A pedra

Andava rápido pelas ruas de Roma. Queria comprar óculos de sol. No Brasil, os mesmos óculos custam três vezes mais, às vezes até quatro. Prada, Giorgio Armani, Dolce & Gabbana. Desta vez, só desta vez, se renderia às grandes grifes. Era o que falava para si mesma enquanto os olhos perscrutavam vitrines com a ajuda de lentes de grau. Afinal, convencia-se, óculos precisam ser bons para não prejudicar os olhos. Não estava sucumbindo aos apelos eloquentes do consumo, apenas fazendo uma compra consciente, quase uma questão de saúde ocular. Pisando distraída no universo das marcas, esqueceu-se de olhar para o chão. E o chão veio até ela, quadriculado no mosaico antigo.

A dor no pé alcançava o fígado, mas ela já tinha vergonha suficiente, não precisava aumentá-la berrando no meio da Via dei Condotti. Deu um sorriso desajeitado e falso para quem lhe perguntava se estava tudo bem. Tutto bene, molto bene, respondia. Putaquiopariu! Quando voltou a enxergar com nitidez, procurou a origem de sua desventura. E lá estava ela. Uma pedra maior que as outras, desencaixada.

Uma pedra basilar. Antiga, muito antiga. Talvez estivesse ali desde o tempo do Império Romano, possivelmente até antes, muito antes do próprio Cristo, na época em que os cristãos viravam comida de tigres e de leões no coliseu. Ou, não era impossível, ainda antes de Rômulo e Remo. A pedra, de qualquer modo, ali ou em outro lugar, existia desde antes das lendas e de toda a mitologia. Antes dos homens.

Era uma parte nova da alma que lhe doía agora, ao descobrir que a pedra estaria ali quando o último osso do seu corpo fosse devorado pelos vermes. Estaria neste mundo quando o fêmur do corpo do seu neto e do seu bisneto e do seu tataraneto e daqueles para os quais não faz sentido inventar palavras para nomear porque são distantes demais fossem devorados por uma geração de vermes bilhões de vezes à frente daquela que a tinha deglutido. A pedra, por ser pedra, estaria ali ou em qualquer outra coisa na qual o planeta se transformasse. E ela, por ser carne, passaria fugaz como um cometa para o tempo das pedras.

Uma lágrima sua pingou na pedra. E em seguida foi pisoteada por um pé. Ela entrou na ótica e usou seu cartão de crédito dourado para se endividar com os óculos mais caros que encontrou. Tão escuros que, ao sair, não enxergou mais a pedra, que tinha ficado para trás.

Mais tarde, tomando um capuccino, pensou que la vita è bella. E as pedras não podem saber disso.

As mães não deveriam morrer

Resta-nos o movimento que transforma dor em saudade

Uma amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail, agora que a internet deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também aqui, neste lugar sem distância que é o mundo virtual. Mas com tempo veloz, em que uma hora pode ser um pretérito definitivo na disputa pela supremacia dos segundos. Como era antes, quando as notícias levavam meses para chegar e o mundo sobre o qual falavam já tinha inteiro se transmutado, quando as cartas eram sempre um retrato do passado? Agora tudo é agora. E os tempos se confundem de outro modo. Mas se confundem.

Senti tanto o desamparo da minha amiga, porque sei que as mães não deveriam morrer. Na mesma noite sonhei com meus mortos. Meu avô sentava-se com minha avó ao redor da mesa da cozinha como antes e como nunca, porque meu avô sabia que minha avó tinha morrido e eu sabia que meu avô tinha morrido uns 20 anos depois dela. E uma quarta pessoa, desconhecida de todos nós reunidos naquela cozinha, sabia que eu também já tinha morrido, numa outra época que ainda não chegou para mim. Mas comíamos bolinhos de chuva naquela mesa porque compreendíamos que, no curto espaço de existência, neste soluço entre o nascimento e a morte que pertence a cada um de nós, nem os sonhos devem ser desperdiçados. E ali, enquanto eu dormia num quarto de hotel, éramos uma impossibilidade lógica que conversava e que ria.

Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come vivos, como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos documentários da National Geographic. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. Nos espreita do espelho diante do qual escovamos os dentes pela manhã com um braço que pesa uma tonelada. E, quando por um instante nos distraímos, crava seus dentes bem no coração. Neste longo momento depois da perda, sabemos mais dos buracos negros do que os astrônomos porque carregamos um dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior de sua boca ávida, com uma força que não temos, para que não nos sugue de dentro para dentro.

Devagar, bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o vazio vai virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver. Descobrimos que nossos mortos nos habitam, fazem parte de nós, correm em nossas veias fundidos a hemácias e leucócitos. Que suas histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se deixaram em nós. Que, de certo modo, somos muita gente, multidão. Como também nós seremos em muita gente, deixando, em cada um, ecos de diferentes decibéis e intensidades. Acolhemos então aquele que nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E como saudade não poderá mais partir.

Somada, a vida humana é um rio barulhento de memórias no leito do tempo. Enquanto outras espécies sabem, sem que ninguém tenha ensinado, que precisam voar para o sul para não sucumbir no inverno ou que devem escalar dezenas de metros de uma árvore em busca da fêmea para se acasalar num momento preciso, nós perpetuamos lembranças. Não é uma intuição prática, no sentido ordinário do termo. Mas é tão vital quanto o acasalamento ou a fuga do inverno.

Assim como a natureza tece mil expedientes para perpetuar seus genes, pertençam eles a um chimpanzé ou a uma mosca; nós, cuja diferença evolutiva nos permitiu inventar a cultura e ser na cultura, perpetuamos a vida através da memória. Já que, para nós, não há vida sem a consciência da vida. Transmitimos as histórias, o conhecimento e os sentimentos dos que se foram, tanto como humanidade quanto como indivíduo, como se fossem parte de um DNA imaterial. Do contrário, seria impossível conviver com o privilégio de nossa espécie, a consciência do fim.

Quem não entende isso acha que, quando doamos as roupas e os objetos de quem amamos e se foi ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a perda. Não acredito que exista superação no sentido do esquecimento. O que acontece é que compreendemos que aquela pessoa não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas também não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às vezes anos. Ela agora mora no mundo de dentro, vive como memória nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva de um outro jeito. É o que me ensina João, o homem que divide comigo a aventura arriscada de viver. De luto por sua própria mãe, percebo que a carrega nos olhos quando se maravilha com a novidade do mundo.

Ele me ensina que a vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. Então a memória fica pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, num dogma ou numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas quando os mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de fazer acima e apesar do horror que nos atinge até mesmo em partes que nem sabíamos que existiam.

Quando perdeu a mãe, João compreendeu por completo a poesia que Carlos Drummond de Andrade escreveu para a poeta Ana Cristina Cesar, que se suicidou aos 31 anos atirando-se pela janela do 13° andar. Ela fala da diferença entre falta e ausência. “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” É isso. A ausência não é falta. Ou, dito de outro modo, a falta nos come vivos. A ausência, por paradoxal que pareça, nos preenche.

Há um filme de extraordinária beleza sobre a perda, a saudade e o lugar dos mortos em nós. Chama-se “Hanami – Cerejeiras em flor” (Doris Dörrie, 2008 – Alemanha/França). Passou nos cinemas, ainda resiste numa sala ou outra, mas já assisti ao filme na TV por assinatura. Se você encontrar este nome na programação, não deixe de ver. Feche as cortinas, proteja-se do barulho da rua, programe-se para algo especial. O filme conta a história de um homem que não gosta de sair da rotina em sua viagem mais longa e menos previsível. Ele parte em busca de sua mulher e só a encontra quando descobre que ela está dentro dele, nos gestos dele, no corpo e nos olhos que ele empresta a ela. É um filme sobre a morte que nos leva ao único lugar onde vale a pena chegar, à vida.

Quando sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe pessoal de outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com as melhores intenções, que tudo passa. Acho que, na verdade, nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós que aqui estamos como matéria um dia seremos apenas eco. Tanto pelas nossas células que alimentam e se agregam a outros seres vivos a partir da decomposição de nosso corpo como pelas histórias que transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos tantas vezes até o fim da vida. E é este o movimento que importa.

Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora minha amiga ouve, mas não pode escutar. A dor a está comendo viva como as formigas africanas. Tudo é horror e absoluto. Mas com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe dentro dela. E levá-la para passear.

E, num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos.

(Publicado na Revista Época em 18/10/2010)

Comer, rezar, amar

Alugara o apartamento pela internet. O site fora indicação de um amigo diplomata que servira em Roma. Patrício escrevia razoavelmente bem em português. E esta familiaridade da mesma língua dera a ela uma confiança. Era o sonho dela. Escrever um romance num pequeno apartamento de Roma, com o sol entrando pela janela junto com as eternidades da cidade dos Césares. Ignoraria o Papa. Nunca entendeu aquela frase: “Ir a Roma e não ver o Papa”. Para ela seria estranho ir a Roma e perder tempo com o Papa. Preferia ruínas vivas.

Levou uma semana para se decidir entre os apartamentos que ele lhe enviara por e-mail. Entrou nos links e reviu os vídeos de cada um dezenas de vezes. Se fosse você, qual escolheria?, ela perguntava a Patrício, como se ele fosse um velho amigo. Pega sol? A cama é boa? Veja bem, trata-se de um sonho. Ela achava que as pessoas ligavam para sonhos.

Escolheu um pequeno loft numa rua com nome de mulher, perto da Piazza Navona. Uma escolha racional. Gostou da vielinha deserta com um café no térreo que viu no vídeo da imobiliária. Imaginava-se tomando o café com os donos, a mulher lhe serviria um pedaço de bolo que acabara de fazer, uma receita de sua velha nona. Depois os deixaria acenando na porta para comprar 100 gramas de presunto Parma e uma garrafa de Chianti na mercearia da esquina.

Chegou assim na estação Termini. Um táxi a deixou no café simpático enquanto esperava o moço da imobiliária. Patrício havia dito que um funcionário chamado Pablo a esperaria à uma da tarde. Os donos do café simpático não entendiam o seu italiano. Nem eram simpáticos. Atrapalhada, ela acabou pedindo uma cerveja em vez de um capuccino. Pablo apareceu dez minutos depois da hora marcada. Com uma cara fechada. Disse que era argentino de Buenos Aires, vivia em Roma há um ano. Se tivesse algum problema, era para falar com ele. Não com Patrício. Só com ele. Disse que não precisava explicar nada do apartamento porque tudo era “muy sencillo”. Só depois ela percebeu ter assinado um papel sem ler, atarantada com a dureza da recepção. De repente, a diferença do fuso horário pesava como algemas.

Quando Pablo a deixou sem se despedir, descobriu que estava no que deveria ter sido o porão de um prédio medieval. Uma masmorra, talvez. Lá no alto havia uma janela gradeada, mas não conseguia alcançá-la. Abriu um pouco dela para arejar por meio de um pedaço de pau comprido. A luz do sol mal esbarrava nas grades. Sentiu a claustrofobia de criança cravando unhas mofadas no seu coração. Agora que se sentia desprotegida no velho mundo.

O pior eram as chaves da porta. Havia duas, mas ela só recebera uma. A mais simples. Sempre tivera problemas com chaves. As portas de todos os seus apartamentos tinham muitas fechaduras. Só se sentia segura depois de checar três vezes se todas tinham sido trancadas e estavam na sua mão. Só então conseguia dormir. Com uma luz acesa na cabeceira. E agora se encontrava ali, com uma chave só. E a outra, onde andaria?

Xingou a si mesma. Elizabeth Gilbert, a autora de Comer, rezar, amar, com certeza não se intimidaria. E por isso havia ficado rica, famosa e ainda tinha encontrado um grande amor. Ela era adulta. Ou não era? Não fazia sentido tudo isso. Tinha alugado um apartamento em Roma e estava assustada como uma menina de cinco anos. Era uma mulher agora. Uma escritora. Tinha um sonho. E o faria acontecer.

Pegou a mochila e partiu em busca de uma mercearia nas redondezas. Encontrou um pequeno supermercado. Tentou puxar assunto com o moço que lhe cortava cem gramas de mortadela. Ele não sorriu. Escolheu alguns pacotes de sopas de microondas. Sim, lembrava que tinha visto um num canto do apartamento. Um suco com aquela laranja vermelha de que gostava. Uma barra de chocolate branco. Pretendia rever Cinema Paradiso no computador antes de dormir. Combinava com uma barra de chocolate branco. A caixa do supermercado não respondeu ao seu bongiorno. Jogava suas compras no balcão como se fossem ratazanas. Disse que não tinha troco para sua nota de 100 euros. Ela sentiu vontade de chorar, mas era adulta. Fechou a cara e não falou grazie. A italiana não dormiria naquela noite.

Decidiu encher a pequena banheira e relaxar lendo um livro. Descobriu que só saía água fria das torneiras. Desta vez, chorou. Prendeu a respiração e molhou o corpo inteiro. Depois se ensaboou. Enxaguou o corpo pensando que precisava emagrecer. Era curioso como a verdade se revelava quando se mudava de cenário. De repente estava ali, uma mulher de meia-idade, acima do peso. Com um sonho.

Emagreceria na volta. Enquanto se enxugava com uma toalha gasta, concluiu que, afinal, banho frio fazia bem para a saúde. Tinha um amigo que só tomava banho frio, mesmo no inverno. Ela poderia adotar isso. Sentia-se revigorada quando deitou na cama com seu computador e a música de Ennio Morricone encheu o apartamento lambendo a sua alma. Agora sim estava parecido com um sonho.

O padre tocava o sino violentamente enquanto o casal se beijava na tela. O sinal para Alfredo cortar o fotograma na fita. Totó espiava pela cortina. Ela ouviu alguma coisa. Não queria ouvir nada. Totó pedia a Alfredo que lhe ensinasse a mágica dos filmes. Ela ouviu de novo. Agora não poderia ignorar. Apertou a tecla pause. Caminhou descalça, com um pouco de nojo. Ela era assim, a casa que não era dela a contaminava. Não ouviu mais nada. Nem viu nada estranho. Voltou para a cama.

Totó agora levava uma surra da mãe porque os restos de película que escondera numa lata debaixo da cama tinham pegado fogo e quase mataram sua irmã caçula. O fogo da tela iluminou o medo dentro dela. A porta. Nem apertou a tecla pause. Correu até a porta sem se preocupar com a pedra suja sob os seus pés. Tentou puxar o trinco. Nada.

Estou nervosa. Devo ter eu mesma me trancado. Ofegante, chaveou de novo. E deschaveou. Um arrepio embaralhou suas tripas. Sentiu aquele gelo no cérebro de quando o medo não é mais além da imaginação. Alguém a tinha trancado por fora. Caminhou de volta para a cama. E de volta para a porta. Ficou alguns minutos assim, sem saber o que fazer. Ainda com vergonha de gritar. Será que ela, sempre tão contida, sabia gritar? Lembrou que quando o homem no cinema tinha agarrado o peito que não tinha aos 11 anos ela não tinha conseguido gritar. E não gritou até o suspiro final dele. É curioso como algumas coisas assomam na cabeça… Ela estava trancada num porão reformado num prédio medieval da cidade eterna. Só podia ser pegadinha. Claro. Riu um riso nervoso. Era a rata da ratoeira que veio atrás do parmigiano-reggiano e virou linguiça.

Olhou para a janela gradeada lá no alto. Descobriu que podia gritar. Começou a berrar e a esmurrar a porta. Sabia que havia apartamentos em cima do seu. Não tinha visto ninguém entrar no prédio além dela, mas sabia que existiam, vislumbrara luz numa janela. Quebrou uma cadeira na porta. Agora estava furiosa. Quebrou um objeto atrás do outro. O ponteiro do relógio já tinha virado meia-noite e nenhum barulho externo entrava pela janelinha do alto. Lá longe, bem longe, uma sirene. E mais nada.

Na tela do computador, o Cinema Paradiso pegava fogo quando ela sentiu o cheiro de queimado.

Menos leviandade, por favor

O falso debate do aborto só favorece a política suja

Parecia que tudo ia bem. Na nossa jovem democracia, de apenas 25 anos, tínhamos no primeiro turno três candidatos a presidente com votação significativa por quem podíamos sentir respeito. Lamentávamos os debates de mentirinha, as imagens esculpidas com botox e cirurgias plásticas (para quê?), as promessas de ocasião. Tínhamos preferência por um, divergências com outro, natural e desejável numa sociedade plural. Mas não tínhamos vergonha. Não havia, nesta disputa presidencial, nenhum Fernando Collor de Mello ou Paulo Maluf, cujas biografias dispensam comentários. O segundo turno veio e pensamos: quem sabe agora haverá um debate de verdade e poderemos comparar propostas e idéias? E então começamos a sentir vergonha. Profunda vergonha.

É difícil acreditar que depois de tudo o que vivemos para resgatar democracia e respeito próprio, venham com esta baixaria. A de um falso debate sobre o aborto. Porque uma discussão de verdade sabemos que nenhum dos dois candidatos quer fazer. No finalzinho do primeiro turno, uma campanha anônima na internet transformou Dilma Rousseff em “abortista” e “assassina de fetos”. Como parece que a estratégia das catacumbas colou, com a candidata do PT perdendo votos entre evangélicos e um e outro bispo católico exortando seus fiéis aqui e ali, a inquisição continua e com fogueiras cada vez maiores. De repente, querem nos fazer acreditar que a grande questão nacional é saber se Dilma Rousseff é a favor ou contra o aborto. Que questão é esta?

Existe, sim, uma questão de saúde pública que não deveria ser ignorada por nenhum candidato sério. Segundo reportagem do jornal O Globo deste domingo, o aborto ilegal mata uma brasileira a cada dois dias. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pela UnB e Anis, aos 40 anos uma em cada cinco mulheres já fez aborto, o que equivale a mais de 5 milhões de brasileiras. Segundo a mesma pesquisa, 15% das mulheres que abortam são católicas, 13% protestantes ou evangélicas, 16% de outras religiões e 18% não responderam ou não têm religião. Segundo o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de mortalidade materna no país. Em algumas regiões do Nordeste, segundo a Rede Feminista de Saúde, chega a ser a principal causa de morte.

Você pode e tem o direito assegurado pela Constituição de acreditar no que quiser, professar a fé que bem entender ou não ter fé nenhuma. O que ninguém deveria poder – seja candidato a presidente ou cidadão – é ignorar a morte de seres humanos. Todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que as mulheres mais ricas procuram boas clínicas e abortam em segurança. E todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que são as mulheres mais pobres que morrem em procedimentos clandestinos, porque não têm dinheiro para pagar as boas clínicas. Quando estas jovens mulheres morrem, deixam filhos que não podem cuidar e famílias que se desfazem pela sua ausência, provocando problemas sociais em cadeia. Esta é uma tragédia que começa com a morte de uma pessoa e vai causando muita dor pelo caminho dos que ficam. Transformar a vida destas mulheres em moeda de barganha política, como temos assistido no início deste segundo turno, é uma indignidade.

Acho curioso que algumas pessoas que se dizem religiosas acreditam ter o monopólio do discurso da vida. E que estes que acreditam terem privatizado a verdade, ao falar em nome da vida não se preocupem com a morte destas mulheres. Não se coloquem por um minuto sequer no lugar destas mulheres para tentar alcançar seu desespero e sua dor. E então, por empatia e humanidade, perceberem que ninguém deveria morrer por falta de assistência. Assusta-me a rapidez com que estes supostos religiosos julgam e condenam outros seres humanos. Acho a compaixão um sentimento profundo, redentor. E não consigo compreender a compaixão seletiva que move estes dedos em riste.

A morte de mulheres em abortos clandestinos é, sim, uma questão de saúde pública. Que deveria ser discutida seriamente, com informação e profundidade. Mas não é esta a questão que foi lançada na lama desta campanha eleitoral. Aqui, trata-se apenas de demonizar uma candidata em busca dos votos de um certo tipo de devoto. Enquanto alguns grupos de fiéis se lançam cheios de sanha, deitando saliva pelo chão, algumas cúpulas religiosas aproveitam para ganhar alguns pontos de vantagem no embate em torno da questão do aborto, cuja descriminalização vem avançando na América Latina. Por acreditar que os fins justificam os meios, iludem-se que suas mãos seguem limpas.

Eu esperava mais de José Serra. Não há provas de que a lama tenha vindo dos setores mais abjetos da sua campanha. Mas é visível que ele tem empenhado corpo e alma para arrancar toda a vantagem possível da baixaria. Preocupante para alguém que quer ser presidente do país. Eu esperava mais de Dilma Rousseff. Que se comportasse como uma candidata a presidente e colocasse a questão com serenidade, como teve a integridade de fazer no passado recente. Em vez de tergiversar e se encolher diante da baixaria. A nós, eleitores, cabe a pergunta: quem ganha com isso? Me parece que até quem pensa que ganha, perde.

Tenho assistido perplexa ao show de fervor religioso de ambos os candidatos. E eu que não sabia que Serra e Dilma eram devotos dedicados? Não sei em que país eu andava até agora que nunca tinha notado este ardor místico. Na minha ingenuidade, eu esperava ter a chance de assistir a um programa eleitoral que não fosse apenas espetáculo. E lá está Dilma “agradecendo a Deus pela dupla graça” e fazendo “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. Alguém está fazendo uma campanha em defesa da morte? Descobrimos então que Serra fará um governo com “Deus no peito”. Mulheres grávidas desfilam pela tela porque o candidato promete cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem (!). Se há algo que os crentes de verdade – e não os que usam a religião para fazer comércio eleitoral – deveriam se preocupar é com gente capaz de reduzir Deus a cabo eleitoral.

Admiro Marina Silva, pela sua trajetória de vida e pela sua integridade em momentos cruciais. Assim como compartilho da sua visão sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. O que nunca me impediu de sentir arrepios ao ouvi-la colocar a teoria científica da evolução, de Charles Darwin, no mesmo patamar da mitologia do criacionismo. Ou quando sugere transformar o aborto em plebiscito. Ou ao declarar-se contra o casamento gay.

Embora suas posições divirjam das minhas nestas áreas, isto nunca me impediu de ter respeito por tudo o que ela é – e o que representa. Pelo menos até agora. É natural e desejável numa sociedade plural ter convergências e divergências. O que é inaceitável é o desrespeito. O que é intolerável é a demonização de pessoas. O que é inadmissível é transformar um problema de saúde pública, que causa morte de gente, em moeda de barganha eleitoral.

Não me interessa saber se Dilma Rousseff e José Serra são contra ou a favor da descriminalização do aborto. O que me interessa é saber o que vão fazer para impedir que estas mulheres continuem morrendo, independentemente de suas crenças. E, neste momento, talvez me interesse ainda mais como vão se comportar daqui para frente diante da baixaria que se transformou este segundo turno eleitoral. Se vão rolar na lama com o que tem de pior neste país. Ou em algum momento vão levantar a cabeça e se lembrar de quem são – e do que querem ser.

A nós, que temos de escolher entre um dos dois para ser presidente do país, cabe renegar a hipocrisia. Mostrar que não caímos neste velho jogo sujo. Deixar claro que esperamos mais, que desejamos mais, que exigimos mais de quem vai nos governar. É duro sentir vergonha do nível da campanha eleitoral ao cargo mais importante do país, mas pior é ter vergonha do nosso voto. Quando candidatos perdem a compostura, cabe a nós, eleitores, manter a nossa. E mostrar a eles que o Brasil mudou.

Ou não mudou?

(Publicado na Revista Época em 11/10/2010)

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