A Amazônia, segundo um morto e um fugitivo

Dois homens denunciaram a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa que rouba ipê de dentro de áreas de preservação da floresta amazônica, no Pará. Depois da denúncia, um foi assassinado – e o outro foge pelo Brasil com a família, sem nenhuma proteção do governo. A partir do relato desses dois homens, é possível unir a Amazônia dos bárbaros à floresta dos nobres

João Chupel Primo é o morto. Junior José Guerra é o que luta para se manter vivo, depois de pedir e não receber proteção das autoridades. Eles denunciaram o que pode ser uma das maiores operações criminosas de roubo de madeira na Amazônia. Segundo testemunhas, as quadrilhas chegaram a transportar, em um único dia, cerca de 3.500 metros cúbicos – o equivalente a 140 caminhões carregados de toras e 3, 5 milhões de dólares brutos no destino final. A maior parte da produção é ipê, hoje a madeira mais valorizada pelo crime organizado pelo potencial de exportação para o mercado internacional. Toda a operação passa por uma única rua de terra de um projeto de assentamento do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra), controlado por madeireiros: o Areia, localizado entre os municípios de Trairão e Itaituba, no oeste do Pará. Pelo menos 15 assassinatos foram cometidos na região nos últimos dois anos por conflitos pela posse da terra e controle da madeira. Este é o começo da explicação de por que João Chupel Primo morreu – e Junior José Guerra precisa fugir para não ter o mesmo destino.

Os dois denunciaram a operação criminosa de extração de madeira no mosaico de unidades de conservação da região da BR-163 e da Terra do Meio para os seguintes órgãos federais: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Polícia Federal e Secretaria Geral da Presidência da República. Também fizeram denúncias ao Ministério Público Federal e também ao Estadual, além da Polícia Civil do Pará. Pouco aconteceu, além da execução de Chupel.

Na tarde de 20 de outubro de 2011, João Chupel Primo detalhou o esquema em uma reunião com o procurador Cláudio Terre do Amaral, que durou 1 hora e 20 minutos, na sede do Ministério Público Federal em Altamira. Participaram dessa reunião várias pessoas, entre elas uma representante da Secretaria Geral da Presidência da República. Na reunião, Chupel afirmou que decidiu procurar o Ministério Público Federal de Altamira porque já denunciara a outros órgãos e nada havia acontecido. Nos dias 6 e 8 de setembro, por exemplo, ele e Junior haviam dado um depoimento, em Itaituba, à Polícia Federal e ao ICMBio, autarquia do governo federal responsável por fiscalizar e proteger as unidades de conservação. Depois de fazer mais uma vez a mesma denúncia, Chupel afirmou: “Daqui, eu só tenho um caminho”. Fez uma pausa antes de continuar: “Pro céu”.

Menos de dois dias depois, em 22 de outubro, João Chupel Primo foi executado com um tiro na cabeça, dentro de sua oficina mecânica, em Itaituba, à beira da Transamazônica. Junior trancou-se com a mulher e os dois filhos, de 12 e 14 anos, dentro da sua casa, no município de Trairão, nas proximidades da BR-163, e postou-se com uma espingarda na mão. Às 6h da manhã seguinte, uma viatura da Polícia Rodoviária Federal finalmente alcançou a porta de sua casa. Ao ouvir as portas do carro batendo, Junior empunhou a espingarda. Sua mulher chorava: “Você acha que vai conseguir nos defender com uma espingarda? Você nunca deveria ter denunciado”. Ao perceber que quem estava ali era a PRF, Junior jogou a espingarda embaixo da cama. Ele e a família foram levados a Santarém e, de lá, Junior foi a Brasília, para, mais uma vez, fazer as mesmas denúncias.

Ao voltar da capital federal, Junior viajou a Itaituba para recolher provas e documentos na casa de João Chupel Primo. Lá, foi perseguido por um pistoleiro conhecido como “Catarino”. Conseguiu escapar. Mesmo assim, Junior não foi aceito no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Neste programa, pessoas ameaçadas de morte vivem sob escolta, mas continuam atuando em suas comunidades. Para Junior foi oferecido ingressar no Provita – um programa em que testemunhas com risco de morte trocam de identidade, rompem todos os laços e passam a viver em outra região do país, sem contato com a vida anterior. Junior recusou. “Eu quero proteção para voltar lá no Areia e ajudar a criar uma estrutura em que a comunidade tenha condições de trabalhar na legalidade e viver em paz”, afirma. “Por que eu tenho de me esconder e perder tudo o que eu construí na minha vida, e os bandidos continuam lá? O governo quer me esconder para continuar não fazendo nada.”

É difícil compreender por que Junior José Guerra foi entregue à própria sorte. Se não fosse por razões humanitárias, pelo menos deveria contar o serviço que prestou ao Brasil. Segundo Ubiratan Cazetta, procurador-chefe do Ministério Público do Pará: “As denúncias são as mais detalhadas e concretas já feitas sobre aquela região”. Segundo Rômulo Mello, presidente do ICMBio: “Essa foi uma denúncia qualificada, que nos permitiu chegar a dados importantes”. A partir das informações de Chupel e Junior, o ICMBio fez duas operações na região. Na segunda, apreendeu 5 mil metros cúbicos de madeira – 90% deles ipê – e seis tratores, além de aplicar multas no total de R$ 6,4 milhões. Segundo André Villas-Bôas, secretário-executivo do Instituto Socioambiental, organização não governamental com maior atuação na Terra do Meio: “O ISA trabalha diretamente com a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e acompanha a agonia dos moradores em ver os recursos naturais serem saqueados, ano após ano, sem ter informações que explicitem esses esquemas. As denúncias permitiram que isso acontecesse. Junior Guerra apresentou informações muito qualificadas e seria absurdo não proteger essa testemunha, sujeitando-a ao assassinato”.

Júnior José Guerra: marcado para morrer, ele foge com a família pelo Brasil (Foto: Arquivo pessoal)

Júnior José Guerra: marcado para morrer, ele foge com a família pelo Brasil (Foto: Arquivo pessoal)

Dias antes do Natal, fui procurada por Junior José Guerra por meio de uma pessoa em comum. Ele pegaria o primeiro dos muitos ônibus de uma nova rota de fuga quando conversamos pela primeira vez. Ponderei que seria perigoso ele expor sua identidade em uma reportagem. Junior manteve-se irredutível. “Quem quer me matar conhece muito bem a minha cara e tem fotos minhas. Já fiz denúncias em todos os lugares e, mesmo assim, ninguém está preso. Minha única chance de permanecer vivo é fazendo com que o Brasil conheça a minha história”.

Antes de empreender uma viagem da qual não sabia se desembarcaria vivo, Junior me repassou os documentos que entregara a órgãos do governo e ao Ministério Público Federal, gravações feitas por João Chupel Primo e também suas fotos para publicar na reportagem. Tudo o que está dito aqui é de conhecimento das autoridades, há meses, desde o tempo em que Chupel ainda respirava. Neste exato momento, o que está em jogo é a vida de Junior José Guerra. E o que está em suspenso é a capacidade do governo de proteger a floresta e os brasileiros que vivem nela.

O começo da história

A trajetória de João Chupel Primo, 55 anos, e de Junior José Guerra, 38, evoca duas perguntas intrigantes. Como o ipê é tirado, em grande volume, de dentro de unidades de conservação protegidas por decreto federal? Como Chupel e Junior denunciam uma operação criminosa a autoridades de diversas instâncias, e, mesmo assim, um é assassinado e o outro é obrigado a fugir?

No início de 2004, a situação no oeste do Pará era crítica. Grileiros dominavam a região pela força, ameaçando a sobrevivência da floresta e dos povos da floresta. Naquele momento, o interesse era botar a mata abaixo e transformá-la em pasto para boi como forma de garantir a posse da terra. Na área conhecida como Riozinho do Anfrísio, cerca de 200 pessoas, descendentes de soldados da borracha abandonados na selva depois que o preço do látex desandou, defendiam a floresta e o seu direito de permanecer nela à custa da própria vida. Viviam da extração da castanha, do óleo da copaíba e da pesca – e à margem do Estado, que ignorava sua existência. Para expulsá-los, pistoleiros começaram a incendiar suas casas e a ameaçá-los de morte. A resistência da população extrativista levou a então ministra do Meio Ambiente Marina Silva a intervir. E em 8 de novembro de 2004, o governo Lula criou a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio. Essa história foi contada em duas reportagens: “O Povo do Meio” e “Nasce o País dos Raimundos”.

Geografia de sangue: nas unidades de conservação, grileiros trocaram o gado pelo roubo de madeira (Foto: Reprodução)

Geografia de sangue: nas unidades de conservação, grileiros trocaram o gado pelo roubo de madeira (Foto: Reprodução)

A partir de 2004, o governo federal criou um mosaico de unidades de conservação na Terra do Meio. Parecia uma grande vitória da sociedade contra o crime. Teria sido, se o Estado tivesse continuado a fazer a sua parte. Antes da criação da reserva, o líder extrativista Raimundo Belmiro estava jurado de morte. Hoje, voltou a estar jurado de morte, como foi denunciado nesta coluna, em “Cabeça a prêmio: R$ 80 mil”. Desde então, Raimundo vive sob escolta da guarda nacional.

Por quê?

A resposta pode ser encontrada nas denúncias de João Chupel Primo e Junior José Guerra. O conjunto de áreas de preservação foi criado, mas a ocupação pelo Estado ainda está muito aquém do necessário. Em vez de abandonar a região, os grileiros apenas mudaram de atividade. Em lugar de abater a floresta para fazer pasto, passaram a extrair árvores nobres de dentro das áreas de proteção. Saiu a pecuária, entrou a madeira. Na prática, como o governo federal, seja pelo motivo que for, não fiscaliza como deveria, a mudança do modelo de negócio tornou o crime mais eficaz.

Há lógica na mudança de atividade. O gado exige uma estrutura maior e mais permanente do que a madeira. Os bois têm marcas, as toras não. A floresta abatida aparece facilmente nas medições de desmatamento. A extração de madeiras escolhidas, como o ipê, exige trabalho de campo e tecnologias elaboradas para que se possa enxergar. A grosso modo, é a diferença entre implodir um edifício – algo que todo mundo vê – ou apenas saqueá-lo por dentro. Você olha por fora e acha que está tudo bem com ele. Mas, se entrar, percebe que é uma carcaça.

Na prática, os grileiros continuaram agindo como se fossem os legítimos donos da terra, com territórios delimitados e assegurados pela força. A estrutura das quadrilhas é semelhante: em geral, há um “dono da terra”, que recebe entre 25% e 30% para permitir a retirada da madeira de sua “propriedade”. É dele a obrigação de garantir a segurança, eliminando as resistências de ribeirinhos, indígenas e assentados para que o “trabalho” se desenvolva sem percalços. Para isso, o “dono da terra” mantém uma espécie de milícia e um comandante. Quem paga a comissão para o “dono da terra” e se responsabiliza pela extração da madeira é o “extrator” – ou “gato”. Para isso, ele comanda várias equipes de pessoas para o abate da madeira. Quem se opõe à operação e a denuncia, como o líder extrativista Raimundo Belmiro, passa a ser jurado de morte. Se nem assim a pessoa se cala, só há dois caminhos: ou será protegido pela guarda nacional, como Raimundo; ou passa de marcado para morrer a morto, como Chupel.

Junior José Guerra está numa espécie de limbo. Por um lado, botou todos os documentos e gravações nas mãos das autoridades, mas isso não lhe garantiu a proteção do Estado. Agora, ele não tem nenhum trunfo para trocar pela vida. E está sendo caçado.

A trajetória de João Chupel Primo – o morto

João Chupel Primo: assassinado com um tiro na cabeça dois dias depois de denunciar a "máfia do ipê" (Foto: Época)

João Chupel Primo: assassinado com um tiro na cabeça dois dias depois de denunciar a “máfia do ipê” (Foto: Época)

Conhecido na região de Itaituba como “João da Gaita”, João Chupel Primo era um gaúcho que migrou por vários estados até chegar à Amazônia e ao Pará. Nas festas, sempre dava um jeito de arrancar algumas músicas gauchescas da sua gaita. Até transformar-se em denunciante, costumava ser visto com desconfiança pelas lideranças que combatiam a grilagem. Dono de uma oficina mecânica em Itaituba, Chupel havia “comprado” uma área de terra no Riozinho do Anfrísio. Para fazer o negócio, fez sociedade com um grupo de pessoas da cidade de Sorriso, no Mato Grosso. O chamado Grupo Sorriso é um dos quatro que loteiam as unidades de conservação, traçando um mapa próprio de registro de imóveis em área pública.

Duas fortes razões – e como ele está morto não é possível saber qual delas pesou mais – levaram Chupel a denunciar um esquema do qual chegou a participar:

1) Em 2011, começou a rarear o ipê no território do grupo de Carlos Augusto da Silva, o Augustinho, que chegou a ser preso pela morte de Chupel, durante a operação do ICMBio e PF, e foi libertado logo depois. Não apenas conhecido, mas temido em toda a região como o mais violento chefe do crime organizado, Augustinho passou a invadir a área do Grupo Sorriso para roubar madeira. Chupel foi tomar satisfações. Acabou espancado. Mais tarde, ele apresentaria às autoridades uma caderneta com manchas do sangue deste dia. No papel, anotações dos pontos de GPS onde a madeira fora abatida em sua “propriedade”. Acuado, Chupel já sabia que não poderia contar com a polícia local. Então, em agosto, procurou o Ministério Público Estadual, em Itaituba. E, em setembro, deu um depoimento à Polícia Federal e ao ICMBio, também em Itaituba. Em uma gravação, que entregou às autoridades, há o seguinte diálogo:

Denúncia: João Chupel anotou os pontos de GPS onde havia roubo de madeira (Foto: Reprodução)

Denúncia: João Chupel anotou os pontos de GPS onde havia roubo de madeira (Foto: Reprodução)

Augustinho – A polícia tem me ajudado muito!

Chupel – É, se eles não viessem ontem aqui, ficava difícil… Foi bom eles terem vindo, né?

Augustinho – (…) O comandante tá junto com a gente direto!

Chupel – Pois é…

Augustinho – Eu tenho que dar um dinheiro pra eles, uns mil, dois mil real.

2) No início de 2011, Chupel perdeu seu único filho, eletrocutado em um torno da oficina mecânica. Em seguida, a mulher o abandonou. Segundo amigos, Chupel concluiu, por um lado, que não tinha mais para quem deixar seu patrimônio; por outro, começou a pensar em sua situação com Deus. Chupel é descrito como um católico fervoroso, com “conhecimento profundo da Bíblia”. Depois da perda do filho, passou a enxergar estrelas nas fotos que costumava tirar do entardecer. Numa viagem de carro, achou que uma delas o acompanhava. Acreditava ser um sinal do filho morto. Nas gravações, ele intercala as denúncias com frases sobre Deus. Chupel estava em busca de sentido, como acontece com tanta gente depois de uma perda. E isso o fragilizou diante de homens como Augustinho. Não há tempo para luto em terras de pistolagem.
É assim que João Chupel Primo começa a gravar conversas comprometedoras e a juntar documentação. É assim que ele começa a denunciar a operação criminosa às autoridades. E é assim que ele morre com um tiro na cabeça, a quatro metros de onde o filho perdeu a vida.

Avenida do ipê: por esta única rua do assentamento Areia é transportada a madeira roubada das áreas de preservação (Foto: ÉPOCA)

Avenida do ipê: por esta única rua do assentamento Areia é transportada a madeira roubada das áreas de preservação (Foto: ÉPOCA)

Floresta morta: na serraria do assentamento, já passou muita madeira ilegal (Foto: Reprodução)

Floresta morta: na serraria do assentamento, já passou muita madeira ilegal (Foto: Reprodução)

A trajetória de Junior José Guerra – o fugitivo

Junior José Guerra comunga da história de tantos migrantes que ouviram a promessa de um pedaço de terra na Amazônia. Nascido no interior do Paraná, ele viveu uma vida de roça, trabalhando como empregado de fazenda e cultivando um pequeno lote próprio. No início dos anos 2000, teve a terceira intoxicação por agrotóxicos na lavoura de soja. O médico alertou que ele não sobreviveria a uma quarta. Junior migrou sozinho para a região do Trairão, na beira da BR-163. Meses depois, levou a mulher e os três filhos. Mais tarde, comprou um lote no PA (projeto de assentamento) Areia. E, por alguns anos, também foi extrator de madeira da Floresta Nacional do Trairão.

Quando ele e Chupel começaram a fazer as denúncias, foram recebidos com cautela pelas autoridades, por já terem cometido infrações. Quem vive na Amazônia – como em qualquer lugar de conflito, onde tudo ainda está sendo escrito – sabe que a realidade tem vários tons de cinza entre o preto e o branco. Junior e Chupel exemplificam bem a importância de compreender a complexidade da vida naquela geografia. Sem a presença do Estado, parte dos assentados do PA Areia e da comunidade do Trairão vivem à margem da lei. “Enquanto o governo não implantar um plano de manejo florestal, tudo vai continuar igual”, afirma Junior. “As pessoas precisam comer. E a única maneira de fazer isso lá, hoje, é derrubando madeira. É isso que precisa mudar.”

Junior logo se confrontou com a lógica local. Descobriu que, apesar de viver em um projeto do governo federal, seus passos eram controlados pelos chefes do crime. Para entrar e sair do assentamento, ele pagava “pedágio”. O sentimento de posse dos grileiros era tão grande, que chegavam ao requinte de dar recibo.

Certeza da impunidade: no assentamento do Incra, o crime organizado cobra pedágio para assentados alcançarem seus lotes (Foto: Reprodução)

Certeza da impunidade: no assentamento do Incra, o crime organizado cobra pedágio para assentados alcançarem seus lotes (Foto: Reprodução)

Em 2007, Junior começou a se confrontar com alguns expoentes do setor madeireiro da região. Naquele ano, a Associação da Comunidade do PA Areia fez uma parceria com a Amexport Indústria e Comércio de Madeiras Ltda., madeireira instalada em Itaituba, para um plano de manejo florestal comunitário – a única forma legal de extração de madeira dentro de um assentamento. Segundo Junior, que participou do acordo como um dos representantes da associação, a proposta foi apresentada por Luiz Carlos Tremonte, da Amexport, e por Marcos Sato, da Amazônia Florestal. O contrato foi lavrado no cartório do 2º ofício de Itaituba em 28 de julho de 2007. Mas, em dezembro, a relação entre as partes era crítica.

Conforme documento enviado a esta coluna pelo próprio Tremonte, Junior teria recebido uma notificação extrajudicial pelo “recebimento de um adiantamento de R$ 10 mil da Amexport” e “por não ter entregado a madeira à empresa”. Junior afirma ter se recusado a assinar a intimação, por ser “uma “armação dos madeireiros”, na tentativa de desacreditá-lo. “Nunca recebi dinheiro nenhum”, diz. Dois dias depois, numa reunião registrada em ata, a associação decidiu, por sugestão de Junior, contratar um advogado para esclarecer os meandros do contrato.

Luiz Carlos Tremonte afirma que Junior é “maluco, um débil mental, que fez uma confusão danada”. E o Chupel, depois que o filho morreu, “começou a ver o filho na lua”. “Outras empresas também participaram, fizeram contrato com o assentamento. A Amazônia Florestal, do Marcos Sato, foi uma delas. Anota aí, fala com ele”, sugeriu. Marcos Sato, por sua vez, disse que desistiu de comprar madeira da associação porque era “muito enrolado”. Também usou a mesma expressão que Tremonte para se referir a Junior: “um maluco”. E afirmou: “Esse camarada denunciou todo mundo aqui. Você imagina a maluquice desse cara, ele denunciou inclusive o Jader Barbalho, um senador!”.

No plano de manejo comunitário, a associação tinha obtido licença para tirar 11.546 metros cúbicos de madeira de dentro do assentamento. Para que se possa entender melhor, isso significa que a associação tinha 11.546 metros cúbicos de crédito. Quando a extração é feita, é necessário dar baixa nesses créditos pela internet, para que a madeira esteja legalizada e possa ser comercializada. O fato comprovado é que, em 2008, quase todos esses créditos tinham sido usados. O problema: segundo Junior, nenhum pé de árvore havia sido tirado de dentro do assentamento. A análise de imagens de satélite comprova a sua afirmação. O laboratório de geoprocessamento do Instituto Socioambiental verificou que, um ano depois, quase não havia alteração da densidade da floresta nos lotes previstos no plano de manejo comunitário.

A prova da fraude: a imagem de 2009 mostra que houve pouca ou nenhuma extração de madeira na área autorizada do PA Areia (Foto: Reprodução)

A prova da fraude: a imagem de 2009 mostra que houve pouca ou nenhuma extração de madeira na área autorizada do PA Areia (Foto: Reprodução)

Junior denunciou que os créditos foram usados para “esquentar” a madeira retirada de dentro das unidades de conservação. E, assim, legalizá-la, num processo conhecido como “tráfico de créditos”. Mas quem teria feito isso? Junior acusa Tremonte e Sato. Eles negam. “Eu sou o sonho de consumo do Ibama”, diz Tremonte. “Eu fui um grande produtor de mogno, antes de ele ser proibido. Hoje só uso madeira branca (a menos valorizada), que está em todo lugar.” Sato afirma: “Eu exporto madeiras duras (as mais nobres, como jatobá e ipê), mas jamais fiz nada ilegal. Cadê as provas? Não há nenhuma prova do que esse maluco afirma.”

Junior afirma que começou a sofrer ameaças ao reclamar da fraude. Sua filha, então com 12 anos, apareceu em casa chorando. A família achou que, “por já ser uma mocinha, poderiam ter mexido com ela”. Mas a menina se recusava a dizer o que havia acontecido. Depois de algum tempo, a menina contou a um amigo da família que Augustinho teria dito a ela que, se o pai dela não se calasse, mataria a ele e a toda a família. Junior então se mudou do assentamento para Trairão. Sua filha morreu algum tempo depois. Nas porções esquecidas da Amazônia, ou se morre de tiro ou de falta de assistência. No caso da filha de Junior, a menina estava com dengue, e o farmacêutico, em vez de ministrar paracetamol, aplicou uma injeção de penicilina. A menina morreu de choque anafilático.

Nos anos seguintes, a tensão só aumentou. E com ela, a violência. Assentados descontentes começaram a ser executados. Em 2011, dois assassinatos aumentaram a certeza de Junior de que poderia ser o próximo. João Carlos Baú (o Cuca), dois filhos, foi morto quando dançava em uma festa no assentamento. O primeiro tiro atravessou das costas para o peito. Ele ainda cambaleou até cair metros adiante. Quando virou a cabeça para enxergar quem tinha atirado, foi atingido por dois tiros na orelha. Segundo testemunhas, o acusado é um pistoleiro conhecido por “Paulista”, do grupo de Netão, o chefe da pistolagem de Augustinho. Teria recebido R$ 25 mil pela morte.

Depois de Cuca, foi a vez de Edivaldo da Silva, o Divaldinho. No dia da inauguração da energia elétrica no assentamento, bateram na porta da sua casa por volta de três horas da madrugada. Divaldinho atendeu enrolado em uma toalha. Quatro homens o esfaquearam dezenas de vezes. O suspeito de ser o mandante é de novo “Netão”, ligado a Augustinho. Cada um dos assassinos teria recebido R$ 3 mil. Divaldinho ainda ficou vivo por muitas horas, com as tripas expostas. Primeiro, não encontravam carro para levá-lo ao hospital de Trairão. Depois, quando conseguiram chegar lá, não havia sangue para a transfusão. Ele morreu no hospital de Itaituba, depois de ter a barriga costurada. Tinha seis filhos.

Junior começou a registrar boletins de ocorrência e a protocolar denúncias. “A situação é muito parecida com o que a gente assiste nas favelas do Rio. É um crime financiando o outro. A madeira financiando os assassinatos. Em dois anos, foram 15 mortes”, afirma. “Quando comecei a denunciar, Augustinho mandou me avisar que eu já podia cavar um buraco porque ia morrer.”

Fugindo há três meses, Junior – ainda – não morreu.

Os homens da Amazônia – dos servos aos suseranos

A estrutura da grilagem lembra muito a do feudalismo. Entre o suserano e o servo mais humilde há uma teia intrincada de relações de vassalagem. Até hoje, poucas vezes – ou nenhuma – se alcançou os suseranos graúdos, aqueles que fazem política na corte, com mãos macias e palavras escolhidas. Tampouco os homens do comando, que atuam em campo. Em geral, quem é preso nas operações do governo – quando alguém é preso – são os servos ou vassalos de menor importância. João Chupel Primo denunciou a estrutura e a operação de alguns feudos que ocupam a região. E foi assassinado.

O mais violento grileiro do oeste do Pará é Augusto Carlos da Silva, o Augustinho. Ele chegou à região nos anos 90, como empregado de Osmar Ferreira, que ficou internacionalmente conhecido como o “Rei do Mogno”, e ocupou um vasto território na área do Tapajós e do Xingu. Desde 2004, essas terras federais viraram unidades de conservação, o que não o impediu de continuar mandando nelas como se dono fosse. Augustinho já foi acusado de ser o mandante de mais de um assassinato e chegou a passar dois anos foragido. Agora é suspeito de ser o mandante da morte de João Chupel Primo.

No grupo de Augustinho, as principais figuras seriam Ruberto Siqueira da Cunha, o “Nego Ruberto”, e o “Netão”. Ruberto chefia os “gatos” que extraem a madeira. Mantém uma central de rádio para monitorar e divulgar as operações de fiscalização e policiamento da região. Netão seria a outra figura estratégica da quadrilha, ao comandar a pistolagem. Ele alcançou a região no início dos anos 2000, vindo do Paraná. Trabalha com o filho, Alex, na liderança dos pistoleiros. É suspeito de ser o mandante imediato dos assassinatos de Cuca e Divaldinho. Augustinho, Ruberto e Netão não foram encontrados para dar sua versão.

Luiz Carlos Tremonte afirma que sente “grande admiração” por Augustinho. “Um homem que ficou 20 anos dentro dessa floresta e formou dois filhos médicos, eu tenho que admirar. Acho que, se um sujeito fosse mesmo acusado de tanta coisa, não andaria solto como ele anda por aqui. Por conta dessa confusão que aconteceu agora (foi preso pela morte de Chupel e depois solto), andou dizendo até que vai embora.”

O paulistano Luiz Carlos Tremonte, dono da Amexport, tornou-se uma figura quase antológica no Pará. Nas últimas eleições, chegou ser candidato a governador do estado por alguns dias – e depois desistiu. Em 2005, ao depor na CPI da Biopirataria, em Brasília, criada para investigar o tráfico de animais e plantas silvestres e o comércio de madeira, Tremonte dificultou a vida dos deputados. Eles demoraram a entender que ele não era mais dono nem da Amex – que estava no nome da esposa dele. Nem tampouco da Lamex, embora ambas, segundo os deputados, seguissem com dívidas com o Ibama. Muitas idas e vindas mais tarde, os deputados conseguiram arrancar de Tremonte que sua empresa atual era a Amexport. “E esta está em seu nome?”, perguntou um deputado. “Não.”

Ao depor na CPI da Biopirataria, Tremonte teve momentos “iluminados”. Sobre sua defesa da legalidade na Amazônia: “Eu costumo dizer que a Irmã Dorothy (Stang) morreu, mas seu ideal não”. Ao ser confrontado com a suspeita de extração de madeira no Parque Nacional da Amazônia (primeira unidade de conservação criada na Amazônia, em 1974): “Nem conheço. Fiquei conhecendo ontem, no mapa!”. Ao ser questionado sobre um processo em São Paulo, no qual respondia por estelionato: “Não, eu tinha uma pessoa que tinha uma dívida comigo, do Rio Grande do Sul. E essa pessoa, para me pagar a dívida, me trouxe um apartamento… — um terreno, minto, um terreno em São Paulo. E a gente, quando tem dívida para receber, recebe qualquer coisa: cachorro, gato, o que der. E essa pessoa me deu um terreno em São Paulo. Eu fui ver o terreno. Me deu o documento, a gente assinou a escritura. E eu peguei essa escritura e, de forma legal, mandei que ela fosse lavrada num registro de imóveis. Lá chegando, nós descobrimos que a escritura era falsa”.

Durante a entrevista a esta coluna, Luiz Carlos Tremonte insistiu: “Puxa meu nome lá no Google, vai ver meus filminhos no YouTube. Você vai descobrir que eu sou a pessoa que mais defende a floresta em pé. As pessoas não compreendem, mas madeireiro é um benefício para a floresta. Quando tira a árvore frondosa, a gente faz um bem, porque dá espaço para uma mais jovem”. Depois, me enviou uma matéria da revista The Economist, publicada em 2006, em que o jornalista abre com uma frase apocalíptica de Tremonte: “Monstruous misery and hunger” (“Miséria monstruosa e fome”) – referindo-se à situação dos madeireiros por causa de limitações impostas pelo governo.

Outro exemplo de homem amazônico é Sílvio Torquato Junqueira, apesar de, segundo ele, não botar os sapatos em sua fazenda, dentro da Floresta Nacional do Trairão, desde 2006. Homem de fala mansa da região de Ribeirão Preto, criador de gado e admirador de gatos, também já viveu em Brasília, quando foi diretor de Operações da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), nos anos 90. Tudo indica que não gostava muito dos finais de semana na capital federal, já que teve problemas com o Tribunal de Contas da União porque a maioria de suas viagens de trabalho coincidia com os finais de semana e tinham como destino sua querida Ribeirão Preto.

A Fazenda Santa Cecília é – e não é – de Sílvio Torquato Junqueira. Essa versão quase hamletiana é muito comum na Amazônia. São milhares de hectares em nome de mais de duas dezenas de “familiares e amigos” de Junqueira – mas nem mesmo um único hectare em seu próprio nome. Toda a área fica inteiramente dentro da Floresta Nacional do Trairão. Apesar de ter se tornado uma unidade de conservação, a Fazenda Santa Cecília continua lá, sem ser incomodada.

É complicado. O próprio Junqueira explica melhor: “Eu não sou proprietário, eu simplesmente estava tomando conta de lotes de pessoas que tinham se instalado por lá, em 1999, 2000. Fomos por causa da pecuária, aí descobrimos que a madeira podia ser algo bom. Tentamos fazer plano de manejo, mas o Ibama engavetou o projeto. Depois, disse que precisava do título da terra. Eu fui ao Incra pedir para me dar o título ou a certidão de posse, mas o Incra disse que não ia dar. Então não consegui licença e ficou tudo parado. Fiquei num limbo e, de repente, em 2006, veio o decreto do presidente declarando a área como Floresta Nacional do Trairão. Imediatamente paramos tudo e ficou lá uma pessoa, o seu Jordão, tomando conta destes lotes. Estamos aguardando os acontecimentos. Como eu tinha feito lá uma casa, alojamentos, nós recebemos as ONGs, o pessoal do Instituto Chico Mendes… Quem precisa fazer levantamentos de flora e fauna, fica lá. Damos apoio ao pessoal do Chico Mendes, tá certo? Tá tudo à vontade. Se forem fazer uma licitação na Floresta Nacional do Trairão para exploração de madeira, nossa ideia é nos associarmos a alguém para nos dar apoio, porque eu entendo de pecuária, não de madeira. Mas hoje tem umas empresas internacionais muito boas nessa área. Estamos lá, aguardando os acontecimentos. Se o governo mandar sair de lá, eu saio”..
O funcionário de Sílvio Junqueira é Jordão Ferreira da Silva Sobrinho, mais conhecido como “Ticão”. Se o mundo da grilagem tem um diplomata, segundo todos que o conhecem, de ongueiros a extrativistas, este homem é o Ticão. Ele mantém excelentes relações com a quadrilha de Augustinho. E também mantém excelentes relações com os ribeirinhos da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, inclusive fornecendo-lhes transporte, quando necessário. É descrito como um homem educadíssimo. Não há conhecimento de qualquer relato de violência na Fazenda Santa Cecília.

O problema, além de a fazenda grilada estar em uma área de conservação, é o intenso roubo de madeira em seu interior. Um madeireiro conhecido como “Django” é apontado como o “extrator” da Fazenda Santa Cecília. Ele venderia o ipê para a UTC Madeiras Ltda, exportadora localizada em Itaituba. Essa madeireira ficou conhecida quando o Ibama interceptou, em 2008, no porto de Santarém, a carga de um navio com bandeira do Chipre que levava para a Europa madeira serrada com documentação falsificada de várias empresas. Entre elas, a UTC. Procurada para dar sua versão, a UTC Madeiras não deu resposta.

A estrada usada para o transporte das toras corta a Fazenda Santa Cecília e passa a poucos metros da porta da sede. “Em relação à região da Fazenda Santa Cecília, no interior da Floresta Nacional do Trairão, as imagens de satélite identificaram uma intrincada rede de ramais, alguns deles verificados em campo, confirmando a existência de intensa atividade madeireira realizada nos últimos anos dentro e ao redor da fazenda”, afirma André Villas-Bôas, secretário-executivo do Instituto Socioambiental. A fazenda é citada no relatório “Via de Direito, Via de Favor”, resultado de uma investigação conjunta do ISA e ICMBio.

Sílvio Junqueira declarou-se “totalmente surpreso” com a informação de que há roubo de madeira na área grilada que administra. Afirmou: “Não tenho conhecimento e não deve ser verdade. Tenho porteira, tenho controle, o Jordão sempre me telefona dizendo que está tudo preservado. Não é possível, duvido muito, deve ter algum engano nessa imagem. Se tem alguma coisa, eu não tenho nada a ver com isso. Nem os meus filhos, nem nenhuma das pessoas que estão lá tem qualquer coisa a ver com isso. Se estão fazendo coisa errada lá, meu Deus do céu”.

O fato é que a Fazenda Santa Cecília tem status especial na grilagem da região. É a “citricultura” humana mais chique entre as bacias do Xingu e Tapajós – devido ao pedigree de seus “laranjas”. A maioria, senão todos, do estado de São Paulo, com ampla circulação em colunas sociais. Marcos de Oliveira Germano, por exemplo, é campeão pré-sênior scratch de golfe, do Ipê Golf Club, de Ribeirão Preto – nome que não deixa de ser irônico. “Desde que mataram a Dorothy Stang, eu não tenho mais nada a ver com isso”, diz. “A ideia era fazer uma posse. Desde Pedro Álvares Cabral, você demarcava, fazia uma casinha, plantava uma roça e cumpria as normas do Incra para regulamentar. Mas decretaram floresta e não fui mais lá.” No Incra, o processo em que Germano reivindica a posse da terra continua em tramitação.

Outra que chama atenção como laranja é Anna Cecília Junqueira. Filha de Sílvio Junqueira, ela é atriz e organizadora de uma festa “hypada” de São Paulo chamada “Gambiarra”. “Meu pai formou esse condomínio há um tempo e deu pra gente (ela e dois irmãos) de presente”, conta. “Ele disse que iria colocar em nosso nome para o caso de um dia falecer, porque seria nosso de qualquer jeito. Mas tá tudo certinho, dentro da lei.”

No laranjal dos Junqueira há gente com MBA pela London Business School, aficionados de Billie Holiday, Norah Jones e Melody Gardot. Há quem toque bateria e pratique windsurf. Outros fazem equitação. Parece difícil unir a fina flor da elite paulista com a fina flor da pistolagem, representada por Augustinho, Netão e Nego Ruberto. Gente que chama grilagem de “condomínio” e gente que semeia cadáveres no meio da rua. É quase irresistível imaginar um encontro. Mas, de fato, se encontram. E é só ligando os pontos que é possível compreender a Amazônia – e o Brasil.

E quem deu o estopim para unir os pontos foi um homem que está morto – e outro que foge.

E agora, Junior?

Nos primeiros dias de fuga, Junior paralisou. “Eu tinha de pensar para botar o pé no chão e me obrigar a andar”, conta. “Era muito estranho.” Depois, a revolta suplantou o medo. Na véspera de Natal, ele empreendeu uma nova rota dentro do Brasil. Passou o 25 de Dezembro sacolejando em um ônibus de linha, com sua pasta de documentos na mão – seu patrimônio e sua maldição. Alguns dias depois, a família o alcançou no esconderijo. Na sua casa, em Trairão, a gata de estimação partiu, as galinhas morreram, a plantação se perdeu. Longe, em algum lugar, a mulher se revolta, os filhos brigam, ninguém sabe o que fazer agora que a escola vai começar. Junior José Guerra está encurralado. Se voltar, morre. Ele denunciou – e está sozinho.

*colaborou Anna Carolina Lementy

(Publicado na Revista Época em 28/01/2012)

Vestiu a camisa do Corinthians e foi à formatura da filha

Amanda, filha de Estela e de Hustene, tornou-se enfermeira diplomada – um marco na história da família Costa Pereira, da Grande São Paulo. Eles estão entre os cerca de 40 milhões de brasileiros que ingressaram na classe C entre 2003 e 2011. Este é mais um capítulo da saga brasileira que acompanho há uma década

Hustene Pereira, 52 anos, nunca tinha visto lugar tão chique. A casa de espetáculos Skyline fica em Alphaville, um condomínio fechado nos arredores de São Paulo que tenta imitar um daqueles subúrbios americanos com grandes casas e ruas bucólicas que vemos nos filmes de Hollywood. Nos filmes e seriados, é lá que as piores coisas acontecem. Aqui, a história é muito menos óbvia. Na segunda-feira, 16 de janeiro de 2011 – datas históricas exigem completude –, houve certo burburinho quando aquele homem entrou no salão vestido com uma camisa do Corinthians. “Não a do time, mas uma de gala”, Hustene explica. Entre engravatados e mulheres de longos brilhantes, ele era uma aparição inusitada. Ao seu lado, sua mulher, Estela Costa, 45 anos, três quilos e meio mais magra para a ocasião, exibia uma elegância clássica em um vestido doado por uma quase parenta, e teria se harmonizado com a etiqueta do entorno, não fosse o marido em “Corinthians-gala”. Hustene e Estela estavam ali para testemunhar algo inédito na história da família: a primeira Costa Pereira, entre todas as gerações, a receber um diploma universitário. Amanda, 27 anos, sairia dali enfermeira.

É tão grande, mas tão grande, que Hustene, a quem nunca faltam palavras, só encontrou uma para descrever: “indescritível”. É Estela, que só pôde estudar até a quinta série, quem traduz com uma metáfora: “Eu nunca sonhei que um dia pudesse ver uma filha formada, nunca pensei que algo assim pudesse acontecer com pessoas como nós. Quando eu vi minha filha lá, recebendo o diploma, para mim era um outro parto. Um ainda mais gostoso do que o primeiro. Era a minha criação que estava ali”. Estela chora. Chora com soluços fundos. E só quem viu Estela chorar por tanta falta de comida, por tanta falta de saúde, por tanta falta de tudo, consegue não alcançar, mas ao menos chegar perto, da exorbitância daquela cena: Amanda no palco, com o chapéu de formanda na cabeça, e Estela, sempre tão contida, gritando seu nome, de pé. Hustene olha para Estela e também vira água. Não é pouco chorar de felicidade.

Gente como Hustene e Estela faz parte da maioria de brasileiros que há séculos constrói o Brasil, dia após dia, mas não é contada na História. Até pouco tempo atrás, eles só existiam como estatística. Desde que entraram no mundo do mercado ao virar classe C, respondendo por 46% do consumo no Brasil, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, tornaram-se um desafio para marqueteiros, publicitários e ólogos de todo tipo. De que carne são feitos?, é a pergunta do mercado e da academia.

Acompanho a família Costa Pereira há uma década – desde o último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, quando Hustene era mais um chefe de família desempregado. Quando nos encontramos pela primeira vez, na virada de 2001 para 2002, eles pertenciam à outra classificação: “excluídos”. Graças à generosidade dessa família, ao me abrir as portas da casa e da vida, testemunhei pelos seus olhos as mudanças ocorridas ao longo de todo o governo Lula. E, agora, também no de Dilma Rousseff.

Quem tiver interesse pode acompanhar os principais capítulos do percurso dos Costa Pereira neste século nos seguintes textos, por ordem cronológica: “O Homem-Estatística”, “Ao amigo presidente”, “Hustene chorou baixinho”, “Uma família no governo Lula”, “A história dentro da história”. Acredito que a saga dessa família vai muito além de uma transição da classe D, às vezes E, para a classe C. Este é apenas um recorte. A história humana transcende as classificações e, encarnada na vida, tem natureza imprevista.

No capítulo mais recente, Hustene exibe um peito estufado embaixo da camisa do Timão. Topetudo como sempre, motivo pelo qual ganhou na juventude o apelido de “Pankinha” (originado do substantivo “panca”), ele assim descreve sua entrada triunfal no salão para assistir à colação de grau da filha: “Eu era o mais bem trajado”. Horas depois, a família trocaria a latinha de cerveja de “absurdos” 7 reais da casa de Alphaville por uma comemoração na rede de lanches árabes Habib’s. “É muito melhor do que o McDonald’s”, garante Estela.

A formatura, o vestido e o cardápio

A formatura de Amanda, cujo nome foi dado por Hustene em homenagem à música de Taiguara, há algum tempo vem mudando a rotina da família. Ao ingressar na universidade, Amanda progressivamente passou a ocupar um novo lugar na estrutura familiar: o de quem detém um saber que ninguém mais tem. É Amanda quem orienta os pais, os irmãos e a sobrinha nas questões de saúde e alimentação. É também ela que é chamada para socorrer nos embaraços do mundo feminino. Como quando Estela começou a sofrer com o aquecimento global da menopausa e, há pouco, quando a neta Gabriele, de 11 anos, “ficou mocinha”. Envergonhada, Gabi não contou a ninguém. Só quis conversa com Amanda.

Quando Estela enfiou na cabeça que devia emagrecer para fazer bonito no vestido da formatura, tinha comprovado que a ascensão social poderia ser medida não só em renda – mas em quilos. Nos últimos anos, o carrinho de supermercado passou a se encher de produtos industrializados e apenas Hustene alargou em mais de 20 quilos. Segundo sua própria versão, adquiriu um porte de Ronaldo Fenômeno.

A família passou a identificar as fotos do passado recente, em que estavam todos “magrinhos”, como “nós no tempo do Fernando Henrique”. Nos anos de desemprego, Estela já era uma cozinheira criativa, que fazia milagres com ovo e farinha. Com o acesso à internet, ela passou a pesquisar, com afinco de exploradora, novas receitas nos sites de gastronomia, povoando a mesa de delícias e calorias. “Agora, até a Pantera está gorda”, resume Estela. Pantera é a cachorra.

No final de 2011, a obstinação de Estela em ficar elegante no vestido da formatura da filha deflagrou uma mudança na mesa dos Costa Pereira. Estela nem lembra quanto tempo faz que sentiu na boca a textura de um pão francês. O açúcar dos doces e bolos foi substituído por frutas e gelatina. As frituras diminuíram, e a carne passou a ser cozida. Duas vezes por semana, Estela troca a “mistura” (carne vermelha) por peixe, aproveitando as promoções que espia nas caminhadas diárias que faz com uma prima. Granola, linhaça e iogurte natural também entraram no vocabulário e no menu. A tudo, Hustene grita, só para implicar: “Prefiro ovo frito!”.

Ao tentar botar na mesa da família um cardápio mais saudável, Estela descobriu que não seria tão fácil. A garantia de alimentação foi uma conquista enorme, mas os melhores produtos ainda estão fora do alcance da “nova classe média”. Deixar de correr o risco da obesidade, um problema crescente no Brasil, como mostra a experiência cotidiana de chefes de família como Estela, depende da educação e das mudanças de hábito, mas depende também de preço. Estela bem que tentou trocar o óleo de soja por óleo de girassol. Mas, enquanto encontra óleo de soja por R$ 2,59 – e até R$ 1,58 nas promoções –, o de girassol custa mais do que o dobro. “E o de canola é mais caro ainda.” Estela também substituiu o arroz branco pelo integral, mas os preços a obrigaram a recuar. “Eu gasto R$ 4,30 por 1 quilo de arroz integral – e compro 5 quilos do branco por R$ 5,80”, exemplifica. “Numa família que consome 1 quilo de arroz por dia, entre o almoço e a janta, não dá.” Estela faz o que dá e até mais, patrulhando Osasco, na Grande São Paulo, semana após semana em busca de promoções.

O caminho privado da nova classe média

Uma terceira novidade colaborou para a mudança no cardápio. Hoje, apenas Hustene, Estela e a neta Gabriele, criada na casa dos avós, dependem do SUS. Os filhos trabalham com carteira assinada e têm plano privado de saúde como benefício das empresas. Foi pela facilidade de acesso médico que Diego, 24 anos, descobriu uma infecção no fígado causada pelo excesso de consumo de gordura, e Rodrigo, 29 anos, passou a ser acompanhado por uma nutricionista. Depois de perder 10 quilos e achá-los um por um, Rodrigo acabou concluindo que é mais fácil emagrecer fazendo uma cirurgia de redução do estômago.

Nesse aspecto, os Costa Pereira começam a se parecer cada vez mais com a classe média tradicional. Na família, apenas Hustene torce o nariz para a saúde privada. Ele, cujo corpo é uma denúncia ambulante da deficiência da saúde pública, acredita que o SUS precisa persistir e melhorar para que os brasileiros tenham acesso à assistência de qualidade. A convicção revela a força do caráter de Hustene: ele teve o primeiro dos dois derrames por falta de atendimento no posto de saúde, encontra-se há oito meses sem conseguir consulta no cardiologista e vive sob a ameaça de ficar cego por uma doença degenerativa nos olhos para a qual nunca encontrou tratamento. Mesmo assim, acha que é seu dever de brasileiro insistir – e obrigação do Estado melhorar. É o único.

O confronto de Hustene com a saúde pública levou Amanda a querer se tornar enfermeira. Um querer tão forte que, contra todas as probabilidades, ela conseguiu. “Eu sei o que é descobrir que o médico mandou seu pai embora do posto de saúde quando seu pai estava tendo um AVC. Mandou seu pai de volta para casa dizendo que ele só precisava de repouso, e ele estava tendo um AVC. Eu conheço o sentimento de impotência de quem precisa de ajuda e não tem, de quem é leigo e não sabe o que está acontecendo. Eu quis me tornar enfermeira naquele momento”, afirma. “Aquela roupa de formatura era muito quente, mas foi a melhor roupa que eu vesti na minha vida.”

Amanda estudou em uma faculdade privada. Pagou o curso com a ajuda do marido, que para isso manteve dois empregos nos últimos anos. Formou-se com uma dívida pendente de mais de um ano de mensalidades atrasadas. Como a maioria das mães de classe média, ela quer garantir escola particular à filha Rafaela, de 6 anos. “Não quero que minha filha passe pelas dificuldades que eu passei por ter recebido um ensino de má qualidade. Quero que ela estude em colégios privados e possa competir para entrar em uma universidade como a USP”, diz. “Eu estudei em escola pública a minha vida inteira e, apesar de sempre tirar boas notas, não tinha condições de competir com quem estudou nas escolas privadas. Também tive muita dificuldade no primeiro ano de faculdade. Eu não tinha o hábito de leitura e tive de aprender a interpretar os textos. Foi um esforço enorme, mas consegui. Agora eu leio bastante, porque sei que vou precisar me manter atualizada e também sei que hoje só a faculdade não basta. Assim que pagar as dívidas, eu vou fazer pós-graduação na área da saúde mental.”

É possível apalpar no relato de Amanda a diferença que a ampliação do acesso à universidade poderá fazer na vida cotidiana do país, ao levar para o mercado de trabalho especializado homens e mulheres que conhecem as dores dos mais pobres e que tiveram de arrancar o conhecimento com as unhas. A voz de Amanda sobe um tom ao afirmar: “Pode faltar tudo em um hospital ou em um posto de saúde, mas não pode faltar humanidade. Pode faltar material, mas ainda assim você pode parar e conversar. Às vezes, tudo o que alguém precisa é que pergunte como está se sentindo. Eu não quero ser mais uma enfermeira, eu quero fazer a diferença. Eu vou lidar com vidas humanas, tenho obrigação de ser a melhor profissional possível. É uma questão de dignidade”.

A távola redonda fica na cozinha

Na manhã do último sábado, os Costa Pereira se reuniram em torno da mesa da cozinha. Desde que a mudança de classe permitiu uma sequência de melhorias e a aquisição de eletrodomésticos e eletrônicos, a casa na periferia de Osasco foi batizada de “Complexo do Pankinha”. E, desde a formatura de Amanda, virou “Complexo Superior”. “Uma filha formada é outro naipe”, explica Hustene.

É na “távola redonda”, como chamam a mesa da cozinha, que tomam as decisões importantes. Naquela manhã, discutiam quanto cada um daria para comprar uma churrasqueira para o terraço. Mas este não era o tema principal da pauta. O principal era decidir o que cortariam para que Diego e Jade, 19 anos, pudessem usar seu salário apenas para pagar a faculdade que iniciam neste ano, sem precisar contribuir com as despesas domésticas. Diego, na área da administração, e Jade na de marketing.

Não são escolhas de utopia. Se fossem, Diego faria um curso que o levasse à carreira de arqueólogo, seu sonho desde sempre. E Jade pensava em fazer fisioterapia. Para ambos, as opções são determinadas pelo pragmatismo, e os cursos contemplam as necessidades das empresas em que já trabalham. Depois, é deles a tarefa de ajudar Gabriele a fazer universidade quando chegar a hora. “Meus filhos preferiram fazer vestibular e pagar do que fazer o ENEM, que está uma vergonha, todo ano com alguma enrascada”, diz Hustene. Ele costuma criticar os programas de bolsas do governo, seja o Bolsa Família ou o Prouni. “Um trabalhador tem de ganhar o suficiente para se sustentar. O resto é esmola.”

Hoje, a renda da família gira em torno de R$ 5 mil. “Em torno de” porque Diego adquiriu um hábito típico de classe média e anda preferindo ocultar o valor do salário. Nem para a mãe ele conta. “Tô cismada que o cabra está ganhando mais do que R$ 1.200, porque sempre tem dinheiro”, diz Estela. “Paga a água e a luz e colabora com os tickets no total de R$ 330 com que eu compro a mistura. E todo mês guarda um pouco do salário para comprar uma moto ou um carrinho.”

Tudo indica que a família cortará a TV por assinatura para que mais dois Costa Pereira possam cursar universidade. Mas ainda haverá nova rodada de negociações. Hustene, por exemplo, além do futebol, pouco vê a TV aberta. Aposentado em 2011 por causa da saúde, ele acorda pela manhã e vai para o “escritório”. Primeiro checa os emails e as redes sociais no computador. Ele participa do Orkut, do Facebook e do Twitter. Em seguida, passa algumas horas em busca de notícias, na seguinte sequência de sites: “Globo, Band, Terra e R7”. Caso se indigne com alguma delas, dispara alguns comentários virtuais. Só compra jornais e revistas de papel para montar seus álbuns do Corinthians. “Depois de me informar na internet, eu já sei que os telejornais só terão notícia velha. Então, já deixei de assisti-los, porque não acrescentam nada ao que eu já sei. Prefiro passar o restante do tempo vendo documentários”, conta. “Gosto muito do Animal Planet.”

Mesmo assim, Hustene está disposto a abrir mão da TV paga. Na verdade, está disposto a abrir mão de qualquer coisa que for preciso para ser convidado de novo para “uma festa daquelas”. “Essa família pegou gosto por canudos”, fala sério brincando. “Eu sentia claramente que, para as pessoas ao nosso redor, era normal ver a formatura de um filho. Estavam contentes, mas a formatura não tinha o mesmo significado que tinha pra gente. Para nós, ver a Amanda com aquela roupa preta, aquele negócio verde, aquele chapéu de formanda era tudo na vida. É um marco. Antes, só quem tinha poder aquisitivo tinha diploma. A gente se equiparou, sabe? Agora, eu posso até morrer.”

A próxima camisa do Corinthians

Na noite da formatura, Hustene demorou a dormir. Ele, que tanto sonhou com a universidade, foi interrompido pelo primeiro derrame quando faltava uma prova para concluir o supletivo do ensino médio. “Vi o filme da minha vida na cabeça. Meus sonhos todos. Lembrei dos professores que me ensinaram tudo o que eu sei. Faço questão de dizer o nome deles, porque acho que ser professor é a coisa mais bonita do mundo: a Maria Gomes Batalhone, do Colégio Espiridião Rosa, no Jaguaré, me ensinou a ler e a escrever; a dona Etelvina foi a melhor professora de português que eu tive, ela elogiava a minha letra e o capricho dos meus cadernos; tinha o Manuel, de História, o professor Luís, de Ciências… Fiquei imaginando se fosse eu que recebesse aquele diploma lindo, escrito em letras douradas. Eu agradeceria a todos os meus mestres. Ainda preciso perguntar pra Amanda se ela se lembrou dos dela.”

Hustene faz uma pausa molhada. Depois continua: “Sabe, nem o Lula, nem a Dilma agora, nem o Fernando Henrique, que era professor, entenderam a importância da educação. Nenhum deles conseguiu entender de verdade. Por isso a educação nunca foi prioridade, os professores ganham tão pouco e a escola pública ficou tão fraca, prejudicando meus filhos e netos. A educação nunca foi prioridade porque nenhum deles consegue entender, entender mesmo, como a gente entende, o que a educação faz com a vida de uma pessoa.”

Na noite da formatura, o segurança da casa chique de Alphaville entendeu um pouco. “Vai, Corinthians”, brincou com Hustene. “É ‘nóis’ na fita”, respondeu Hustene. Quem não entendeu nada foi o garçom. Amanda nem mesmo tinha sido chamada ao palco quando ele insistiu para que os Costa Pereira pagassem a conta. “É por causa da camisa do Corinthians?”, intimou Hustene. “Não, imagina, é que eu preciso começar a cobrar por aqui”, defendeu-se o garçom. Nervoso, mas plantado ao lado da mesa. Hustene não se abalou. Para as próximas formaturas, ele pretende comprar uma “camisa polo do Corinthians”. Segundo ele, mais “de gala” ainda.

Desde aquela noite, Hustene saracoteia pela vizinhança anunciando para “os quatro cantos da terra de Osasco”: “Sabe, fui na formatura da minha filha”. Assim, como quem não quer nada, entre o preço do pão e a última façanha do Neymar. Mais estufado que um chéster, Hustene explica: “Eu achava que só os imortais tinham filha com diploma. Fiquei pensando…. Agora sou imortal também”. Como ainda é um pouquinho mortal, na manhã seguinte à formatura jogou o número da mesa da cerimônia – “627” – no bicho.

(Publicado na Revista Época em 23/01/2012)

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