felicidade. É o deslocamento do lugar da felicidade para o centro da vida, como um fim a ser alcançado e a medida de uma existência que valha a pena. Se nos lembrarmos bem dos contos de fadas, o “e foram felizes para sempre” era exatamente o fim da história. Era quando o conto morria num ponto final porque não havia mais nada relevante para ser contado. Tudo o que interessava, o que nos hipnotizava e nos mantinha pedindo a nossos pais ou à professora ou a nós mesmos “de novo, conta de novo”, era o que vinha antes. O desejo, as turbulências, os avanços e recuos, os tropeços e os arrependimentos, os erros, o frio na barriga, a busca. Tudo aquilo que é a matéria da vida de todos. O que realmente importa.

Acho impressionante a quantidade de adultos pedindo um final feliz para as suas vidas, para suas histórias de amor, para o sucesso profissional. Não há nenhum mistério no final. Independentemente do que cada um acredita, o fato é que no final a vida como cada um a conhece acaba. Para viver, o que nos interessa não são os pontos finais, mas as vírgulas. Os acontecimentos do meio, o enredo entre o primeiro parágrafo e o último.

Escrevo pequenas histórias de ficção em um site de crônicas e alguns leitores se manifestam, por comentários ou por email, reclamando do desfecho. Eles me ensinam sobre esta exigência da felicidade por toda parte. Pedem, com todas as letras, “um final feliz”. Sentem-se traídos porque não dou isso a eles. Mas voltam na semana seguinte para se perturbarem com o desfecho do novo conto e reclamar mais uma vez. São adultos pedindo histórias da carochinha. E consumidores bem treinados para achar que tudo é produto de consumo.

Acham que ofereço a eles cachorro-quente. Por favor, um pouco mais de mostarda, duas salsichas, menos pimenta no molho. É muito interessante. Mas, de algum modo, algo nos meus “finais infelizes” os engata. Porque, em vez de me deixar para lá e ler algo mais “feliz”, voltam por alguma razão. Talvez descobrir se me rendi a tal da felicidade.

A ideia de felicidade como um fim em si mesmo encobre e desbota tanto a delicadeza quanto a grandeza do que vivemos hoje, faz com que olhemos para nossas pequenas conquistas, nossos amores nem sempre tão grandiloquentes, nosso trabalho às vezes chato, como se fosse pouco. Apenas porque nem a conquista nem o amor nem o trabalho é só bom. E há uma crença coletiva e alimentada pelo mundo do consumo afirmando que tudo deveria ser só bom. E se não é só bom é porque fracassamos.

Deixamos então de enxergar a beleza de nosso amor imperfeito, de nossa família imperfeita, de nosso trabalho imperfeito, de nosso corpo imperfeito, de nossos dentes imperfeitos e até de nossas taxas de colesterol imperfeitas. De nossos dias imperfeitos. Escolher como olhamos para nossa vida é um ato profundo de liberdade que temos descartado em troca de propaganda enganosa.

Tanta gente se esquece de viver o que está aí em troca desta mercadoria ordinária chamada de felicidade. Que, como toda mercadoria, tem essência de fumaça. Se tivesse de escolher entre esta felicidade de plástico que vendem por aí e a infelicidade, preferiria ser infeliz. Pelo menos, a infelicidade me faz buscar. E a felicidade absoluta é mortífera, ela mata o tempo presente.

Não tenho nenhum interesse por esta pergunta corriqueira: “Você é feliz?”. Acho uma questão irrelevante. O que me interessa perguntar a mim mesma – e pergunto a todos a quem entrevisto é: “Você deseja?”

Desejar é o contato permanente com o buraco, com a falta, com a impossibilidade de ser completo. Desejar é o que une o homem à sua vida. Une pela falta. Tem mais a ver com um estado permanente de insatisfação. Não a insatisfação que paralisa, aquela causada pela impossibilidade da felicidade absoluta; mas a insatisfação que nos coloca em movimento, carregando tudo o que somos numa busca permanente de sentido. Desejar é estar sempre no caminho, conscientes de que o fim não importa. O fim já está dado, o resto tudo é possibilidade.

No filme de Arnaldo Jabor, as melhores frases são de Noel, avô do personagem principal, vivido pelo enorme Marco Nanini. Numa ocasião ele diz ao neto: “Ninguém é feliz. Com sorte, a gente é alegre”. E completa: “A vida gosta de quem gosta dela”. Achei de uma simplicidade brilhante. É isso, afinal. É claro que há uns poucos momentos de felicidade, mas, como diz Noel em seguida, eles duram no máximo uns 10 minutos e se vão para sempre.

Em vez de ficar perdendo tempo com finais felizes ou se perguntando sobre a felicidade ou invejando a suposta felicidade do vizinho ou se sentindo mal porque não é um personagem de comercial de margarina, vale mais a pena tratar de viver. Tratar de gostar da vida para que ela goste de você.

Aliás, nada me dá mais medo do que gente que vive como se estivesse num comercial de margarina. Se aceitarem um conselho: corram dessas vidas de photoshop. Elas não existem. Gente de verdade vive do jeito possível – e tenta lembrar que o possível não é pouco. Isso não significa se acomodar, pelo contrário. Mas abrir os olhos para a novidade do mundo na soma subtraída de nossos dias, desejar a vida que nos deseja.

É como em outra frase, esta dita por um comprador ambulante de coisas antigas num momento crucial do filme. Um delirante Noel, assustado com a proximidade da morte e disposto a retomar a alegria, sacode na rua o personagem de Emiliano Queiroz, gritando: “Hoje é sábado, hoje é sábado”. E o comprador de coisas que já perderam o sentido diz a frase antológica, digna de um frasista como Nelson Rodrigues: “O sábado é uma ilusão”.

Sim, o sábado é uma ilusão. Então, lembre de viver também de segunda a sexta.

(Publicado na Revista Época em 27/09/2010)

Final feliz

Uma homenagem aos leitores que reivindicam um happy end nas minhas crônicas.

Nada me deixava mais feliz na infância do que visitar minha tia-avó Docelina. Ela me recebia com um par de olhos azulados, encurralados por rugas enfileiradas como legiões romanas, e com eles fazia uma silenciosa tomografia no meu corpo magro de ruim. Gostava dela porque não me apalpava nem me sacudia nem me beliscava nem me sufocava como as outras tias. Só aquele olhar. Depois desta inspeção meticulosa, grunhia algo e também com o olhar me autorizava a entrar em sua casa sempre arejada, com um cheiro de terra molhada em lonjuras. Isso era outra coisa de que eu gostava. Sua casa não cheirava a perfume doce nem a roupa que secava abafada nem a banha rançosa. O vento fazia voltas pelas janelas abertas, trazendo odores de coisas vivas.

Eu ficava lá na sua sala de costura, enquanto ela alinhavava uma colcha de retalhos coloridos. Eu, ela e seu gato sem idade. Um tipo meio antipático, rajado de cinza e com uns olhos amarelos. Nunca o vi ronronando pelas pernas da minha tia nem a vi afagando a sua cabeça. Mas eram ligadíssimos, dividindo o mesmo oxigênio, mas sem descuidar-se de uma distância regulamentar. Eu me jogava numa de suas almofadas de retalhos e ficava lá divagando, enquanto seus dedos dançavam um balé de linhas e agulhas e o gato cochilava de olhos abertos. Raramente trocávamos uma ou outra palavra, só mesmo se fosse imprescindível. Palavras nos constrangiam.

Tia Docelina e eu (e poderia jurar que também o gato) nos entendíamos por olhares e uma meia dúzia de sons que saíam de sua garganta e que me soavam perfeitamente inteligíveis. Ao contrário de todas as pessoas do meu mundo, ela não se importava se eu passava o dia inteiro imóvel no tapete da sala olhando para o nada. Na sua casa eu estava encaixada como o dedal no seu dedo médio.

Quando a manhã já ia pelo meio, ela levantava os olhos de seus retalhos, largava a colcha sobre o sofá e erguia-se como se tivesse pernas de 20 anos. O gato emitia uma aprovação rouca e ela dirigia-se à cozinha. Eu interrompia uma das histórias que se desenrolavam na minha cabeça com mais realismo que a vida e, enquanto nos confins do meu cérebro um cavaleiro medieval suspendia seu ataque a uma princesa alienígena com uma armadura de oito seios, meus músculos todos se tensionavam pela expectativa. Era minha parte favorita do dia.

Tia Docelina abria o armário de palhinha para pegar uma lata enfeitada com uma paisagem de montanha nevada que recebera de uma parenta da Suíça. Destampava-a com requintes de cuidado e tirava lá de dentro pedaços de pão dormido. Esparramava-os com precisão igualitária pelo parapeito da janela emoldurada por cortinas de retalhos. Não levava mais do que alguns segundos. Eles vinham de todos os cantos, como se vivessem para este momento. Coloridos, em preto e branco, pardos, miúdos, gordos, havia ali uma variedade suficiente para alegrar um daqueles gringos de pele avermelhada, observadores de pássaros que costumam perambular pelo que restou das matas do Brasil. Tia Docelina os perscrutava com genuína satisfação apertando seus olhinhos azuis. De dentro da lata ia sacando bocados de pão e repondo o banquete.

Não podia existir imagem mais bucólica. Tia Docelina em seu vestido de retalhos coloridos na janela emoldurada por cortinas coloridas dando bocados de pão a dezenas de passarinhos coloridos.
Eu e o gato, daltônicos naquele quadro, espiávamos a cena hipnotizados de gozo.

Quando a maioria já havia se refestelado de pão, Tia Docelina rosqueava sem pressa a tampa na lata, devolvia-a ao armário com seu espírito virginiano e em seguida sacava a espingarda espalha- chumbo do gancho atrás da porta. Com uma mira de Clint Eastwood, acertava um punhado, enquanto os outros revoavam em magoada traição, só para retornar no dia seguinte. Pelo menos uma meia dúzia tombava num momento de máxima felicidade, ao final de lauto repasto, sem tempo para adivinhar a morte. Tão inocentes que a carne nem endurecia pela descarga de adrenalina que estraga o sabor de tantos bois. Tia Docelina os recolhia com sereno respeito, depenava-os e limpava-os com maestria de chef francês. Quarenta minutos depois, estávamos eu, ela e o gato comendo polenta com passarinhada.

Era um final feliz para ela, para o gato e para mim. Talvez não fosse para os passarinhos, mas não dá para ter tudo na vida.

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